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Qualé a do Partido Humanista

Judith Muszynski

Socióloga e pesquisadora do IDESP

Num dia qualquer de novembro de 1984, os muros de algumas avenidas da capital paulista — que nos últimos tempos têm servido para divulgar bons shows, peças de teatros e musicais — amanheceram com uma nova pichação, anunciando o PARTIDO HUMANISTA, "algo mais que um partido". Diante da surpresa do fato, e como a imprensa não havia noticiado nada a respeito de um novo partido (a não ser sobre o previsível PFL, o Partido da Frente Liberal), a primeira idéia que me ocorreu foi a de um novo conjunto de rock, ou que estaria surgindo mais uma exótica danceteria na cidade.

Em poucos dias, os jornais esclareceram a dúvida: tratava-se realmente de um partido político, disposto a dividir com os outros cinco — ou seis, com o PFL — os votos do enorme eleitorado brasileiro. Lançado oficialmente ainda em novembro, o PH tem acelerado seus esforços de implantação, tentando criar diretórios em pelo menos 20% dos municípios de nove estados (como exige a legislação), para que possa entrar na disputa já nas eleições de 1986. Com tão pouco tempo de vida e sem ter herdado as estruturas de nenhum outro partido mais antigo, como ocorreu com o PDS e o PMDB, as informações disponíveis ainda são um tanto imprecisas. Mesmo assim, sabe-se que o PH já conta com cerca de mil adeptos em São Paulo, seis diretórios (cinco na capital e um em Osasco), além de outros núcleos em formação. O Partido começou a se constituir também em alguns estados, como Rio de Janeiro, Santa Catarina, Paraná, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

O Partido Humanista surgiu no interior de uma sociedade pacifista chamada "Comunidade para o Desenvolvimento do Ser Humano", existente no Brasil desde 1980. Atuando em mais 52 países, essa sociedade é reconhecida inclusive pela ONU. A "Comunidade" tem por meta combater a violência física, econômica, racial e religiosa, e para isso propõe exatamente a não-violência. Através de posturas individuais pacifistas, e da organização cada vez mais ampla de grupos de pessoas em prol da paz mundial, esse movimento busca a transformação do indivíduo e das sociedades por dentro, humanizando a Terra. Sem abandonar suas atividades normais do dia-a-dia, as pessoas poderiam, assim, se empenhar em esclarecer os demais sobre os efeitos da corrida armamentista, da destruição ecológica e de todas as formas de violência contra a própria humanidade. Ainda segundo a "Comunidade", a mobilização pacifista tende a crescer e ganhar o apoio de líderes políticos e religiosos, que concentrarão suas forças em favor da paz.

Unidos em torno destes princípios, os membros da "Comunidade" no Brasil — e alguns meses antes, também na Argentina — chegaram à conclusão de que um passo decisivo para conquistarem o apoio da população e de colocarem em prática suas idéias seria entrar no jogo político. Assim, em poucos meses surgia o PH. Entretanto, apesar da inevitável ligação entre os dois órgãos — já que parte dos membros daquela sociedade pacifista são agora militantes políticos — os porta-vozes do Partido fazem questão de frisar que cada um terá vida própria e distinta, e que o PH está aberto a qualquer pessoa, sem discriminação de espécie alguma.

Surgido de um movimento que tem por princípio valorizar as relações entre os homens, única solução para a crise generalizada que o mundo atravessa, o PH tem argumentos contra o ceticismo que as pessoas às vezes demonstram em relação a suas propostas. A questão é, antes de mais nada, filosófica. Aliás, os conceitos filosóficos, nem sempre de fácil compreensão para um leigo, recheiam todo o texto da Declaração de Princípios desse Partido. Apesar disso, a idéia central, se é que eu soube captá-la corretamente, é até bastante simples: baseia-se na noção de que o homem é capaz e pode transformar o mundo, superando assim a dor e o sofrimento. Nesta capacidade de decisão está, pois, segundo estes humanistas, a chave para que o mundo possa entrar numa nova etapa de sua história.

Valorizar o ser humano, para o PH, significa lutar — sempre de maneira pacífica — contra a pobreza, eliminando o desemprego e a exploração; significa também assegurar educação gratuita, serviços de saúde e melhores condições de moradia para todos. Para combater a violência gerada pelas enormes desigualdades econômicas, causas de tanto sofrimento, o Partido propõe o fortalecimento e a organização da sociedade através da criação de cooperativas de produção, de serviços e de consumo. Para os membros do PH, o Estado deve apoiar a transformação em cooperativas de empresas, que por sua situação estejam comprometendo o presente e o futuro de seus empregados. A formação de sindicatos em todos os setores também deve ser estimulada, reunindo-se todos em uma confederação de trabalhadores.

A dominação dos grandes grupos que controlam a economia, especialmente os multinacionais, também é alvo de crítica na pauta de propostas do Partido. Os humanistas consideram que essa dominação gera dependência externa e interfere nos rumos da nação. Sobre a questão da dívida externa brasileira, o PH propõe a negociação conjunta dos países devedores da América Latina com os grandes bancos internacionais, respeitando-se nossas possibilidades de pagamento. A preocupação do Partido com as relações entre os países latino-americanos vai mais além, abrangendo a intensificação e a proteção do comércio, bem como a formação de um mercado comum (com a representação dos partidos políticos desses países). A assinatura de tratados de paz permanente, a rápida diminuição do número de armas e soldados e a prática de negociações entre os países envolvidos em conflitos — sob a supervisão de uma comissão de países da América Latina — são outros dos pontos importantes na sua plataforma a nível internacional.

Se o PH já tivesse representantes no Colégio Eleitoral, ainda assim não teria participado da escolha do presidente da República, em janeiro de 85. Para os membros do Partido, entre Tancredo Neves e Paulo Maluf, o mineiro representa o mal menor, mas eles queriam mesmo as eleições diretas já. Afinal, entre as instituições que mais valorizam está a democracia representativa, que garanta a participação de todos — inclusive dos que hoje estão excluídos do direito de voto (como os índios e os analfabetos, por exemplo).

A liberdade individual é um direito

Além do direito de escolha de seus representantes, o PH defende a liberdade de opção dos indivíduos em todos os níveis. Dentre a lista de reivindicações neste campo destacam-se o direito de participação dos estudantes, organizados em centros, na gestão das escolas, além da redução da jornada de trabalho para os que estudam; a não obrigatoriedade do serviço militar; e a liberdade dos seguidores dos diversos credos religiosos ou dos ateus de pregarem e divulgarem suas idéias.

Ao PH interessa combater todo tipo de discriminação, mas em especial a que atinge as mulheres e os jovens. São estes, aliás, que compõem a maioria de seus militantes, a começar da direção: o presidente, Waldomiro dos Santos Filho, é um universitário de apenas 23 anos, e a vice-presidente, Ana Rosa Gomes Tenente, uma professora desempregada de 25 anos. A valorização do papel feminino na sociedade inclui, desde a luta para que as donas-de-casa sejam remuneradas por seu trabalho doméstico, até a participação política mais ativa.

Com estas bases de ação, esses jovens pretendem "pôr de pé o Brasil e transformá-lo, mas não de qualquer maneira. Transformar o país e humanizá-lo", esta é a meta do PH.

O Brasil acaba de ganhar mais um partido que se autodefine como de esquerda. O que seus jovens militantes desejam é construir o Partido "de baixo para cima", e isto significa que eles dividirão o árduo trabalho de divulgar suas propostas e fazê-lo crescer rapidamente. Sem recursos, o PH depende da venda de bottons, camisetas e de contribuições espontâneas dos simpatizantes para conseguir manter seus núcleos e para dispor de material de divulgação. Além das pichações — nem sempre bem aceitas — seus membros promovem campanhas de adesão, que consistem na aplicação de questionários em diversos pontos da cidade, onde se pergunta às pessoas se elas concordam ou não com os pontos básicos do humanismo.

O PH também vai à periferia, participa de campanhas sociais de solidariedade aos desempregados e à população carente de forma geral. Este tipo de ação o aproxima da linha desenvolvida por uma ala do PMDB e, especialmente, do PT, de onde vieram alguns de seus militantes. Entretanto, mesmo assumindo algumas bandeiras já defendidas também por outros partidos, o PH procura ocupar um espaço novo e distinto no cenário político brasileiro. Com a tese da valorização do homem e da não-violência como arma de ação, o Partido acredita ir ao encontro de uma aspiração universal, que é a paz — mesmo que muitos considerem isto uma utopia.

O surgimento de novos partidos nos últimos anos indica que nós começamos a viver um período político mais saudável. Neste contexto, é possível que apareçam outras agremiações com bases ideológicas semelhantes, cada uma delas valorizando mais alguns temas específicos. Com este exercício das liberdades democráticas lucramos todos nós, que poderemos acomodar melhor nossas idéias em um ou outro partido. Talvez o exemplo mais ilustrativo de atuação política efetiva a partir de um movimento social seja o do Partido Verde na Alemanha. Neste caso, a união em torno da ecologia deu origem a um partido com uma atividade já significativa no panorama partidário europeu.

No entanto, esta coesão em defesa da preservação da natureza e a pregação antiarmamentista não têm sido suficientes para garantir ao Partido Verde a tão almejada harmonia intrapartidária. Esta parece ser a história que se repete em boa parte dos casos: unir-se em torno de um ideal e ingressar na vida político-partidária não são os passos mais difíceis; o desafio maior talvez seja o de crescer enquanto partido e ao mesmo tempo conseguir manter dentro dos mesmos limites as idéias divergentes, que surgem quase que inevitavelmente. Afinal, para termos duas opiniões distintas, bastam duas cabeças (às vezes, basta uma só). Além disso, cada questão a ser discutida por um partido não se divide sempre entre o certo e o errado, assim como muitas vezes não há um limite claro entre o bem e o mal. E o exercício da política exige perspicácia para se avaliar adequadamente cada situação.

Tentando fazer uma política mais saudável

O crescimento do Partido Humanista, nos próximos anos, estará sujeito a esses fatores. O desempenho de uma sociedade pacifista difere em muitos aspectos da atuação num partido político: o segundo caso exige, por exemplo, um posicionamento claro em todas as questões da vida pública nacional.

O PH não tem entre os seus quadros, ao menos por enquanto, a presença de nenhum político conhecido — ainda que alguns já tenham tentando aproximar-se. Este fato pode ser encarado de duas formas: se por um lado o Partido deixa de contar com a experiência e a fama que estes homens públicos poderiam lhe emprestar — principalmente quando se sabe que uma de suas características mais marcantes é a juventude de seus militantes —, por outro lado este mesmo traço, a "virgindade" política, pode ser usado como uma virtude no combate à "porcocracia" (palavra que para os "humanistas" traduz a corrupção e a sujeira que impregnam a política brasileira).

Se o Partido Humanista superar estes obstáculos, com a mesma vontade que tem demonstrado até agora em seu processo de criação, não resta dúvida de que teremos um discurso novo nos palanques já em 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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