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Pergunte ao pó, de John Fante, e o “sonho americano” dos imigrantes

Ask the dust, by John Fante, and the American dream of immigrants

Resumo

Muitas das personagens do romance Pergunte ao pó, de John Fante, são migrantes e imigrantes em busca do “sonho americano”. Este artigo analisa de que maneira o escritor Arturo Bandini, narrador-protagonista do romance, identifica-se inicialmente com os valores da cultura estadunidense, porém, afinal, constrói sua voz literária baseada em seu relacionamento com aqueles que vivem à margem da identidade nacional. O trabalho faz uso, principalmente, de fontes da historiografia estadunidense e das considerações de Antonio Candido sobre o lugar do escritor na sociedade.

Palavras-chave:
Literatura Norte-Americana; Imigração; Sonho Americano; Identidade

Abstract

Many of the characters in the novel Ask the dust, by John Fante, are migrants and immigrants in search of the American dream. This article examines how the writer Arturo Bandini, first-person narrator of the novel, at first, identifies himself with the values of American culture, but, at last, builds his literary voice based on his relationship with those who live in the margins of the national identity. This article makes use mainly of sources from American history and from Antonio Candido’s statements on the place of writer in society.

Keywords:
American Literature; Immigration; American Dream; Identity

Introdução

John Fante é um escritor que, em sua ficção, aborda o ímpeto de ascendência social dos imigrantes e seus descendentes nos Estados Unidos, considerando a relação entre a nação do American dream e aqueles que pretendem participar dessa sociedade. Sua produção literária inclui a publicação de contos em revistas norte-americanas a partir de 1932 e de romances a partir de 1938 e, finalmente, a escrita de roteiros para Hollywood. Assim como muitas de suas personagens, Fante, além de descendente de italianos, também passou sua infância no estado do Colorado, migrando mais tarde para a Califórnia em busca de mercado editorial.

A descendência italiana e a migração para a metrópole são traços constitutivos do protagonista de seu romance mais aclamado: Pergunte ao pó (Ask the dust). Arturo Bandini, alter ego do autor, é um escritor que, tendo publicado somente um conto em uma revista, pretende se manter com a comercialização de sua produção literária, em uma Los Angeles que se configura no sonho de pessoas provenientes de várias partes do país e do exterior. São, portanto, as expectativas do protagonista e as relações sociais cultivadas por Arturo Bandini que nos revelam o lugar de migrantes e imigrantes na sociedade do “sonho americano”, com suas ilusões de ascensão social e de igualdade de condições.1 1 Utilizamos as definições de migrante e imigrante presentes no Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2009), sendo migrante quem muda periodicamente de lugar, região ou país e imigrante quem se estabelece em país estrangeiro.

A seguir, será possível ver como o texto de John Fante representa os imigrantes e seus descendentes em sua busca de realização do “sonho americano”, tendo como base metodológica uma hermenêutica baseada no estudo comparativo entre o texto literário e o discurso historiográfico sobre o período focalizado na obra, demonstrando como as vivências da personagem principal, Arturo Bandini, ao construir relações sociais com migrantes, imigrantes e seus descendentes de diferentes origens, constrói sua voz literária, ainda que isso não o coloque em posição de destaque no cânone das letras norte-americanas.

As armadilhas do “sonho”

Pergunte ao pó teve sua primeira edição em 1939, um ano após a publicação do primeiro romance de John Fante, Espere a primavera, Bandini (Wait until spring, Bandini). O ano coincide com a declaração de guerra na Europa, e os estadunidenses comuns, que a princípio pareciam distantes do conflito, na verdade já tomavam partido. Muitos deles eram a favor da causa de Hitler e de Mussolini, visto que a perseguição aos judeus era associada a um maior controle da imigração e do comunismo:

A muitos norte-americanos impressiona não só a fabulosa presteza com que esses homens [Hitler e Mussolini], de seus países aniquilados, fizeram outra vez grandes potências. Na constância de ambos os sistemas fascistas, consideram um dique tranquilizador contra a terrível maré bolchevista. Por tal motivo, muitos esquecem o que Hitler faz aos judeus. Assim acontece que, sob alegação das leis imigratórias, as autoridades dos Estados Unidos se opõem aos transportes de refugiados judeus que demandam um asilo nos Estados Unidos. (ZIERER, 1964ZIERER, Otto. História da América: Vol. 4: o Novo Mundo. Trad. Valdomiro Pires Martins. Petrópolis: Vozes, 1964., p. 244-245)

Esse, aliás, é o contexto histórico que Bandini evocará num dos derradeiros capítulos do livro: “Guerra na Europa, um discurso de Hitler, confusão na Polônia, estes eram os assuntos do dia” (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 156). Logo, a referência à Segunda Guerra nas conversas cotidianas indica que o assunto, ainda que apenas como pano de fundo, faz parte do livro, assim como uma aversão a imigrantes por uma parte da população dos Estados Unidos, o que fica evidente no romance, por exemplo, no momento em que Bandini se registra num hotel que não aceita mexicanos (FANTE, 2010, p. 49).

As dificuldades dos estrangeiros e seus descendentes em terreno estadunidense saltam aos olhos em Pergunte ao pó e são complementadas pela submissão dos indivíduos provenientes de outros estados do país aos valores da metrópole cultural Los Angeles. De fato, se observa, sem dificuldade, que quase todas as personagens do romance são oriundas do exterior ou descendentes de imigrantes, ou, então, provêm de outros estados em busca da prosperidade econômica ou da inserção em uma sociedade urbana e moderna. Eis o cenário de párias que Bandini vê a caminho de seu quarto de hotel em Bunker Hill:

Os velhinhos de Indiana, Iowa e Ilinois, de Boston, Kansas City e Des Moines, eles vendiam suas casas e suas lojas e vinham para cá de trem e de automóvel, para a terra do sol, para morrer ao sol, com o dinheiro contado para viver até que o sol os matasse, arrancavam-se de suas raízes em seus últimos dias, desertavam a cômoda prosperidade de Kansas City, Chicago e Peoria para encontrar um lugar ao sol. (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 46)

E ainda:

Vão comer hambúrgueres ano após ano, e viver em apartamentos e hotéis empoeirados, infestados de vermes, mas toda manhã vão ver o poderoso sol, o eterno azul do céu, e as ruas estarão cheias de belas mulheres que vocês nunca possuirão e as noites quentes e semitropicais recenderão a romances que vocês nunca vão viver, mas ainda assim estarão no paraíso, rapazes, na terra do sol. (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 46-47)

Se nos reportarmos à década de 1920, veremos que, nos Estados Unidos, os estrangeiros sofriam muito com a pobreza e a discriminação:

Sentimentos racistas contra estrangeiros e seus descendentes fermentavam na população branca há várias décadas, em grande parte como uma resposta aos problemas sociais - pobreza, doenças, conflito de classe - associados à vinda de imigrantes da Europa Oriental, Europa Meridional e Ásia. O chauvinismo da Primeira Guerra Mundial e a reação anti-radical do Red Scare contribuíram para intensificar o clima anti-imigrante. O anti-semitismo e a pseudociência da eugenia inundaram a cultura popular e oficial. (PURDY, 2007PURDY, Sean. O século americano. In: KARNAL, Leandro et. al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p. 173-276., p. 201)

Nesse contexto, o caso dos mexicanos é o mais expressivo:

Se os trabalhadores em geral sofreram na década, mulheres, negros e imigrantes tiveram que lidar também com discriminações e violências específicas, além da falta de interesse dos sindicatos e do Estado por seus problemas. Esse foi o caso, por exemplo, do meio milhão de mexicanos que imigraram nos anos 1920 para trabalhar nos campos e nas cidades da Califórnia e do Sudoeste dos Estados Unidos. Fonte de mão-de-obra barata para agronegócios, construção civil e fábricas, os mexicanos desenvolveram bairros próprios em Los Angeles, El Paso, San Antonio e Denver e, com o tempo, passaram a ter uma forte influência na cultura da região. (PURDY, 2007PURDY, Sean. O século americano. In: KARNAL, Leandro et. al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007, p. 173-276., p. 201)

Além disso, a partir de 1924, os mexicanos passam a ser alvo de intenso policiamento contra a imigração ilegal: “Hasta 1924 había muy poco control de la frontera México-EE. UU. y la minería, los ferrocarriles y la industria agricultora de EE. UU. dependían fuertemente de trabajadores mexicanos que podían ir y venir por la frontera” (STEPHEN, 2011STEPHEN, Lynn. Murallas y fronteras: el desplazamiento de la relación entre Estados Unidos - México y las comunidades trans-fronterizas. Cuadernos de Antropología Social, n. 33. Buenos Aires, jan./jul. 2011, p. 7-38. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1850-275X2011000100001 . Acesso em: 18 nov. 2016.
http://www.scielo.org.ar/scielo.php?scri...
, p. 17). Porém, a partir de então, a lei Johnson-Reed faz crescer a vigilância fronteiriça: “A lei Johnson-Reed de Imigração, de 1924, estabeleceu, pela primeira vez, restrições numéricas, tornando a imigração ilegal um problema central na aplicação da legislação sobre imigração nos Estados Unidos” (NGAI, 2008NGAI, Mae. A estranha carreira do imigrante ilegal: restrições à imigração e política de deportação nos Estados Unidos, 1921-1965. Tempo, vol. 13, n. 25. Niterói, 2008, p. 5-36. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042008000200002 . Acesso em: 16 nov. 2016.
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, p. 5).

Ainda assim, a população de mexicanos vivendo nos Estados Unidos na década de 1930 era de mais de 1,4 milhões (Cf. STEPHEN, 2011STEPHEN, Lynn. Murallas y fronteras: el desplazamiento de la relación entre Estados Unidos - México y las comunidades trans-fronterizas. Cuadernos de Antropología Social, n. 33. Buenos Aires, jan./jul. 2011, p. 7-38. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1850-275X2011000100001 . Acesso em: 18 nov. 2016.
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, p. 20). Isso ocorreu porque, mesmo sob o risco de deportação, a imigração também apresentou crescimento nessa época: “Embora a entrada ilegal tivesse sempre resultado em expulsão, na década de 1920, a imigração ilegal atingiu proporções maciças e a deportação ocupou um lugar central na política de imigração” (NGAI, 2008NGAI, Mae. A estranha carreira do imigrante ilegal: restrições à imigração e política de deportação nos Estados Unidos, 1921-1965. Tempo, vol. 13, n. 25. Niterói, 2008, p. 5-36. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042008000200002 . Acesso em: 16 nov. 2016.
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, p. 8).

A imigração, no período logo após a Primeira Guerra Mundial, era praticada por cidadãos de diferentes nacionalidades; no entanto, logo os mexicanos foram vistos distintamente de outros imigrantes por uma suposta questão racial: “A tendência era de dissociar os europeus e os canadenses da categoria real ou imaginária de estrangeiro ilegal, o que facilitava sua assimilação nacional e racial como cidadãos brancos americanos. Em contraste, os mexicanos surgiram como estrangeiros ilegais icônicos” (NGAI, 2008NGAI, Mae. A estranha carreira do imigrante ilegal: restrições à imigração e política de deportação nos Estados Unidos, 1921-1965. Tempo, vol. 13, n. 25. Niterói, 2008, p. 5-36. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042008000200002 . Acesso em: 16 nov. 2016.
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, p. 9).

Consequentemente, tiveram que lidar com o estigma da ilegalidade: “La narrativa racial estadunidense vinculando la nacionalidad mexicana con la ilegalidad y la percepción de la apariencia física del ‘mexicano’ como ‘café’/‘marrón’ se inició en la frontera del sur en la década de 1920 a través de prácticas policiales y categorias lingüísticas” (STEPHEN, 2011STEPHEN, Lynn. Murallas y fronteras: el desplazamiento de la relación entre Estados Unidos - México y las comunidades trans-fronterizas. Cuadernos de Antropología Social, n. 33. Buenos Aires, jan./jul. 2011, p. 7-38. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1850-275X2011000100001 . Acesso em: 18 nov. 2016.
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, p. 19).

É devido a esse lugar de desprestígio social ocupado por Camilla Lopez na sociedade dos Estados Unidos que Bandini, que se julga estadunidense, e não ítalo-americano, cultiva seu desprezo em relação a ela. Porém, o narrador denuncia-se: quando descreve os párias de Los Angeles, provindos de outros estados americanos, está, ao mesmo tempo, falando de si mesmo. Ele vive em um quarto de hotel que só pode pagar quando um de seus textos é aceito para publicação, passa dias comendo apenas laranjas que um vendedor chinês lhe oferece e tem uma enorme dificuldade (que não é apenas social, mas também envolve culpa religiosa) de se relacionar com mulheres.

Bandini saiu do Colorado para viver o sonho de ser escritor na Califórnia. Orgulha-se de ser estadunidense, mas sua ascendência italiana não deixa de lhe valer o epíteto de “carcamano”: assim, pensa estar em um lugar que é seu, mas a sociedade dos Estados Unidos parece lhe negar esse pertencimento. Isso porque, mesmo entre os estadunidenses, há uma tradição que diferencia os indivíduos com base nas origens: “existe uma tendência central no ethos nacional que estrutura as pessoas em grupos de diferentes status e características, um padrão étnico configurado por forte diferenciação (real ou imaginada) entre norte-americanos irlandeses, judeus, italianos e assim por diante, apontando a falência da noção de melting-pot” (SEYFERTH, 2011SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 26, n. 77. São Paulo, out. 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092011000300007 . Acesso em: 16 nov. 2016.
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, p. 55).

Devido a seu sentimento de exclusão é que as relações sociais de Bandini se dão quase que exclusivamente entre migrantes e estrangeiros, seja a Sra. Hargraves, proprietária do hotel vinda de Connecticut, as prostitutas Jean, do Texas, e as irmãs Evelyn e Vivian Mortensen, originárias do Minnesota e descendentes de suecos, o barman judeu Solomon, Vera Rivken, a judia da Pensilvânia, Hellfrick, do meio-oeste, os japoneses do futebol americano, seja, é claro, Camilla Lopez, a mexicana por quem Bandini nutre uma paixão violenta e hesitante.

Essa multiplicidade de origens e ascendências das personagens não é somente resultado de uma intenção literária; na verdade, os Estados Unidos, após a Primeira Guerra Mundial, receberam imigrantes dos mais diversos países, e muitos deles se mantinham mesmo na ilegalidade:

Os imigrantes ilegais se compunham agora de todas as nacionalidades e grupos étnicos. Eles eram numerosos, talvez até incontáveis, e estavam espalhados por toda a nação, particularmente pelas grandes cidades; eles podiam ser o(a) esposo(a) de qualquer um, vizinho ou companheiro de trabalho. (NGAI, 2008NGAI, Mae. A estranha carreira do imigrante ilegal: restrições à imigração e política de deportação nos Estados Unidos, 1921-1965. Tempo, vol. 13, n. 25. Niterói, 2008, p. 5-36. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042008000200002 . Acesso em: 16 nov. 2016.
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, p. 17)

Ao mesmo tempo, essa diversidade de origens fazia aumentar socialmente a aversão a novas imigrações, visto que “a Primeira Guerra Mundial tinha feito surgir um nacionalismo e um sentimento anti-estrangeiro agudos” (NGAI, 2008NGAI, Mae. A estranha carreira do imigrante ilegal: restrições à imigração e política de deportação nos Estados Unidos, 1921-1965. Tempo, vol. 13, n. 25. Niterói, 2008, p. 5-36. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042008000200002 . Acesso em: 16 nov. 2016.
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, p. 13). Esse fator é relevante para compreender o fato de Bandini não se identificar com esse grupo.

A única das personagens mais relevantes do romance que é tida como totalmente norte-americana é Sammy, o amigo de Camilla, por quem ela se apaixona e que a recusa. Logo se vê que o triângulo amoroso funda-se sobre uma questão importante no que diz respeito à identidade nacional: Bandini, o ítalo-americano, sente-se atraído por Camilla como por uma princesa mexicana, algo exótico que ele quer possuir, mas, ao mesmo tempo, despreza com base em sua origem. Camilla, por sua vez, busca o amor de Sammy, pois conquistá-lo significa conquistar o “sonho americano”, tendo em vista que não é apenas a origem comum que cria uma relação de pertencimento, mas também a união em torno de vivências e objetivos comuns: “A identidade (étnica) permite associar o indivíduo, ou o grupo, a um passado, uma raça, uma cultura compartilhada, suscita sentimentos de pertença, mas o interesse comum também une, permitindo laços concretos de comunidade” (SEYFERTH, 2011SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 26, n. 77. São Paulo, out. 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092011000300007 . Acesso em: 16 nov. 2016.
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, p. 55).

Enquanto isso, Sammy, que, apesar de amigo de Camilla, se mostra sempre indiferente à sua dramática relação com Bandini, ao final, se utiliza da moça para cuidar de seus afazeres domésticos e, depois, permite que ela parta sem se preocupar com seu perigoso destino. Logo, veem-se delineadas a admiração e a vontade de pertencimento por parte de migrantes e imigrantes em relação à terra promissora que é a metrópole norte-americana e a relação de atração, mas, ao mesmo tempo, de desprezo a Los Angeles por aqueles que para lá afluem. De fato, as metrópoles exercem um fascínio sobre os imigrantes de todo o Ocidente nas décadas de 1920 e 1930, e seu deslocamento é acompanhado pela expansão da indústria e da tecnologia nos centros urbanos:

Migrations were inseparable from unprecedented urbanization and population growth, the expansion of industrial production and global markets, the spread of wage labor, the growth and extraction of food and resources to feed those workers, the revolution of transportation technologies, and the accompanying creation of an international system of nation states, borders, and population management techniques. (MOYA; McKEOWN, 2010MOYA, Jose C.; McKEOWN, Adam. World migration in the long twentieth century. In: ADAS, Michael (Ed.). Essays on twentieth century history. Philadelphia: Temple University Press, 2010, p. 9-52. Disponível em: Disponível em: https://muse.jhu.edu/book/9505 . Acesso em: 18 nov. 2016.
https://muse.jhu.edu/book/9505...
, p. 11)

Ainda assim, está fora de dúvida que o “sonho americano” envolve uma concepção mítica da realidade, visto que ele pressupõe a crença numa certa ideia de milenarismo, tomado como possibilidade de uma felicidade futura. Assim, segundo Gerald MessadiéMESSADIÉ, Gerald. A crise do mito americano: réquiem para o super-homem. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Ática, 1989.:

O American Dream designa não tanto um projeto nacional quanto uma massa de aspirações individuais à autorrealização, como é comum a todos os seres humanos, porém uma realização com a marca do evangelismo [...]. O sonho americano esteve presente desde o estabelecimento dos primeiros colonos: cada um viveria numa liberdade bíblica e se entregaria afinal, sem entraves - o que subentendia os entraves da sociedade decadente, papista e corrompida do Velho Continente -, aos seus afazeres terrenos. Assim, contribuiriam para a edificação de uma grande nação, cujo exemplo conquistaria todas as demais. Pode-se comparar esse evento à instalação dos judeus na Terra Prometida [...]. (1989, p. 119-120)

Está claro que a utopia representada pelo “sonho americano” se delineia aos olhos de Bandini como a glória literária. Por outro lado, num primeiro momento, não fica evidente no romance o objetivo de vida de Camilla, e mesmo se possui algum. Só mais tarde é que se saberá que está apaixonada por Sammy. Isso se deve à perspectiva do narrador da obra. Se o narrador é o escritor Bandini, é compreensível que, em seu desprezo pelos mexicanos, a personagem também não se interesse pela vida e pelos planos de Camilla, antes a afaste de si (ao mesmo tempo em que a deseja) com ofensas relacionadas à sua miséria e à sua origem latino-americana, simbolizadas pelos calçados que ela usa no trabalho: “Esses huaraches você tem de usá-los, Camilla? Tem de enfatizar o fato de que sempre foi e sempre será uma latina suja e sebenta?” (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 45). A lembrança das ofensas, no entanto, traz o arrependimento, e Bandini oscila entre a atração erótica pela garota e a repulsa por sua origem, algo com o qual ele mesmo se identifica, já que também foi hostilizado na infância pelos norte-americanos de sobrenomes ingleses:

Vomitei em seus jornais, li sua literatura, observei seus costumes, comi sua comida, desejei suas mulheres, maravilhei-me diante de sua arte. Mas sou pobre e meu nome termina com uma vogal branda, e eles me odeiam e odeiam meu pai e o pai de meu pai, e arrancariam meu sangue e me derrubariam, mas estão velhos agora, morrendo ao sol, e na poeira quente da estrada, e eu sou jovem e cheio de esperança e de amor ao meu país e à minha época, e quando a chamo de sebenta não é o meu coração que fala, mas o tremor de uma velha ferida, e estou envergonhado da coisa terrível que fiz. (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 48)

Assim, mais importante para a narrativa do que os objetivos de Camilla é o fato de que essa personagem problematiza as ambições do próprio narrador: na perspectiva do protagonista, o orgulho de ser estadunidense pressupõe o preconceito com relação aos mexicanos; por outro lado, a presença de Camilla remete-o a seus traumas de infância, quando ele, também tratado com desprezo, era chamado de “carcamano”. Essa oposição, que é, sem dúvida, o traço mais significativo da personalidade do narrador, aparece com frequência durante toda a história: no plano da imaginação, Bandini constrói para si uma imagem de sucesso, de escritor participante da tradição literária dos Estados Unidos, assumindo a herança dos autores que admira; no plano da realidade, pouquíssimas pessoas leem seus escritos, o que revela, não somente um desinteresse da sociedade de Los Angeles pelo seu trabalho, mas também a difícil luta do escritor por um lugar ao sol na metrópole cultural, ao mesmo tempo em que tenta fugir dos preconceitos sobre sua terra de origem.

De modo significativo, Bandini acaba se tornando um escritor realizado, ao menos para a imagem que faz de si mesmo, com base na experiência erótica com uma mulher desprezada socialmente devido a uma deformidade física: a judia Vera Rivken. É sua história que ele conta no romance que escreve, e é esse romance que lhe garante dinheiro suficiente para ajudar Camilla quando ela foge de uma instituição psiquiátrica e, finalmente, realizar seu plano de viver com ela numa casa de praia. Ainda assim, o romance não lhe garante popularidade, e o narrador termina a história, não como um escritor importante na tradição literária norte-americana, mas como o escritor dos párias, dos desprezados.

Da mesma forma, seus objetivos se transformam durante os últimos capítulos de Pergunte ao pó, de tal maneira que, depois de ver seu livro à venda e do desaparecimento de Camilla, o narrador declara:

Por um tempo foi divertido. Eu podia entrar nas lojas de departamentos e vê-lo entre milhares de outros, meu livro, meu nome, minha razão de viver. Mas não era o tipo de diversão que eu tinha ao ver O cachorrinho riu [conto que havia publicado anteriormente] na revista de Hackmuth.

Aquilo também passara. E nenhuma notícia de Camilla, nenhum telegrama.” (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 173)

Ao final do romance, Camilla torna-se mais importante na vida de Bandini do que a antes tão almejada publicação. No entanto, a mexicana, desprezada por Sammy, desiste do “sonho americano”: nega-se a permanecer com Bandini numa casa de praia com seu Ford e seu cachorrinho e foge através do deserto de Mojave, o deserto que parece atraí-la com o chamado de sua terra de origem. No desfecho de Pergunte ao pó, a narrativa dura de um escritor que tenta se estabelecer em um ambiente cultural hostil torna-se lírica, saudosa, e Bandini, sentindo a falta da moça mais do que de leitores nos Estados Unidos, encontra seu lugar como voz dos imigrantes ao atirar ao deserto um exemplar de seu romance, dedicado a Camilla:

Lá longe, através do Mojave, erguiam-se os vapores do calor. Subi lentamente a trilha até o Ford. No assento, havia um exemplar do meu livro, meu primeiro livro. Achei um lápis, abri o livro na folha de guarda e escrevi: A Camilla, com amor Arturo Levei o livro uns cem metros para dentro da desolação, no rumo sudeste. Com toda a minha força, joguei-o para longe, na direção em que ela sumira. Entrei no carro, dei a partida e rodei de volta a Los Angeles. (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 176)

Nesse momento, quando, para Bandini, a literatura passa, de vontade de estabelecer uma carreira e de adquirir reconhecimento, à expressão de sua humanidade íntima e dos problemas que envolvem os migrantes e imigrantes nos Estados Unidos, é significativa sua volta a Los Angeles, pois leva o leitor a antever sua persistência em tentar conquistar um lugar social como escritor. Lembremos, nesse sentido, os dois elementos adotados por Antonio CandidoCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 235-263. para considerar a literatura como um direito humano:

Primeiro, verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos. (1995, p. 256)

Arturo Bandini se encaixa nos dois ângulos adotados por Candido: a literatura o humaniza porque o coloca em contato com seus sentimentos mais profundos em relação a Camilla, mas também obriga-o a cumprir um papel de desmascaramento das relações sociais que o atingem como vítima e também como praticante da discriminação.

O lugar do escritor Arturo Bandini

Por seu percurso na narrativa, Bandini assume o lugar de voz literária dos imigrantes e, sendo necessário que a sociedade veja nele um porta-voz de seus valores para que ele seja legitimado na função de escritor, seu possível sucesso pode ser o início de uma transformação no imaginário coletivo. Seguindo com Candido: “Finalmente, a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio. Este fator exprime o reconhecimento coletivo da sua atividade, que deste modo se justifica socialmente.” (2000, p. 75)

Quanto a isso, é importante lembrar que a literatura norte-americana dos anos 1930 é pródiga em romancistas de temática social, como Thomas Wolfe, John Dos Passos, John Steinbeck, Erskine Caldwell e James T. Farrell. Assim aponta Leon HowardHOWARD, Leon. A literatura norte-americana. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1964.:

O efeito mais radical da depressão econômica sobre a consciência norte-americana foi tornar impossível a velha atitude do laissez faire. [...] todos foram obrigados a compreender que os indivíduos não se aguentavam sozinhos na complexa sociedade que haviam criado. Mesmo o decênio de vinte fora assinalado por gradual decréscimo do entusiasmo pela nova liberdade, por uma tendência minguante a viver apenas no presente, por uma perceptível inclinação a refletir melhor, em literatura. (1964, p. 207)

Além disso, os Estados Unidos do pós-guerra evidenciavam a disparidade entre aqueles que haviam lutado nas trincheiras e aqueles que haviam lucrado com o combate:

Quando cessou a guerra, tão repentinamente como começara, estes jovens [escritores do pós-guerra] contemplaram demoradamente sua pátria, constatando logo que ela sofrera o choque da guerra, mas conhecera pouco da sua realidade, verificaram que seus compatriotas tinham lucrado com a indústria de guerra e com a consciência de sua força e de ter ‘agido bem’, que sempre acompanha as vitórias. Uma segunda desilusão levou-os então a combater essa sua pátria insensível e assim encetaram, com o mesmo entusiasmo com que tinham partido em sua cruzada bélica, a batalha em prol da integridade literária e moral da América e de si mesmos. (SPILLER, 1961SPILLER, Robert E. O ciclo da literatura norte-americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961., p. 318)

Outra característica importante do período a partir do final da Primeira Guerra foi o retorno dos escritores expatriados, o que contribuiu para uma “redescoberta” dos Estados Unidos, inclusive por escritores que receberam o Prêmio Nobel, como Sinclair Lewis, Eugene O’Neill e Pearl Buck. (Cf. CUNLIFFE, 19__CUNLIFFE, Marcus. A literatura dos Estados Unidos. [S. l.]: Revista Branca, [19__]., p. 207) Ou seja, não era só um olhar novo, mas um entusiasmo produtivo dos escritores mais jovens, que almejavam o lugar de destaque na cena literária internacional conquistado recentemente pelos escritores norte-americanos: “No estrangeiro e nos Estados Unidos, a nova literatura norte-americana era reconhecida como uma força surpreendente e inegável no complexo da cultura ocidental” (SPILLER, 1961SPILLER, Robert E. O ciclo da literatura norte-americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961., p. 316).

Todo esse contexto certamente contribuiu para o olhar literário e o intuito de viver de literatura desenvolvido por novos escritores, como é o caso do narrador Arturo Bandini. Por conseguinte, é incorporando características gerais da literatura norte-americana da década de 1930 que Bandini intenta se realizar como escritor, cumprindo o papel que a sociedade lhe destina, pois:

[...] o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público. (CANDIDO, 2000______. O escritor e o público. In: ___. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000., p. 74, grifos originais)

Porém, há um confronto entre o objetivo de Bandini e a ausência de reconhecimento social. Em consequência disso, no entanto, é que o protagonista de Pergunte ao pó não será a voz da América estabelecida, mas das entranhas da América, das vozes que ainda estão silenciadas pela sua condição de párias ou que servem, no máximo, para a diversão dos estadunidenses “legítimos”, não para enunciar um discurso afirmativo. Não é à toa que a Avenida Central da metrópole é descrita como “a rua da desesperança e da pobreza para os negros e do divertimento para os brancos” (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 150): observa-se, em trechos como esse, que o olhar do narrador Bandini está sempre direcionado às diferenças sociais e ao lugar dos menos favorecidos e especialmente focado nos lugares de origem das pessoas, como no caso de Evelyn e Vivian: “Oh, não, não são suecas, de onde tirou esta ideia? Seu sobrenome era Mortensen, mas não era sueco, porque sua família era americana havia muitas gerações” (FANTE, 2010, p. 80).

É com base nesse olhar particular que a literatura de Bandini e, por extensão, de Fante, será uma crítica ao “sonho americano”, à ilusão de que os Estados Unidos são a terra da liberdade e da oportunidade, e que se possa realizar nesse ambiente social a crença que consta da Declaração da Independência do país: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade.” (JEFFERSON, 2006JEFFERSON, Thomas. A declaração de independência dos Estados Unidos. Trad. Mariluce Pessoa. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.) Como vemos no romance, há muito mais nuances na realidade do que na ideia fundacional da nação estadunidense.

Por outro lado, se a voz literária de Bandini se constrói a partir da expressão dos desfavorecidos da sociedade, especialmente dos imigrantes, sabemos que não é por vontade própria, mas por consequência de suas vivências, especialmente do seu relacionamento com Camilla Lopez. Desse modo, é importante ressaltar que sua condição de ítalo-americano se expõe em sua vida e em seus escritos independente de sua vontade, e mesmo contrariamente a ela. Sendo assim, é em detalhes que o protagonista revela sua condição. O fato de saber atirar com uma arma, por exemplo, é representativo da cultura belicista dos Estados Unidos, construída sob o pressuposto do direito de autodefesa. Ao passear com Camilla, a mexicana pergunta ao narrador se ele sabe atirar. E aqui o narrador constrói uma ambiguidade: não sabemos se o “eu não sabia” (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 134) que se segue à narração do fato anterior é um comentário confidencial feito pelo narrador ao leitor de Pergunte ao pó ou se essa realmente foi sua resposta a Camilla. A ambiguidade é significativa porque revela uma hesitação diante da possibilidade de não corresponder às expectativas da moça.

O que sucede o comentário é o fracasso de Bandini na galeria de tiro, que tem como contraponto o status social de Tim por saber atirar e a vergonha de Camilla, que anseia estar perto de um tradicional atirador estadunidense: “Tim e Camilla riram do maricas. A esta altura, uma multidão se juntara na calçada. Todos partilhavam do nojo de Camilla, era uma coisa contagiante e eu também senti aquilo. Ela virou-se, viu a multidão e corou. Tinha vergonha de mim, estava aborrecida, mortificada” (FANTE, 2010FANTE, John. Pergunte ao pó; Espere a primavera, Bandini. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010. (BestBolso; 208), p. 134-135).

Sendo assim, a expectativa de Camilla com relação ao comportamento de Arturo e seu desapontamento são tão constitutivos do olhar do narrador quanto sua ambição literária.

Conclusão

Como se viu, a narrativa de Arturo Bandini, alter ego do escritor John Fante, revela traços de seu momento histórico de enunciação, representado pela intenção do narrador de ser aceito pela sociedade dos Estados Unidos, mas também de fazer parte de sua tradição literária, que, em sua época, vinha sendo reconhecida mundialmente. Seu fracasso na realização desse projeto, porém, revela a falência do “sonho americano”, ao mesmo tempo que lhe propicia um olhar humanizado em relação aos migrantes e imigrantes presentes na metrópole onde vive e lhe confere uma voz literária singular.

Não obstante, para que isso ocorra, é necessária também uma transformação pessoal de Bandini, no sentido de se identificar com a multidão de migrantes e imigrantes que povoam sua vida e sua narrativa e que também esperam viver o “sonho americano”. Em Pergunte ao pó, eles são especialmente representados por Camilla, a mexicana que, após sofrer o desprezo do narrador, provoca-lhe a solidão ao desaparecer no deserto de Mojave.

O que se revela, afinal, é que, a partir do que poderia ser apenas mais uma história de amor e desprezo e de triângulo amoroso, John Fante tece complexas relações de identidade e de influência cultural, além de explorar os lugares de migrantes e imigrantes e da própria figura do escritor na sociedade e no sistema literário dos Estados Unidos.

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  • 1
    Utilizamos as definições de migrante e imigrante presentes no Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2009), sendo migrante quem muda periodicamente de lugar, região ou país e imigrante quem se estabelece em país estrangeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2016
  • Aceito
    22 Nov 2016
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