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Hibridismos Narrativos: recursos literários na grande reportagem contemporânea

Hibridismos Narrativos: recursos literarios en el gran reportaje contemporáneo

Resumo

O artigo mapeia e identifica a existência de recursos expressivos típicos da literatura em uma grande reportagem jornalística veiculada por um veículo nativo digital – no caso, o site Brio, especializado em jornalismo de longo formato. O método utilizado, de Análise Pragmática da Narrativa Jornalística, permitiu identificar as estratégias de subjetivação do texto, pelas quais o repórter alcança efeitos poéticos e induz seus leitores a diversos tipos e graus de comoção. O trabalho analisa reportagem sobre a tragédia ambiental ocorrida em Mariana (MG) em 2016 e aponta os recursos poéticos em uso para concluir que linguagem, estrutura de texto e personagens são o tripé sobre o qual se constitui o jornalismo literário praticado pelo Brio. Este trabalho é resultado de projeto conduzido no âmbito do Grupo de Pesquisa Produção de Conteúdo, do Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado da ESPM-SP.

Palavras-chave
Jornalismo literário; Reportagem; Grande reportagem; Narrativa; Narratologia

Resumen

El artículo mapea e identifica la existencia de rasgos expresivos típicos de la literatura en un gran reportaje transmitida por un vehículo nativo digital - en este caso el sitio Brio, especializada en periodismo de formato largo. El método de Análisis Pragmática de la Narrativa Periodística, identifica las estrategias de subjetivación del texto, en el que el periodista llega a efectos poéticos e induce a sus lectores a todos los tipos y niveles de conmoción. El artículo analiza un reportaje sobre la tragedia ambiental en Mariana (Brasil) en 2016 y señala los recursos poéticos en uso para llegar a la conclusión de que el lenguaje, la estructura del texto y los caracteres son el trípode de lo periodismo literario practicado por Brio. Este trabajo es resultado del proyecto realizado bajo lo Grupo de Investigación Producción de Contenidos de lo Master Profesional en Producción Periodística y Mercado de ESPM-SP.

Palabras clave
Periodismo literario; Reportaje; Gran reportaje; Narrativa; Narratología

Abstract

The article maps and identifies the presence of typical literary resources in a major journalistic report published by a digital native vehicle – in this case, the Brio website, specialized in longform journalism. The Pragmatic Analysis of the Journalistic Narrative method allowed us to identify the subjectivation strategies of the text, through which the reporter achieves poetic effects and induces his readers to different types and degrees of commotion. The paper analyzes a report about the environmental tragedy that occurred in Mariana (in the state of Minas Gerais, Brazil) in 2016 and points out the poetic resources in use to conclude that language, structure of text and characters are the tripod on which constitutes the literary journalism practiced by Brio. This work is the result of a project carried out within the scope of the Content Production Research Group, of the Professional Master’s Program in Journalistic Production and Market of ESPM-SP.

Keywords
Literary journalism; Report; Longform journalism; Narrative; Narratology

Introdução

Embora o estudo sobre narrativas não seja nem de longe novo – ao contrário, suas origens remontam aos filósofos da Antiguidade Clássica –, a aplicação da narratologia ao jornalismo é menos comum e bastante recente no Brasil, conforme lembra Motta (2004)MOTTA, Luiz Gonzaga. Narratologia: análise da narrativa jornalística. Brasília: Casa das Musas, 2004..

Neste artigo, fruto de pesquisa conduzida no espaço do Grupo de Pesquisa Produção de Conteúdo, ligado ao Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), empregamos o método da Análise Pragmática da Narrativa Jornalística, elaborado pelo autor (MOTTA, 2007MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. In.: LAGO, C.; BENETTI, M. (Orgs.). Metodologia de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. p.143-167.), para desvendar os recursos expressivos em uso na narrativa de uma grande reportagem da Internet. O objetivo será identificar efetivamente quais recursos de subjetivação, típicos da literatura ficcional, estão sendo usados em narrativas jornalísticas contemporâneas veiculadas na Internet, em um diálogo do novo – o jornalismo que incorpora as modernas tecnologias de informação e comunicação – com o antigo: os fundamentos da arte poética.

Motta define as estratégias de subjetivação como “recursos e figuras utilizados na linguagem jornalística que remetem o leitor a interpretações subjetivas” provocando, dessa maneira, “estados de espírito catárticos: surpresa, espanto, perplexidade, medo, compaixão, riso, deboche, ironia etc.” (2005, p.11). De acordo com o autor, o discurso jornalístico consegue promover, dessa maneira, “a identificação do leitor com o narrado”, transformando fatos brutos, como seria o caso do rompimento da barragem de Mariana (MG), em “dramas e tragédias humanas”.

Por “interpretações subjetivas”, entendemos as interpretações que são próprias do sujeito, ou seja, acompanhamos o pensamento de Benveniste, segundo o qual a “subjetividade corresponde à capacidade do locutor para se propor como sujeito” (1991, p.286) – são, assim, únicas, fruto de um complexo entrecruzamento entre experiências e vivências pessoais e identidades sociais. No caso do discurso jornalístico, as passagens ditas de subjetivação seriam, portanto, aquelas em que o autor se coloca como sujeito e evoca a constituição de um outro sujeito em dialogia com ele, estabelecendo uma relação Eu-Tu1 1 Muitos autores têm discutido o conceito de subjetividade na atualidade, buscando evitar interpretações simplistas que o associam simplesmente às noções de identidade e de singularidade, por exemplo. Para uma reflexão mais aprofundada sobre o tema sugerimos Costa e Galli Fonseca (2008) e Miranda (2000). .

Já a narrativa é entendida aqui no sentido mais elementar atribuído por Minchilo e Cabral (1989, p.1)MINCHILLO, Carlos Alberto; CABRAL, Isabel Cristina. A Narração – Teoria e Prática. São Paulo: Atual, 1989. como “relato de determinada sequência de acontecimentos reais ou inventados”. No dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Nova fronteira, 1986.), é colocada como sinônimo, apenas, de “história”. A definição, contudo, não é totalmente precisa. A narrativa é uma história, sim, porém com algumas características que a particularizam. Na tradição escolar, lembra Silveira (1999, p.286)SILVEIRA, Maria Inez Matoso. A Importância da Narrativa Oral no Ensino da Língua Portuguesa na Escola Fundamental. In: MOURA, D. (Org.). Os múltiplos usos da língua. Alagoas: Edufal, Universidade Federal de Alagoas, 1999.:

(...) a classificação de textos inclui a narração como um dos tipos básicos da composição escrita, junto com a descrição e a dissertação. Hoje (...) a narrativa é, ao mesmo tempo, um tipo de texto e um tipo de discurso. Além de ser um tipo de texto bem marcado, a narrativa é também muito flexível, já que pode realizar diferentes tipos de discurso. Assim sendo, a narrativa aparece na própria narração, na instrução, na exposição, na descrição e na argumentação. A recíproca, porém, não é verdadeira: nenhum outro tipo de texto pode realizar a narração, pois o discurso narrativo tem como característica intrínseca a chamada juntura temporal2 2 É da dupla William Labov e Joshua Waletzky a concepção segundo a qual a narrativa é basicamente a sucessão de ao menos dois fatos conectados por uma juntura temporal. A juntura é um elemento, ainda que não formalmente identificável, capaz de ordenar os acontecimentos da narrativa temporalmente. Em uma narrativa, a alteração da ordem temporal de seus elementos leva necessariamente à criação de uma nova narrativa – daí a existência da juntura temporal como elemento ordenador. Por exemplo, em “João dançou com Maria e quebrou o pé” temos uma micronarrativa, pois a reordenação dos acontecimentos para “João quebrou o pé e dançou com Maria” altera o sentido da narrativa original, produzindo uma nova história. Uma possibilidade sem juntura temporal seria dizer “João quebrou o pé dançando com Maria”. Nesse caso, não se trata de uma narrativa, mas de mera descrição, já que é possível afirmar igualmente, sem distorção de sentido, que “Dançando com Maria, João quebrou o pé”. Para mais informações sobre a junção temporal e seu papel narrativo, consulte Labov ( 1997). que não pode ser alterada, sob pena de se modificar seriamente o conteúdo semântico da narrativa.

Aproximando a discussão do campo jornalístico, que pode se valer da narratologia para aperfeiçoar a forma de contar histórias, encontramos a jornalista e pesquisadora Cremilda Medina, uma das pioneiras no estudo do jornalismo como dialogia e produção social de sentidos no Brasil. Medina enxerga a narrativa como capacidade do homem de transformar o caos da vida em unidades de sentido apreensível – tarefa que, para o jornalista, é central. Para ela:

Uma definição simples de narrativa é aquela que a compreende como uma das respostas humanas diante do caos. Dotado de capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo, o sapiens organiza o caos em um cosmos. O que se diz da realidade constitui uma outra realidade, a simbólica. Sem essa produção cultural – a narrativa – o humano ser não se expressa, não se afirma perante a desorganização e as inviabilidades da vida. Mais do que talentos de alguns, poder narrar é uma necessidade vital. (MEDINA, 2006MEDINA, Cremilda. O signo da relação. São Paulo: Paulus, 2006., p.67).

A narrativa organiza, portanto, eventos à primeira vista sem sentido. Importa ressaltar, no contexto deste artigo, que narrar não é, portanto, um luxo dos “criativos”, como frequentemente se coloca no senso comum. A capacidade de contar uma história que dê significado a um evento, a capacidade de contextualizar sentimentos ou acontecimentos em narrativas mais ou menos complexas, é vital para o ser humano – e comum a todos nós.

É de se esperar, portanto, que jornalistas também narrem. Embora à primeira vista a afirmação incorra em uma obviedade, é necessário dizê-lo justamente porque, conforme inúmeros pesquisadores já notaram (MEDINA, 2006MEDINA, Cremilda. O signo da relação. São Paulo: Paulus, 2006.), o ethos do campo jornalístico, que tem a verdade, a objetividade e a imparcialidade como valores centrais, por vezes tenta reduzir a figura do jornalista a de uma máquina, despersonalizando-o, desubjetivando-o, como se só assim fosse possível informar a sociedade com clareza e precisão. Seria, portanto, um (re)transmissor de discursos e não um ator-autor na sociedade. É preciso recuperar a noção de autoria e mediação social no jornalismo. Resgatar, assim, a dimensão narrativa do jornalismo, pois “o jornalista não divulga, constrói mundos. Não é uma máquina, mas um narrador: um autor das narrativas da contemporaneidade” (ESSENFELDER, 2016ESSENFELDER, Renato. De transmissor a narrador: desconstrução de estereótipos sobre jornalistas. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, Brasília, v.6, n.18, p.31-47, jan./jun. 2016., p.45).

Metodologia e corpus

Nos últimos anos, uma série de iniciativas jornalísticas independentes começou a despontar no panorama nacional, em especial na Internet, por conta do baixíssimo custo de distribuição nesse ambiente. Algumas delas se mostraram efêmeras, de vida muito breve, enquanto outras, em plena operação, são relativamente longevas.

Dentre essas experiências, chamam a atenção os veículos dedicados ao jornalismo de longo formato (ou longform journalism), que se valem de textos extensos, trabalhados com esmero, em geral divididos em capítulos, em que são mobilizados diversos recursos expressivos oriundos da literatura para a um só tempo seduzir o leitor, apelando ao seu senso estético, e oferecer informação contextualizada.

Mas que recursos são esses?

Com o objetivo de identificá-los, no texto de um site contemporâneo de reportagens – o Brio, lançado em 2014 –, este trabalho utiliza o método da Análise Pragmática da Narrativa Jornalística, que prevê seis etapas, as quais Motta (2007)MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. In.: LAGO, C.; BENETTI, M. (Orgs.). Metodologia de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. p.143-167. chama de movimentos. São eles: 1) recomposição, no caso de série de notícias ou reportagens, da intriga ou acontecimento jornalístico; 2) identificação dos conflitos e da funcionalidade dos episódios; 3) análise da construção das personagens jornalísticas (no nível discursivo); 4) análise de estratégias comunicativas; 5) apontar a relação comunicativa e o “contrato cognitivo” entre narrador e narratário; e, por fim, 6) identificar os significados de fundo moral ou fábula da história. Motta adverte ainda para o fato de que:

Estudar as narrativas jornalísticas é descobrir os dispositivos retóricos utilizados pelos repórteres e editores capazes de revelar o uso intencional de recursos linguísticos e extralinguísticos na comunicação jornalística para produzir efeitos (o efeito de real ou os efeitos poéticos). Neste sentido, afirmamos que o jornalismo é uma linguagem argumentativa e não há um estilo jornalístico, mas sim uma retórica jornalística. (...) A presença de recursos narrativos no jornalismo está em todas as partes. Mesmos os textos mais “duros” da editoria de economia, por exemplo, recorrem frequentemente a breves interregnos narrativos com a finalidade de aproximar o leitor dos episódios narrados, de tornar mais humano o texto frio. Outras vezes, os textos jornalísticos escancaram seu caráter narrativo, como em muitas reportagens e no jornalismo literário. Em geral, há muito hibridismo de gênero.

(MOTTA, 2005______. A Análise Pragmática da Narrativa Jornalística. In: Congresso Brasileiro de Ciências Da Comunicação, 2005. São Paulo: Intercom, 2005, online. Acesso em: 20 mai. 2016., p.9).

O website jornalístico de onde extraímos o corpus desta análise foi selecionado a partir do levantamento do ESPM Media Lab3 3 O levantamento completo está disponível em <http://pesquisasmedialab.espm.br/portfolio/portfolio-grid4>. Acesso em: 02 fev. 2017. com iniciativas inovadoras em jornalismo digital. Do total, foram observadas as 37 iniciativas brasileiras listadas e, a partir de então, filtradas conforme os critérios: 1) geográfico, pois apesar de serem iniciativas digitais, buscamos iniciativas mais próximas do pesquisador em São Paulo; 2) formato, pois em alguns casos a iniciativa listada não compreendia uma reportagem, mas sim experiências de jornalismo colaborativo, como mapas colaborativos, fotografias ou audiovisuais; 3) independência, pois foram excluídas as iniciativas ligadas a grandes grupos de mídia, como Abril e UOL, em uma tentativa de compreender melhor como grupos menores e mais novos, nativos digitais, e também mais ágeis, estão trabalhando com as narrativas jornalísticas na atualidade.

Após esse processo de afunilamento, chegamos ao Brio, especializado em grandes reportagens de reconhecida qualidade, publicadas na plataforma gratuita Medium. Sobre o Brio, sumariza Deak:

Uma plataforma com mais de 20 jornalistas independentes, alguns deles com prêmios Pullitzer e Esso, que apostam no leitor como forma de financiamento: não aceitam publicidade; vendem reportagens avulsas, ou assinaturas mensais. De cada venda, o site fica com 45% e os jornalistas autores com 55%. Grandes reportagens, dos lugares mais incríveis do planeta, fazem parte do acervo. Também têm a seção watchdog, com reportagens investigativas patrocinadas por fundações e distribuídas gratuitamente. Uma delas é sobre o BNDES. Com cinco meses de existência, ganharam o prêmio CNT Bio de jornalismo para Internet, em novembro de 2015. (2016, online).

Após uma primeira leitura de todas as reportagens publicadas no Brio até o mês de junho de 2016, foi selecionada a reportagem “A morte do caboclo d’água”, de autoria de Maria Paola de Salvo e Karla Mendes4 4 Disponível em <https://medium.com/brio-stories/ato-1-b141fc0ec404 (Figura 1). O texto é um dos raros casos de grande reportagem da chamada mídia independente que aborda um tema quente do noticiário nacional, o caso do rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG) em novembro de 2015, que resultou na maior catástrofe ambiental da história do país. A escolha da reportagem possibilita também que outros pesquisadores futuramente possam comparar o texto à narrativas de veículos tradicionais (informativas) publicadas à época da tragédia – movimento que não será executado neste estudo, por fugir de seu escopo inicial.

Figura 1
Página inicial da reportagem “A morte do caboclo d’água”

Narratividade em “A morte do caboclo d’água”

Conforme sugere Motta (2007)MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. In.: LAGO, C.; BENETTI, M. (Orgs.). Metodologia de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. p.143-167., os movimentos de Análise Pragmática da Narrativa Jornalística devem ser adaptados conforme o contexto do trabalho em escopo. No caso do presente estudo, de início identificamos que o primeiro movimento sugerido, de recomposição, é desnecessário no contexto de uma grande reportagem integral e linear cujo conteúdo se apresentava já de maneira completa à época desta análise.

Começaremos, portanto, pelo segundo movimento, que é o de identificação dos conflitos e da funcionalidade dos episódios. É em torno do conflito que os demais elementos de enredo se organizam, o que lhe confere o status de núcleo da narrativa, segundo Motta (2007)MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. In.: LAGO, C.; BENETTI, M. (Orgs.). Metodologia de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. p.143-167.. A afirmação vale não apenas para a literatura, mas também para o jornalismo, cujas narrativas são essencialmente apresentações e desdobramentos de conflitos: crimes, rupturas, disputas, transformações inesperadas.

Na sequência, procedemos ao terceiro movimento, de análise da construção das personagens jornalísticas, observando a frequência com que aparecem e de que forma são apresentadas. O último movimento analítico que nos compete aplicar no escopo deste trabalho é o quarto da lista de Motta: a análise de estratégias comunicativas. Nessa etapa, o analista busca identificar dispositivos retóricos usados para produzir determinados efeitos de sentido. Motta (2005)______. A Análise Pragmática da Narrativa Jornalística. In: Congresso Brasileiro de Ciências Da Comunicação, 2005. São Paulo: Intercom, 2005, online. Acesso em: 20 mai. 2016. sugere que seja feita uma distinção entre estratégias de objetivação e estratégias de subjetivação na classificação desses dispositivos. Dado o grau de detalhamento e extensão desta etapa, ela será aplicada apenas à primeira parte da reportagem “A morte do caboclo d’água” para evitar que o estudo se torne demasiadamente longo.

As estratégias de objetivação tratam de recursos que induzem o leitor a crer que os fatos narrados são reais. No jornalismo, esse efeito pode ser produzido de diversas maneiras, como a descrição pormenorizada de ambientes e personagens, identificação de dados referentes a locais ou períodos empiricamente verificáveis, reprodução de falas no discurso direto (como se o jornalista não estivesse fazendo parte da história), reprodução exata de cifras e grandezas variadas, uso de números e estatísticas em geral, citação de documentos, entre outros.

Já as estratégias de subjetivação estão ligadas aos efeitos poéticos que o texto constrói, provocando diferentes emoções no leitor. Segundo Motta:

Tal como os efeitos de real, recursos da retórica jornalística induzem os leitores, ouvintes e telespectadores a diversos tipos e graus de comoção. Esses recursos abundam nas manchetes e títulos tanto quanto nos textos, tanto nas ilustrações e charges como nas fotografias e imagens televisivas. Estão nas escolhas léxicas, no uso de verbos prospectivos, verbos de sentimento, verbos negativos, verbos de conselho, de advertência etc.; no uso de adjetivos afetivos, potenciais ou adjetivos de possessão; no uso de substantivos estigmatizados como terroristas, radicais, pivetes etc. Estão nas exclamações, interrogações, comparações, ênfases, repetições e reticências, mais comuns no noticiário que se pensa. Estão nas figuras de linguagem (metáforas, sinédoques, sinonímia, hipérboles). Estão nas ironias e paródias, que abrem âmbitos de significação. Estão nos conteúdos implícitos, nas implicaturas de advérbios como “apenas”, “de novo”, “só”, “ainda”, comuns nas manchetes. Estão nas pressuposições e tantos outros recursos linguísticos e extra linguísticos que proliferam na linguagem jornalística verbal e audiovisual. é impossível enumera-los ou classifica-los, tal a sua abundância no noticiário. (2005, p.10-11).

Os últimos dois movimentos analíticos concebidos por Motta não serão aplicados nesta pesquisa (apontar a relação comunicativa e o “contrato cognitivo” entre narrador e narratário; e identificar os significados de fundo moral ou fábula da história) por fugirem à nossa proposta. Essa exclusão é de antemão autorizada por Motta, para quem o analista deve adequar o método às suas necessidades no âmbito da pesquisa.

Embora o trabalho de classificação das estratégias de objetivação tenha sido realizado no âmbito do estudo desenvolvido no Grupo de Pesquisa Produção de Conteúdo, não trataremos, neste espaço, delas. Consideramos que essas estratégias já são bastante conhecidas e que já há abundante literatura sobre elas, razão pela qual nos concentraremos naquilo que é menos citado na literatura da área: as estratégias de subjetivação do texto jornalístico.

A partir dos estudos de Düren (2013)DÜREN, Ricardo. Mais real que a realidade: a obra 1808 e o uso de elementos da narrativa literária pelo jornalismo. Online, 2013. Disponível em: <http://repositorio.unisc.br/jspui/handle/11624/501>. Acesso em: 05 jun. 2016.
http://repositorio.unisc.br/jspui/handle...
, que também trabalhou com o método de Motta, chegamos ao seguinte modelo de tabela, cujos tópicos serão pormenorizados à frente:

Tabela 1
Estratégias Comunicativas em “A morte do caboclo d’água”

Quanto às estratégias de subjetivação que elegemos, portanto, temos:

  1. – Descrição pormenorizada. Nesse caso, o autor descreve em detalhes, situações ou personagens por meio de aspectos que não são empiricamente verificáveis, pois subjetivos, e que pouco parecem acrescentar ao entendimento do fato enquanto fato, uma ocorrência histórica. É o caso, por exemplo, da passagem em que um personagem é descrito como detentor de “ar de garotão reforçado pelos óculos escuros servindo de tiara”.

  2. – Figuras de linguagem. Por definição, são figuras de expressão usadas pelos autores para ampliar as possibilidades expressivas do texto, usadas, muitas vezes, para descrever sensações e percepções dificilmente exprimíveis pela função denotativa da linguagem. As mais comuns são metáforas, metonímias, hipérboles, eufemismos, ironias, elipses, pleonasmos e onomatopeias, mas há muitas outras possíveis.

  3. – Verbos de expressão subjetiva. Segundo Motta, entre os inúmeros recursos de que os repórteres se valem para expressar sua subjetividade na narrativa jornalística, está “o uso de verbos prospectivos, verbos de sentimento, verbos negativos, verbos de conselho, de advertência etc.” (2005, p.12). Optamos por agrupar essas possibilidades sob o rótulo de “verbos de expressão subjetiva”, cientes de que o texto jornalístico é repleto de possibilidades expressivas nesse campo. O uso abundante de verbos dicendi no discurso jornalístico também reforça a importância de um olhar detalhado sobre esta categoria de análise.

  4. – Ênfase/intensidade. Neste tópico listamos as passagens do corpus em que o autor realça o apelo dramático de um momento da história por meio de expressões como adjetivos, pelo uso da pontuação (exclamações, reticências) ou pelo emprego de figuras de linguagem específicas.

Antes de proceder a essa análise, contudo, faremos, conforme explicitado anteriormente, a identificação do conflito e a caracterização das personagens de “A morte do caboclo d’água”.

Conflitos e personagens em “A morte do caboclo d’água”

As narrativas jornalísticas, como todas as outras, são dotadas de um evento conflitante em seu núcleo, um evento de caráter atípico e dramático. A noção de conflito está, aliás, expressa no próprio conceito de notícia. Na literatura, e nas artes dramáticas em geral, o conflito é entendido como “elemento básico determinante da ação dramática, a qual se desenvolve em função da oposição e luta entre diferentes forças; conflito dramático” (FERREIRA, 1986FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Nova fronteira, 1986.).

O(s) conflito(s) em “A morte do caboclo d’água” opõe(m) várias forças. Em uma primeira leitura, identificamos um conflito central: homem versus natureza. Trata-se da história de como caboclos simples, de uma pequena cidade no interior do Estado de Minas Gerais, reagem à fúria da natureza: uma inundação de água e lama que varre territórios inteiros, incontida e inescapável. Uma segunda análise, contudo, revela a ocorrência concomitante de um segundo conflito, que é de homem versus corporação. À medida que o texto avança, vemos como a ganância da mineradora Samarco não só contribuiu para o acidente, como o facilitou.

Pensemos na reportagem como um gênero literário. Se “A morte do caboclo d’água” fosse uma novela – entendida como narração ficcional curta –, falaria de homens lutando contra a natureza e também de homens lutando contra (ou sofrendo com) a ganância de corporações. No interior dessa narrativa, contudo, veríamos também diversos conflitos menores em andamento, o que manteria o interesse do leitor sempre aceso. Os subconflitos nessa reportagem dizem respeito a duas situações: 1) a luta das famílias para salvarem a si próprias e os seus pertences, e 2) a luta de moradores para alertar vizinhos e amigos sobre o rompimento da barragem.

Tal como numa obra literária, a narrativa da reportagem se move entre esses eixos – ou seja, de conflito em conflito – não em uma linha reta, porém numa espiral que percorre várias dimensões narrativas repetidas vezes. O diagrama a seguir ilustra esse processo em “A morte do caboclo d’água”.

Figura 2
Espiral narrativa em relação aos conflitos de “A morte do caboclo d’água”

Observamos uma estrutura espiralada, em que o narrador, do tipo “onisciente seletivo”, que seleciona alguns personagens para descrever não só fatos exteriores, mas também o universo interno do personagem, seus sentimentos, sensações etc., vai e vem na narrativa, indo e vindo de conflito a conflito, de modo imprevisível para o leitor.

A experiência do jornalismo noticioso, por outro lado, é linear: do ponto A ao ponto B o narrador, onisciente e imparcial, prossegue sem grandes rodeios. Em termos da clássica estrutura de pirâmide invertida de informações, tem-se que no caso do jornalismo informativo a estruturação do texto se dá por ordem de importância das informações.

Mas em “A morte do caboclo d’água” não podemos falar em pirâmide – nem invertida, nem normal. Claramente, o texto começa com uma série de pequenos acontecimentos e informações sem importância crucial: a rotina de um motorista de caminhão recém-designado para trabalhar na Samarco. Na sequência do texto, mas ainda no Ato 1, já se tem o clímax: o vazamento da barragem e a consequente tragédia ambiental em Mariana (MG). Na sequência, no Ato 2, fala-se da luta dos moradores da região contra a destruição iminente. No Ato 3, temos uma digressão histórica sobre a Samarco e sua estratégia predatória de extração de minério da região. No Ato 4, o “day after” da comunidade: semanas de limpeza e contabilização de perdas. Por fim, no Ato 5, um balanço geral da tragédia, o “day after” para os funcionários da Samarco e as investigações em andamento sobre o caso. A narrativa, como se vê, avança e recua no tempo e no espaço, evitando a linearidade.

Além disso, dispersa no Ato 2 e no Ato 5 surge uma anedota curiosa a respeito de uma estátua monstruosa existente na região, conhecida como “caboclo d’água” (supostamente um monstro que mataria pessoas e animais na vizinhança, uma espécie de chupa-cabras), que metaforiza, no texto, a besta que podemos entender como a ganância da Samarco ou como uma força da natureza que, após provocada, reage varrendo todo aquele povoado, indiferente a tudo.

Na Tabela 2 temos uma pormenorização das tramas de cada ato, incluindo os intertítulos utilizados nelas e a extensão em caracteres com espaços de cada uma. No total, o texto possui impressionantes 103.453 toques – o equivalente a cerca de 40 páginas em Word digitadas segundo as normas da ABNT. Sem dúvidas, uma reportagem de longo formato – no contexto literário, poderíamos categorizar a narrativa dessa extensão como novela.

Tabela 2
Divisão de tramas por Ato de “A morte do caboclo d’água”

Como se vê, o último Ato é o mais longo de todos, o que dialoga com a importância que se dá ao último ato de qualquer obra de cunho artístico (romances, novelas, filmes, peças teatrais). Nele, realiza-se um balanço de todas as ações (e omissões) que levaram à tragédia e ainda um acompanhamento das investigações sobre o caso e suas prováveis consequências criminais, ambientais, econômicas e sociais.

Observando essa estrutura geral, vemos que ela não se encaixa no paradigma da pirâmide invertida: embora haja um clímax no primeiro ato (o rompimento da barragem), os atos subsequentes também têm seus apogeus dramáticos e nenhum deles aparece nas primeiras linhas dos segmentos analisados. Tampouco podemos encaixar facilmente tal morfologia na lógica da pirâmide normal, segundo a qual o clímax está próximo do encerramento do texto. Na verdade, a posição do ápice narrativo está ora localizada em trechos iniciais, ora em trechos finais do texto – em plena liberdade de composição, como ocorre na literatura. Nesse sentido, é interessante notar que a grande reportagem em questão se encerra com um final altamente lírico, evocando o que se assemelha a um poema popular e de novo recorrendo à metáfora da estátua do “caboclo d’água” para amarrar um desfecho inconclusivo. Como segue:

No portal de Barra Longa, a lama compete com a escultura do Caboclo D’água. Enquanto esperam para ver quem vence essa disputa pela cidade, os moradores protestam para ter sua Barra Longa de volta. No último dia 5 de dezembro, a mãe de Toninho Papagaio, Maria Lopes do Carmo, 82 anos, conhecida como Dona Maria Papagaio, mesmo cega e na cadeira de rodas, protestava como podia, com o seguinte cartaz no peito:

Quero a Barra dos meus filhos Quero a Barra dos meus netos Quero a Barra dos meus bisnetos Quero minha Barra Longa Quero a Barra Não quero o Barro. (MENDES; SALVO, 2016MENDES, Karla; SALVO, Maria Paola de. A morte do caboclo d’água. Online, 2016. Disponível em <https://medium.com/brio-stories/ato-1-b141fc0ec404#.b87sgomvz>. Acesso em: 10 jun. 2016.
https://medium.com/brio-stories/ato-1-b1...
, online – Grifos das autoras)

Mas não é só na morfologia que essa grande reportagem flerta com a literatura. No que diz respeito às personagens da história, temos, de modo similar, uma nítida preocupação em enriquecer a apresentação das pessoas narradas, ultrapassando os limites estreitos da narrativa do jornalismo informativo que, em geral, caracteriza suas personagens apenas por nome, sobrenome, profissão e, eventualmente, idade.

Um levantamento exaustivo da reportagem indica a existência de 78 fontes de informação citadas no texto – destas, dez não são identificadas, atendendo apenas por designações genéricas como “um representante da Samarco”, “um funcionário da mina”, “um colega de Renato”.

Entre os personagens principais da reportagem, contudo, observa-se um tratamento muito diverso. As dez fontes mais acionadas na matéria (com três empatadas em décimo lugar, em número de citações no texto), considerando a somatória de seus cinco atos, estão indicadas na tabela abaixo:

Tabela 3
Personagens e menções em “A morte do caboclo d’água”

Além das fontes citadas, é curioso notar que o próprio “caboclo d’água”, descrito como “figura monstruosa, mistura de humano e gorila, que habitaria as águas do [rio] Carmo” é citado dez vezes na matéria, o que colocaria esse objeto inanimado – ou melhor, esse mito do folclore local – na oitava posição entre as fontes mais citadas, caso considerássemos a entidade uma fonte. Isso indica a força dessa metáfora no texto, presente desde o seu título, aliás. O recurso à metáfora, nesse grau de intensidade, é sem dúvidas mais uma aproximação da reportagem à literatura.

Outra característica notável: das três fontes mais citadas, duas são pessoais (e pessoas comuns, sem status de “autoridades” formais) e a restante, uma instituição conceituada, o MP-MG. Dá-se muito mais peso, no corpo da reportagem, às fontes “comuns”, pessoas que provavelmente nunca haviam conversado com um jornalista antes. É interessante notar que, enquanto um promotor de Justiça é citado 11 vezes, um prefeito, nove, e um especialista (professor da área de ambiente e minérios da UFMG), oito, o taxista Toninho Papagaio é mencionado nada menos do que 35 vezes no texto – que também, a propósito, cita sua mãe e sua irmã como fontes de apoio.

No cômputo geral, não apenas se dá mais espaço às fontes “anônimas” como também elas são muito mais numerosas do que as fontes oficiais da reportagem – a saber, especialistas, governantes, executivos e procuradores.

Consideramos, portanto, que o tratamento dado aos personagens, incluindo desde a sua seleção até sua apresentação e edição na matéria, aproxima a grande reportagem analisada de práticas clássicas da literatura.

Estratégias de objetivação e de subjetivação

Após leitura e análise da reportagem, selecionamos o Ato 1 para realizar sobre ele uma revisão minuciosa, categorizando as estratégias de objetivação e de subjetivação utilizadas pelas autoras, conforme proposto na Tabela 1. O resultado mostra uma intrincada rede de recursos narrativos em movimento, muito mais complexa do que comumente se espera do texto jornalístico, caracterizado, como afirma Lage (2003)LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. São Paulo: Editora Ática, 2003., pelo primado da clareza, da rapidez e da simplicidade.

A análise revelou a utilização de 177 estratégias narrativas diversas no primeiro Ato do texto, sendo 67 estratégias de subjetivação e 110 estratégias de objetivação. Interessante notar que na composição do texto as estratégias se emaranham como um tecido complexo. Não se trata, portanto, de observar momentos em que as autoras empregam recursos de subjetividade no texto jornalístico, momentos de certo preciosismo literário. Os recursos de subjetividade estão entranhados na própria estrutura narrativa, aparecem no início, no meio e no fim da reportagem.

Em termos quantitativos, as estratégias pesquisadas aparecem com a seguinte frequência, conforme ilustra a Tabela 4:

Tabela 4
Ocorrências de estratégias de subjetivação e de objetivação

As maneiras como esses recursos são apresentados no texto é tão variada quanto os próprios recursos da língua portuguesa. Na Tabela 5, identificamos todas as ocorrências de estratégias de subjetivação na reportagem “A morte do caboclo d’água”.

Tabela 5
Segmentos com estratégias de subjetivação

Das quatro categorias que nos propusemos a identificar e analisar, a mais recorrente foi a denominada “ênfase/intensidade”. A outra estratégia mais usada foi a de apelo às figuras de linguagem. Entre elas, destacam-se as metáforas. Elas aparecem em trechos como “sopa lamacenta”, “nacos de montanha”, a lama que desce “engolindo tudo” ou “mar de lama”. A metáfora é, aliás, uma marca importante da reportagem, pois dá o tom de todo o texto, desde o título, que faz referência a um mito local.

Considerações finais

Pretendemos, com este estudo, identificar e mapear algumas das principais estratégias em diálogo com a literatura de que o jornalismo contemporâneo tem se utilizado – especialmente em veículos que se apresentam como inovadores, caso do premiado site Brio, lançado em 2014.

Pudemos notar, após extensiva análise da reportagem “A morte do caboclo d’água”, que os recursos de expressão subjetiva, tipicamente artísticos, mais empregados pelas autoras em questão foram figuras de linguagem, em especial metáforas, e expressões que realçam a intensidade dramática dos fatos narrados, em especial adjetivos e advérbios de modo.

É interessante notar que os recursos literários estão organicamente dispostos na narrativa e não inseridos de forma artificial, como um preciosismo literário localizado. Dito de outra maneira, o texto jornalístico-literário se realiza desde a etapa de concepção da pauta até a edição final do texto. É um projeto que abrange toda a reportagem e não um recurso de edição ou de redação acrescentado a posteriori.

Notamos ainda que a estrutura, desmembrada em episódios marcados por certos conflitos elementares, não é tão linear quanto no texto noticioso, mas sim, espiralada ou elíptica. O narrador vai e vem na apresentação dos conflitos de sua história, como numa novela, apresentando diversos núcleos dramáticos para então interseccioná-los de maneiras imprevistas.

Por fim, cumpre notar que as personagens são trabalhadas de uma forma mais elaborada. Basta lembrar que a mais citada no texto, um taxista a que as autoras se referem como “Toninho Papagaio”, aparece nada menos do que 35 vezes. É mais que o triplo da fonte oficial mais citada nominalmente, o promotor de Justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto. Além disso, ao volume de citações se soma também uma preocupação qualitativa. Toninho não é apenas “um taxista”, mas, entre diversas menções, alguém “de cabelos brancos até os ombros, com ar de garotão reforçado pelos óculos escuros servindo de tiara” (MENDES; SALVO, 2016MENDES, Karla; SALVO, Maria Paola de. A morte do caboclo d’água. Online, 2016. Disponível em <https://medium.com/brio-stories/ato-1-b141fc0ec404#.b87sgomvz>. Acesso em: 10 jun. 2016.
https://medium.com/brio-stories/ato-1-b1...
, online). Há uma intimidade das narradoras com o personagem, que por sua vez cria uma intimidade do leitor com Toninho, incomum no relato frio e pretensamente objetivo do noticiário cotidiano.

Linguagem, estrutura e personagens são, conforme esta pesquisa, o tripé sobre o qual se constituiu esse texto jornalístico-literário. Convém ainda ressaltar que os recursos literários usados no texto não só atendem a um objetivo estético, tornando a leitura mais prazerosa, como também funcionam como recursos de autenticação, geradores de efeito de real. As descrições aparentemente sem função simbólica, como o “ar de garotão” de Toninho, são, conforme Barthes (1984)BARTHES, Roland. O efeito de real. In.: BARTHES, Roland et al. Literatura e realidade: que é realismo?. Tradução de Tereza Coelho. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984. p.87-97., instrumentos expressivos poderosos para naturalizar o leitor no universo narrativo. Ou seja, ao mesmo tempo ajudam a transportar o leitor para dentro daquele universo e também fazem com que o leitor deposite confiança adicional na apuração do repórter, que não teria como saber do “ar de garotão” se não estivesse lá ao vivo, cara a cara com o personagem.

A literatura no jornalismo, então, parece cumprir uma função estética e uma função que parece paradoxal à primeira vista: a de naturalizar universos e autenticar discursos, o que é de suma importância para o jornalismo. No entanto, para que tal função se realize, é claro que a composição deve ser equilibrada e bem-feita, caso contrário ocorrerá o efeito inverso: o texto piegas ou forçado, inverossímil, pode gerar distanciamento do leitor, rompendo o pacto de confiança entre audiência e veículo.

No encontro entre o jornalismo e a literatura, ambos em busca de uma atualização frente às demandas do século XXI, ambos os sistemas se tornam mais complexos, como constatou Soster (2011SOSTER, Demétrio de Azeredo. A midiatização das narrativas jornalísticas na seção Diário da Revista Piauí. In: Encontro Nacional De Pesquisadores em Jornalismo, 9., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, SBPJor, 2011. CD-ROM., 2012)______. Sistemas, complexidades e dialogias: narrativas jornalísticas reconfiguradas. In: PICCININ, F.; SOSTER, D. A. (Orgs.). Narrativas comunicacionais complexificadas. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2012. p.89-110. em sua análise de conteúdos jornalísticos em jornais e revistas. Para o autor, a literatura torna o novo Novo Jornalismo mais complexo ao acrescentar a ele figuras de linguagem mais elaboradas, diálogos completos, uma subjetividade explícita do autor, fontes de informação na forma de personagens literários e frequentemente um narrador que se coloca como testemunha dos eventos narrados.

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    Muitos autores têm discutido o conceito de subjetividade na atualidade, buscando evitar interpretações simplistas que o associam simplesmente às noções de identidade e de singularidade, por exemplo. Para uma reflexão mais aprofundada sobre o tema sugerimos Costa e Galli Fonseca (2008)COSTA, Luis; GALLI FONSECA, Tania. Da diversidade: uma definição do conceito de subjetividade. Interamerican Journal of Psychology, v.42, p.513-519, 2008. ISSN 0034-9690. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-96902008000300011&nrm=iso>. Acesso em: 10 jul. 2016.
    http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
    e Miranda (2000)MIRANDA, Luciana. Subjetividade: a (des) construção de um conceito. Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura, v.2, p.29-46, 2000..
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    É da dupla William Labov e Joshua Waletzky a concepção segundo a qual a narrativa é basicamente a sucessão de ao menos dois fatos conectados por uma juntura temporal. A juntura é um elemento, ainda que não formalmente identificável, capaz de ordenar os acontecimentos da narrativa temporalmente. Em uma narrativa, a alteração da ordem temporal de seus elementos leva necessariamente à criação de uma nova narrativa – daí a existência da juntura temporal como elemento ordenador. Por exemplo, em “João dançou com Maria e quebrou o pé” temos uma micronarrativa, pois a reordenação dos acontecimentos para “João quebrou o pé e dançou com Maria” altera o sentido da narrativa original, produzindo uma nova história. Uma possibilidade sem juntura temporal seria dizer “João quebrou o pé dançando com Maria”. Nesse caso, não se trata de uma narrativa, mas de mera descrição, já que é possível afirmar igualmente, sem distorção de sentido, que “Dançando com Maria, João quebrou o pé”. Para mais informações sobre a junção temporal e seu papel narrativo, consulte Labov ( 1997)LABOV, William. Some Further Steps in Narrative Analysis. Journal of Narrative and Life History, v.7, n.1-4, p.395-415, 1997. Disponível em: <http://www.jbe-platform.com/content/journals/10.1075/jnlh.7.49som>. Acesso em: 10 jul. 2016.
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    .
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    O levantamento completo está disponível em <http://pesquisasmedialab.espm.br/portfolio/portfolio-grid4>. Acesso em: 02 fev. 2017.
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Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2017
  • Aceito
    21 Jul 2017
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