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PASSAGENS

O número 119 da revista Lua Nova é composto por nove artigos, enviados espontaneamente por seus autores, que abrangem, em conjunto, problemas e conjunturas díspares, desafios do contexto nacional e internacional, reflexões teóricas e pesquisas empíricas. Todavia, os leitores mais familiarizados com os dilemas frequentemente examinados nas páginas da Lua Nova reconhecerão, com facilidade, que muitos desses artigos conformam uma amostra de questões frequentemente levantadas neste espaço. A relação entre direitos e democracia; nossas possibilidades e descaminhos na busca por desenvolvimento e por uma democracia substantiva; e o estudo dos fundamentos dos processos recentes de desdemocratização são algumas das discussões retomadas e sempre atualizadas nos números da Lua Nova.

Alguns momentos-chave de um percurso de continuidades e interrupções são examinados nos artigos que compõem este volume. No texto de abertura, “O suprafascismo de Julius Evola e os fundamentos da Nova Direita iliberal”, Francisco Thiago Rocha Vasconcelos examina as doutrinas de extrema direita do Barão Giulio Cesare Andrea Evola, ou Julius Evola (1898-1974). Próximo a ideias fascistas e nazistas, Julius Evola produziu um pensamento político que continuou a ser lido por décadas, até ser reatualizado e assimilado - dos anos 2000 em diante - na passagem do fascismo histórico a novas ideologias da direita iliberal.

No segundo artigo, intitulado “Ultraconservadorismo católico: mimeses dos mecanismos da erosão democrática brasileira”, Ana Claudia Chaves Teixeira e Brenda Carranza refletem sobre a afinidade discursiva e performática entre o ultraconservadorismo católico e o bolsonarismo, partindo da análise da contracampanha feita por conservadores católicos pelo boicote à “Campanha da Fraternidade Ecumênica” de 2021. Ao examinar os vídeos produzidos e os ataques contra ideais ditos esquerdistas, as autoras discutem a construção do outro como inimigo religioso, demonizado, e que deve ser eliminado. Os princípios da liberdade tornam-se, assim, justificativas para atacar direitos, minar a democracia liberal e os seus ideais de igualdade, liberdades civis, pluralismo e inclusão.

O terceiro artigo, de autoria de Maria Fernanda Lombardi Fernandes e Gabriela Nunes Ferreira (“Alberto Torres e Rui Barbosa: duas visões do Brasil na Primeira República”), retoma o contexto brasileiro da dupla passagem do trabalho escravo ao livre, e do regime monárquico ao republicano, explorando os dois projetos econômicos e sociais então em discussão (o agrarista e o industrialista). O texto convida ao exercício de repensar as dicotomias frequentemente atribuídas a Alberto Torres e Rui Barbosa e a seus projetos de futuro e de inserção do país no mundo, refletindo sobre as aproximações das trajetórias dos pensadores e de suas proposições políticas.

A passagem a uma sociedade moderna é o tema do artigo seguinte, de Alice O. Ewbank e Karim Helayel, que aborda os pensamentos de Richard Morse e Fernando Henrique Cardoso a respeito da industrialização e da urbanização de São Paulo como chave analítica para apreciar a problemática da dependência em suas interpretações sobre o Brasil e a América Latina. No artigo “Richard Morse e Fernando Henrique Cardoso entre São Paulo e a dependência”, os autores partem do interesse comum de Morse e Cardoso por São Paulo de forma a desvelar os dois sentidos divergentes de dependência em suas obras.

O quinto artigo, intitulado “A ‘população em situação de rua’ e suas heterotopias: saberes e poderes em disputa”, de autoria de Giovanna Olinda dos Santos Bernardino e Alessandra Teixeira, percorre diferentes etapas - desde o fim da escravidão até hoje - do exercício de poder e controle sob indivíduos pobres e, sobretudo, racializados que habitam as ruas, tendo por base uma pesquisa documental e etnográfica do histórico de classificação dessa população. Hoje nomeada de “população em situação de rua” - anteriormente, “morador de rua”, “mendigo”, “indigente”, “vadio” -, o artigo reconstrói as redes de saber e poder por trás de cada uma dessas nomenclaturas, com o objetivo de entender as formas de assujeitamento que elas produzem. Os modos de resistência desses sujeitos, que demonstram outros modos de ser e se relacionar com a cidade, também são explorados pelas autoras.

Em seguida, é publicado o texto “As máscaras da opressão - novas leituras da relação raça e classe”, de Iderley Colombini, que examina o caráter social e racializado do processo de constituição das classes sociais. Em contraste com o juízo de que o antirracismo seria uma luta identitária, Colombini expõe que a questão racial deve ser entendida como central na própria gênese e reprodução das classes sociais.

Os artigos seguintes adicionam uma nova camada de reflexão: o cenário internacional e a inserção dos dilemas do país no âmbito mundial mais amplo. O sétimo artigo, intitulado “Seguindo o dinheiro - uma análise da atuação do Banco Mundial no Brasil (1990-2020)”, de João Márcio Mendes Pereira, examina os empréstimos do Banco Mundial ao Brasil, terceiro maior beneficiário de recursos financeiros da instituição. A pesquisa apresenta um panorama sobre o volume de financiamento direcionado ao país; mudanças de governo a governo; o redirecionamento de empréstimos aos estados, em detrimento da União, a partir do governo Dilma; e os modos pelos quais o Banco Mundial busca difundir e estimular a internalização de ideias, normas e práticas.

O oitavo artigo, “Efeitos das controvérsias investidor-Estado na capacidade dos Estados de legislar para salvaguardar direitos: um estudo de casos em tribunais internacionais de arbitragem entre 1987 e 2020”, escrito por Deisy Ventura e Maria Abramo Brant, estuda os resultados de contestações judiciais de empresas que acionaram tribunais internacionais de arbitragem contra a iniciativa de alguns Estados de implementar novas legislações e normativas. O exame de casos da área da saúde pública, proteção ambiental, acesso à água e direitos de povos indígenas - tramitados entre 1987 e 2020 - sugere que os resultados das controvérsias têm limitado a capacidade de o Estado legislar em temas que envolvem a salvaguarda de direitos e do interesse público.

Pedro Santos Mundim é o autor do nono e último artigo publicado neste número: “A batalha pela opinião pública e o impeachment de Dilma Rousseff”. O texto revisita a conjuntura decisiva do impedimento da ex-presidente Dilma, buscando adicionar um novo fator explicativo ao processo: o papel da substancial derrubada da popularidade do governo nos três primeiros meses do mandato. Com base em surveys telefônicos e pesquisas qualitativas com grupos focais, Mundim demonstra a paulatina desaprovação da opinião pública ao governo, que deteriora semana a semana (e não de forma súbita) entre os meses de janeiro e março de 2015, diante do ajuste fiscal e dos escândalos de corrupção.

No último artigo, regressamos, portanto, ao contexto contemporâneo que foi tematizado também nos dois textos de abertura deste número e retomamos o exame de elementos críticos que ajudam a esclarecer processos recentes de desdemocratização. Nossos dilemas nacionais são apreciados, desse modo, em um percurso circular, que retrocede a outras passagens decisivas e, logo a seguir, alcança novamente a atual conjuntura crítica, de tal forma que somos relembrados da advertência de Fernando Novais, em “Passagens para o Novo Mundo” (1984NOVAIS, Fernando. Passagens para o Novo Mundo. Novos Estudos CEBRAP, v. 2, n. 9, pp. 2-8, 1984. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3OVL3xB . Acesso em: 25 ago. 2023.
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, p. 4), de como “o curso da história envolve sempre, e ao mesmo tempo, continuidade” e “ruptura” e como “a sua compreensão pressupõe articular os dois níveis da realidade”.

Todos os artigos do número 119 receberam avaliações positivas de nossos pareceristas, a quem muito agradecemos.

Uma passagem final deve ser realçada: o número anterior da Lua Nova foi o último editado por Bruno Konder Comparato e, a partir de agora, Natália Nóbrega de Mello assume como editora-chefe da revista. Agradecemos ao Bruno pela qualidade do trabalho que nos guiou até aqui, ao qual almejamos manifestamente dar continuidade.

Bibliografia

  • NOVAIS, Fernando. Passagens para o Novo Mundo. Novos Estudos CEBRAP, v. 2, n. 9, pp. 2-8, 1984. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3OVL3xB Acesso em: 25 ago. 2023.
    » https://bit.ly/3OVL3xB

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023
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