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O RELATO DE VIDA INDÍGENA E OUTROS (SUB)GÊNEROS LITERÁRIOS EM A QUEDA DO CÉU: PALAVRAS DE UM XAMÃ YANOMAMI, MEU NOME É RIGOBERTA MENCHU E ASSIM NASCEU MINHA CONSCIÊNCIA E BOBBI LEE: INDIAN REBEL STRUGGLES OF A NATIVE CANADIAN WOMAN

THE INDIGENOUS LIFE NARRATIVE AND OTHER LITERARY (SUB)GENRES IN THE FALLING SKY: WORDS OF A YANOMAMI SHAMAN, I, RIGOBERTA MENCHÚ: AN INDIAN WOMAN IN GUATEMALA AND BOBBI LEE: INDIAN REBEL STRUGGLES OF A NATIVE CANADIAN WOMAN

Resumo1 2 No original: “Black Elk Speaks: My friend, I am going to tell you the story of my life, as you wish; and if it were only the story of my life I think I would not tell it; for what is one man that he should make much of his winters, even when they bend him like a heavy snow? So many other men have lived and shall live that story, to be grass upon the hills”.

Partindo de três obras primárias: A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu minha consciência, de Rigoberta Menchú e Elizabeth Burgos, e Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman, de Lee Maracle e Don Barnett, busco apontar e reforçar algumas das características desses relatos de vida indígena (SALLES, 2020) a partir de uma análise comparativa com outros gêneros (a saber, narrativas de vida étnica, narrativas de exílio, autoetnografia e ecobiografia). Para tal, a “virada etnográfica” ocorrida no campo das ciências sociais, que trouxe maior fluidez para a classificação de trabalhos como relatos de vida indígena, assim como a discussão sobre gêneros literários nos são bastante caras nesse artigo.

Palavras-chave
Narrativa de vida; Literatura heterogênea; Literatura Indigenista; Literatura Indígena

Abstract

Taking three narratives as a starting point: The Falling Sky: Words of a Yanomami Shaman, by Davi Kopenawa and Bruce Albert, I, Rigoberta Menchú: an Indian Woman in Guatemala, by Rigoberta Menchú and Elizabeth Burgos, and Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman, by Lee Maracle and Don Barnett, I aim at investigating, from a comparative perspective, the specificities of the indigenous life narrative (SALLES, 2020) in contrast with other genres and subgenres (such as: ethnic life narratives, exile narratives, autoethnography and ecobiography). To reach my goal, I have used the “ethnographic turn”, that took place in the field of social sciences and has brought greater fluidity to the classification of works like the indigenous life narratives, along with the issue of literary genres as starting points to the development of my article.

Keywords
Life narrative; Heterogeneous literature; Indigenist literature; Indigenous literature

Em 1932, o escritor estadunidense John G. Neihardt publicou Black Elk Speaks e inicia a obra com a seguinte passagem:

Black Elk Fala: Meu amigo, eu vou te contar a história da minha vida, conforme você deseja; e se fosse apenas a história da minha vida eu acho que não a contaria; pois o que é feito de um homem que deseja engradecer os invernos pelos quais passou, mesmo quando foi derrubado como se ele fosse neve caindo pesada? Tantos outros homens viveram e ainda viverão para serem grama nas montanhas2 2 No original: “Black Elk Speaks: My friend, I am going to tell you the story of my life, as you wish; and if it were only the story of my life I think I would not tell it; for what is one man that he should make much of his winters, even when they bend him like a heavy snow? So many other men have lived and shall live that story, to be grass upon the hills”.

(NEIHARDT, 2008NEIHARDT, John G. Black Elk Speaks. Nova Iorque: State University of New York Press, 2008., p. 1, tradução nossa, grifo do original).

A narrativa em primeira pessoa introduz um interlocutor, um amigo do narrador indígena, e este possui uma perspectiva bastante modesta de si mesmo: dentre tantos indivíduos que existem, sua história individual não é tão relevante. Além disso, declara também que esta narrativa de vida não é somente sua.

Ao longo de Black Elk Speaks temos acesso ao ponto de vista de Black Elk, da etnia Ogala Sioux, assim como à vida de seu povo, a se referir a aspectos espirituais, sociológicos e políticos que formam um arcabouço filosófico-cultural para muitos (DELORIA Jr., 2008DELORIA Jr., Vine. “Foreword”. In: NEIHARDT, John G. Black Elk Speaks. Nova Iorque: State University of New York Press, 2008. p. xiii-xvii., p. xv), mesmo no século XXI. Esta narrativa possui uma dinâmica que destoa das narrativas autodiegéticas tradicionais: Black Elk contou a história de seu povo (que inclui o próprio narrador) em sua língua nativa; seu filho, Nicholas Black Elk, traduzia as palavras de seu pai e, por meio da estenografia, uma profissional registrava toda a narração. Por fim, Neihardt compilou e escreveu a história do líder indígena e a ela acrescentou um posfácio, apêndices, um índice e bibliografia.

Em 1932, obras que traziam as palavras de indígenas, mas cuja autoria era atribuída a indivíduos brancos, não indígenas, não eram incomuns. E, com o passar dos anos, a estenografia cedeu espaço a gravadores de voz e/ou imagens, perpetuando, assim, este tipo de dinâmica colaborativa. O narrador indígena cuja voz é a que aparece ao longo da narrativa é aqui chamado “modelo”, enquanto aquele que compila, transcreve, traduz e edita é referido como “redator” (LEJEUNE, 2014LEJEUNE, Philippe. O Pacto Autobiográfico: De Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. Tradução de: Jovita Maria Gerheim Noronha.).

A dinâmica modelo-redator, através do tempo, a meu ver, transparece a relação desigual entre nativos e não nativos (brancos): o desequilíbrio de poder sobre o produto final da obra tende a favorecer aqueles que apenas receberam a narrativa, e não os que a produziram/proferiram. No caso de Black Elk Speaks, a autoria e o processo de coleta da narrativa foram atribuídos somente a Neihardt, mesmo que a parte central da narrativa não pudesse ser atribuída a ele.

Seguindo uma dinâmica bastante similar, as três obras sobre as quais me debruço neste artigo são: A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015), de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu minha consciência (1992), de Rigoberta Menchú e Elizabeth Burgos, e Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman (1975), de Lee Maracle e Don Barnett. Assim como a já citada obra de 1932, as três que compõem meu corpus foram narradas por modelos indígenas e, posteriormente, transcritas, editadas e traduzidas por seus respectivos redatores. Porém, ao invés da estenografia, essas três obras utilizam gravadores como ferramenta para possibilitar a captura da voz, para posterior transformação e tradução da narrativa oral em escrita.

Em A queda do céu, Kopenawa e Albert parecem nutrir uma forte amizade e confiança mútua. O modelo, liderança indígena yanomami brasileira, confiou que o antropólogo francês levasse suas palavras para os brancos (a quem chama “povo da mercadoria”) e as perpetuasse em forma de escrita sobre o papel (chamado por Kopenawa de “peles de imagens”).

No caso de Rigoberta Menchú e Elizabeth Burgos, a relação entre modelo e redatora não parece ter sido tão estreita. Além disso, Menchú havia recentemente aprendido a utilizar a língua espanhola para se comunicar, e não há referência na obra ao fato de Burgos dominar a língua nativa de Menchú (quiché) a ponto de se comunicarem perfeitamente. A guatemalteca, após ter tido sua trajetória e a de seu povo publicada, recebeu o prêmio Nobel da Paz em 1992.

Por fim, Lee Maracle e Don Barnett encontraram-se em um curso de escrita de histórias de vida (MARACLE, 1990MARACLE, Lee. Bobbi Lee Indian Rebel. Toronto: Women’s Press, 1990., p. 9). No intuito de escrever sobre a vida da jovem canadense de origem mestiça (Salish/Cree), os dois trabalharam colaborativamente e o resultado foi a obra Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman. Com a promessa de um segundo volume sobre a vida de Bobbi Lee (uma representação da modelo), na edição de 1975, lemos sobre as histórias de sua infância, adolescência e de seus anos de juventude. Contudo, a outra parte da narrativa de vida não chegou a ser feita – conforme afirma a própria Maracle em 1990.

Quinze anos após a primeira publicação, a modelo canadense – desta vez sem colaborar com redator algum – republica sua história, agora assinando a autoria e acrescentando novas partes à narrativa de 1975, como “Oka Peace Camp – September 9, 1990”, “Foreword”, “Dedication”, “Prologue” e, finalmente, “Epilogue”.

Por conta da dinâmica modelo-redator e o fato de os modelos trazerem características particulares da cultura indígena3 3 Acredito ser importante ressaltar que cada etnia, ou cada povo indígena, tem suas próprias tradições, costumes, mitos. Não é possível sintetizar e generalizar toda a pluralidade dos povos nativos. Utilizo o adjetivo “indígena” com o propósito de caracterizar os sujeitos aos quais me refiro, mas não é minha intenção condensar as particularidades dos diversos povos originários. , decidi alocar estas narrativas sob o termo relato de vida indígena (SALLES, 2020SALLES, Juliana Almeida. O relato de vida indígena, a autobiografia dos que não escrevem: uma análise de obras de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Rigoberta Menchú e Elizabeth Burgos, e Lee Maracle e Don Barnett. 152f. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.). Este relato é criado necessariamente a partir da narração oral da história de vida dos modelos – que, no caso indígena, diferentemente da concepção tradicional ocidental, não gira em torno de apenas um indivíduo.

A particularidade deste “eu” indígena pode ser expressa pela palavra “coletividade”, atribuindo ao relato de vida indígena uma posição diferenciada sob os termos narrativas de vida e escritas de si. Mesmo quando há o pronome pessoal de primeira pessoa do singular, há muito mais a ser dito e representado nestas falas. Para Maria Inês de Almeida (2009), a escrita indígena é conectada à terra, o que chama de “literaterra” (apud CUNHA, 2012CUNHA, Rubelise da. Writers and Storytellers: Lee Maracle, Eliane Potiguara and the Consolidation of Indigenous Literatures in Canada and in Brazil. Interfaces Brasil/Canadá, Canoas, v. 12, n. 15, p. 63-82, outubro, 2012., p. 76). Ademais, para Almeida, o conceito de literatura originado na mitologia possibilita uma conexão entre a terra e o divino, uma vez que todos os mitos são representações das experiências dos indivíduos na terra (CUNHA, 2012CUNHA, Rubelise da. Writers and Storytellers: Lee Maracle, Eliane Potiguara and the Consolidation of Indigenous Literatures in Canada and in Brazil. Interfaces Brasil/Canadá, Canoas, v. 12, n. 15, p. 63-82, outubro, 2012., p. 76).

Mesmo em se tratando de relatos de vida indígena – nos quais são os redatores que escrevem, de fato – é possível aplicarmos a ideia de Almeida. Por mais que tenha havido uma edição, transformação e tradução por parte dos redatores, através de prefácios e/ou posfácios podemos perceber o interesse deles em se aterem às palavras originais, tornando assim a contação de história ainda mais similar à oralidade, próxima da maneira original de propagação de conhecimento nativo. Mesmo escritos, estes relatos de vida trazem marcas dessa oralidade assim como toda a carga cultural que a acompanha.

Por conta destes valores intrínsecos às comunidades/individualidades indígenas, Rubelise da Cunha conclui que a literatura provinda de sujeitos/coletividades nativas integram suas formas tradicionais (orais) de construção de conhecimento com gêneros literários, produzindo, então, textos híbridos que cumprem a função da contação de histórias (storytelling) tradicional indígena (CUNHA, 2012CUNHA, Rubelise da. Writers and Storytellers: Lee Maracle, Eliane Potiguara and the Consolidation of Indigenous Literatures in Canada and in Brazil. Interfaces Brasil/Canadá, Canoas, v. 12, n. 15, p. 63-82, outubro, 2012., p. 79). Ou seja, os gêneros literários, conforme entendidos na literatura branca ocidental, são apenas meios que assumem um papel: propagar e dar projeção às palavras de indígenas fora das aldeias/nações.

Devido a mudanças epistemológicas que culminaram no século XX, narrativas como o relato de vida indígena puderam ser percebidos como narrativas literárias, autênticas e passíveis de análises científicas. A chamada ‘virada etnográfica’ foi crucial para que houvesse uma nova perspectiva em relação a obras como as de Kopenawa e Albert, Menchú e Burgos, e Maracle e Barnett.

A Virada Etnográfica

Conforme afirma Diana Klinger (2012)KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., a etnografia tratava-se inicialmente de uma maneira de entender e, posteriormente, escrever uma cultura outra sob a perspectiva do observador (KLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 63). Klinger, ao tratar da etnografia, vai ao encontro das palavras de Lévi-Strauss, em 1955:

Nessa antinomia que opõe, de um lado, a profissão e, de outro, um projeto ambíguo que oscila entre a missão e o refúgio, e que sempre participa de uma ou de outro, sendo ora uma ora outro, a etnografia ocupa decerto um lugar privilegiado. É a forma mais extrema que se pode conceber do segundo termo. Sempre se considerando humano, o etnógrafo procura conhecer e julgar o homem de um ponto de vista elevado e distante o suficiente para abstraí-lo das contingências próprias a esta sociedade ou àquela civilização. [...] Como a matemática ou a música, a etnografia é uma das raras vocações autênticas.

(LÉVI-STRAUSS, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar., p. 58-9).

Aqui, Lévi-Strauss atribui a algo inerente e pessoal o processo etnográfico. A subjetividade, atrelada à presença desta vocação seriam necessárias para fazer de um indivíduo um etnógrafo, excluindo aqui o caráter científico/metodológico da prática. Ratifica-se esta exclusão quando o antropólogo afirma mais adiante: “O conhecimento não se baseia numa renúncia ou numa permuta, mas consiste em uma seleção de aspectos verdadeiros, isto é, aqueles que coincidem com as propriedades do meu pensamento” (1996, p. 59). A verdade é, aqui, condicionada a um elemento absolutamente subjetivo: o pensamento de um indivíduo.

Ainda metodologicamente frouxa, a etnografia, já no século XX, passou a apoiar-se na antropologia para atrelar cientificidade à sua prática. A antropologia tradicional trata o seu “objeto” de estudo como primitivo, que se encontrava em um estágio inicial de evolução. Para tal, seu ponto de partida era a concepção eurocêntrica: os europeus eram aqueles mais evoluídos e civilizados que, por isso, tinham a capacidade não só de analisar e classificar estes povos, mas também de perceber e retratar a verdade.

Ao longo do século XX, a antropologia passa a ocupar o posto de disciplina científica, assim como o processo de produção etnográfica. Franz Boas e Bronislaw Malinowski propõem os pilares da etnografia intensiva, isto é, a função do etnógrafo passa a ter métodos científicos, fazendo com que este profissional, que descrevia culturas e costumes outros, funda-se com o antropólogo – que cria teorias baseadas em outras culturas e costumes. O etnógrafo e o antropólogo, portanto, com Malinowski, unificam-se em um mesmo profissional (KLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 70).

Na contemporaneidade percebemos uma mudança: o “objeto” de observação agora é olhado como verdade, analisado em seu contexto, buscando cada vez menos interferência subjetiva do etnógrafo (KLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 65). Esta transformação deu-se, segundo Hal Foster, no pós-modernismo, graças à sua crítica às narrativas consagradas, de maneira a abrir a novas narrativas possíveis, outros pontos de vista (FOSTER, 2002FOSTER, Hal. The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century. Massachusetts: MIT Press, 1996.). As outras vozes que passaram a ocupar as lacunas que antes havia nas ciências humanas de maneira geral começaram a dar lugar a uma nova concepção de alteridade, dissolvendo gradativamente a ideia do outro da perspectiva eurocêntrica. Para Klinger, esta reformulação se dá principalmente por dois motivos: “primeiro, porque o outro excluído socialmente (o pobre, o preso, o índio) tem começado a falar – e inclusive a escrever – por si mesmo. E segundo, porque o outro não é mais o outro radical e puro (se é que alguma vez foi) [...]” (KLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 65).

Após a publicação de The interpretation of cultures (1973), de Clifford Geertz, a antropologia abriu portas para questionamentos sobre sua própria prática. Essa época trouxe um comportamento autorreflexivo para a área de conhecimento, trazendo novamente o sujeito para a antropologia – agora percebido não a partir dos conceitos eurocêntricos, mas sim sob uma perspectiva interpretativa, dentro do contexto em que se encontra (KLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 69-70).

Essa tendência hermenêutica gera o que Klinger denomina de antropologia pós-moderna. Neste processo de autorreflexão, a antropologia entende que o outro não passa de uma representação, fazendo da ciência experimental de Malinowski, com Geertz, uma hermenêutica do outro, que interpreta não estes sujeitos, seus costumes e culturas, mas suas representações. As alteridades foco deste estudo interpretativo não mais ocupam um lugar exótico, selvagem ou primitivo. Com isso,

a antropologia já não detém o monopólio do estudo da cultura, pois ao mesmo tempo em que o seu campo se amplia e se diversifica, ele começa a se sobrepor com o de outras disciplinas. De maneira que as fronteiras entre antropologia, sociologia, estudos culturais e crítica literária são cada vez mais difusas

(KLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 78).

O pós-moderno, para a pesquisadora canadense Linda Hutcheon, também propõe essa dificuldade de delimitação entre áreas de conhecimento, disciplinas e gêneros literários. O desafio do pós-modernismo seria precisar o que se está representando: a arte de maneira geral tem ultrapassado limites tradicionais e tem desafiado as instituições que comumente a abrigam e a significam (HUTCHEON, 1991HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. Tradução de: Ricardo Cruz., p. 26). Na literatura, alguns exemplos podem desenhar este momento de crise das tradições: Lives of girls and women (1971), de Alice MunroMUNRO, Alice. Lives of girls and women. Toronto: McGraw-Hill Ryerson, 1971., Coming through slaughter (1998), de Michael Ondaatje, e China men (1980)ONDAATJE, Michael. Coming through slaughter. Toronto: Vintage Books, 1998., de Maxine Hong KingstonKINGSTON, Maxine Hong. China men. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1980. são apenas alguns dos exemplos de obras que se posicionam entre os limites tradicionais de gêneros literários (romances e contos, romance e poemas longos, romance e autobiografia, romance e história, respectivamente) (HUTCHEON, 1991HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. Tradução de: Ricardo Cruz., p. 26-7). Porém, a fusão mais radical expressa pelo pós-modernismo está entre a vida e a arte, a ficção e a não ficção (HUTCHEON, 1991HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. Tradução de: Ricardo Cruz., p. 27).

Neste contexto pós-moderno, não é mais possível apontar o que seria verdadeiro ou não. Há representações diversas de situações, sujeitos e objetos variados que servem a determinados propósitos em uma narrativa. Para Klinger, nos últimos 30 anos

os estudos de literatura vêm adotando uma ‘atitude etnográfica’, ao se misturarem com estudos culturais e pós-coloniais, nos quais predomina não uma preocupação estética e sim ‘cultural’, focalizando nas particularidades de um determinado grupo e em suas diferenças de gênero, etnia ou condição social. [...] Assim, os estudos da literatura e as ciências sociais parecem compartilhar um único objeto: a ‘cultura’

(KLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 78).

Os Estudos Culturais buscam olhar a literatura a partir de um ponto de vista antropológico, com foco em aspectos culturais diversos. Apesar de haver alguns pontos de discórdia4 4 Para o antropólogo argentino Carlos Reynoso, os Estudos Culturais pecaram principalmente em dois aspectos: o primeiro sobre o conceito de cultura e o segundo quanto à metodologia etnográfica. O conceito de cultura abordado pelos Estudos Culturais estava prestes a ser declarado exausto pela antropologia e, ainda assim, não houve uma profunda discussão teórica neste sentido dentro da recente disciplina. O entendimento da etnografia junto aos culturalistas, para Reynoso, pode ser visto como ingênuo, pois não apresenta o apuro (nem o debate) necessário que a antropologia buscava (cf. REYNOSO apudKLINGER, 2012, p. 80-1). entre a abordagem dos antropólogos e a dos estudos culturais, através da literatura tem havido discussões e debates sobre diferentes culturas e costumes, abrindo novos espaços para o antes visto como exótico, primitivo. Este lugar que tem sido designado para outras obras/estudos tem dado aos “ex-cêntricos” (HUTCHEON, 1991HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. Tradução de: Ricardo Cruz.) a possibilidade de falarem e, muitas vezes, escreverem por si mesmos.

Assim, apesar de o discurso sobre os nativos da América ter sido produzido em um contexto eurocêntrico, no qual eles eram moldados à vontade do colonizador, com o passar dos séculos foi possível notar a força que as palavras daqueles sujeitos conseguiram conquistar. Inicialmente através do olhar alheio, os indígenas tinham suas narrativas registradas – comumente sob uma perspectiva religiosa. Com as mudanças de paradigma da antropologia e etnografia, o olhar passou de subjetivo para científico, e finalmente para um olhar passível de interpretações.

As produções literárias indigenistas contemporâneas possuem algumas características peculiares. Por situarem-se em um momento em que o olhar antropológico foi deliberadamente adotado pela literatura, a cultura tornou-se um tema recorrente na área. A perspectiva interpretativa da antropologia fez com que a observação dos nativos fosse gradativamente transformada em um processo a ser pensado cuidadosamente e analisado em duas vertentes: a do(s) observador(es) e a do(s) observado(s). Para Clifford Geertz, entender a cultura de um povo ajuda-nos a expor sua normalidade sem reduzir suas particularidades: inseri-los no contexto de suas próprias banalidades e costumes faz com que suas identidades se tornem cada vez menos opacas5 5 No original: “Understanding a people’s culture exposes their normalness without reducing their particularity. [...] It renders them accessible: setting them in the frame of their own banalities, it dissolves their opacities”. (GEERTZ, 1973GEERTZ, Clifford. The Interpretation of Cultures: Selected Essays. Nova Iorque: Basic Books, Inc., 1973., p. 14). Tanto as especificidades culturais quanto as geográficas, políticas, sociais e históricas são alguns exemplos do que deve ser levado em consideração por leitores, pesquisadores e estudiosos da área de maneira a evitar mal-entendidos.

As obras indigenistas contemporâneas, independentemente de suas classificações de gênero, devem ser concebidas como maneiras de colocar o universo nativo em evidência, comumente denunciando injustiças e violências e ratificando a necessidade de sua existência, suas palavras e conhecimento no mundo atual.

O relato de vida indígena é, portanto, entendido como indigenista, já que transformado, traduzido e editado por sujeitos não indígenas. Contudo, é importante considerar a forte presença da voz indígena em primeira pessoa (singular e/ou plural) – o que faria com que a classificação deste relato de vida tendesse para a literatura indígena. Neste entrelugar, as narrativas de Kopenawa, Menchú e Maracle podem ser vistas como um gênero literário?

Visando responder tal questão, entendi ser possível traçar paralelos entre alguns gêneros literários já conhecidos (e consagrados) de maneira a melhor delinear os relatos dos modelos nativos, em especial aqui, de Kopenawa, Menchú e Maracle.

O relato de vida indígena seria um gênero literário?

Assim como houve o deslocamento do processo de produção literária e pensamento crítico na América Latina (CORNEJO POLAR, 2003CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire: Ensayo sobre la heterogeneidade socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: CELACP (Centro de Estudios “Antonio Cornejo Polar”), 2003.), as teorias de gênero (literário) sofreram mudanças também. Apesar de não necessariamente terem tido a mesma motivação, ambas as transformações possuem pelo menos um aspecto em comum: o questionamento de tradições.

Fredric Jameson, em The Political Unconscious (1981), concluiu que a crítica de gênero vem sendo descreditada pela teoria e prática literárias modernas (apud COHEN, 1986COHEN, Ralph. History and Genre. New Literary History, v. 17, n. 2, p. 203-218, Inverno, 1986., p. 203). A primeira razão para tal desprestígio está no fato de questionar a ideia de textos comporem classes; a segunda encontra-se também em outro questionamento: não é mais aceitável que os membros de um determinado gênero compartilhem determinados traços; e a terceira e última razão (igualmente desestruturante) é o fim da presunção do gênero enquanto ferramenta interpretativa para textos (COHEN, 1986COHEN, Ralph. History and Genre. New Literary History, v. 17, n. 2, p. 203-218, Inverno, 1986., p. 203).

A partir dos três pontos de Jameson, Ralph Cohen (1986)COHEN, Ralph. History and Genre. New Literary History, v. 17, n. 2, p. 203-218, Inverno, 1986., em seu ensaio “History and Genre”, faz uma análise dos gêneros sob a perspectiva histórica e afirma que a concepção de gênero literário passou por variações ao longo da história (p. 203). Cohen ressalta que os gregos antigos, por exemplo, consideravam poemas satíricos ou elegias escritas em uma métrica específica um tipo de gênero (COHEN, 1986COHEN, Ralph. History and Genre. New Literary History, v. 17, n. 2, p. 203-218, Inverno, 1986., p. 203). As formas reconhecidas desta maneira de classificar, por sua vez, também oscilaram ao longo do tempo: críticos já afirmaram haver apenas dois – o literário e o não-literário; três – o lírico, épico e dramático; quatro – lírico, épico, drama e prosa ficcional; e finalmente que os gêneros seriam, basicamente, qualquer grupo de textos com características comuns, selecionados por seus leitores e cujas caraterísticas literárias os tornam distintos daqueles que compõem outros grupos (COHEN, 1986COHEN, Ralph. History and Genre. New Literary History, v. 17, n. 2, p. 203-218, Inverno, 1986., p. 203). Para Cohen, o gênero já foi definido em termos de métrica, forma interna, forma intrínseca, radical de apresentação, traços singulares, traços familiares, instituições, convenções, contratos, e todos estes foram considerados tanto como universais quanto como agrupamentos históricos de caráter empírico6 6 No original: “Genre has been defined in terms of meter, inner form, intrinsic form, radical of presentation, single traits, family traits, institutions, conventions, contracts, and these have been considered either as universals or as empirical historical groupings”. (COHEN, 1986COHEN, Ralph. History and Genre. New Literary History, v. 17, n. 2, p. 203-218, Inverno, 1986., p. 204).

De maneira geral, Cohen declara que os conceitos de gênero, tanto na teoria quanto na prática, surgem, transformam-se e declinam por razões históricas. E para ratificar seu ponto de vista, Cohen afirma que gêneros são categorias abertas compostas por textos que passam por um processo de agrupamento. Cada membro deste grupo chega para acrescentar, modificar ou até contradizer as características fundamentais que, inicialmente, uniram cada participante. Assim, Cohen conclui que a existência de uma classificação como esta parte da necessidade humana de atribuir distinções e inter-relações (COHEN, 1986COHEN, Ralph. History and Genre. New Literary History, v. 17, n. 2, p. 203-218, Inverno, 1986., p. 204).

De maneira similar, Jacques Derrida (1980)DERRIDA, Jacques. The Law of Genre. Critical Inquiry, v. 7, n. 1, p. 55-81, Outono, 1980. Tradução de: Avital Ronell., em The Law of Genre, define o termo “gênero”, de maneira bastante geral, como uma simples oposição que tem suas origens na natureza e na história (DERRIDA, 1980DERRIDA, Jacques. The Law of Genre. Critical Inquiry, v. 7, n. 1, p. 55-81, Outono, 1980. Tradução de: Avital Ronell., p. 60). Devido à necessidade humana de impor limites, há este movimento contrastante entre dois ou mais objetos de maneira a delimitá-los perante observação e, assim, ressaltar características únicas de cada uma das partes. Derrida vai ainda mais adiante ao comentar que gênero, etimologicamente, remete-nos à gênese (genos), nascimento (DERRIDA, 1980DERRIDA, Jacques. The Law of Genre. Critical Inquiry, v. 7, n. 1, p. 55-81, Outono, 1980. Tradução de: Avital Ronell., p. 61). Para o teórico argelino, o nascer refere-se à força de engendramento ou geração, como ocorre com as noções de raça, associação familiar, genealogia classificatória ou classe, classe etária (gerações), ou classe social (DERRIDA, 1980DERRIDA, Jacques. The Law of Genre. Critical Inquiry, v. 7, n. 1, p. 55-81, Outono, 1980. Tradução de: Avital Ronell., p. 61).

Para Peter Seitel (1999)SEITEL, Peter. The Powers of Genre: interpreting Haya oral literature. Nova Iorque: Oxford University Press, 1999., em The Powers of Genre, a ideia de gênero é concebida como um corpo específico de textos, concreto, mas por vezes mutável, e que serve como parâmetro para criar os textos e interpretá-los – processo que leva criador e crítico a um diálogo não só entre si, mas também com a sabedoria coletiva de uma tradição (SEITEL, 1999SEITEL, Peter. The Powers of Genre: interpreting Haya oral literature. Nova Iorque: Oxford University Press, 1999., p. 3). E ainda: as pessoas usam gêneros para emular/mostrar certas estratégias particulares e por isso os gêneros seriam locais de mediação conceitual entre a literatura e o campo social em que foram produzidos. Seitel acredita que o gênero é uma espécie de conceito interpretativo que abarca a natureza dual da literatura como código e ato simbólico em uma perspectiva ampla.

Essas definições de gênero têm ao menos uma característica em comum: não se trata de uma noção natural, organicamente estabelecida. Na verdade, estes se mostram como uma espécie de metalinguagem, pois seu próprio objeto de análise é utilizado para construir tal estudo. Assim, as classificações literárias instituídas pelos estudos de gêneros são embasadas pela própria literatura. Estas classificações, criadas por humanos, ao seguir os questionamentos modernos, vêm sofrendo com a desconstrução de noções fixas e engessadas. Os diálogos e mediações propostos por Seitel são sintomas contemporâneos destes estudos teóricos.

Para Derrida, a inserção de um ou mais textos em um só gênero infere uma seriedade comparada à lei. Em The Law of Genre, o autor alega que há, contudo, uma lei primordial que rege a lei dos gêneros: uma espécie de princípio de contaminação, uma lei de impureza, uma economia parasitária (DERRIDA, 1980DERRIDA, Jacques. The Law of Genre. Critical Inquiry, v. 7, n. 1, p. 55-81, Outono, 1980. Tradução de: Avital Ronell., p. 59). Este preceito seria um tipo de participação sem pertencimento, sem, de fato, ser membro de um determinado grupo. Assim, entendemos que cada texto participa (sem pertencer) de um ou vários gêneros, sendo que nenhum texto fica fora de tal classificação (DERRIDA, 1980DERRIDA, Jacques. The Law of Genre. Critical Inquiry, v. 7, n. 1, p. 55-81, Outono, 1980. Tradução de: Avital Ronell., p. 65).

A partir deste argumento de Derrida, baseio meu propósito: sob uma metodologia centrada na noção de gênero, busco aperfeiçoar a definição de relato de vida indígena conforme concebemos aqui a partir de tangenciamentos com outros gêneros e subgêneros. Acredito ser importante ressaltar também que não busco enclausurar o relato em uma só forma, tampouco desmerecer tradições já centenárias das ciências sociais. Com este intuito, concordo com Peter Seitel quando traça um paralelo de sua noção de gênero e a do dialogismo de Bakhtin.

As noções de “tema” e “significado”7 7 No original: “theme” e “meaning”. , de Mikhail Bakhtin, são os pontos de partida do argumento de Seitel. O tema seria basicamente o resultado da relação entre diferentes partes de um trabalho ou outra expressão discursiva (SEITEL, 1999SEITEL, Peter. The Powers of Genre: interpreting Haya oral literature. Nova Iorque: Oxford University Press, 1999., p. 4). O tema, independentemente de quantas vezes for repetido, mantém-se relativamente constante. O significado, por sua vez, pressupõe uma relação entre o discurso e o contexto em que foi proferido e recebido. Diferentemente do tema, o significado se transforma conforme é repetido. Um exemplo dado pelo próprio Seitel é Dom Quixote, de Miguel de Cervantes: mesmo tendo sido publicado originalmente em 1605, seus temas permanecem intactos, enquanto seus significados mudaram de acordo com o contexto histórico de seu leitor.

Como já afirmado previamente, os gêneros são uma espécie de aparato mediador entre literatura e sociedade. Para cumprir tal função, estas classificações são vistas aqui tanto como parte de um vasto horizonte contextual quanto também marcadamente intertextual (SEITEL, 1999SEITEL, Peter. The Powers of Genre: interpreting Haya oral literature. Nova Iorque: Oxford University Press, 1999., p. 6). Para Seitel, um dos poderes do gênero é a intertextualidade, mas este não é, porém, necessariamente o mais eficaz para a interpretação literária. Apesar da avaliação de Seitel, o caráter intertextual dos gêneros será um aspecto-chave para a análise a seguir.

O Relato de Vida Indígena e (Sub)Gêneros Tangenciais

Baseando-me principalmente no trabalho de Sidonie Smith e Julia Watson, Reading Autobiography: A Guide for Interpreting Life Narratives (2010), busco aqui analisar as semelhanças, diferenças e tangenciamentos entre o relato de vida indígena e alguns gêneros e subgêneros literários vinculados à escrita de si.

Com o propósito de definir narrativas de vida, Smith e Watson iniciam sua investigação com a seguinte pergunta: “o que poderia ser mais simples de entender do que o ato de pessoas representando o que elas mais conhecem – suas próprias vidas?8 8 No original: “What could be simpler to understand than the act of people representing what they know best, their own lives?”. ” (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 1, tradução nossa). E, assim como as autoras o fizeram, afirmo que tal representação não é tão simples quanto parece ser. Principalmente porque o sujeito que narra suas próprias histórias torna-se também, no ato de narrar, o sujeito observador, sujeito observado, objeto de investigação, lembrança e contemplação (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 1). Além disso, a complexidade encontra-se também em cada um desses elementos. Portanto, questiono: como se dará esta narração? Que tipo de sujeito é este? Como a observação/investigação vai ocorrer? Haverá um propósito nesta representação de si?

A Narrativa de Vida Étnica e as Narrativas de Exílio

Tendo em mente as questões acima e o já previamente estabelecido sobre o relato de vida indígena, acredito que um conceito que possivelmente abarcaria algumas características de A queda do céu, Meu nome é Rigoberta Menchú e Bobbi Lee: Indian Rebel seria a narrativa de vida étnica. Para Smith e Watson, essa nomenclatura refere-se a um modo de narrativa autobiográfica emergente em comunidades étnicas dentro ou além de fronteiras nacionais (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 269). Para os sujeitos indígenas das três narrativas em questão, as comunidades étnicas às quais pertencem estão dentro de suas fronteiras nacionais “originais9 9 Opto pelas aspas aqui, pois os povos originários antecedem as divisões político-geográficas nacionais, sendo então anacrônico equiparar as origens dos povos nativos e a das nações modernas. Esta afirmação anacrônica ocorre por questões de clareza. ”, mas ainda assim a relevância da etnia para estas narrativas é crucial para sua recepção.

Apesar de tratarmos, aqui, de três sujeitos indígenas que habitam suas nações10 10 Refiro-me, aqui, às divisões político-geográficas conforme concebidas no mundo ocidental e não a um grupo étnico-cultural indígena específico. de origem, ao termos acesso a seus relatos, percebemos que não há uma relação de pertencimento entre sujeito e nação. Smith e Watson citam, como um exemplo das narrativas de vida étnicas, as narrativas de exílio – que incluem um sujeito nomádico, em movimento por uma variedade de razões e que atualmente habita uma fronteira cultural (podendo ou não retornar para seu lar), mas que definitivamente negocia suas identificações híbridas (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 269).

Compartilhando características com as narrativas de exílio, A queda do céu mostra um sujeito que foi deslocado algumas vezes dentro da Terra Indígena Yanomami – sua terra natal – e também para fora dela. Em uma dessas vezes, Davi Kopenawa contraiu tuberculose e precisou ser hospitalizado

Assim que chegamos a Manaus [...] eu me vi sozinho naquela cidade, a me perguntar, apreensivo, o que seria de mim. Naquele tempo, eu nem sempre compreendia o que os brancos me diziam. Felizmente, logo encontrei no hospital alguém que eu conhecia. [...] Apesar de tudo o que tinha acontecido, para mim era bom que ele estivesse lá, porque falava a minha língua

(ALBERT; KOPENAWA, 2015ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés., p. 287, grifo nosso).

Neste caso, o “exílio” não é só geográfico, mas também linguístico. Kopenawa explica que o amigo que encontra foi a ponte de comunicação entre ele e os médicos brancos.

Por sua vez, o exílio inicial de Menchú e de sua família dava-se nas fincas guatemaltecas, isto é, também em sua nação de origem:

Nós vivemos mais nas montanhas, ou seja, nas terras não férteis, nas terras que só dão milho, feijão, e no litoral dá qualquer colheita. Descemos para as fincas para trabalhar durante oito meses. Esses oito meses, muitas vezes não são seguidos, porque partimos um mês para ir plantar no planalto nossa pequena roça de milho. Descemos para a finca enquanto cresce o milharal, e assim, quando já é hora de colher em nossa pequena roça de milho, voltamos ao planalto. Mas imediatamente se acaba outra vez. E temos de descer de novo para a produção, para ganhar dinheiro.

(BURGOS; MENCHÚ, 1992BURGOS, Elizabeth; MENCHÚ, Rigoberta. Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu minha consciência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. Tradução de: Lólio Lourenço de Oliveira., p. 38).

As fincas, situadas no território guatemalteco, tornaram-se uma espécie de exílio (ainda que não em sentido próprio) para a família da narradora. Longe de casa, distante de seus familiares e comunidade, as famílias que iam às fincas sofriam com inúmeras formas de abuso: moral, sexual, físico e mental. Depois de adulta, Menchú envolveu-se com a militância camponesa católica e foi obrigada a se exilar (agora no sentido próprio da palavra). Em seu relato há inclusive um capítulo sobre esse período. Em “O exílio”, ela é enviada de avião ao México e relata:

Eu me sentia a mulher mais destroçada, mais destruída, porque nunca imaginei que me acontecesse de um dia ter que abandonar minha pátria por culpa de todos esses criminosos. Mas também tinha a esperança de voltar logo. Voltar para continuar trabalhando, porque eu não queria suspender um só momento meu trabalho, porque sei que só posso erguer a bandeira de meus pais se me entregar também à mesma luta que eles não acabaram, que deixaram no meio do caminho

(BURGOS; MENCHÚ, 1992BURGOS, Elizabeth; MENCHÚ, Rigoberta. Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu minha consciência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. Tradução de: Lólio Lourenço de Oliveira., p. 326).

Partindo dessa experiência de exílio, o relato de Rigoberta Menchú atende a requisitos da concepção de Smith e Watson, como: o sujeito, com características nomádicas11 11 Por características nomádicas, refiro-me também às idas frequentes às fincas. , está deslocado de sua nação de origem, tendo sido deslocada por diversas razões (políticas, religiosas, étnicas, familiares, pessoais).

Por fim, para a canadense Maracle, o exílio parece estar sempre presente, independentemente de sua posição geográfica. A partir do momento de sua saída da casa onde vivia com a família, seu exílio toma diversos rumos: Visalia, Califórnia, Toronto, casa de amigos, a casa ocupada em que viveu com um grupo de pessoas, Alberta, Colúmbia Britânica, Porterville, Vancouver. Sua passagem por diferentes províncias/estados canadenses desloca Maracle, mas a ida aos Estados Unidos torna-se, de fato, um exílio no sentido mais similar ao de Smith e Watson. Apesar de aparentemente não haver uma grande barreira cultural, Maracle sofre com as diferenças entre os locais:

Eu contei para meu amigo Roger sobre minhas experiências nos Estados Unidos, especialmente sobre o quão chocada eu estava com as diferenças culturais. “Você não integra simplesmente uma cultura ou atmosfera diferentes em três meses”, eu disse. “Iria levar dez anos ou mais; você não tem ideia inicialmente do quanto esta diferença te distancia do resto da comunidade, te faz um estrangeiro12 12 No original: “I told my friend Roger about my experiences in the States, especially about how I was struck by the cultural differences. “You don’t just integrate into a different culture or atmosphere in three months”, I said. “It would take ten years, or even more; you don’t realize at first how that difference sets you apart from the rest of the community, makes you a foreigner”.

(BARNETT; MARACLE, 1975BARNETT, Don; MARACLE, Lee. Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman. Richmond: LSM Press, 1975., p. 44, tradução nossa).

Esses sujeitos, étnica e fisicamente marcados por serem indígenas, tendem também a falar de aspectos de suas etnias nos seus relatos. Kopenawa trata bastante detalhadamente desses aspectos ao longo de A queda do céu:

Também podemos morrer quando gente muito distante, como os Parahori das altas terras, flecham nossos duplos animais, que chamamos de rixi. O animal rixi das mulheres é o cachorro do mato hoahoama, e o dos homens é o gavião-real mohuma. Esses duplos animais, que são também os de nossos antepassados, vivem na floresta junto de gente desconhecida, no alto rio Parima, perto de uma grande cachoeira chamada Xama si porá, protegida por incontáveis vespeiros e pelas borrascas de ventos poderosos. Então, se caçadores desse lugar flecharem um animal rixi, o ferimento chega logo até nós e pode matar um morador de nossa casa

(ALBERT; KOPENAWA, 2015ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés., p. 181).

Ainda que menos detalhista que Kopenawa sobre questões étnicas, mitos e cosmogonia, Menchú também traz aspectos de sua etnia ao longo de seu relato:

Os dias que passamos na comunidade são bem alegres, porque são exatamente os dias em que colhemos o milho e, então, antes de colher o milho fazemos uma festa. Mas a festa vem desde quando se pede licença à terra para cultivá-la. Essa cerimônia se faz com pom, com orações dos senhores eleitos e de todos, da comunidade em geral. Cada um põe suas velas em sua casa e põe suas velas em comum. Depois se escolhe a semente que se vai enterrar. [...] Faz-se um chigolito por cima do qual não deve passar nenhuma mulher. Por exemplo, pulando. Tem-se que guardar onde não passe nem um galo nem um franguinho por cima.

(BURGOS; MENCHÚ, 1992, p. 96-7).

Explicações de especificidades étnicas são comuns nos relatos de Kopenawa e Menchú – dois modelos bastante inseridos em suas culturas ancestrais. Lee Maracle, por sua vez, não se encaixa nessa classificação. Contudo, sua marca étnica está presente já em seu título: Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman. Além disso, ao longo do relato percebemos referências constantes à sua natureza indígena. Em uma passagem, Maracle fala de suas origens Cree:

Eu me lembro que estávamos nesta pequena festa com um monte de jamaicanos, indianos e alguns caras italianos e judeus – o Doug tinha um grande círculo de amigos, de tipos diferentes. Então, eles estavam contando piadas e cantando canções que eram comuns em suas culturas. Eu conhecia só uma canção Cree suficientemente bem para cantá-la e eu estava envergonhada quando cantei. Não porque eu não gostasse da canção ou estivesse com vergonha dela, mas porque eu era uma cantora terrível. Veja bem: para tornar-se uma cantora Cree, tradicionalmente, é necessário anos de treinamento – especialmente a cantora principal, que canta a melodia enquanto outros entram e cantam o refrão como um eco. Havia todo um status em ser uma cantora Cree e eu não fazia jus a isso – eu nem era totalmente Cree e não falava mais do que algumas palavras na língua13 13 No original: “I remember we were at this small party with a bunch of Jamaicans, Indians and a couple of Italians and Jewish guys – Doug had this wide circle of friends, all different types. Anyway, we were there telling jokes and singing songs that were peculiar to our particular cultures. I knew only one Cree song well enough to sing and was embarrasssed when I sang it. Not because I didn’t like the song or was ashamed of it, but because I was such a lousy singer. You see, to be a Cree singer traditionally required years of training – especially the lead singer, who sang the melody with others coming in with the chorus like an echo. So there was real status to being a Cree singer and I couldn’t do any justice to it at all – wasn’t even a full Cree and didn’t speak more than a few words of the language”. (BARNETT; MARACLE, 1975BARNETT, Don; MARACLE, Lee. Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman. Richmond: LSM Press, 1975., p. 62, tradução nossa).

As questões étnicas – apesar de Maracle não estar tão envolvida com sua cultura ancestral – são marcas importantes para os relatos de vida indígenas.

A Autoetnografia

Tendo em vista o forte teor étnico dos três relatos sob investigação, proponho que a autoetnografia seja um dos subgêneros que também tangenciam os relatos. Para Smith e Watson, a autoetnografia é um tipo de escrita de vida coletivizado e situado, na qual a vida (bios) não é individual, mas substituída pela etnia (ethnos) ou grupo social (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 258). Conforme a literatura começou a se abrir para novas oportunidades na segunda metade do século XX, novas teorias críticas surgiram e, com elas, aquela que norteou a criação deste subgênero: a dinâmica investigador-informante (similar à de modelo-redator) que se instaura na etnografia. Tal prática, contudo, era tida como perpetuadora de relações colonialistas assimétricas, nas quais pouco se sabia sobre a perspectiva do informante (comumente de classes/etnias minoritárias), tendo acesso somente ao ponto-de-vista do investigador (comumente de classes dominantes) – e por isso foi fortemente questionada na década de 80.

A relação com o relato de vida indígena aqui não se dá somente no campo das narrativas de si, mas também na dinâmica etnográfica. Porém, a autoetnografia abarca outras etnias e grupos sociais envolvidos na desigual dinâmica colonial. Aplicada a nosso objeto, a autoetnografia seria uma forma de entender como sujeitos indígenas começam o processo de escritura de maneira colaborativa ou apropriando-se dos modelos discursivos do colonizador (ou da cultura dominante) (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 259). Esta produção, por sua vez, seria necessariamente híbrida, heterogênea, refletindo o caráter coletivo que lhe encerra e a necessidade de traduzir o universo nativo (oral) para uma língua hegemônica na forma escrita. Tal hibridismo vai ao encontro das ideias de Cornejo Polar (2000CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. Tradução de: Ilka Valle de Carvalho.; 2003)CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire: Ensayo sobre la heterogeneidade socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: CELACP (Centro de Estudios “Antonio Cornejo Polar”), 2003. e Martin Lienhard (1990)LIENHARD, Martin. La voz y su huella: Escritura y conflicto étnico-social en América Latina (1492-1988). Ciudad de La Habana: Ediciones Casa de las Américas, 1990. e ratifica, para o relato de vida indígena, características provenientes de sua identidade latino-americana.

A autoetnografia parece incluir a produção (escrita) de uma etnografia por aquele que, conforme já vimos, não escreve (modelo), ou seja, parece não levar em consideração a por vezes conturbada dinâmica modelo-redator. Se entendermos que o processo de construção da obra pode não incluir necessariamente a divisão do trabalho para que se chegue à sua produção final, mas sim considerar uma colaboração – no sentido mais amplo do termo – entre ambas as partes, tal definição assemelha-se ao relato de vida indígena. Além disso, tal colaboração já incute a noção de hibridismo característica deste tipo de produção – havendo aí características provenientes dos universos de ambos os colaboradores.

Assim como o fez Black Elk, tanto Kopenawa quanto Menchú e Maracle também inserem a luta e a história indígena em suas narrativas de vida. Falar de si de maneira coletiva, é, então, uma característica recorrente nas três obras analisadas aqui, já que o pronome pessoal “eu” inserido nas narrativas destoa daqueles tradicionalmente concebidos na autobiografia tradicional.

Em A queda do céu, por exemplo, referências às coletividades yanomami e indígenas de maneira geral são frequentes, corroborados pelo constante uso do pronome possessivo coletivo (nossos, nossas) e dos verbos na primeira pessoa do plural:

Nossos rios são cortados por inúmeras cachoeiras e nossa floresta é coberta de morros e serras que se interpõem no caminho deles. Queremos continuar vivendo nela sozinhos, com a mente calma, como nossos antepassados antigamente. Não queremos mais morrer antes de envelhecer. Não queremos mais que nossos filhos e nossas mulheres chorem de fome. Quando nos misturamos com os brancos, tudo começa a dar errado. Eles nos prometem mercadorias, quando só pensam em roubar nossa terra. Disparam suas espingardas contra nós quando ficam bravos. Começam a pegar nossas mulheres. Ficamos doentes o tempo todo e não podemos mais caçar nem cultivar nossas roças. No final, morremos quase todos de suas epidemias xawara

(ALBERT; KOPENAWA, 2015ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés., p. 332, grifos nossos).

Ratifico aqui que a passagem acima está inserida na narrativa de vida de um indivíduo: Davi Kopenawa. A primeira pessoa do plural é utilizada para se referir à coletividade yanomami, mas também há referência coletiva para o grupo de povos brancos. Tal prática tem como função externalizar a forte coletividade nativa em contraponto com a generalização do povo branco. O adjetivo ‘branco’ então implica não só todos aqueles não indígenas, mas também aqueles que desconhecem o modo de vida nativo.

Igualmente, o relato de Menchú traz a primeira pessoa plural para se referir aos indígenas coletivamente:

Isso me confirmava cada vez mais minha clareza; que minha justa razão de luta era apagar todas essas imagens que nos haviam metido na cabeça, as diferenças culturais, as barreiras étnicas. Que todos os índios nos compreendêssemos do mesmo modo, ainda que tendo expressões diferentes de religião ou de crenças. Mas a cultura era a mesma. Descobri que os indígenas temos todos uma coisa em comum, apesar das barreiras idiomáticas, de barreiras étnicas, das diferenças de trajes. É que nossa cultura é o milho

(BURGOS; MENCHÚ, 1992BURGOS, Elizabeth; MENCHÚ, Rigoberta. Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu minha consciência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. Tradução de: Lólio Lourenço de Oliveira., p. 242, grifos nossos).

É notável que, em Meu nome é Rigoberta Menchú, a coletividade indígena, por vezes, acaba cedendo lugar à coletividade camponesa. Tais identidades, na realidade guatemalteca, tendem a se interpelarem ao longo da narrativa.

Apesar de tanto Rigoberta Menchú quanto Davi Kopenawa estarem engajados na causa indígena, o relato da guatemalteca possui mais passagens de caráter político-social do que o do brasileiro – este intercala as questões políticas com as mitológicas e culturais. Além disso, por ter se tornado uma das líderes do movimento camponês em seu país, Menchú traz para sua narrativa informações sobre seu papel junto aos seus pares. A organização camponesa guatemalteca guardava similaridades com o ideal comunista. Por isso, afirmo que a primeira pessoa do plural nesse relato de vida tende a se referir primordialmente aos camponeses companheiros de luta e não ao fato de estes serem, em sua maioria, indígenas. Esta afirmação encontra eco na própria retórica de Menchú quando esta preza a união para um fim maior, independentemente dos costumes, crença ou raça de seus companheiros.

Maracle, por ter participado do movimento indígena canadense (NARP), mantem poucos traços narrativos de coletividade em seu relato. Normalmente, os pronomes de primeira pessoa plurais referem-se a um grupo de pessoas – sejam eles seus familiares ou pessoas próximas. A referência étnica aparece a partir da segunda metade de seu relato, mas não possui um caráter coletivo tão amplo (quanto nos relatos de Kopenawa e Menchú): “Muitos dos índios eram simplesmente contra tecnologia; eles queriam voltar para a mata, para a natureza. E eles, de fato, planejaram voltar para a floresta e viver do jeito antigo” (BARNETT; MARACLE, 1975BARNETT, Don; MARACLE, Lee. Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman. Richmond: LSM Press, 1975., p. 118, tradução nossa)14 14 No original: “A lot of Indians were simply against technology; they wanted to go back to the woods, back to nature. And they actually planned to go back into the forests and live in the old way”. . Notemos o uso do pronome reto na terceira pessoal plural, e não mais na primeira, como nas passagens mostradas anteriormente. Apesar de se referir a características que remetem à sua origem, a própria Maracle autodeclara-se uma indígena urbana e, portanto, significativamente distante do grupo do qual trata.

A Ecobiografia?

Dentro da perspectiva étnica, temos um aspecto comum entre aqueles mais inseridos em suas culturas de origem: a relação com a natureza. Tendo isso em mente, os relatos de vida indígena podem ser tangenciados pela ecobiografia, um tipo de escrita de vida cuja história do protagonista se interconecta com as condições, a geografia e a ecologia de uma região específica (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 268). Contudo, a ecobiografia abarca inúmeras outras possibilidades além da relacionada ao modo de vida indígena, como por exemplo: i) encontros de um indivíduo com um local específico; ou ii) o casamento de uma biografia com documentos autobiográficos, como em Into the Wild (1996), de Jon KrakauerKRAKAUER, Jon. Into the Wild. Nova Iorque: Villard, 1996.. Smith e Watson afirmam que este tipo de narrativa se relaciona à escrita de viagem, até mesmo podendo focar na sustentabilidade (SMITH; WATSON, 2010SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: A guide for interpreting life narratives. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2010., p. 268-9).

Em A queda do céu, a natureza apresenta-se como tema central. Desde os mitos de criação do povo yanomami até a iminente queda do céu (o fim do mundo para a cultura ocidental hegemônica), Kopenawa decide tratar de sustentabilidade como um alerta. Inclusive, uma das passagens mais emblemáticas do atraso do povo branco perante o cuidado ecológico está neste momento do relato:

Omama tem sido, desde o primeiro tempo, o centro das palavras que os brancos chamam de ecologia. É verdade! Muito antes de essas palavras existirem entre eles e de começarem a repeti-las tantas vezes, já estavam em nós, embora não as chamássemos do mesmo jeito. Eram, desde sempre, para os xamãs, palavras vindas dos espíritos, para defender a floresta. Se tivéssemos livros, os humanos entenderiam o quanto são antigas entre nós! Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Omama deu a nossos ancestrais

(ALBERT; KOPENAWA, 2015ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés., p. 479-0, grifos do original).

Além dessa passagem, há outras em que tanto a flora quanto a fauna são igualadas ao ser humano. Assim, percebemos que não há, na natureza, hierarquia entre seus elementos, todos são igualmente importantes e indispensáveis para a perpetuação da vida.

Da mesma forma, em Meu nome é Rigoberta Menchú, a narradora conclui (assim como o faz Kopenawa) que plantas, árvores e montanhas são “seres da natureza” (BURGOS; MENCHÚ, 1992BURGOS, Elizabeth; MENCHÚ, Rigoberta. Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu minha consciência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. Tradução de: Lólio Lourenço de Oliveira., p. 193) e devem ser respeitados.

Em Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman, as referências de Maracle (uma indígena urbana, relembremos) à natureza não são necessariamente relacionadas à sua concepção de mundo. Pelo contrário, as menções concernem às reservas indígenas canadenses. Porém, com seu envolvimento político pelos direitos dos povos nativos, Maracle e seus companheiros militantes deparam-se com uma injustiça: o governo decidiu reduzir os direitos de pesca dos nativos de uma determinada área dessas reservas (BARNETT; MARACLE, 1975BARNETT, Don; MARACLE, Lee. Bobbi Lee: Indian Rebel Struggles of a Native Canadian Woman. Richmond: LSM Press, 1975., p. 92). De acordo com o relato, autoridades impunham medidas que desrespeitavam o Medicine Creek Treaty – um tratado legal que dava aos ocupantes daquela região o direito de pescar livremente. Além disso, Maracle denuncia o assédio moral e físico das autoridades.

Apesar das diferenças em relação ao tratamento da natureza pelos relatos de vida indígenas daqueles mais (Kopenawa e Menchú) e menos inseridos (MaracleMARACLE, Lee. Bobbi Lee Indian Rebel. Toronto: Women’s Press, 1990.) em suas culturas ancestrais, há um ponto convergente: as três narrativas entendem a importância da natureza para os povos nativos. A “literaterra” é uma marca importante dessas obras, assim como é a decisão de lutar para que os indígenas possam perpetuar sua cultura e modos de vida.

Entendo, aqui, a proximidade com a natureza como um reflexo de valores étnico-culturais. Assim, este tema perpassará as narrativas em diferentes graus, dependendo da conexão do narrador com sua ancestralidade.

Quero finalizar frisando que graças às mudanças ocorridas nas áreas da crítica e teoria literárias (CORNEJO POLAR, 2003CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire: Ensayo sobre la heterogeneidade socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: CELACP (Centro de Estudios “Antonio Cornejo Polar”), 2003.), atualmente é possível identificar e classificar conceitos de maneiras mais fluidas. Desafiando a fixidez da tradição dos gêneros literários, acredito que o relato de vida indígena, por ser um tipo de escrita de si, reflete os sujeitos híbridos que permeiam sua narrativa. Esse tipo de escrita, então, traz à tona a heterogeneidade que pode nos remeter à dinâmica modelo-redator e à constante tradução cultural de costumes e tradições nativas para a cultura branca. Assim, concluo que o relato de vida indígena é um gênero literário a partir da concepção de gênero esboçada aqui: um processo. Gênero não deve ser clausura, e sim uma categoria aberta para tangenciamentos. Não é apenas o relato de vida indígena que se relaciona com outros gêneros (mesmo que em algumas especificidades); mas, ainda assim, apresenta características próprias.

Finalmente, gostaria de mencionar que, neste artigo, realizei uma breve análise de aspectos comuns entre o relato de vida indígena e alguns (sub)gêneros (narrativas de vida e de exílio, autoetnografia e ecobiografia). Gostaria de esclarecer que o tangenciamento com mais gêneros literários – além dos que já compõem minha investigação – pode acontecer. Minha investigação continua nesse sentido.

Notas

  • 1
    Artigo derivado de minha tese de doutoramento intitulada “O relato de vida indígena, a autobiografia dos que não escrevem: uma análise de obras de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Rigoberta Menchú e Elizabeth Burgos e Lee Maracle e Don Barnett” (UFRJ, 2020), sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho.
  • 2
    No original: “Black Elk Speaks: My friend, I am going to tell you the story of my life, as you wish; and if it were only the story of my life I think I would not tell it; for what is one man that he should make much of his winters, even when they bend him like a heavy snow? So many other men have lived and shall live that story, to be grass upon the hills”.
  • 3
    Acredito ser importante ressaltar que cada etnia, ou cada povo indígena, tem suas próprias tradições, costumes, mitos. Não é possível sintetizar e generalizar toda a pluralidade dos povos nativos. Utilizo o adjetivo “indígena” com o propósito de caracterizar os sujeitos aos quais me refiro, mas não é minha intenção condensar as particularidades dos diversos povos originários.
  • 4
    Para o antropólogo argentino Carlos Reynoso, os Estudos Culturais pecaram principalmente em dois aspectos: o primeiro sobre o conceito de cultura e o segundo quanto à metodologia etnográfica. O conceito de cultura abordado pelos Estudos Culturais estava prestes a ser declarado exausto pela antropologia e, ainda assim, não houve uma profunda discussão teórica neste sentido dentro da recente disciplina. O entendimento da etnografia junto aos culturalistas, para Reynoso, pode ser visto como ingênuo, pois não apresenta o apuro (nem o debate) necessário que a antropologia buscava (cf. REYNOSO apudKLINGER, 2012KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012., p. 80-1).
  • 5
    No original: “Understanding a people’s culture exposes their normalness without reducing their particularity. [...] It renders them accessible: setting them in the frame of their own banalities, it dissolves their opacities”.
  • 6
    No original: “Genre has been defined in terms of meter, inner form, intrinsic form, radical of presentation, single traits, family traits, institutions, conventions, contracts, and these have been considered either as universals or as empirical historical groupings”.
  • 7
    No original: “theme” e “meaning”.
  • 8
    No original: “What could be simpler to understand than the act of people representing what they know best, their own lives?”.
  • 9
    Opto pelas aspas aqui, pois os povos originários antecedem as divisões político-geográficas nacionais, sendo então anacrônico equiparar as origens dos povos nativos e a das nações modernas. Esta afirmação anacrônica ocorre por questões de clareza.
  • 10
    Refiro-me, aqui, às divisões político-geográficas conforme concebidas no mundo ocidental e não a um grupo étnico-cultural indígena específico.
  • 11
    Por características nomádicas, refiro-me também às idas frequentes às fincas.
  • 12
    No original: “I told my friend Roger about my experiences in the States, especially about how I was struck by the cultural differences. “You don’t just integrate into a different culture or atmosphere in three months”, I said. “It would take ten years, or even more; you don’t realize at first how that difference sets you apart from the rest of the community, makes you a foreigner”.
  • 13
    No original: “I remember we were at this small party with a bunch of Jamaicans, Indians and a couple of Italians and Jewish guys – Doug had this wide circle of friends, all different types. Anyway, we were there telling jokes and singing songs that were peculiar to our particular cultures. I knew only one Cree song well enough to sing and was embarrasssed when I sang it. Not because I didn’t like the song or was ashamed of it, but because I was such a lousy singer. You see, to be a Cree singer traditionally required years of training – especially the lead singer, who sang the melody with others coming in with the chorus like an echo. So there was real status to being a Cree singer and I couldn’t do any justice to it at all – wasn’t even a full Cree and didn’t speak more than a few words of the language”.
  • 14
    No original: “A lot of Indians were simply against technology; they wanted to go back to the woods, back to nature. And they actually planned to go back into the forests and live in the old way”.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2020
  • Aceito
    25 Fev 2021
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