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Coronavírus na pediatria: relato de dois casos e revisão da literatura

RESUMO

A COVID-19 foi identificada no dia 31 de dezembro de 2019 na China e, desde então, tem sido objeto de diversos estudos. Na área da pediatria, a infecção parece afetar mais suavemente esse grupo populacional em comparação com os adultos. O presente trabalho apresenta o relato de dois casos de pacientes na faixa etária pediátrica, ambos com 2 anos de idade, mostrando seus aspectos laboratoriais, clínicos e radiológicos. Nessa população, a transmissibilidade do vírus parece estar relacionada com a apresentação dos sintomas, pois quanto menos sintomático o paciente se apresenta, menor a transmissibilidade. O interesse final dos casos relatados é demonstrar a boa evolução que os dois pacientes na faixa etária pediátrica apresentaram, direcionando a atenção para a normalidade dos exames laboratoriais e a apresentação com uma grande variedade de diagnósticos diferenciais.

ABSTRACT

COVID-19 was identified on December 31, 2019 in China, and has since been the subject of several studies. In the area of pediatrics, the infection appears to affect this population group more mildly when compared to adults. The present work shows the report of two cases of in patients in the pediatric age group, both aged 2 years, presenting their laboratory, clinical and radiological aspects. In this population, the virus’s transmissibility seems to be related to symptom presentation, as the less symptomatic the patient presents the lower is transmissibility. The final interest of the presented cases is to demonstrate the good evolution that both patients in the pediatric age group showed, directing attention to the normality of laboratory tests and the presentation with a wide variety of differential diagnoses.

Key words:
pandemics; pediatrics; coronavirus infections; laboratories hospital

RESUMEN

La Covid-19 fue identificada el 31 de diciembre de 2019 en China y ha estado bajo investigación desde entonces. La infección parece transcurrir de forma más leve en niños que en adultos. El presente trabajo muestra el reporte de dos casos de la infección con pacientes en la franja de edad pediátrica, ambos con 2 años de edad, presentando sus aspectos clínicos, radiológicos y de laboratorio. En esta población, es posible que la transmisibilidad del virus esté relacionada con la presentación de síntomas, ya que los pacientes menos sintomáticos tienen menor transmisibilidad. El interés final de los casos presentados es demostrar la buena evolución que ambos pacientes en el rango de edad pediátrico tuvieron, llamando atención para la normalidad de los testes de laboratorio y la presentación con gran variedad de diagnósticos diferenciales.

Palabras clave:
pandemias; pediatría; infecciones por coronavirus; laboratorios de hospital

Introdução

A doença coronavírus 2019 (COVID-19) é causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). A doença, devido ao seu impacto no cenário mundial, foi definida como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS)(11 World Health Organization. Director-General's remarks at the media briefing on 2019-nCoV on 11 February 2020. Available at: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-remarks-at-the-media-briefing-on-2019-ncov-on-11-february-2020.
https://www.who.int/dg/speeches/detail/w...
). Na população pediátrica, a contração do vírus normalmente ocorre por exposição domiciliar, em geral com um adulto como caso índice(22 Posfay-Barbe KM, Wagner N, Gauthey M, et al. Covid-19 in children and the dynamics of infection in families. Pediatrics. 2020.). Existem casos associados também ao diagnóstico após exposição em ambientes de saúde(33 Schwierzeck V, König JC, Kühn J, et al. First reported nosocomial outbreak of severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (Sars-CoV-2) in a pediatric dialysis unit. Clin Infect Dis. 2020.).

Este relato de dois casos tem como objetivo apresentar os aspectos laboratoriais, clínicos e radiológicos da COVID-19 em dois pacientes com idade de 2 anos aproximadamente, bem como a evolução da doença nesse perfil epidemiológico, correlacionando os dados com a literatura mundial.

Relatos de caso

Caso 1

Paciente de 2 anos e 5 meses, sexo masculino, sem morbidade prévia, foi encaminhado ao pronto-socorro pela mãe com febre há dois dias (37,6°C), que aliviava com o uso de antipiréticos; apresentava também tosse seca e quadro de diarreia. Ao exame físico, notou-se apenas taquipneia como alteração (FR: 42 irpm). Suspeitou-se de bronquiolite viral aguda. A mãe do paciente foi orientada a realizar lavagem nasal com soro fisiológico, manter a criança em locais abertos e retornar se o quadro clínico persistisse.

Após três dias, a mãe retornou ao serviço de saúde, relatando persistência do quadro clínico. Houve ainda presença de rinorreia e aumento da curva da temperatura aferida em domicílio (máxima de 37,9°C); o paciente não apresentava limitação de suas atividades diárias. Para melhor compreensão do quadro, radiografia de tórax e exames laboratoriais foram solicitados. A radiografia não evidenciou alteração importante no plano posteroanterior, exceto um espessamento na região peribronquiolar (Figura 1). No plano em perfil (Figura 2), notou-se espessamento peribronquiolar na região hilar, de aproximadamente 1 cm, mais evidente na região peritraqueal e nos grandes brônquios da região hilar. Os exames laboratoriais [na admissão: hemograma completo, ureia, creatinina, amilase, lipase e proteína C reativa (PCR)] não mostraram alterações, apenas um discreto aumento da PCR (6,2 mg/dl). Foi obtido suabe orofaríngeo (teste rápido para COVID-19), que deu positivo. A confirmação subsequente de COVID-19 foi fornecida pelo ensaio in vivo da reação em cadeia da polimerase de transcrição reversa (RT-PCR), que foi positivo. O paciente permaneceu isolado em casa, tanto quanto possível separado dos demais membros da família, em ambiente bem ventilado, e apresentou boa evolução. Na RT-PCR in vivo, os pais tiveram resultados negativos. Após 19 dias e dois exames realizados em intervalo inferior a 24 horas para uma amostra de RT-PCR in vivo, ambos foram negativos para COVID-19. Paciente e família tiveram boa evolução, sem evidências de contaminação dos pais da criança por COVID-19.

FIGURA 1
Radiografia de tórax posteroanterior

Transparência pulmonar normal, seios costofrênicos livres, estrutura óssea sem alterações, área cardíaca dentro da normalidade, espessamento de região peribronquiolar.


FIGURA 2
Radiografia de tórax em perfil

Espessamento peribronquiolar na região hilar de aproximadamente 1 cm, mais evidente na região peritraqueal e nos grandes brônquios da região hilar.


Caso 2

Paciente de 2 anos e 1 mês, sexo masculino, sem morbidade prévia, foi encaminhado ao pronto-socorro pelos pais com episódio de tosse e febre (37,5°C) há uma semana, associado a cansaço nas atividades diárias. Ao exame físico, o paciente estava ativo, reativo com dispneia, sem demais alterações. Segundo seus pais, a febre não aliviava com o uso de antipiréticos. As hipóteses diagnósticas de bronquiolite viral aguda, pneumonia e COVID-19 foram propostas. Para melhor esclarecimento do caso, foram solicitados exames laboratoriais (hemograma completo, creatinina, amilase, lipase e PCR) e radiografia de tórax. As radiografia posteroanterior e perfil (Figuras 3 e 4) demonstraram espessamento peribronquiolar dos grandes brônquios na região hilar. Não foi possível explorar a possibilidade de doença intersticial pulmonar por causa da dificuldade com a técnica de posicionamento devido à movimentação do paciente durante a realização do exame. Os resultados dos exames apresentaram-se dentro do faixa da normalidade. Foi recomendada lavagem com soro fisiológico nasal, visando à realização do teste de RT-PCR in vivo para detecção de COVID-19. Dois dias depois, os pais do paciente telefonaram para o serviço para informar que o teste deu positivo e pedir orientações. Recomendamos que o paciente ficasse isolado, tanto quanto possível. Ele precisou da ajuda de seus pais para a maioria das atividades no período, permaneceu em ambiente bem arejado, com lavagem constante de mãos. O contato com as secreções do paciente foi evitado. Após 21 dias, repetindo o teste de RT-PCR in vivo, o paciente obteve resultado negativo. Ele evoluiu bem, sem maiores intercorrências e qualquer sinal de manifestação de infecção viral; não houve evidências de contaminação dos pais do paciente, o que foi confirmado pela RT-PCR negativa de ambos.

FIGURA 3
Radiografia de tórax posteroanterior

Radiografia com transparência pulmonar normal, seios costofrênicos livres, estrutura óssea sem alterações, área cardíaca dentro da normalidade, espessamento de região peribronquiolar


FIGURA 4
Radiografia de tórax em perfil

Radiografia com aparente espessamento peribronquiolar apresentando comprometimento de técnica de posicionamento devido à movimentação do paciente durante o exame.


Discussão

A COVID-19 apresenta manifestações semelhantes em adultos e crianças, embora as crianças pareçam apresentar sintomas mais leves(44 Zachariah P, Johnson CL, Halabi KC, et al. Epidemiology, clinical features, and disease severity in patients with coronavirus disease 2019 (Covid-19) in a children's hospital in New York City, New York. JAMA Pediatr. 2020; e202430.). Crianças de todas as idades podem ter diagnóstico de COVID-19, com maior prevalência nas idades de 15 a 17 anos e menor prevalência nas de 1 a 4 anos(55 CDC COVID-19 Response Team. Coronavirus disease 2019 in children - United States, February 12-April 2, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020; 69: 422.). Em ambos os casos apresentados, os pacientes estavam na faixa etária de menor incidência da pandemia e com sintomas leves que levavam à possibilidade de outros diagnósticos diferenciais.

Os exames laboratoriais podem apresentar variações. Uma busca na literatura revelou que o hemograma da maioria das crianças apresenta resultados normais. Ainda assim, foram descritos casos com baixa contagem de glóbulos brancos, neutropenia e linfocitopenia. Marcadores inflamatórios elevados, como PCR (> 5 mg/dl) e aminotransferases também foram descritos como achados laboratoriais(66 Liguoro I, Pilotto C, Bonanni M, et al. SARS-COV-2 infection in children and newborns: a systematic review. Eur J Pediatr. 2020; 179: 1029.). Em alguns estudos observacionais, o aumento de alguns marcadores inflamatórios (por exemplo, PCR, procalcitonina, interleucina 6, ferritina, dímero D) foi associado a desfechos mais graves(44 Zachariah P, Johnson CL, Halabi KC, et al. Epidemiology, clinical features, and disease severity in patients with coronavirus disease 2019 (Covid-19) in a children's hospital in New York City, New York. JAMA Pediatr. 2020; e202430.). Podemos observar que em nosso primeiro caso, a PCR aumentou discretamente; no segundo, não foram encontradas alterações laboratoriais. Dessa forma, pode-se perceber que pela simples observação dos exames laboratoriais, não foi possível formular a hipótese diagnóstica de COVID-19 na faixa etária pediátrica nos casos apresentados.

O exame padrão-ouro para diagnosticar a COVID-19 é a amostra por RT-PCR. O suabe orofaríngeo não tem a mesma precisão(77 Rente A, Uezato JD, Uezato KMK. Coronavírus e o coração | um relato de caso sobre a evolução da Covid-19 associado à evolução cardiológica. Arq Bras Cardiol [Internet]. 2020; 114(5): 839-842.). No primeiro caso apresentado, o exame de RT-PCR foi utilizado como confirmação, visto que a COVID-19 não foi proposta como a primeira hipótese. No segundo caso, devido à suspeita clínica, optou-se pelo exame de RT-PCR, que estabeleceu o diagnóstico da infecção.

Alterações nos exames de imagem podem estar presentes antes mesmo do aparecimento dos sintomas(66 Liguoro I, Pilotto C, Bonanni M, et al. SARS-COV-2 infection in children and newborns: a systematic review. Eur J Pediatr. 2020; 179: 1029.). Anormalidades na tomografia computadorizada (TC) de tórax, como opacidades em vidro fosco e achados unilaterais e bilaterais inespecíficos, foram descritas na literatura(66 Liguoro I, Pilotto C, Bonanni M, et al. SARS-COV-2 infection in children and newborns: a systematic review. Eur J Pediatr. 2020; 179: 1029.). Achados ultrassonográficos também foram descritos, como consolidações subpleurais e linhas B individuais ou confluentes(88 Denina M, Scolfaro C, Silvestro E, et al. Lung ultrasound in children with Covid-19. Pediatrics. 2020; 146.). Nos casos aqui apresentados, não foi realizada TC de tórax, pois os pacientes apresentavam bom estado geral. Em ambos os casos, observou-se espessamento peribronquiolar na radiografia de tórax, embora não possamos confirmar se essa alteração de imagem está relacionada com o diagnóstico, uma vez que dados compatíveis com esse achado não foram encontrados na literatura sobre COVID-19.

Não se pode reconhecer claramente o papel das crianças na transmissão da COVID-19. As evidências sugerem que a transmissão de crianças é baixa, possivelmente associada aos sintomas mais leves que elas apresentam(99 Lee B, Raszka WV Jr. Covid-19 transmission and children: the child is not to blame. Pediatrics. 2020.). Nos dois casos relatados, os contatos domiciliares mais próximos (os pais de ambas as crianças) não foram contaminados durante o período de quarentena dos pacientes e após a cura da COVID-19.

Conclusão

A COVID-19 é uma infecção do trato respiratório que pode ser fatal. O fato interessante dos casos relatados é a apresentação: os dois casos foram encontrados em situações de rotina de atendimento pediátrico, e acabaram tendo o diagnóstico de COVID-19 com boa evolução. Na literatura, são descritos casos com desfechos semelhantes. Mesmo assim, o papel dessa pandemia ainda é incerto nessa faixa etária, aparentemente apresentando bons resultados.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2020
  • Revisado
    05 Ago 2020
  • Aceito
    01 Set 2020
  • Publicado
    23 Out 2020
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