Acessibilidade / Reportar erro

Consenso terminológico da associação brasileira de epilepsia

Terminological Consensus of the ABE

Resumos

O objetivo deste texto é rever a terminologia sobre epilepsia utilizada no Brasil, a fim de unificar termos de uso comum tanto para leigos como para profissionais da área de saúde, uma vez que não há consenso. Em teses e artigos leigos sobre epilepsia são comuns termos como epiléptico e portador sendo a epilepsia referida como uma doença ou uma síndrome. Por outro lado, em reuniões de pessoas com epilepsia o termo paciente com epilepsia é comumente utilizado e os indivíduos ali presentes não são pacientes. A partir da heterogeneidade da epilepsia, o termo distúrbio parece ser o mais abrangente nos âmbitos cientifico e social. A Associação Brasileira de Epilepsia (ABE) propõe a definição de epilepsia baseada na última da Liga Internacional contra a Epilepsia (ILAE) (2005): distúrbio cerebral causado por predisposição persistente a gerar crises epilépticas e pelas conseqüências neurobiológicas, cognitivas, psicossociais e sociais da condição, devendo ter ocorrido pelo menos uma crise epiléptica. A ABE considera que os termos doença, portador, epiléptico devam ser proscritos e a epilepsia deva ser considerada um distúrbio, e os indivíduos que a apresentem, pessoas com epilepsia.

epilepsia; definição; termos utilizados no Brasil


The objective of this paper is to review the terminology about epilepsy used in Brazil, in order to unify terms for lay people and health professionals, hence there is no consensus. Because of the heterogeneity of epilepsy, the term disorder seems to be the more complete regarding scientific and social aspects. The Associação Brasileira de Epilepsia proposes the following definition based on ILAE definition (2005): "Epilepsy is a disorder of the brain characterized by an enduring predisposition to generate epileptic seizures and by the neurobiologic, cognitive, psychological, and social consequences of this condition. The definition of epilepsy requires the occurrence of at least one epileptic seizure". The ABE considers that the terms disease, carrier, epileptic must be outlawed and epilepsy should be considered a disorder, and the individuals that present it, people with epilepsy.

epilepsy; definition; terms utilized in Brazil


CLINICAL, PSYCHOSOCIAL AND SCIENTIFIC NOTE

Consenso terminológico da associação brasileira de epilepsia

Terminological Consensus of the ABE

Laura M. F. Ferreira Guilhoto; Regina S. Muszkat; Elza Márcia T. Yacubian

Associação Brasileira de Epilepsia

RESUMO

O objetivo deste texto é rever a terminologia sobre epilepsia utilizada no Brasil, a fim de unificar termos de uso comum tanto para leigos como para profissionais da área de saúde, uma vez que não há consenso. Em teses e artigos leigos sobre epilepsia são comuns termos como epiléptico e portador sendo a epilepsia referida como uma doença ou uma síndrome. Por outro lado, em reuniões de pessoas com epilepsia o termo paciente com epilepsia é comumente utilizado e os indivíduos ali presentes não são pacientes. A partir da heterogeneidade da epilepsia, o termo distúrbio parece ser o mais abrangente nos âmbitos cientifico e social. A Associação Brasileira de Epilepsia (ABE) propõe a definição de epilepsia baseada na última da Liga Internacional contra a Epilepsia (ILAE) (2005): distúrbio cerebral causado por predisposição persistente a gerar crises epilépticas e pelas conseqüências neurobiológicas, cognitivas, psicossociais e sociais da condição, devendo ter ocorrido pelo menos uma crise epiléptica. A ABE considera que os termos doença, portador, epiléptico devam ser proscritos e a epilepsia deva ser considerada um distúrbio, e os indivíduos que a apresentem, pessoas com epilepsia.

Unitermos: epilepsia, definição, termos utilizados no Brasil.

ABSTRACT

The objective of this paper is to review the terminology about epilepsy used in Brazil, in order to unify terms for lay people and health professionals, hence there is no consensus. Because of the heterogeneity of epilepsy, the term disorder seems to be the more complete regarding scientific and social aspects. The Associação Brasileira de Epilepsia proposes the following definition based on ILAE definition (2005): "Epilepsy is a disorder of the brain characterized by an enduring predisposition to generate epileptic seizures and by the neurobiologic, cognitive, psychological, and social consequences of this condition. The definition of epilepsy requires the occurrence of at least one epileptic seizure". The ABE considers that the terms disease, carrier, epileptic must be outlawed and epilepsy should be considered a disorder, and the individuals that present it, people with epilepsy.

Key words: epilepsy, definition, terms utilized in Brazil.

INTRODUÇÃO

A nomenclatura em epilepsia não é apenas forma de delimitação nosológica, mas é também instrumento útil à comunicação, que deve ser utilizado no senso comum. Portanto é inerente nomenclatura adequada, incluindo descrição da singularidade dos indivíduos com epilepsia, a fim de eliminar o estigma social e obter recursos institucionais, médico-legais e estatais, favorecendo a elaboração de leis específicas.

O objetivo deste texto é rever a terminologia sobre epilepsia para uso comunitário, a fim de unificar termos de uso comum tanto para leigos como para profissionais da área de saúde no Brasil, uma vez que não há consenso.

METODOLOGIA

Foram avaliados dicionários e textos de revisão da literatura internacional relacionada a conceitos, nomenclatura, terminologia e classificação das epilepsias.

RESULTADOS

Hipócrates e Galeno consideravam a epilepsia um sintoma, enquanto Avicena e Celsus, uma doença. Jackson, em 1873, introduziu conceito fisiopatológico de crise epiléptica, a qual considerava um sintoma causado por hiperexcitabilidade elétrica neuronal. Portanto, os termos sintoma ou doença passaram a ser utilizados(1).

Nos séculos XIX e XX, vários autores, como Gowers, Wilson, Merritt, Jasper, etc consideravam epilepsia uma doença, e apenas na década de 80 foi introduzido o termo síndrome epiléptica em classificações da International League Against Epilepsy (ILAE) (1985, 1989)(2-4). Algumas instituições ligadas à epilepsia aboliram o termo doença, e preferiram o termo condição, como a Epilepsy Foundation of America(5), ou ainda distúrbio como a Epilepsy Canada(6) e o instituto norte-americano National Institutes of Neurological Disease and Stroke(7). Em 2005, a ILAE propôs nova definição de epilepsia, que descreveremos a seguir(8).

Portanto, a ABE(9) propõe as seguintes definições amparadas nos trabalhos da ILAE:

Epilepsia: distúrbio cerebral causado por predisposição persistente do cérebro a gerar crises epilépticas e pelas conseqüências neurobiológicas, cognitivas, psicossociais e sociais da condição, caracterizada pela ocorrência de pelo menos uma crise epiléptica (ILAE, 2005)(8). Como a epilepsia não é uma entidade nosológica única, mas advém de várias condições diferentes que ocasionam disfunção cerebral, alguns preferem o uso do termo no plural "epilepsias", mas a Comissão de Terminologia da ILAE preconiza seu uso no singular, embora reconheça esta diversidade(8).

Comentários: O termo predisposição persistente do cérebro é a parte mais importante do conceito. Assim, a ocorrência de apenas uma crise, desde que exista a probabilidade aumentada de recorrência da mesma, é suficiente para o diagnóstico de epilepsia. Pela definição anterior da ILAE, para diagnóstico de epilepsia é necessário que o indivíduo tenha apresentado duas ou mais crises não causadas por fator imediato definido, ou seja sem evidências de insultos agudos como febre, ingestão de álcool ou intoxicação por drogas ou abstinência(10). Vários comentários sobre esse artigo da ILAE foram publicados criticando nessa definição, o termo persistente, o fato de não serem excluídas as crises provocadas, assim como a necessidade da associação das conseqüências citadas, o que modificaria os conceitos dos estudos epidemiológicos e o seguimento de crise epiléptica única(11-13). Os autores responderam que uma definição é uma declaração que expressa a natureza essencial de algo e não deve ter necessariamente caráter operacional, sendo neste último caso utilizada em situações específicas(14). Também consideraram que geralmente existem fatores internos e externos desencadeantes de crises em pessoas com epilepsia, conhecidos ou não, como, por exemplo, privação de sono, estresse, alterações hormonais, etc., e que em relação a estudos epidemiológicos, a definição anterior, na qual duas crises eram necessárias, apesar de ambígua, deixava mais confortáveis os epidemiologistas. Segundo Stedman's, distúrbio constitui alteração de natureza estrutural ou funcional resultante de falha no desenvolvimento seja de ordem embriológica, genética ou de fatores exógenos(15).

Crise Epiléptica: sinais e/ou sintomas transitórios devidos à atividade anormal excessiva ou síncrona de neurônios cerebrais (ILAE, 2005)(8).

Comentários: Esta definição já estava presente no glossário da ILAE de 2001(16). Em ambas sugere-se que é necessária a utilização do termo crise epiléptica e não apenas crise.

Síndrome: distúrbio epiléptico em que ocorre agrupamento de sinais e sintomas que costumeiramente ocorrem juntos; estes incluem vários itens como, tipo(s) de crise(s), etiologia, anatomia, fatores precipitantes, idade de início, gravidade, cronicidade, comportamento cíclico diurno e cicardiano e, às vezes, prognóstico (ILAE, 1989)(4).

Comentários: Houaiss considera síndrome, agregado ou conjunto de sinais e sintomas associados a alguns processos mórbidos/doentios que juntos, constituem quadro de enfermidades ou doenças(17). No dicionário médico Stedman's, síndrome constitui agregado de sinais e sintomas associados a qualquer processo mórbido, constituindo em conjunto o quadro da doença(15). O termo síndrome ainda é discutido, pois a classificação de síndrome deriva daquela da classificação de crises da ILAE (1981), e esta por sua vez, também já foi submetida a propostas de modificação (Engel, 2001), sendo, por exemplo, o termo parcial substituído por focal(18-20). Os termos síndrome epiléptica generalizada idiopática e síndrome epiléptica focal relacionada à localização, presentes na classificação da ILAE de 1989, tendem a ser considerados alterações fisiopatológicas de sistemas neurais específicos(21-2).

Doença: é um termo utilizado para definir condição mórbida na qual há etiologia definida, sinais clínicos consistentes e alterações anátomopatológicas definidas(23-5). Este termo não deve ser utilizado na definição de epilepsia, pois esta pode ter várias etiologias, não tem sinais consistentes nem alterações anatômicas definidas, e, portanto, não pode ser considerada uma doença.

Comentários: Quando a etiologia de uma determinada forma de epilepsia é definida, ela passa a ser considerada uma doença, como a doença de Lafora, a esclerose tuberosa, etc. Segundo Stedman's, doença é a interrupção, cessação ou distúrbio das funções corporais, de sistemas, ou órgãos, com pelo menos dois critérios: etiologia definida, sinais e sintomas consistentes, e alterações anatomicamente delimitadas(15). Houaiss considera doença alteração biológica do estado de saúde de um ser manifestada por conjunto de sintomas perceptíveis ou não(17).

Pessoa com epilepsia: indivíduo que apresenta epilepsia.

Comentários: O termo portador é inadequado, segundo Aurélio, significa aquele que porta ou conduz, armas, notícias, doença contagiosa, e em medicina só é adequado para doenças infecciosas(25). A palavra epiléptico quando referida a indivíduos com epilepsia ou paciente epiléptico, são termos pejorativos e devem ser abolidos.

CONCLUSÃO

A partir da heterogeneidade da epilepsia, o termo distúrbio parece ser o mais abrangente, tanto no âmbito cientifico quanto social. A Associação Brasileira de Epilepsia considera que os termos doença, portador e epiléptico devam ser proscritos e a epilepsia deva ser considerada um distúrbio, e os indivíduos que a apresentem, pessoas com epilepsia.

5. http://www.epilepsyfoundation.org/answerplace/About-Epilepsy.cfm

6. http://www.epilepsy.ca/eng/content/basic.html

7. http://www.ninds.nih.gov/disorders/epilepsy/epilepsy.html

9. http://www.epilepsiabrasil.org.br

Received May 22, 2006; accepted June 26, 2006.

  • 1. Lennox WG, Lennox MA. Epilepsy and related disorders. Londres: J. & A. Churchill; 1960. p. 51-8.
  • 2. DeToledo JC, Ramsay RE, Lowe MR Epilepsy: disease, illness, or disorder? Epilepsy & Behavior; 2003;4:455-6.
  • 3. Commission on Classification and Terminology of the International League Against Epilepsy. Proposal for classification of epilepsies and epileptic syndromes. Epilepsia. 1985;26:268-78.
  • 4. Commission on Classification and Terminology of the International League Against Epilepsy. Proposal for revised classification of epilepsies and epileptic syndromes. Epilepsia. 1989;30(4):389-99.
  • 8. Fisher RS, van Emde Boas W, Blume W, Elger C, Genton P, Lee P, Engel J. Epileptic seizures and epilepsy: definitions proposed by the International League Against Epilepsy (ILAE) and the International Bureau for Epilepsy. Epilepsia. 2005;46(4):470-2.
  • 10. Commission on Epidemiology and Prognosis, International League Against Epilepsy. Guidelines for epidemiologic studies on epilepsy. Epilepsia. 1993;34(4):592-6.
  • 11. Ahmed SN. Epileptic seizures and epilepsy. Epilepsia. 2005; 46(10):1698-702.
  • 12. Beghi E, Berg A, Carpio A, Forsgren L, Hesdorffer DC, Malmgren K, Shinnar S, Temkim N, Thurman D, Tomson T. Comment on epileptic seizures and epilepsy: Definitions proposed by the International League Against Epilepsy (ILAE) and the International Bureau for Epilepsy (IBE). Epilepsia. 2005;46(10):1698-702.
  • 13. Gomes-Alonso J, Andrade C, Koukoulis A. On the definition of epileptic seizures and epilepsy. Epilepsia. 2005;46(10):1698-702.
  • 14. Fisher R, van Emde Boas W. Response: definitions proposed by the International League Against Epilepsy (ILAE) and the International Bureau for Epilepsy (IBE). Epilepsia. 2005;46(10):1698-702.
  • 15. Stedman's illustrated dictionary. 28Ş ed. New York: Lippincott Williams & Wilkins; 2005.
  • 16. Blume WT, Lüders HO, Mizrahi E, Tassinari C, van Emde Boas W, Engel J. Glossary of descriptive terminology for ictal semiology: Report of the ILAE Task Force on Classification and Terminology. Epilepsia. 2001;42(9):1212-8. http://www.ilae-epilepsy.org/Visitors/Centre/ctf/glossary.cfm#data
  • 17. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1ªed. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001.
  • 18. Commission on Classification and Terminology of the International League Against Epilepsy. Proposal for revised clinical and electroencephalographic classification of epileptic seizures. Epilepsia. 1981;22:489-501.
  • 19. Engel Jr J. ILAE Commission Report. A proposed diagnostic Scheme for people with epileptic seizures and with epilepsy: Report of the ILAE Task Force on Classification and Terminology. Epilepsia. 2001;42(6):796-803. http://www.ilae-epilepsy.org/Visitors/Centre/ctf/overview.cfm
  • 20. Engel Jr J. ILAE Task force on classification and terminology. Classification of epileptic disorders. Epilepsia. 2001;42(3):316.
  • 21. Wolf P. Basic principles of the ILAE syndrome classification. Epilepsy Research. 2006;70(suppl 1):20-6.
  • 22. Berg A T, Blackstone NW. Concepts in classification and their relevance to epilepsy. Epilepsy Res. 2006;70(suppl 1):11-9.
  • 23. Jennings D. The confusion between disease and illness in clinical medicine. CMAJ. 1986;135:865-9.
  • 24. Kleinman A, Eisenberg L, Good B. Culture, illness, and care. Clinical lessons from anthropologic and cross-cultural research. Ann Int Medicine. 1978;88:251-8.
  • 25. Pearce JMS. New diagnoses for old disease: dangers and distractions. Quarterly Journal of Medicine. 1994;87:253-8.
  • 26. Aurélio século XXI: O dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2006

Histórico

  • Aceito
    26 Jun 2006
  • Recebido
    22 Maio 2006
Liga Brasileira de Epilepsia (LBE) Av. Montenegro, 186 sala 505 - Petrópolis, 90460-160 Porto Alegre - RS, Tel. Fax.: +55 51 3331 0161 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: jecnpoa@terra.com.br