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Coronavírus e o puerpério: um relato de caso

RESUMO

A COVID-19 teve início na China, em 31 de dezembro de 2019 e, desde então, tem sido alvo de diversos estudos na área médica. Não há muitas evidências sobre a relação da gravidez e do puerpério com a suscetibilidade da infecção pelo coronavírus. O presente estudo relata os aspectos laboratoriais e radiológicos de uma paciente no puerpério. Um teste positivo para a síndrome respiratória aguda severa-coronavírus 2 (SARS-CoV-2) geralmente confirma o diagnóstico de COVID-19, embora testes falso positivos e falso negativos sejam possíveis. O exame considerado padrão-ouro para o diagnóstico da infecção pelo coronavírus é a amostra in vivo ou post-mortem por reação em cadeia da polimerase (PCR). O objetivo deste relato é demonstrar o caso de uma paciente no puerpério com evolução desfavorável do quadro clínico, dando atenção especial para exames laboratoriais que estavam praticamente sem alterações.

Unitermos:
pandemias; período pós-parto; infecções por coronavírus; laboratórios hospitalares

ABSTRACT

COVID-19 started in China on December 31, 2019 and has since been the subject of several studies in medical field. There is not much evidence about the pregnancy and puerperium with the susceptibility of coronavirus infection (COVID-19). The present work reports the laboratory and radiological aspects of a puerperium patient. A positive test for severe acute respiratory syndrome-coronavirus 2 (SARS-CoV-2) generally confirms the diagnosis of COVID-19, although false-positive and false-negative tests are possible. The test considered the gold standard for the diagnosis of coronavirus infection (COVID-19) is from in vivo or post-mortem polymerase chain reaction (PCR) sample. The purpose of the present case report is to demonstrate the case of a puerperium patient with an unfavorable clinical evolution, giving special attention to laboratory tests that were practically unchanged.

Key words:
pandemics; postpartum period; coronavirus infections; hospital laboratories

RESUMEN

La COVID-19 se originó en China, el 31 de diciembre de 2019, y, desde entonces, ha sido objeto de varios estudios médicos. No hay evidencias sobre la relación del embarazo y del puerperio con la susceptibilidad a la infección por coronavirus. El presente estudio reporta aspectos de laboratorio y radiológicos de una paciente en puerperio. Una prueba positiva para el coronavirus del síndrome respiratorio agudo grave 2 (SARS-CoV-2) por lo general confirma el diagnóstico de COVID-19, a pesar de que falso positivos y falso negativos sean posibles. El método considerado el test de referencia para el diagnóstico de la infección por coronavirus es la muestra in vivo o post mortem por reacción en cadena de la polimerasa (PCR). El objetivo de este reporte es demostrar el caso de una paciente en puerperio con evolución clínica desfavorable, poniendo especial atención a los análisis de laboratorio que estaban prácticamente sin cambios.

Palabras clave:
pandemias; periodo posparto; infecciones por coronavirus; laboratorios de hospital

INTRODUÇÃO

A COVID-19 é uma doença de etiologia viral causada pelo vírus da síndrome respiratória aguda severa-coronavírus 2 (SARS-CoV-2) e foi caracterizada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, o que causou severos distúrbios socioeconômicos no mundo inteiro(11 World Health Organization. Director-general's remarks at the media briefing on 2019-nCoV on 11 February 2020. Available at: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-remarks-at-the-media-briefing-on-2019-ncov-on-11-february-2020. [accessed on: February 12, 2020].
https://www.who.int/dg/speeches/detail/w...
).

O primeiro caso foi evidenciado na China, no dia 31 de dezembro de 2019(22 ACC Clinical Bulletin Covid-19 Clinical Guidance For the CV Care Team. [Internet] Available at: https://www.acc.org/~/media/665AFA1E710B4B3293138D14BE8D1213.pdf.
https://www.acc.org/~/media/665AFA1E710B...
), e, desde então, a doença tem sido alvo de estudos de diversas áreas da medicina como, por exemplo, a gravidez e o puerpério.

Este relato de caso visa apresentar os aspectos laboratoriais e radiológicos de uma paciente no puerpério com COVID-19, bem como a evolução da doença em indivíduos com esse perfil epidemiológico, relacionando os dados com a literatura mundial.

RELATO DO CASO

Paciente primigesta, 31 anos de idade, procurou o serviço de emergência de um hospital terciário no 5° dia de puerpério imediato, após alta hospitalar por parto normal. Apresentou-se com quadro de febre não aferida, tosse produtiva iniciada há um dia e dores no corpo. Durante a avaliação do plantonista, não apresentou alterações ao exame físico. Foi medicada e apresentou melhora do quadro, sendo aventada febre relacionada com o puerpério. Em seguida, foi liberada e orientada a retornar ao hospital, se necessário. Após dois dias, a paciente retornou ao pronto atendimento com tosse seca, febre (38,7°C - aferição no domicílio) e dispneia. Negou congestão ou rinorreia. Radiografia de tórax foi realizada (Figuras 1 e 2). Levofloxacino 500 mg, um comprimido ao dia, por sete dias, foi prescrito. Logo depois, ela foi liberada.

FIGURA 1
Radiografia de tórax posteroanterior

Radiopacidade pronunciada em campos pulmonares bilaterais.


FIGURA 2
Radiografia de tórax em perfil

Radiopacidade pronunciada em campos pulmonares bilaterais inferiores.


No terceiro dia do uso de levofloxacino, a paciente retornou ao atendimento com piora da dispneia e aumento de tosse seca. Referiu melhora da febre, porém, tinha sudorese noturna intensa. Ao exame físico, apresentava diminuição do murmúrio vesicular bilateralmente. Para melhor esclarecimento do caso, nova radiografia de tórax foi realizada, na qual se observou piora de consolidação em lobos pulmonares inferiores bilaterais. Suplementação de O2 por cateter nasal foi instalada, com consequente melhora da dispneia.

Após três dias, a paciente foi recebida na enfermaria para melhor esclarecimento diagnóstico. No momento da avaliação, apresentava tosse produtiva, febre há nove dias e uso de levofloxacino por seis dias, sem melhora do quadro clínico. Negou viagem para o exterior ou contato com indivíduos com sintomas de COVID-19. Apresentava-se eupneica com cateter nasal. O exame físico pulmonar mostrou roncos difusos e murmúrio vesicular diminuído globalmente.

Exames laboratoriais resultaram em: hemoglobina (Hb) - 15,2 g/dl; leucócitos - 15.120 mil; bastões - 300; velocidade de hemossedimentação (VHS) - 21 mm/h; potássio (K) - 4,23 meq/l; Sódio (Na) - 137 meq/l; ureia - 18 mg/dl; creatinina - 0,6 mg/dl; glicemia - 98 mg/dl; proteína C reativa - 21,4 mg/l.

Devido à hipótese diagnóstica de pneumonia e COVID-19, a paciente foi mantida em isolamento respiratório. Tomografia computadorizada (TC) de tórax e suabe oral foram realizados para confirmação de COVID-19. Optou-se por iniciar o esquema antimicrobiano com piperacilina + tazobactan. No segundo dia de internação, a paciente evoluiu com mal-estar geral, febre (38,2°C) não controlada com medicação, saturação de 86% em O2 2 l/min; taquipneia (37 irpm); taquicardia (122 bpm); e pressão arterial: 120 × 70 mmHg. Continuava apresentando estertores crepitantes difusos à ausculta respiratória. O eletrocardiograma (ECG) não apresentou sinais de isquemia; os exames laboratoriais coletados concomitantemente ao ECG evidenciavam: Hb - 14 g/dl; leucócitos - 15.190 mil; plaquetas - 130 mil; PCR - 26 mg/l; creatinina - 0,6 mg/dl; Na - 136 meq/l; K - 4,3 meq/l; dímero-D - abaixo de 500 ng/ml; lactato desidrogenase (LDH) - 117 UI/l; troponina - 1,2 ng/l; creatina quinase (CPK) - 42 U/l.

Formuladas as hipóteses diagnósticas de sepse de foco pulmonar ou infecção por COVID-19, a equipe médica optou pela obtenção de uma via aérea definitiva com intubação orotraqueal. Devido à instabilidade hemodinâmica, a paciente foi mantida à espera para uma vaga na unidade de terapia intensiva (UTI). A TC de tórax (Figura 3) evidenciou consolidações acompanhadas de vidro fosco, extensas em ambos os pulmões, com predomínio em lobos inferiores. Não foi possível afastar a etiologia de origem viral. O suabe orofaríngeo foi negativo para COVID-19.

FIGURA 3
TC de tórax

TC de Tórax evidenciando opacidades em vidro fosco extensas em ambos os pulmões, com comprometimento de lobos inferiores; notam-se consolidações com broncogramas aéreos, sugerindo processo inflamatório/infeccioso.

TC: tomografia computadorizada.


No terceiro dia de internação, a paciente apresentava-se sedada, em ventilação mecânica. Optou-se por manutenção de antibioticoterapia associada à monitorização hemodinâmica. O leito de UTI foi disponibilizado, mas a paciente foi a óbito no momento da admissão devido a quadro de insuficiência respiratória aguda. A confirmação de COVID-19 foi feita por reação em cadeia da polimerase (PCR), com amostra coletada post-mortem.

DISCUSSÃO

A COVID-19 apresenta-se em mulheres grávidas de forma semelhante à de não grávidas. Sintomas como febre, tosse e dispneia podem levantar a suspeita de infecção por coronavírus. Um teste positivo para SARS-CoV-2 geralmente confirma o diagnóstico de COVID-19, embora testes falso positivos e falso negativos sejam possíveis(33 Ellington S, Strid P, Tong VT, et al. Characteristics of women of reproductive age with laboratory-confirmed SARS-CoV-2 infection by pregnancy status-United States, January 22-June 7, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020; 69: 769.). No caso apresentado, a paciente estava no puerpério imediato durante o momento da avaliação. Dados na literatura relacionados com manifestações específicas da COVID-19 durante esse período não foram encontrados; portanto, não se pode afirmar se a gravidade do caso esteve relacionada com o puerpério.

Em áreas de alta prevalência da infecção, acreditamos que seja necessária a testagem de todas as pacientes após o trabalho do parto, se houver a possibilidade e teste disponível(44 CDC. Recommendations for patients with suspected or confirmed coronavirus disease 2019 (Covid-19) in healthcare settings. Available at: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/hcp/infection-control-recommendations.html.
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nco...
). Um estudo conduzido em uma cidade com alta prevalência de COVID-19, uma proporção considerável de pacientes assintomáticas (13,5%) admitidas para o parto apresentavam resultado positivo(55 Sutton D, Fuchs K, D'Alton M, Goffman D. Universal screening for SARS-CoV-2 in women admitted for delivery. N Engl J Med. 2020; 382: 2163.). Esses dados geram implicações clínicas no pós-parto, como medidas de isolamento clínico. No presente cenário, observamos uma situação na qual, devido à falta de recursos e disponibilidade de realização de testagem, não era possível fazer a triagem de forma rotineira para coronavírus.

A gravidez parece não estar relacionada com o aumento na suscetibilidade pela infecção; entretanto, nota-se que mulheres grávidas ou em período puerperal podem apresentar risco aumentado de doença grave, necessitando de cuidados em UTI e ventilação mecânica. Foram encontrados casos na literatura de mortes maternas associadas à gravidez e ao puerpério, mas os dados não foram superiores aos de mulheres não grávidas(66 Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and important lessons from the coronavirus disease 2019 (Covid-19) outbreak in China: summary of a report of 72?314 cases from the Chinese center for disease control and prevention. JAMA. 2020.).

Indivíduos de qualquer idade podem contrair a infecção por COVID-19, embora a literatura relate que adultos a partir de 50 anos são mais comumente afetados. Características associadas à apresentação grave incluem algumas comorbidades médicas e alterações laboratoriais (elevação do Dímero-D, LDH, troponina e CPK)(77 Zhou F, Yu T, Du R, et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with Covid-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020; 395: 1054.). Neste estudo, observamos uma discreta elevação nos títulos de troponina T como única alteração laboratorial; isso mostra que muitas vezes os exames laboratoriais podem não aventar a suspeita de COVID-19, estando, como no presente caso, sem alterações em sua maioria.

O exame considerado como padrão-ouro para o diagnóstico da infecção pelo coronavírus é a amostra in vivo ou post-mortem de PCR. O exame de suabe orofaríngeo possui alta especificidade, entretanto, vem sendo associado a diversos resultados falso negativos(88 Rente A, Uezato JD, Uezato KMK. Coronavírus e o coração: um relato de caso sobre a evolução da Covid-19 associada à evolução cardiológica. Arq Bras Cardiol [Internet]. 2020; 114(5): 839-42.). No caso apresentado, mesmo após resultado negativo por suabe orofaríngeo, a hipótese diagnóstica de infecção por COVID-19 não pode ser descartada.

CONCLUSÃO

A COVID-19 é uma doença do trato respiratório que pode ser fatal. Por possuir características semelhantes às de outras infecções, necessita de uma grande variedade de diagnósticos diferenciais. O objetivo deste estudo é apresentar o caso de uma paciente no puerpério que evoluiu para óbito. Na literatura, não foram descritos muitos casos em relação ao acometimento no pós-parto; portanto, não podemos afirmar se esse período seria realmente um fator de risco para a evolução da doença. A amostra de PCR quase sempre proporciona um diagnóstico definitivo, sendo muito útil principalmente no período em que a pandemia apresenta caráter emergente.

REFERENCES

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    World Health Organization. Director-general's remarks at the media briefing on 2019-nCoV on 11 February 2020. Available at: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-remarks-at-the-media-briefing-on-2019-ncov-on-11-february-2020 [accessed on: February 12, 2020].
    » https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-remarks-at-the-media-briefing-on-2019-ncov-on-11-february-2020
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    ACC Clinical Bulletin Covid-19 Clinical Guidance For the CV Care Team. [Internet] Available at: https://www.acc.org/~/media/665AFA1E710B4B3293138D14BE8D1213.pdf
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  • 3
    Ellington S, Strid P, Tong VT, et al. Characteristics of women of reproductive age with laboratory-confirmed SARS-CoV-2 infection by pregnancy status-United States, January 22-June 7, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020; 69: 769.
  • 4
    CDC. Recommendations for patients with suspected or confirmed coronavirus disease 2019 (Covid-19) in healthcare settings. Available at: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/hcp/infection-control-recommendations.html
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    Sutton D, Fuchs K, D'Alton M, Goffman D. Universal screening for SARS-CoV-2 in women admitted for delivery. N Engl J Med. 2020; 382: 2163.
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    Rente A, Uezato JD, Uezato KMK. Coronavírus e o coração: um relato de caso sobre a evolução da Covid-19 associada à evolução cardiológica. Arq Bras Cardiol [Internet]. 2020; 114(5): 839-42.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2020
  • Revisado
    15 Jul 2020
  • Aceito
    17 Jul 2020
  • Publicado
    19 Out 2020
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