Acessibilidade / Reportar erro

‘Crime, Castigo e Recuperação’: como adolescentes são representados em uma série de reportagens de uma TV brasileira

‘Crimen, castigo y recuperación’: cómo se representan los adolescentes en una serie de informes de la TV brasileña

Resumo

Este artigo tem como proposta analisar como as crianças e adolescentes em situação de conflito com a lei são representadas nas reportagens televisivas e como as informações e descrições ali contidas correspondem à imagem tipificada desse grupo social, fixada no acervo social de conhecimento. Para tanto, tomamos como objeto de análise a série de reportagens intitulada Crime, Castigo e Recuperação, exibida de 20 a 23 de agosto de 2012, pelo jornal Repórter Brasil, da emissora TV Brasil. Para a avaliação do referido objeto, utilizamos como categorias de análise as recomendações dispostas na cartilha Adolescentes em conflito com a lei: Guia de referência para cobertura jornalística, proposta pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI).

Palavras-chave:
Representação Social; Institucionalizações; ANDI; Criança e adolescente em conflito com a lei; TV Brasil

Resumen

Este artículo tiene como objetivo examinar cómo se representan los niños y adolescentes en conflicto con la ley en los informes de la televisión y cómo la información y las descripciones contenidas en la televisión se corresponde con la imagen que caracteriza el grupo social, fijadas en el conocimiento social. Por lo tanto, se toma como objeto de análisis la serie de artículos titulados Crimen, castigo y recuperación, que há aparecido entre 20 a 23 agosto 2012 en Repórter Brasil, de la TV Brasil. Para la evaluación de ese objeto, que se utiliza como categorías de análisis las recomendaciones establecidas en el folleto Los adolescentes en conflicto con la ley: Manual de referencia para la cobertura, propuesto por la Agencia de Noticias por los Derechos del Niño (ANDI).

Palabras clave:
Representación Social; Institucionalización; ANDI; Los niños y adolescentes en conflicto con la ley; TV Brasil

Abstract

This article aims to examine how children and teenagers in conflict with the law are represented in television reports and if the information and descriptions contained therein correspond to the image that typified this social group, and if they fixed in common social knowledge. Therefore, we take as the object of analysis the series of articles entitled Crime, Punishment and Recovery, displayed from 20 to 23 August 2012 in Repórter Brazil from TV Brazil station. For the evaluation of that object, we used as categories of analysis the recommendations laid out in the booklet Teenagers in conflict with the law: Reference Guide for coverage, proposed by the News Agency for Children’s Rights (ANDI).

Keywords:
Social Representation; Institutionalization; ANDI; Children and teenagers in conflict with the law; TV Brazil

Considerações Iniciais

Meu nome era adolescente, menor infrator, pingente, embalado pra presente, pra rádio, TV, jornal, vendado ninguém me via, malabares com farinha, aquém da vida real (Malabares com Farinha – Paulo Monarco e Sandro Dornelles).

O presente artigo objetiva analisar e discutir como a Mídia retrata a situação e as experiências de crianças e adolescentes que se encontram em situações de rua ou de conflito com a lei. A inquietação que move as considerações aqui traçadas é que uma cobertura jornalística realizada sem os cuidados que esse grupo social em especial necessita pode resultar na construção de estereótipos e no reforço de pré-conceitos.

Tal assertiva está amparada na ciência de que a realidade não é uniforme, mas se apresenta multifacetada, de modo que o que vemos são apenas parcelas, interpretações individuais, frações da realidade que nos cerca e a qual pertencemos. Essa sensação de pertencimento gera em nós a noção de desenvolvimento de papéis sociais que se interpõem a partir de convenções estabelecidas, relativamente flexibilizadas, e que funcionam como referenciais de comportamento. O desempenhar de papéis faz com que o indivíduo seja parte de um mundo social.

Toda conduta que se pretende institucionalizada envolve uma quantidade de papéis, os quais atuam no caráter controlador da institucionalização. As convenções, uma vez fixadas, são responsáveis por estruturar a sociedade, e o indivíduo que porventura não se encaixe em uma das “formas” sociais preestabelecidas torna-se passível de sanções, interdições e segregações.

As convenções, ao serem compartilhadas, geram tipificações, as quais ocorrem quando, por uma questão de economia, seja de tempo ou de esforço, há a tentativa de estabelecimento de determinados comportamentos a grupos sociais específicos. É também uma forma de se criar elementos para interação com seus pares, delimitar formas de reconhecimento de si e do outro. Condicionamos e agimos sobre o meio (como grupo) na mesma medida em que ele age sobre nós. Esse processo está intimamente ligado ao tipo de hábitos que desenvolvemos em nosso cotidiano. Segundo Berger e Luckmann (2010BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. 32. Ed.; Petrópolis: Vozes, 2010., p.75),

Toda atividade humana está sujeita ao hábito. Qualquer ação frequentemente repetida torna-se moldada em um padrão, que pode em seguida ser reproduzido com economia de esforço e que, ipso facto, é apreendido pelo executante como tal padrão. O hábito implica, além disso, que a ação em questão pode ser novamente executada no futuro da mesma maneira e com o mesmo esforço econômico. Isto é verdade na atividade não social assim como na atividade social. Mesmo o indivíduo solitário na proverbial ilha deserta torna habitual sua atividade. [...] mesmo o homem solitário tem no mínimo a companhia de seus procedimentos operatórios. (Grifos do autor).

A repetição de hábitos gera a legitimação. Por fim, a institucionalização de conceitos e comportamentos, a qual, embora nem sempre se refira a algo formalmente constituído, se desobedecida, também gera sanções e exclusões, afinal não é só no campo jurídico que contra a transgressão de um ato institucionalizado há a repressão.

Toda institucionalização é uma convenção e não algo natural. Berger e Luckmann (2010BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. 32. Ed.; Petrópolis: Vozes, 2010., p.77) apresentam a ideia de que a institucionalização acontece sempre que “há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores”. A sociedade é caracterizada pela associação de várias instituições e para que estas sejam sempre observadas e respeitadas, estabelece-se o controle social. Existem casos em que determinadas instituições deixam de vigorar e outras imediatamente tomam seu lugar, também funcionando como elemento de controle social. Dito de outra maneira, as instituições seriam mantenedoras da ordem e da paz social (de uma forma idealista), e funcionariam como instrumento de regulação e pacificação da vida em sociedade e, complementando esse pensamento com os escritos destes mesmos autores, “dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado, já é dizer que este segmento da atividade humana foi submetido ao controle social” (LUCKMANN, 2010BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. 32. Ed.; Petrópolis: Vozes, 2010., p.78).

Muitas vezes, a assimilação das tipificações e institucionalizações não é um ato consciente. Nem sempre é possível empreender um exercício reflexivo acerca das informações que tomamos como reais e das coisas nas quais decidimos acreditar, daquilo que se nos apresenta como representação dos elementos que compõem nossa realidade. Contudo, refletindo ou não, nossas ações, comportamentos e (pre)conceitos são influenciados por elas de maneira considerável.

Criança e adolescente em conflito com a lei e sua representação na TV

Ligadas à ideia de tipificações, encontramos a noção de representação social. Esta última pode ser definida como categorias de pensamento por meio das quais determinada sociedade elabora e expressa sua realidade; não se tratam de categorias dadas a priori, mas surgem ligadas aos fatos sociais, transformando-se elas próprias em fatos sociais passíveis de observação e interpretação. Uma representação influencia não apenas o comportamento de um indivíduo e de uma coletividade, mas também pode ser responsável pelo surgimento de outra representação social.

As representações sociais são utilizadas para mostrar como as ideias se corporificam em experiências coletivas e interações de comportamento; além disso, uma representação, como asseguram Santaella e Nöth (1997)SANTAELLA, Lucia e NOTH, Winfried. Imagem: cognição, Semiótica, Mídia. 4. ed. São Paulo, SP: Iluminuras, 1997., pode reproduzir algo que está presente na consciência, funcionando como sistemas de referências que nos permitem interpretar a realidade, como tentativa de encaixar cada novo evento assimilado em categorias cada vez mais segmentadas,

o que viabiliza a dinâmica da familiarização e a busca pelo estável. Segundo Charaudeau (2012CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. 2. ed., São Paulo: Contexto, 2012., p.47),

as representações, ao construírem uma organização do real através de imagens mentais transpostas em discurso ou em outras manifestações comportamentais dos indivíduos que vivem em sociedade, estão incluídas no real, ou mesmo dadas como se fossem o próprio real. Elas se baseiam na observação empírica das trocas sociais e fabricam um discurso de justificativa dessas trocas, produzindo um sistema de valores que se erige em norma de referência. Assim, é elaborada uma certa categorização social do real, a qual revela não só a relação de “desejabilidade” que o grupo entretém com sua experiência do cotidiano, como também o tipo de comentário de inteligibilidade do real que o caracteriza – uma espécie de metadiscurso revelador de seu posicionamento.

Essa assertiva nos remete à outra finalidade das representações, que é nomear, classificar, categorizar novos acontecimentos e ideias e, a partir de então, a compreensão e manipulação desses a partir de valores preexistentes e amplamente difundidos pela sociedade. Quando categorizamos alguém ou alguma coisa, nada mais fazemos do que escolher paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma relação (negativa ou positiva) com ele. Alfredo Bosi (1977BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977., p.33) postula que

pre(dic)ar é admitir a existência de relações: atribuir o ser à coisa; dizer de suas qualidades reais ou fictícias; de seus movimentos; de seus liames com as outras coisas; referir o curso da experiência. Predicar é exercer a possibilidade de ter um ponto de vista.

Segundo Goffman (1988)GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988., a sociedade possui uma tendência de categorizar pessoas baseando-se em pré-concepções; diante do desconhecido busca-se imediatamente enquadrá-lo em categorias pré-definidas. Cada grupo social possui uma capacidade decodificadora, o que significa dizer que aquilo que é estigma em um lugar pode não ser em outro (por exemplo, um indivíduo pode ser considerado um bandido para a polícia, mas um verdadeiro herói na comunidade em que vive). Neste sentido, concordamos com Maurice Halbwachs (1990HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice / Editora Revista dos Tribunais, 1990., p.49), ao afirmar que

a ideia que representamos mais facilmente é composta de elementos tão pessoais e particulares quanto o quisermos, é a ideia que os outros fazem de nós; e os acontecimentos de nossa vida que estão sempre mais presentes são também os mais gravados na memória dos grupos mais chegados a nós.

As mídias se comportam como um instrumento fundamental no que concerne à criação e difusão dessas categorias que utilizamos para identificar os grupos sociais, o que pode ter uma conotação positiva ou negativa, a depender de como o discurso é empregado e as intenções (re)veladas nele. Nesse sentido, Charaudeau (2012CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. 2. ed., São Paulo: Contexto, 2012., p.59) explica que “segundo o contexto no qual aparece, uma informação pode produzir um efeito de banalização, de saturação, de amálgama ou, ao contrário, de dramatização”.

Isso pode ser percebido quando nos referimos a crianças e adolescentes em situação de rua ou em situação de conflito com a lei. Durante muito tempo, tais atores sociais foram chamados na experiência coletiva de “menores infratores”, “trombadinhas”, “meninos de rua”. A imagem deles sempre foi associada à violência e ao risco que poderiam causar aos “cidadãos de bem”.

Acreditamos que, em parte, essa sensação de insegurança foi corroborada e acentuada pela Mídia (compreendida aqui por veículos impressos, rádio, TV e mais recentemente a internet) e pela forma como as informações relativas a esse grupo social foram divulgadas, o que consequentemente gerou acerca deles uma representação sobremaneira “caricaturada”. Podemos constatar esse fato, por exemplo, tomando como referência programas televisivos que adotam uma postura mais sensacionalista (declaradamente ou não) e acabam por explorar a imagem de crianças e adolescentes em conflito com a lei de maneira inadequada. É o que vemos em uma reportagem exibida em dezembro de 2010 pelo programa Gente na TV1 1 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pzZlLmBQiiQ. Acesso em 29/07/2013. , da emissora TV Jangadeiro, afiliada da Rede Bandeirantes de Televisão no Estado do Ceará. Na tentativa de mostrar a “realidade” na qual as crianças usavam drogas livremente na rua Figura 1, a equipe de reportagem faz uma exposição desnecessária utilizando termos como “noiado”, “estado deplorável”, “você tá muito louco, né?” ou “olha como ele se desmancha em cima da droga, curte, vibra...” para se referir à situação das crianças e insiste em entrevistar cada um, mesmo sabendo que todos estavam sob efeito dos entorpecentes (cola e solvente).

Figura 1
Reportagem sobre crianças que usam drogas livremente no meio da rua – Programa Gente na TV – TV Jangadeiro

O repórter também entrevista alguns pais das crianças e, do mesmo modo, expõe as fragilidades da relação entre pais e filhos. Em uma das descrições das matérias lemos “pais de crianças viciadas não sabem como impor limites aos filhos”.

É inegável o potencial que a Mídia (em suas mais diversas formas de expressão) tem de disseminar uma informação, a qual nunca é produzida de maneira aleatória, mas é sempre dotada de um sentido, uma intenção e um significado, com o poder de influenciar a maneira de pensar e de agir dos seus receptores. Concordamos com Agier (2001AGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempos de globalização. In: MANA, v. 7, n. 2, Museu Nacional, p. 7-33, out. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132001000200001>. Acesso em: 02 fev.2014.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p.18-19) ao afirmar que

Imagens e noções circulam assim de maneira mais rápida e maciça do que nunca, graças a suportes (jornais, telecomunicações, cartazes, painéis, telas de todos os tipos) acessíveis por toda parte, mesmo se, obviamente, com graus de penetração diversos. Desse modo, difundida ao infinito, uma imagem extremamente simplificada e rasa do mundo tende a substituir a experiência pessoal e social das realidades dos outros.

Diante do que foi exposto, destacamos que o nosso objetivo no presente artigo é avaliar como crianças e adolescentes em situação de conflito com a lei são representadas nas reportagens televisivas e como as informações e descrições ali contidas correspondem à imagem tipificada desse grupo social e que está fixada no acervo social de conhecimento. Nossa intenção é verificar se há uma vitimização desses atores sociais, seja pela forma como suas histórias de vida são expostas ou pelas adjetivações que lhes são atribuídas.

O parâmetro para a avaliação aqui proposta é a cartilha intitulada Adolescentes em conflito com a lei: Guia de referência para cobertura jornalística. A publicação oferece uma ampla discussão sobre o tema “infância e adolescência na Mídia”, além de funcionar como um verdadeiro manual para profissionais do Jornalismo que porventura produzam reportagens nessa área. Desse material, foram, extraídas três categorias básicas para nortear nossa avaliação, a saber: 1) Escolha das Fontes; 2) Palavras e expressões utilizadas no texto jornalístico para fazer referência a crianças e adolescentes em conflito com a lei; e, por fim, 3) Tratamento da imagem de crianças e adolescentes em conflito com a lei na série de reportagens.

Assim, tomamos como objeto de análise a série de reportagens Crime, Castigo e Recuperação, exibida de 20 a 23 de agosto de 2012, pelo jornal Repórter Brasil, da emissora TV Brasil, que abordaremos de maneira mais detalhada a seguir.

A TV Brasil e a cobertura de temas sobre infância e adolescência

A TV Brasil é uma emissora que faz parte do campo público de empresas de radiodifusão, no qual encontramos ainda emissoras de caráter universitário, legislativo e comunitário. Uma das principais prerrogativas definidas pela legislação acerca do referido campo é que tais serviços de radiodifusão não podem aceitar qualquer espécie de patrocínio ou financiamento de empresas privadas para o seu funcionamento, o que, de acordo com Jambeiro (2001)JAMBEIRO, Othon. A TV no Brasil do século XX. Salvador: EDUFBA, 2001. passou, contudo, a ocorrer em algumas emissoras nos anos 1990, como a TV Cultura de São Paulo, na perspectiva de melhorar seus orçamentos.

Sobre a TV Brasil, a emissora foi criada em dezembro de 2007 e é gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), entidade que também é gestora da Agência Brasil, Radioagência Nacional, TV Brasil Internacional, Rádios MEC AM e FM, além das Rádios Nacional do Rio de Janeiro, AM e FM de Brasília, da Amazônia e do Alto Solimões. Na sua página na internet, encontramos a descrição de que “sua finalidade é complementar e ampliar a oferta de conteúdos, oferecendo uma programação de natureza informativa, cultural, artística, científica e formadora da cidadania”.

O Repórter Brasil (RB) é um telejornal que faz parte da grade de programação da TV Brasil2 2 Dados disponíveis no link http://tvbrasil.ebc.com.br/programacao. , sendo atualmente exibido em duas edições diárias, de segunda a sexta-feira, pela manhã, às 8 horas e à noite, às 21 horas, e aos sábados, às 21 horas. O RB se define como política e economicamente independente e que atende aos interesses do seu público. Sua primeira exibição foi no dia 2 de dezembro de 2007, tendo como uma de suas peculiaridades, especificamente em sua edição noturna, o fato de ser apresentado por três jornalistas concomitantemente, a saber, Guilherme Menezes (Distrito Federal), Luciana Barreto (Rio de Janeiro) e Ana Luísa Médici (São Paulo). A apresentação coletiva contribui no que concerne a um maior grau de dinamismo ao jornal.

Em 2012, o telejornal deu início à produção de uma série de reportagens com foco em adolescentes em situação de conflito com a lei3 3 Informações obtidas por meio da troca de e-mails entre a autora do artigo e a produtora Debora Britto no dia 13 de julho de 2012. . Comumente, as pautas são decididas a partir de sugestões de assessores e telespectadores, por e-mail, telefone ou redes sociais, todavia, no caso específico da série que trata sobre adolescentes, a motivação surgiu no Seminário Direitos em Pauta: Imprensa, Agenda Social e Adolescentes em Conflito com a Lei, realizado pela Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI), de 22 a 24 de maio de 2012.

Na ocasião, os produtores tiveram contato com coordenadores de sistemas socioeducativos de várias partes do Brasil, além de adolescentes que estão cumprindo medidas socioeducativas, juízes, promotores e outros profissionais que trabalham com a temática. Os debates ocorreram no formato de reunião de pauta, contando com a participação de repórteres de grandes jornais e especialistas em infância e juventude e, a partir dali, surgiram as sugestões para as reportagens.

Na redação, houve a proposta de produção de uma série de reportagens para o jornal Repórter Brasil: “A ideia era tratar do tema da maneira mais completa possível para desmistificar alguns conceitos do senso comum e humanizar mais a história dos adolescentes”, conta a produtora Débora Britto. “Nossa intenção era fazer um especial que falasse do adolescente infrator sem o tom policialesco e de denuncismo que geralmente marca a cobertura desse tema”, complementou Brito. Além de ouvir vários personagens no seminário, a sugestão da série foi divulgada nas redes sociais para checar o que o público da internet gostaria de ver nas matérias. As sugestões foram aceitas e incorporadas na produção das reportagens que tem como proposta mostrar as causas para a criminalidade entre os jovens, os desafios de implementação da Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)4 4 Lei nº 12.594, sancionada em 18 janeiro de 2012 pela Presidência da República. Essa lei acarreta mudanças na forma de funcionamento do sistema dedicado ao atendimento de adolescentes de 12 a 18 anos em conflito com a lei. e o processo de ressocialização de quem já cumpriu a medida socioeducativa. A série foi exibida do dia 20 ao dia 23 de agosto de 2012.

Para explicar os elementos norteadores do processo de análise aqui empreendido, é de suma importância mencionar que, desde 1993, a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, atua como mediadoras entre imprensa e grupos sociais que atuam em defesa dos direitos da criança e do adolescente. A ANDI se dedica inteiramente à questão da infância e da juventude na Mídia e traz uma série de propostas para que as informações veiculadas acerca desse grupo social sejam emitidas da maneira mais ética possível. A partir de 2011 a Agência passou a se chamar ANDI – Comunicação e Direitos, como resultado da ampliação das suas áreas de atuação que além de Infância e Juventude, passam a atuar nas áreas de Inclusão e Sustentabilidade e Políticas de Comunicação.

Em 2012, em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, publicou a cartilha Adolescentes em conflito com a lei: Guia de referência para cobertura jornalística5 5 Disponível para acesso e download por meio do link http://www.andi.org.br/infancia-e-juventude/publicacao/adolescentes-em-conflito-com-a-lei-guia-dereferencia-para-a-cobertu. , na qual estão dispostas informações concernentes ao tema infância e adolescência na Mídia. É comum notar, como exposto no guia, que a problemática de crianças e adolescentes em conflito com a lei costuma ser pauta nos noticiários em, pelo menos, quatro situações: 1) por atos infracionais praticados por esse grupo social; 2) a ocorrência de rebeliões em unidades de internação e/ou instituições de atendimento; 3) a partir de denúncias recebidas pelos jornalistas de desrespeito aos direitos desses jovens; e, por fim, 4) quando o tema central são as políticas públicas que favorecem crianças e adolescentes em situação de risco.

A partir da elaboração dessa cartilha, a ANDI tem a intenção de que as coberturas de temas sobre essa faixa etária específica não sejam excessivamente factuais, descontextualizadas e cheias de estereótipos e mitos, focado apenas nos fatos e não em trazer soluções para os problemas em pauta, como normalmente se apresentam na prática tradicional do Jornalismo. Neste sentido, o Guia explica, ainda, que

As narrativas dos meios de comunicação de massa atuam de forma decisiva na construção de valores e comportamentos sociais. Nesse contexto, o emprego de palavras inadequadas pode reforçar preconceitos ou estereótipos. No caso dos adolescentes em conflito com a lei, em que os direitos conquistados estão permanentemente ameaçados por uma cultura de criminalização, editores e repórteres precisam estar atentos ao emprego de termos que contenham juízos de valor (ANDI, 2012ANDI. Adolescentes em conflito com a lei: Guia de referência para a cobertura Jornalística. Série Jornalista Amigo da Criança. Realização: ANDI - Comunicação e Direitos. Apoio: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 20012., p.77).

A ação da ANDI vai além de propor uma simples adequação no vocabulário jornalístico, mas de promover um constante trabalho de conscientização sobre a realidade na qual esses atores sociais estão inseridos. A ANDI reconhece, no entanto, que a Mídia é um instrumento valioso que pode impulsionar essa mudança na mente do público, na forma de encarar o problema das crianças e adolescentes em conflito com a lei.

A escolha do objeto em questão se deu tanto pela temática abordada pela série, que possui uma grande relevância social e, ainda, por ter sido veiculada em uma emissora pública, cuja configuração deve estar distanciada de interesses econômicos.

A série, composta por quatro reportagens, contou com a produção da jornalista Débora Britto e reportagem de Manuela Castro. A primeira aborda como meninos e meninas se envolvem em situações de conflito com a lei (crime); a segunda mostra o que deve ser feito com os adolescentes que cometem crimes no Brasil e sobre as chamadas “medidas restaurativas”; a terceira discute se as unidades de internação são o melhor caminho para a ressocialização ou agravam ainda mais os problemas (castigo); por fim, a quarta reportagem revela a luta de quem retomou a vida depois de cumprir medidas socioeducativas e as dificuldades da reinserção social (recuperação).

Para empreender a análise, tomamos como base categorias definidas pela Cartilha da ANDI como elementos necessários para a construção de uma cobertura de qualidade. A primeira categoria é referente à escolha das fontes. De acordo com o texto da Agência, o ideal é que haja um equilíbrio, que se mescle o disposto em documentos e falas ativas de diferentes atores sociais (p.69). A tabela (1) a seguir demonstra a utilização das fontes na série:

Tabela 1
Escolha das Fontes

Percebe-se que as orientações fornecidas pela ANDI em sua cartilha são adotadas na série de reportagens, tendo em vista que há um equilíbrio na escolha das fontes de informação. Destaca-se, ainda, que os opostos não são ouvidos para serem confrontados, mas para dar uma cobertura mais aprofundada ao tema em questão. Cada história de vida apresentada mostra que o envolvimento com o universo das drogas (foco da reportagem 1) foi o primeiro passo para um ato infracional mais grave. Na maioria dos casos, esse envolvimento foi gerado por motivações externas, tais como situação econômica desfavorável ou violência familiar. A entrevistada 2 (E2)6 6 Optamos por dar essa nomenclatura aos entrevistados de acordo com a ordem em que aparecem na reportagem. , por exemplo, foi abandonada pela mãe e viu o pai ser preso. Acabou criada pelo avô alcoólatra. Depois de se envolver com o tráfico de drogas, está em um centro de internação por tentativa de homicídio. Segundo a adolescente:

E2: A situação foi muito difícil porque meu avô e minha avó nunca tiveram um emprego fixo e a gente passa por coisas muito difíceis na vida. Eu era muito criança, tinha uma mente assim... não sabia de nada.

Raquel Willadino, representante do Observatório de Favelas e uma das entrevistadas da série, conta que:

Quando a gente perguntava por que eles entravam na rede do tráfico os principais elementos encontrados eram a motivação econômica, a necessidade de contribuir de alguma forma com o contexto familiar, com a economia familiar, e a dificuldade de acesso a um emprego que eles considerassem digno7 7 Informações extraídas da primeira reportagem da série, exibida no dia 20 de agosto de 2012. .

Com relação aos representantes legais que são entrevistados, tais como psicólogos de unidades de internação, juízes da infância e membros do Ministério Público, vemos que eles não são ouvidos para serem confrontados ou para se apontar um culpado, mas seus posicionamentos contribuem para conferir uma melhor compreensão sobre a motivação de crianças e adolescentes que se expõem a situação de conflito com a lei.

A segunda categoria que analisaremos no presente trabalho é a utilização dos termos referentes a crianças e adolescentes e a situação de risco em que se encontram. Utilizamos os termos considerados como adequados ou inadequados pela Cartilha da ANDI e avaliamos a sua ocorrência na série, como demonstrado a seguir (Tabela 2). Salientamos que foi analisado somente o discurso jornalístico, expresso no texto da repórter, sem levar em consideração a posição e a escolha de termos pelas fontes:

Tabela 2
Palavras e expressões utilizadas no texto jornalístico para fazer referência a crianças e adolescentes em conflito com a lei

Na terceira e última categoria de análise, avaliamos como a imagem dos adolescentes é exibida na série. Este é um dado relevante, pois não revelar a identidade do autor infracional evita que essa representação seja fixada no imaginário popular indeterminadamente e também preserva a identidade de parentes e pessoas próximas. A ANDI aconselha que se use de bom senso e criatividade ao expor a imagem dessas pessoas. A voz também foi considerada, por ser também um elemento de identificação do indivíduo (como no exemplo da Figura 2).

Figura 2
Imagem de adolescente em penumbra

Abaixo, a Tabela 3 mostra o tratamento que o jornal Repórter Brasil conferiu à imagem das fontes:

Tabela 3
Tratamento da imagem de crianças e adolescentes em conflito com a lei na série de reportagens

A partir da análise dos dados coletados foi possível perceber que há uma preocupação com a preservação da imagem das crianças e dos adolescentes que se interpõem como “personagens” ao longo da reportagem, seja por meio das posições em que se colocam diante do jornalista, seja dos termos que a eles são aplicados. Contudo, esse fator não deve ser visto como um diferencial desse jornal em especial, mas como um cumprimento do dever da Comunicação Social de se preservar essa imagem, tanto por não terem atingido a maioridade quanto pela situação de vulnerabilidade na qual se encontram.

Um aspecto relevante é que os atores sociais não se encontram numa posição de vitimização. Pode-se inferir que não há uma tendência a mostrá-los como incapazes, vítimas da situação socioeconômica. Nas entrevistas, todos se mostram conscientes de que infringiram a lei e da importância de cumprirem as medidas socioeducativas.

Em suma, a partir da análise, percebemos que não prevalece o tom de denuncismo, e a imagem que está fixada no nosso acervo social de conhecimento, de que essas crianças representam um risco social e devem ser afastadas do convívio dos “cidadãos de bem”, não é transmitida. Fica clara a preocupação (que deve, inclusive, ser despertada em toda a sociedade – e, desse modo, vemos o Jornalismo cumprindo seu papel primordial) com a realidade na qual essas crianças e adolescentes se encontram.

Considerações finais

Sabemos que uma reportagem de um veículo noticioso isolado não é suficiente para dar a real dimensão de como crianças e adolescentes em conflito com a lei são representadas na TV. Entretanto, dada à natureza deste trabalho acadêmico, decidimos nos ater a esse pequeno recorte que nos dá uma interessante visão sobre a temática.

A situação de crianças e adolescentes que se encontram em conflito com a lei, quando retratadas pela grande Mídia de maneira inadequada, pode criar sobre elas uma imagem de pessoas indignas e inferiores. Todavia, tal visão pode ser alterada, já que, como asseguram Berger e Luckmann (2010BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. 32. Ed.; Petrópolis: Vozes, 2010., p.82), “embora as rotinas, uma vez estabelecidas, transportem a tendência a persistir, a possibilidade de mudá-las ou mesmo aboli-las permanece ao alcance da consciência”.

A análise empreendida no presente trabalho revela que há um equilíbrio entre as fontes de informação e as mesmas são dispostas de modo a conferir coesão à reportagem e não apenas para que se ouçam os dois lados, como ensinam tantos manuais de Jornalismo. Sobre os termos escolhidos para fazer referências aos atores sociais, o que se observa é que o texto jornalístico está em conformidade com as instruções referentes ao uso de termos adequados. Há na adoção dos termos um cuidado em preservar a integridade moral dos atores sociais. Com a escolha de termos como “meninos e meninas”, “garotos e garotas” em vez de “menor”, ou quando se afirma que são pessoas que se encontram em situação de conflito com a lei ou que cometeram atos infracionais em vez de “meninos de rua” ou “marginais”, percebemos uma linguagem não abusiva, que não condena nem vitimiza os atores sociais. Ressalta-se que a proposta não se resume a uma simples alteração no vocabulário ou na forma de abordagem do tema, mas uma mudança na forma de enxergar o problema social. E a negação aos rótulos pode ser um importante passo para começar.

Observa-se, ainda, que houve o cuidado em preservar a imagem e a identidade das crianças e adolescentes (o que não é uma virtude do veículo, mas uma obrigação de todos os meios de Comunicação).

A principal conclusão que podemos destacar com a realização deste trabalho é que, apesar de os casos de envolvimento de adolescentes com atos ilícitos serem comumente um elemento de exploração para o Jornalismo sensacionalista ou são encarados com total distanciamento pela grande Mídia, é possível fazer uma cobertura diferenciada de tal assunto, que vá além da abordagem de um problema, mas que esteja focado também na solução de um problema que afeta toda a sociedade.

Referências

  • AGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempos de globalização. In: MANA, v. 7, n. 2, Museu Nacional, p. 7-33, out. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132001000200001>. Acesso em: 02 fev.2014.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132001000200001
  • ANDI. Adolescentes em conflito com a lei: Guia de referência para a cobertura Jornalística. Série Jornalista Amigo da Criança. Realização: ANDI - Comunicação e Direitos. Apoio: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 20012.
  • BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. 32. Ed.; Petrópolis: Vozes, 2010.
  • BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.
  • CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. 2. ed., São Paulo: Contexto, 2012.
  • GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
  • HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice / Editora Revista dos Tribunais, 1990.
  • JAMBEIRO, Othon. A TV no Brasil do século XX. Salvador: EDUFBA, 2001.
  • SANTAELLA, Lucia e NOTH, Winfried. Imagem: cognição, Semiótica, Mídia. 4. ed. São Paulo, SP: Iluminuras, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2014
  • Aceito
    05 Dez 2014
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) Rua Joaquim Antunes, 705, 05415-012 São Paulo-SP Brasil, Tel. 55 11 2574-8477 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: intercom@usp.br