Resiliência dos laboratórios clínicos durante a pandemia de coronavírus 2019 (Covid-19)

Este artigo foi originalmente publicado em Avanços em Medicina Laboratorial/Avances en Medicina de Laboratorio, e a Revista Brasileira de Patologia e Medicina Laboratorial é a responsável pela tradução para o português.

Os testes de diagnóstico in vitro têm sido alvo praticamente inocente de políticas pesadas, reiteradas e frequentemente irracionais de contenção de custos durante as últimas décadas, o que contribuiu para diminuir a disponibilidade de recursos técnicos e humanos em todo o mundo⁽¹⁾. Embora o trabalho próximo ao "nível mínimo de sobrevivência" tenha se tornado comum na maioria dos laboratório⁽²⁾, a pandemia de coronavírus 2019 (Covid-19) provocou uma crise universal inesperada e sem precedentes, que rapidamente superou a capacidade de resposta de todo o sistema de assistência médica, incluindo também os diagnósticos laboratoriais⁽³⁾. O último relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatiza que o Covid-19 já afetou, globalmente, mais de 1 milhão de indivíduos, causando mais de 50.000 mortes⁽⁴⁾. Os números epidemiológicos em alguns países, como Espanha e Itália, são muito alarmantes. O número de pessoas infectadas ultrapassou rapidamente 100.000, com taxas de mortalidade de 8% a 11%⁽⁴⁾, refletindo o quadro observado na síndrome respiratória aguda grave (SARS), causada por um coronavírus análogo⁽⁵⁾. Ainda mais importante, quase 20% de todos os casos de Covid-19 requerem hospitalização para tratamento subintensivo ou intensivo, o que representa uma carga adicional para os laboratórios clínicos, que são forçados a gerar um grande número de resultados críticos (urgentes), com o menor tempo de resposta possível⁽⁶⁾.

Nesse cenário de "tempestade perfeita", a medicina laboratorial mostra, mais uma vez, sua resiliência inerente e bem conhecida, segundo a qual os profissionais de laboratório estão fornecendo, ininterruptamente, resultados vitais de testes para diagnosticar, prognosticar e gerenciar os pacientes com Covid-19. Várias linhas de evidências contribuem para demonstrar que o diagnóstico etiológico da infecção por SARS-CoV-2 (isto é, o coronavírus responsável pelo Covid-19) não será possível sem testes laboratoriais, seja pela identificação direta da presença do vírus em amostras biológicas com (em tempo real) reação em cadeia da polimerase transcriptase reversa (RT-PCR), seja por meio da detecção de resposta imunológica contra o vírus, monitorando a resposta de anticorpos⁽³⁾.

Embora a acurácia diagnóstica da RT-PCR em swabs orofaríngeo e nasofaríngeo e os testes sorológicos (no soro ou no plasma) utilizados isoladamente tenham desempenho abaixo do ideal, principalmente na primeira semana após o início dos sintomas (67% e 38%, respectivamente), a combinação dessas duas técnicas diagnósticas pode aumentar consistentemente a sensibilidade do diagnóstico laboratorial em até 80%-90%⁽⁷⁾. Entre oito e 14 dias após o início dos sintomas, a sensibilidade combinada da identificação do ácido ribonucleico (RNA) viral e a detecção de anticorpos aumentam em até 97%, satisfazendo bastante os critérios diagnósticos ideais.

Além da contribuição essencial, praticamente inevitável, para o diagnóstico da infecção por SARS-CoV-2, a medicina laboratorial é fundamental para a estratificação de risco com o recurso de muitos testes, como contagem de células sanguíneas e biomarcadores inflamatórios, cardíacos, musculares, hepáticos, renais e hemostáticos, os quais são elementos essenciais para identificar um subconjunto de pacientes com risco aumentado de desenvolver as complicações mais graves de Covid-19, como síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), síndrome da resposta inflamatória grave (SIRS), insuficiência múltipla de órgãos (IMO) e até morte⁽⁸⁾.

Neste momento, não podemos negar, nem por formuladores de políticas nem por administradores de hospitais, que o surto de Covid-19 causou uma pressão formidável em um setor de saúde já próximo de um abismo. Mesmo que usemos uma bola de cristal, não é possível prever se, quando e como essa pandemia sem precedentes terminará, entretanto, algumas lições devem ser aprendidas. A resposta local dos serviços de medicina laboratorial ao surto de Covid-19 sempre foi eficiente em todo o mundo, apesar dos muitos e reiterados cortes. Todas os profissionais que trabalham nos laboratórios clínicos devem ser glorificados e valorizadas por fornecerem um apoio tão eficiente. No entanto, o trabalho comum com recursos minimamente suficientes obrigou o recrutamento urgente de pessoal - com seleções rápidas -, bem como a necessidade de adquirir instrumentação adicional para atender ao aumento do volume de testes, sobretudo em algumas áreas do laboratório, como a biologia molecular e a sorologia. A escassez de alguns reagentes devido à impossibilidade de estocagem (para limitar custos hospitalares) ou à incapacidade de os importadores de suprimentos atenderem à demanda ampliou ainda mais a vulnerabilidade desse setor. Por último, mas não menos importante, a consolidação incessante de pequenos laboratórios em instalações maiores contribuiu para aumentar o atraso no diagnóstico, além de prejudicar a tomada de decisão clínica em muitas áreas em todo o mundo⁽⁹⁾.

Concluímos citando o mantra latino mais importante e célebre: "herrare humanum est, perseverare autem diabolicum", no mais sincero desejo de que todos aprendam com essa tragédia excepcional.

• FINANCIAMENTO DA PESQUISA
  Nenhum declarado.

REFERENCES

• ¹
  Lippi G, Plebani M. The add value of laboratory diagnostics: the many reasons why decision-makers should actually care. J Lab Precis Med. 2017; 2: 100. Available at: https://doi.org/10.21037/jlpm.2017.12.07.Google Scholar Crossref Export Citation
  » https://doi.org/10.21037/jlpm.2017.12.07.Google Scholar Crossref Export Citation
• ²
  Lippi G, Plebani M. Cost, profitability and value of laboratory diagnostics: in God we trust, all others bring data. J Lab Med. 2019; 43: 1-3. Available at: https://doi.org/10.1515/labmed-2018-0321.Google Scholar Crossref Export Citation
  » https://doi.org/10.1515/labmed-2018-0321.Google Scholar Crossref Export Citation
• ³
  Lippi G, Plebani M. The critical role of laboratory medicine during coronavirus disease 2019 (Covid-19) and other viral outbreaks. Clin Chem Lab Med. 2020. Available at: https://doi.org/10.1515/cclm-2020-0240 [Epub ahead of print]. Google Scholar.
  » https://doi.org/10.1515/cclm-2020-0240
• ⁴
  World Health Organization. Novel Coronavirus (2019-nCoV) situation reports. Available at: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/situation-reports Last accessed, April XX, 2020. Google Scholar.
  » https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/situation-reports
• ⁵
  Lippi G, Sanchis-Gomar F, Henry BM. Coronavirus disease 2019 (COVID-19): the portrait of a perfect storm. Ann Transl Med. 2020. Available at: https://doi.org/10.21037/atm.2020.03.157.Google Scholar
  » https://doi.org/10.21037/atm.2020.03.157.Google Scholar
• ⁶
  Lippi G, Plebani M. Laboratory abnormalities in patients with COVID-2019 infection. Clin Chem Lab Med. 2020. Available at: https://doi.org/10.1515/cclm-2020-0198 [Epub ahead of print]. Google Scholar.
  » https://doi.org/10.1515/cclm-2020-0198
• ⁷
  Zhao J, Yuan Q, Wang H, et al. Antibody responses to SARS-CoV-2 in patients of novel coronavirus disease 2019. Clin Infect Dis. 2020. pii:ciaa344. Available at: https://doi.org/10.1093/cid/ciaa344 [Epub ahead of print]. Google Scholar.
  » https://doi.org/10.1093/cid/ciaa344
• ⁸
  Henry BM, Santos de Oliveira MH, Benoit S, Plebani M, Lippi G. Hematologic, biochemical, and immune biomarker abnormalities associated with severe illness and mortality in coronavirus disease 2019 (COVID-19): a meta-analysis. Clin Chem Lab Med. 2020. Available at: https://doi.org/10.1515/cclm-2020-0369 Google Scholar PubMed Export Citation.
  » https://doi.org/10.1515/cclm-2020-0369
• ⁹
  Plebani M, Laposata M, Lippi G. A manifesto for the future of laboratory medicine professionals. Clin Chim Acta. 2019; 489: 49-52. Available at: https://doi.org/10.1016/j.cca.2018.11.021Google Scholar Crossref PubMed Export Citation.
  » https://doi.org/10.1016/j.cca.2018.11.021

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  29 Maio 2020
• Data do Fascículo
  2020

Histórico

• Aceito
  21 Abr 2020