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Marketing no poder, eclipse da publicidade?

DOMINGUES, Izabela. Publicidade de controle:. consumo, cibernética, vigilância e poder. Porto Alegre: Sulina, 2016.

Durante os anos 1970/80, a publicidade interessou aos estudiosos da Comunicação e críticos da mídia brasileiros, tendo suscitado o aparecimento de trabalhos que marcaram presença em nosso cenário acadêmico, bastando-nos lembrar, como exemplos da variedade de enfoques, os de Maria Arminda do Nascimento Arruda (“A embalagem do sistema”, [1979] 1985), de Everardo Rocha (“Magia e capitalismo”, 1985) e Maria Helena Rabelo (“O canto da sereia”, 1987).

Em que pese a relevância, o tema, todavia, meio que saiu de cena após esta época. A literatura, é certo, não parou de crescer. O foco foi, no entanto, passando a ter um claro acento profissionalizante. A abordagem assumiu um caráter predominantemente técnico e mercadológico.

Oriundo de trabalho apresentado como tese de doutorado, “Publicidade de Controle” se salienta pelo esforço em sair deste terreno quebradiço, à disposição no sentido de se tornar obra de referência para os estudos e discussões a respeito da temática. A redação clara, firme e propositiva a credencia, evitando a obscuridade da escrita e o rocambolesco dos raciocínios que tanto marcam muitos textos difundidos e, às vezes, indevidamente incensados na área.

A obra não declara guerra ao leitor, optando por ajudá-lo a rever e entender o que visa expor. A matéria nos é apresentada com o esclarecimento e razoabilidade que comporta e, como tal, se basta. O plano de trabalho é o da monografia de pretensão sistemática, cujo esquema simples, mas bem elaborado, nos recomenda um entendimento do fenômeno publicitário a partir das categorias que a autora chama de “publicidade de disciplina” e “publicidade de controle”.

Resumindo, parte-se da premissa ou hipótese de que “a busca pelo controle é algo inerente aos agenciamentos publicitários”. O assunto admite e, de certo modo, exige a consideração deste aspecto, se é para bem o entendermos social e politicamente. Assim sendo, ao estudá-lo, “é interessante pensarmos primeiro na relação entre os sujeitos, o desejo, o capitalismo e a publicidade, considerando a política e o poder existentes nesses agenciamentos” (DOMINGUES, 2016DOMINGUES, Izabela. Publicidade de controle: consumo, cibernética, vigilância e poder. Porto Alegre: Sulina, 2016., p.301).

Significa na prática que, amparando-se em Foucault e Deleuze, Domingues (2016) situa a matéria em um marco histórico, balizado pelas noções de sociedade disciplinar e sociedade de controle, sem aderir ao seu entendimento linear e mecânico. Os processos caracterizadores da segunda não substituem os da primeira, antes superpõem-se a estes (DOMINGUES, 2016, p.300), ainda que não se possa negar sua força e especificidade: eles estão se tornando “cada vez mais invasivos, a ponto de se tornarem um dos requisitos indispensáveis à própria acumulação capitalista [na atualidade]” (p.139).

Tese forte da autora é, conforme adiantado, a de que as formas da publicidade podem ser deduzidas destas matrizes. A sociedade disciplinar produziria uma publicidade disciplinar. A sociedade de controle geraria uma publicidade igualmente controladora (DOMINGUES, 2016). Verifica-se quanto a isso, portanto, um certo mecanicismo na argumentação, mas este não nos parece necessariamente prejudicial.

Quer-se, no livro, defender que “há, da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, uma mudança na forma de vigiar e comandar as pessoas” (DOMINGUES, 2016, p.87). Que a publicidade agencia ou intermedeia, a seu modo, transformações epocais reveladoras da forma como o significado de vigiar passa, de procedimento para esquadrinhar e cercear, a manejo e direcionamento da conduta individual.

A parte I da obra, talvez excessivamente extensa, se dedica à caracterização histórico-tipológica das categorias referenciais, devedoras, como se disse, das obras de Foucault e Deleuze. A parte II, pretendidamente mais analítica e documentada, expõe as formas que a publicidade assumiria em um e outro contexto. No final, a autora propõe uma reflexão um pouco mais ampla, sugerindo pistas para o leitor se reposicionar política e praticamente diante a matéria. A publicidade ainda não deu sua última palavra – por isso guarda uma abertura em que podemos escrever as nossas: é esta a perspectiva em que a autora deixa sua última mensagem.

Discutiríamos em relação ao trabalho o pecado inevitável que constitui seu tratamento da mídia como sujeito, que, segundo a autora, por exemplo, “coopta as subjetividades contemporâneas”, “produz e dissemina discursos voltados para a moldagem dos sujeitos” ou, ainda, “constrói discursos e produz significados e sujeitos” (DOMINGUES, 2016, p.140-142). A mídia não é bem explicada, toda vez que tratamos como um sujeito – expressar-se assim é, inclusive, incoerente com a adoção das ideias de Deleuze e Foucault.

Outrossim, Domingues (2016) procura nos mostrar como caímos prisioneiros de novos mecanismos de controle, mas, em nosso ver, o melhor de sua obra reside alhures. Está em nos fazer pensar na cibercultura como formação histórica, sociedade em movimento que cria os seus sujeitos como criaturas dispostas a condenar a velha mídia, à revelia de um exame sobre seu eventual valor, como se vê em tantas manifestações veiculadas nas redes sociais. Encontra-se nas páginas em que a autora nos mostra, como estes sujeitos são levados a se engajar no manejo dos recursos disponibilizados pela mídia digital interativa para fazerem sucesso em um mercado de personalidades e, se possível, assim ampliarem suas oportunidades de ganho no financeiro.

No final, fica conosco, por isso, a conclusão de que a servidão voluntária a respeito da qual a obra faz boas observações em sua conclusão não pode ser apresentada como questão a ser pura e abstratamente enfrentada, como prega a autora. Perspectiva de mudança nenhuma se impõe apenas a partir de fatos e, portanto, menos ainda da exortação moral a “pensarmos sobre nosso envolvimento subjetivo e nossa cumplicidade com o poder” (DOMINGUES, 2016, p.314).

Vem da crítica marxiana aos jovens hegelianos e outros idealistas a convicção de que a realidade social não se transforma com a mudança de nossa consciência (agora chamada de subjetividade). O vetor e, portanto, o ponto a levar em conta ao tratar do assunto é a práxis. Na hora em que se trata de questionar a hegemonia adquirida por um regime governamental, não há, porém, só isso para considerar.

Ainda que não o seja de todo, como pretendia La Boétie, a servidão humana é, em parte, como dizia o filósofo, voluntária e assim, às vezes e paradoxalmente ao observador, inclusive pode ser vivenciada como forma de poder pelos seus sujeitos, acrescentaríamos. Indo além, significa que ela também pode ser fonte de hedonismo, sobretudo em época como a nossa, talvez movida pela vontade de, por toda a parte, exercermos poder, se a julgarmos de acordo com um de seus maiores intérpretes, Nietzsche.

Referências

  • DOMINGUES, Izabela. Publicidade de controle: consumo, cibernética, vigilância e poder. Porto Alegre: Sulina, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2017
  • Aceito
    02 Abr 2018
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