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CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E ALIANÇA MULTIESPÉCIE PELA SOBREVIVÊNCIA EM MADDADDAM, DE MARGARET ATWOOD

STORYTELLING AND MULTISPECIES ALLIANCE FOR THE SURVIVAL IN MARGARET ATWOOD’S MADDADDAM

Resumo

Este artigo é resultado de minha pesquisa de doutorado cujo corpus foi a trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood. Para esta proposta, foco minha análise sobre o terceiro romance da coletânea, também intitulado MaddAddam, em que nos é apresentado o desfecho dos enredos dos romances anteriores, a saber, Oryx and Crake (2003) e The year of the flood (2009). Em MaddAddam, publicado em 2013, Atwood especula um futuro em que a contação de histórias e a aliança entre seres humanos e não humanos consistem em estratégias de sobrevivência das espécies em um cenário pós-apocalítico. Para respaldar algumas das minhas reflexões, recorrerei às humanidades ambientais, sobretudo à ecocrítica, perspectiva teórica que me permite vislumbrar, dentre outras questões, como a espécie humana se reconfigura para garantir sua sobrevivência.

Palavras-chave
Contação de histórias; Aliança; Sobrevivência; MaddAddam ; Ecocrítica

Abstract

This paper originates from my doctorate thesis on Margaret Atwood’s MaddAddam trilogy. For this analysis, I rely on the third novel of the collection, also entitled MaddAddam, in which we can find the plots’ conclusion from the prequel books, namely, Oryx and Crake (2003) e The year of the flood (2009). In MaddAddam, published in 2013, Atwood speculates about the future in which storytelling and alliance between both human and nonhuman beings are the survival strategy of species within a post-apocalyptic scenario. To support some of my reflections, I will utilize the environmental humanities scholarship, especially ecocriticism, theoretical approach which allows me to glimpse, among other issues, how the human species reconfigures themselves to guarantee their survival.

Keywords
Storytelling; Alliance; Survival; Ecocriticism; MaddAddam

De início, gostaria de ressaltar que este texto tem relação direta com minha tese de doutorado1 1 A tese intitulada Apocalipse, sobrevivência e pós-humano: uma narrativa ecocrítica da trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood, foi defendida na Universidade Estadual da Paraíba em 2019, sob a orientação da Professora Dra. Sueli Meira Liebig, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade. defendida em 2019, cujo corpus concerne à trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood. Uma das ideias desenvolvidas por mim, naquele momento, foi o tema da sobrevivência que é um dos fios condutores da narrativa em questão. Convém lembrar, ainda, que a sobrevivência é recorrentemente mobilizada dentro da literatura canadense, como nos diz a própria Atwood em seu paradigmático Survival (2004)ATWOOD, Margaret. Survival: A Thematic Guide to Canadian Literature. Toronto: M&S, 2004.2 2 Survival: thematic guide to Canadian literature é um manual publicado por Margaret Atwood em 1972, cujo objetivo consistiu em colocar a tímida Canlit [Canadian literature] na cartografia literária mundial. O tema central deste livro é a sobrevivência sob vários aspectos, como explorado por Atwood ao analisar obras literárias do Canadá. . Além disso, foquei em outros conceitos-chave, tais como, o apocalipse e o pós-humano, que juntamente com a noção de sobrevivência permitiram-me analisar a trilogia à luz da ecocrítica, corrente teórica que trata da relação entre literatura e meio ambiente. Portanto, as considerações aqui apresentadas originam-se, em grande medida, de um texto produzido por mim, e que ainda suscita reflexões pertinentes no âmbito das narrativas produzidas no antropoceno – nome dado ao momento histórico em que nós humanos nos tornamos uma força geológica capaz de alterar a vida no planeta.

Para este artigo, retomarei uma análise em torno do terceiro romance da trilogia acima mencionada. Tal escolha se justifica para fins de delimitação de uma discussão, como também pelo fato de MaddAddam ainda carecer de análises literárias, sobretudo em língua portuguesa. Sobre o romance em questão, cabe ressaltar que ele, assim como seus prequelas, categoriza-se como distopia. Além disso, a narrativa nos brinda com seus tons típicos das ficções apocalíptica e pós-apocalíptica. Em minha tese (Silva, 2019SILVA, Suênio Stevenson Tomaz da. Apocalipse, sobrevivência e pós-humano: uma narrativa ecocrítica da trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood. 2019. 225 f. Tese (Doutorado em Literatura e Interculturalidade) – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2019.), observei também características das mudanças climáticas o que sugere a classificação da trilogia atwoodiana como cli-fi (abreviação de climate change fiction). É possível ainda perceber aspectos da ficção científica na obra, embora a própria Margaret Atwood não acolha muito bem tal denominação. Ela, no entanto, prefere a nomenclatura ficção especulativa ao se referir à tal trilogia bem como ao seu aclamado The Handmaid’s Tale (1985).

De fato, através de MaddAddam, a escritora canadense nos oferece um cenário futurista não muito distante, cujos fatos fictícios possuem alta probabilidade de acontecer. Eu diria que alguns já aconteceram ou estão acontecendo, por exemplo, os eventos catastróficos da natureza decorrentes das mudanças climáticas, conforme são noticiados recorrentemente pela mídia. Margaret Atwood inclusive defende tal ponto de vista ao dizer o seguinte: “escritores escrevem a respeito daquilo que os preocupa, e o mundo de Oryx e Crake é o que me preocupa agora neste momento” (Atwood, 2009ATWOOD, Margaret. Buscas curiosas. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2009., p. 348). O romance foi publicado em 2003 e a legítima preocupação de Atwood ganha mais fôlego e ecoa em outras vozes do mundo contemporâneo, sendo uma delas a de Ailton Krenak. Em suas Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e no mais recente Futuro ancestral (2022), o filósofo indígena brasileiro nos provoca a pensar questões relacionadas ao meio ambiente e sua conservação, à sustentabilidade e à sobrevivência das espécies em um contexto distópico acentuado pelo antropoceno. Devo salientar, ainda, que os argumentos de Krenak serão a principal fonte teórica deste artigo. Certamente, outros estudiosos e estudiosas serão mobilizados/as quando forem pertinentes à discussão, sobremaneira as reflexões oriundas das minhas leituras sobre a ecocrítica a partir das discussões de Garrard (2006)GARRARD, Greg. Ecocrítica. Tradução Vera Ribeiro. Brasília: Ed. UnB, 2006., Braidotti (2013)BRAIDOTTI, Rosi. The posthuman. Cambridge: Polity, 2013., Heise (2016)HEISE, Ursula. Imagining extinction: the cultural meanings of endangered species. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2016., McKibben (2006)McKIBBEN, Bill. The end of nature. New York: Random House, 2006. e Nixon (2011)NIXON, Rob. Slow violence and the environmentalism of the poor. Boston: Harvard University Press, 2011..

No que se refere ao tema sobrevivência em MaddAddam, um aspecto digno de menção é a seguinte passagem: “Por que tinha que sobreviver? Em meio a tanta gente” (Atwood, 2011ATWOOD, Margaret. O ano do dilúvio. Tradução de Márcia Frazão. Rio de Janeiro: Rocco, 2011., p. 113). Este é o questionamento de Toby, uma das protagonistas da narrativa, ainda no segundo livro da trilogia. Cabe lembrar que esta personagem é uma das vozes narrativas em The year of the flood, através da qual nós leitores e leitoras somos apresentados aos eventos ocorridos tanto no período anterior ao Dilúvio Seco quanto aos que o sucede. Convém ressaltar que o Dilúvio Seco é uma expressão utilizada pelos Jardineiros de Deus, grupo ecorreligioso que constitui uma das vozes narrativas no segundo romance da trilogia de Atwood. É através desse livro, sobretudo pelo próprio título, que a retórica apocalíptica se apresenta de modo mais evidente, pois os/as seguidores/as dos Jardineiros de Deus estão em alerta constante para um evento de destruição em massa. Na obra, tal evento apocalíptico decorre um vírus letal projetado em laboratório e que aniquila quase toda humanidade, excetuando-se apenas algumas pessoas que sobreviveram. Diante disso, iniciar esta análise a partir da trajetória de Toby em MaddAddam, resgatando inclusive sua reflexão acerca da própria sobrevivência tem a ver com a sua dupla função de personagem: seu papel de guardiã e narradora oficial de uma nova mitologia, fundada nas figuras de Oryx e de Crake3 3 Oryx e Crake são nomes de personagens do primeiro romance da trilogia de Atwood. São eles que dão nome ao livro. Um fato interessante de mencionar acerca de tais nomes tem a ver com sua conexão com o tema da extinção das espécies. Oryx e Crake referem-se a espécies animais que já estão extintas no contexto da obra, conforme nos é informado pelo enredo, através de um jogo de vídeo game: Extinctathon. Coincidentemente, as duas personagens estão mortas em Oryx e Crake, sendo mobilizadas através das memórias do protagonista, Jimmy ou Snowman. , personagens apresentados no primeiro romance da trilogia.

Como se percebe, a maioria das personagens se repete nos três livros de MaddAddam. Tais personagens também partilham do protagonismo à medida que a narrativa se movimenta. Poderia destacar qualquer outra figura dentro do universo ficcional aqui analisado, contudo, opto por focar no percurso de Toby, pelo menos por ora. Justifico minha escolha por dois motivos que considero bastante pertinentes. O primeiro concerne ao tema da sobrevivência, que movimenta o enredo da trilogia e é também um dos motes deste artigo; o segundo está associado ao próprio artifício de narrar, que é um aspecto muito significativo na prosa de Atwood.

Em MaddAddam, isso fica evidente já no sumário da obra, no qual a palavra-chave é, sem dúvida alguma, story [história]. Destacando sua recorrência e selecionando os subtítulos em que tal palavra aparece, fica fácil observar como a contação de histórias realmente informa a narrativa da trilogia (sublinhados meus): “The MaddAddam trilogy: the story so far (xiii)”, “The story of the egg”, “Story”, “The story of when Zeb lost in the mountains”, “The story of Zeb and thank you and good night”, “The story of birth of Zeb”, “The story of Zeb and Fuck”, “The story of how Crake got born”, “The story of Zeb and the snake women”, “The story of the two eggs and thinking”, “The story of the battle”, “The story of Toby”.

São inúmeras histórias que geram outras, ou melhor, que se conectam com outras narrativas, inclusive além dos limites do mundo ficcional da trilogia. A esse respeito, destaco o longo subtítulo da seção introdutória do romance – intitulada “Egg” [Ovo] – que, a meu ver, é bastante emblemático no que diz respeito ao seu tom mitológico: “A história do Ovo, e de Oryx, e Crake, e de como eles criaram as pessoas e os animais; e do caos; e de Snowman - Jimmy; e do osso fedido e da chegada dos dois homens maus” (Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 3, tradução minha)4 4 No original: “The story of the egg, and of Oryx and Crake, and how they made people and animals; and of the chaos; and of Snowman-the-Jimmy; and of the smelly bone and the coming of the two bad men”. . Na versão original, em inglês, todo esse subtítulo se encontra destacado em negrito e em itálico, sinalizando a importância conferida ao narrar, enquanto nos direciona para o processo de construção de uma mitologia fundada na criação de uma nova raça. Além disso, as alusões fornecem uma síntese dos últimos acontecimentos já apresentados nos volumes anteriores primeiro e segundo da trilogia: Oryx and Crake and The year of the flood.

E, como já foi mencionado anteriormente, Toby assume a função de contadora de histórias dos e para os Crakers, papel que já fora desempenhando por Jimmy (Snowman) no primeiro livro da coletânea. As presenças desse narrador e dessa narradora das histórias consumidas pelos seres da nova espécie, embora seja um artifício narrativo importante para o desenvolvimento do enredo como um todo, não pode deixar de ser visto como um elemento evidenciador da ironia do próprio texto literário. Na obra, a ironia se estabelece, entre outros focos, na própria representação dos Crakers.

Na concepção da nova raça, Crake, além de eliminar os impulsos negativos associados ao humano, destitui tais seres da capacidade de pensarem simbolicamente – mas os Filhos de Crake contrariam o projeto de seu criador. Os humanoides (outra referência dada aos novos seres) se veem mais tarde tomados da necessidade (e, assim, impõem a exigência) de uma narrativa que explique sua origem. De fato, isso constitui um dos aspectos irônicos da trilogia, uma vez que a narração é uma necessidade humana básica. Isso impõe uma provocadora questão: como podem os Crakers, criaturas não humanas, constituírem uma comunidade que se desenvolve a partir do storytelling produzido por humanos? Não pretendo oferecer uma resposta pronta e acabada para tal questionamento. Contudo uma possível resposta se ancore ao fato de que tais seres representam um devir do pós-humano5 5 Trato da ideia do pós-humano de maneira mais aprofundada na minha tese (SILVA, 2019). Mais adiante neste artigo, resgato algumas breves reflexões sobre o conceito de pós-humano para fundar meus argumentos neste breve texto. .

Por ora, apresento-lhes um comentário sobre o intento de Crake, no ponto de vista Ivory Bill, uma das personagens de MaddAddam que nos diz o seguinte: “Ele deve ter visto os Crakers como um povo indígena, sem dúvida. [...] E o Homo sapiens sapiens como os Conquistadores gananciosos e predadores” (Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 140, tradução minha)6 6 No original: “He’d have seen the Crakers as indigenous people, no doubt. […] And Homo sapiens sapiens as the greedy, rapacious Conquistadors.” . Esta é a única informação explícita, em toda trilogia, que estabelece uma comparação entre Crakers e indígenas. Além do mais, o comentário de Ivory Bill nos fornece uma justificativa para a atitude misantrópica de Crake, quando aniquila a raça humana e a substitui por um povo pacífico, os Crakers. Surpreendentemente, a nova raça desenvolve um interesse em conhecer mais detalhes da história de sua criação.

A partir dessa ideia evocada no texto de Atwood, é quase inevitável não pensar sobre a situação periclitante pela qual o povo Yanomami passa neste momento e que coincide com a escrita deste artigo. Desde a colonização do continente americano, a situação dos povos originários sempre foi uma tragédia continuada. No caso do Brasil, sobretudo nos últimos anos, de 2019 a 2022, por exemplo, em que houve um desmonte das políticas ambientais de preservação das nossas florestas, a vida do indígena ficou cada vez mais difícil. Vale salientar que com a desestabilização do clima e suas consequências catastróficas, os mais vulneráveis “são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes” (Krenak, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 21).

Com a falsa promessa de desenvolvimento, muitos desses povos foram obrigados a deixarem seu habitat natural. Entretanto, “se você tira um Yanomami da floresta, onde ele tem água, alimento e autonomia, e bota em Boa Vista, isso é produção de pobreza”, como bem coloca Krenak (2022, p. 55-56). O argumento do filósofo indígena é bastante contundente, pois ele fala a partir de sua própria experiência daquele que sofre na pele a opressão de uma civilização que desrespeita qualquer tipo de alteridade. E nosso caso, o descaso, o abandono e o negligenciamento para com os indígenas brasileiros se configuram como um verdadeiro genocídio. Eu sugeriria inclusive um outro termo - o ecocídio – pois extinguindo povos originários, estaríamos devastando a própria natureza.

Acompanhar pela mídia, a política de extermínio dos nativos brasileiros me direciona ao texto de Kyle Powys Whyte. Em seu Our Ancestors Dystopia Now: Indigenous Conservation and the Anthropocene [A distopia atual de nossos ancestrais: conservação indígena e o Antropoceno] (2017), WhyteWHYTE, Kyle P. Our ancestors’ dystopia now: indigenous conservation and the anthropocene. In: HEISE, U.; CHRISTENSEN J.; NIEMANN, M. (Eds.). Routledge Companion to the Environmental Humanities: New York: Routledge, 2017, p. 206-215., com base na sua experiência e de outros povos, é rápido ao afirmar que grupos indígenas já vivem num mundo que seus ancestrais conceberiam como um futuro distópico. Krenak (2022)KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., por sua vez, nos fala de um futuro ancestral, convocando-nos a ativar nossa ancestralidade que coaduna com a experiência dos povos originários. Para ele, “As pessoas antigas têm a habilitação de quem passou por várias etapas da experiência de viver. São os contadores de histórias, os que ensinam as medicinas, a arte, os fundamentos de tudo que é relevante para ter uma boa vida” (Krenak, 2022KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 117).

A partir dessa ênfase dada aos contadores de histórias, retorno ao contexto de MaddAddam, em que tal artifício constitui um ponto significativo do romance, conforme já mencionado. Os Crakers, opondo-se ao projeto inicial de seu criador, parecem que são movidos à narrativa, e nesse aspecto, mesmo sendo uma representação de “futuro” especulado por Atwood, tais criaturas acomodam aquela que a característica mais antiga da humanidade: a tradição oral, conforme nos é sugerido pelo próprio Krenak assim como pelo escritor canadense de tradição indígena, Thomas King (2003)KING, Thomas. The truth about stories: a native narrative. Canada: Anansi, 2003.. Nessa linha de pensamento, vale citar Tuck e Yang (2012TUCK, Eve; YANG, T. Wayne. Decolonization is Not a Metaphor. Decolonization, Indigeneity, Education, and Society. v. 1, p. 1-40, 2012., p. 06, tradução minha), quando ressaltam que “Povos indígenas são aqueles que possuem histórias de criação, e não histórias de colonização, acerca de como vieram parar em um lugar em particular”.7 7 No original: “Indigenous peoples are those who have creation stories, not colonization stories, about how they came to be in a particular place.” Considerando a caracterização dos personagens da obra de Atwood, a ideia dos autores acima permite-me ver os Crakers como um povo neoindígena.

Diante de tal argumento, fica fácil mobilizar a ideia de futuro ancestral de Krenak e aplicar ao texto de Margaret Atwood. Outrossim, o interesse genuíno de tais humanoides por histórias, sobretudo a de sua própria origem, é fonte de momentos com tons cômicos para atenuar o caos que nos apresentado a partir das perspectivas de personagens humanas que sobreviveram a uma pandemia, orquestrada pelo misantropo Crake. “O que é isso?” “O que é aquilo?”, típicos questionamentos que ouvimos de crianças na fase das perguntas, constituem interrupções frequentes na interação com os poucos humanos remanescentes, sobretudo nos momentos da contação de histórias.

No que tange à estruturação das narrativas contadas aos Crakers, por sua vez, eu diria que tanto o primeiro como o terceiro romance da trilogia apresentam uma estrutura bastante semelhante. Tanto Snowman (narrador do primeiro livro) como Toby (narradora do terceiro) oferecem ao/a leitor/a duas vertentes da mesma história: uma que narra a devastação de um mundo pós-apocalíptico; outra, para os Crakers, inventada dentro daquilo que seria a gênese da nova raça. Em outras palavras, além de uma narrativa oficial informada pela destruição causada pela pandemia, uma contranarrativa mítica emerge como uma maneira de atenuar a dura realidade, amenizando de certo modo o desespero dos sobreviventes, tal como podemos verificar a seguir:

Sobre os eventos daquela noite — os eventos que disseminaram outra vez no mundo a malícia humana — Toby mais tarde criou duas histórias. A primeira foi a que ela contou em voz alta, para os Filhos de Crake; esta tinha um final feliz, ou tão feliz quanto ela poderia lhe conferir. A segunda, criada só para si mesma, já não era tão alegre. Parte dela era sobre sua própria idiotice, seu fracasso em prestar atenção, mas era também sobre a celeridade. Tudo acontecera tão rápido

(Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 9, tradução minha).8 8 No original: “About the events of that evening — the events that set human malice loose in the world again — Toby later made two stories. The first story was the one she told out loud, to the Children of Crake; it had a happy outcome, or as happy as she could manage. The second, for herself alone, was not so cheerful. It was partly about her own idiocy, her failure to pay attention, but also it was about speed. Everything had happened so quickly”.

Como a própria narradora salienta na última frase: “Tudo acontecera tão rápido”. Trata-se de algo bem diferente da ideia de “slow violence” [violência lenta] apresentada por Rob Nixon (2011)NIXON, Rob. Slow violence and the environmentalism of the poor. Boston: Harvard University Press, 2011.. O “dilúvio seco” havia sido tão devastador que os sobreviventes ainda tentavam entender os eventos ocorridos. Diante disso, não é difícil imaginar Toby “presa” no entre-lugar de tempos e narrativas distintas. Duas realidades justapostas movimentam o percurso da narradora. Ao mesmo tempo em que tenta entender a rapidez da instauração do caos, Toby ainda encontra forças físicas e mentais para criar uma narrativa que atenda às expectativas dos Crakers. Essa dupla articulação narrativa certamente consome muito do/a narrador/a, o que, numa situação de sobrevivência, suscita algumas reflexões. Daí, a validade de questionamentos como: o que motiva Toby engendrar as narrativas da mitologia Craker? Sobre isso, poderíamos considerar duas possibilidades de resposta.

A primeira concerne à empatia para com os Crakers. Estes/as possuem comportamentos associados ao que é típico da fase infantil — de fato, muitos/as deles/as ainda são mesmo crianças. Além disso, são seres gentis e sempre dispostos a ajudar no que for preciso. Veremos mais adiante o quanto tais criaturas mostram-se colaboradoras para com os humanos no cenário de sobrevivência. Em resposta a essa postura e condição, é compreensível que alguns humanos, como Snowman e Toby, se sintam responsáveis por criaturas tão dóceis.

A segunda possibilidade está associada ao sentimento de precaução por parte dos sobreviventes. A incerteza é um ponto nevrálgico no âmbito da trilogia. O fato de Toby assim como Snowman contarem histórias para os Crakers pode ser interpretado como uma tentativa de reumanização desses seres, indo de encontro ao projeto de desumanização engendrado por Crake. Os Filhos de Crake são inclusive chamados de “Frankenpeople” a certa altura, num comentário feito por uma das personagens humanas sobreviventes: “Eu só espero que esse Frankenpovo de Crake não venha morar com a gente”9 9 No original: “I hope Crake’s Frankenpeople aren’t moving in with us”. (Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 19, tradução minha). Isso denota uma preocupação em relação àquilo em que tais criaturas podem vir a se transformar, inclusive ameaçando a sobrevivência dos humanos. Cabe aqui, portanto, aludir a Frankenstein, de Mary Shelley, ressaltando como Crake poderia ser visto também como um cientista louco, nos moldes de Victor Frankenstein. Nessa relação intertextual, é possível identificar muitas semelhanças entre MaddAddam e Frankenstein no que tange aos resultados inesperados de experimentos científicos que não levam em conta, principalmente, a ética. Em ambos os romances, tais experiências fogem ao controle dos cientistas, ameaçando inclusive suas próprias vidas.

Diante desse panorama, reitero que o artifício de storytelling empregado por Atwood tem uma função muito importante dentro de MaddAddam. Vale destacar que tal artifício foi inclusive explorado por Melissa de Sá (2014)SÁ, Melissa Cristina Silva de. Storytelling as survival in Margaret Atwood’s Oryx and Crake and The year of the flood. 2014. 145 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. em seu estudo intitulado Storytelling as survival in Margaret Atwood’s Oryx and Crake and The year of the flood. No caso deste artigo, construído a partir de minhas considerações (Silva, 2019SILVA, Suênio Stevenson Tomaz da. Apocalipse, sobrevivência e pós-humano: uma narrativa ecocrítica da trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood. 2019. 225 f. Tese (Doutorado em Literatura e Interculturalidade) – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2019.), direciono meu foco para a contação de histórias, mais especificamente, no terceiro romance da trilogia. Como estou enfatizando o tropo da sobrevivência ao longo desta análise, menciono aqui Comedy of survival, de Joseph W. Meeker. Este aponta o “comic way” [modo cômico] como sendo uma estratégia eficaz para a sobrevivência. O storytelling, portanto, está dentro desse arcabouço de possibilidades que o autor defende. Em suas próprias palavras:

O modo cômico nem sempre é engraçado. O humor é às vezes parte da experiência cômica (como também é de uma experiência trágica), mas o humor não é essencial para o significado da comédia. A comédia é mais uma atitude para com a vida e para com o próprio ser, e uma estratégia para lidar com os problemas e com o sofrimento

(Meeker, 1997MEEKER, Joseph W. The comedy of survival: literary ecology and a play ethic. 3. ed. Tucson: The University of Arizona Press, 1997., p. 12, tradução minha)10 10 No original: “The comic way is not always funny. Humor is sometimes a part of the comic experience (as it also is of tragic experience), but humor is not essential to the meaning of comedy. Comedy is more an attitude toward life and the self, and a strategy for dealing with problems and pain”.

Considerando essa explicação, eu vejo que o modo cômico permeia o fluxo narrativo de MaddAddam, como uma alternativa de amenizar o sentimento de tragédia vivenciado pelas personagens que sobrevivem à pandemia letal. Defendo aqui, portanto, que os sobreviventes, principalmente os/as narradores/as (aqui Toby), coadunam-se com a noção de comic way, tal como proposta por Meeker. A interação dessas personagens com os Crakers dá origem a situações bastante engraçadas; e tal humor é decorrente das divergências culturais impostas pela falta de conhecimento dos humanoides em relação a todo um arsenal de objetos, símbolos e conceitos pertencentes ao mundo humano e pré-apocalíptico. É possível até mesmo sugerir uma leitura de MaddAddam à luz das características do gênero da tragicomédia. Nessa mesma linha de reflexão, parece ser um caminho referir-se ao termo cunhado pela própria Atwood, “ustopia”, oriundo da combinação entre utopia e distopia, no sentido de identificar a coexistência e/ou as tensões dos contrários na obra ora analisada.

No que concerne ao storytelling, a erosão das fronteiras entre a narradora (Toby) e os ouvintes (os Crakers) ganha, assim, espaço para reflexão. Os humanoides ao longo da trilogia demonstram certo agenciamento, mesmo na condição de ouvintes. Isso pode ser ilustrado a partir do seguinte trecho:

Sempre que Toby acaba de contar uma história, eles exigem que ela conte tudo de novo, e então mais uma vez. Eles refrescam sua memória, interrompem, completam partes que ela esquece. O que querem dela é uma performance consistente, assim como extrair mais informações do que ela sabe ou é capaz de inventar. Ela não é uma substituta à altura de Snowman-Jimmy, mas eles estão fazendo o que podem para aperfeiçoá-la

(Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 45, tradução minha).11 11 No original: “Once Toby has made her way through the story, they urge her to tell it again, then again. They prompt, they interrupt, they fill in the parts she’s missed. What they want from her is a seamless performance, as well as more information than she either knows or can invent. She’s a poor substitute for Snowman-the-Jimmy, but they’re doing what they can to polish her up”.

É como se, na prática do storytelling, a “autoridade” atribuída ao/à narrador/a ao/à contador/a, fosse chacoalhada pelo agenciamento dos Crakers. De meros ouvintes da história de sua criação, esses seres assumem uma posição ativa na construção da própria história. Isso me remete à concepção de como reflexões do storytelling estão arraigadas na literatura indígena que tive a oportunidade de pesquisar durante a escrita da tese que fundamenta este artigo

Em seu ensaio “Language and literature from a Pueblo indian perspective”, Leslie Marmon Silko (1979, p. 57, tradução minha) lembra por que a contação de histórias, no próprio ato de narrar, promove a inclusão do público ouvinte: “Na verdade, acredita-se que grande parte da história esteja dentro do/a ouvinte; o papel do/a narrador/a é extrair dele a história.”12 12 No original: “In fact, a great deal of the story is believed to be inside the listener; the storyteller’s role is to draw the story out of the listeners”. Isso corrobora a ideia de que os/as Crakers assumem papel importante na construção da própria história na medida em que eles/elas mesmos interferem no processo e preenchem as lacunas deixadas por Toby. Ou seja, uma atividade que não raro coloca o/a narrador/a numa posição de autoridade, a contação de história se converte, na trilogia MaddAddam, num ato interativo e relacional. Nele, a habilidade narrativa da substituta de Snowman vai sendo aperfeiçoada rotineiramente em face das exigências e interferências dos/as próprios/as ouvintes, como frisado.

No contexto da obra de Atwood, cabe considerar ainda um pouco mais detidamente a função de Toby, para além de seu mero papel de contadora de histórias para os Crakers. Para tanto, vale retomar aquele seu questionamento já apresentado anteriormente: “Por que tinha que sobreviver?” Para tentar uma resposta aqui, apoio-me antes na perspectiva de Silko, ao ressaltar a compreensão da narrativa como “uma história dentro de outra, a ideia de que uma história é só o começo de muitas outras e a noção de que as histórias nunca verdadeiramente terminam” (Silko, 1979SILKO, Leslie Marmon. Language and literature from a Pueblo indian perspective. In: FIELDER, Leslie A. (Ed.) English literature: opening up the canon: selected papers from the English Institute. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1979, p. 54-72., p. 56, tradução minha).13 13 No original: “story within story, the idea that one story is only the beginning of many stories and the sense that stories never truly end”. Por esse ângulo, a sobrevivência de Toby em meio a tantas outras personagens pode-se justificar pela compreensão mais ampla de seu papel no âmbito de MaddAddam, no qual ela ajuda a mediar as trajetórias de outras personagens dentro do romance, tal como Blackbeard, um dos Crakers que assume papel de destaque no enredo como veremos a seguir. Sua voz, portanto, emerge como uma continuidade da tradição oral para o futuro.

O nome dessa personagem desperta a nossa atenção. Blackbeard, em português Barba Negra, epítome dos nomes atribuído aos Crakers, ilustra um mecanismo satírico empregado por Atwood. As próprias palavras de Toby reiteram tal ideia: “Blackbeard, o notório pirata assassino? Esta doce criança? Uma criança que nunca terá barba quando crescer, porque Crake eliminou os pelos do corpo da sua nova espécie” (Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 92, tradução minha).14 14 No original: “Blackbeard, the notorious murdering pirate? This sweet child? A child who will never have a beard when he grows up because Crake did away with body hair in his new species.” A escolha de tal nome, que alude à uma figura da história humana universal, pode ser lida como um aspecto bastante controverso, quando levamos em conta a misantropia de Crake. Parar a humanidade foi um dos seus objetivos almejados e alcançados; entretanto, nomear sua nova raça a partir de figuras (humanas) históricas15 15 Além da referência a Blackbeard, outros nomes dados aos Filhos de Crake merecem destaque, tais como: Abraham Lincoln, Marie Antoinette e Sojourner Truth. muito conhecidas obviamente configura-se como um tipo de homenagem, ou nas palavras de Krenak, uma maneira de invocar nossa ancestralidade. Tal ambivalência sugere, a meu ver, o elemento nostálgico que permeia a obra, e que é recorrente dentro do escopo das narrativas pós-apocalípticas e da ficção climática.

Dando continuidade à minha leitura de Blackbeard, convém lembrar que ele, assim como os demais protagonistas, emerge com uma das vozes do conjunto polifônico da trilogia. Diferentemente dos demais, entretanto, essa personagem é o porta-voz genuíno da nova raça, a que denomino pós-humana.16 16 Esse foi um dos conceitos que explorei ao longo da minha tese sobre a trilogia MaddAddam. Na tese, proponho alguns devires de (pós)humano ora para se referir aos humanos sobreviventes ora aos humanoides projetados para viverem contexto pós-apocalíptico. Para mais informações sobre o tema, convido-lhes para ler o texto da minha tese na íntegra que figura nas referências deste artigo. Além do mais, vale lembrar a importância de Toby enquanto narradora das histórias aos Crakers, como apresentei acima. A relação dessa personagem com o humanoide, Blackbeard, repercute como desfecho que altera o objetivo inicial de Crake, uma vez que o cientista havia projetado seus hominídeos sem as habilidades de leitura e de escrita.

Mais adiante na narrativa, ao observar Toby fazendo anotações em seu diário, Blackbeard se aproxima e, com a curiosidade característica dos Crakers, fica interessado pelas linhas registradas no caderno: “O que são essas linhas?”. Ao que Toby responde: “Estou escrevendo: é para isto que estas linhas servem. Vou lhe mostrar” (Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 202, tradução minha)17 17 No original: “‘What are those lines?’ […] ‘I’m doing writing: that is what these lines are. I’ll show you’”. . A partir desse momento, Toby dá início a uma das reviravoltas da trilogia, quando muda o curso da história Craker ao alfabetizar Blackbeard. Dá-lhe um curso explanatório básico sobre o que é escrita, o que é papel, de onde vem o papel, o que é caneta, e para que serve a tinta. Tudo isso é uma novidade para o menino Blackbeard, que reage com um olhar de perplexidade e incredulidade diante daquela apresentação.

O momento marcante acontece quando Toby destaca uma das folhas do caderno e escreve BLACKBEARD. “Então ela soletra cada letra para ele. ‘Viu?’ Ela diz. ‘Significa você. Seu nome.’ Ela coloca a caneta na mão dele, dobra seus dedos sobre ela, guia a mão e a caneta: a letra B. ‘Seu nome começa assim’, ela diz. ‘B. De abelhas. É o mesmo som” (Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 203, tradução minha)18 18 No original: “Then she sounds out each letter for him. “See?” She says. “It means you. Your name.” She puts the pen in his hand, curls his fingers around it, guides the hand and the pen: the letter B. “This is how your name begins”, she says. “B. Like bees. It’s the same sound”. . Cabe aqui fazer uma breve referência ao Spelling Bee, um dos jogos de soletração mais conhecidos nos países anglófonos, sendo ainda a soletração um dos recursos mais comuns no processo de alfabetização na maioria dos idiomas. O que está em jogo aqui, no entanto, é como a introdução da linguagem repercutirá no desenvolvimento da nova raça a partir de Blackbeard. A função de Toby vai além da experiência com a manipulação de ervas e medicamentos naturais para tratar dos sobreviventes. Ela acaba mudando o curso da história que envolve os humanoides. Por isso, especula:

Mas o que foi que eu fiz? Ela pensa. Que problemão eu fui arrumar? Elas são muito rápidas, essas crianças: elas vão pegar isso e passar adiante para todas as outras. E o que vem depois? Regras, dogmas, leis? O Testamento de Crake? Quanto tempo até que haja textos antigos que elas sintam que têm de obedecer, tendo já se esquecido de como interpretá-los? Será que eu as estraguei?

(Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 204, tradução minha).19 19 No original: Now what have I done? She thinks. What can of worms have I opened? They’re so quick, these children: they’ll pick this up and transmit it to all the others. What comes next? Rules, dogmas, laws? The Testament of Crake? How soon before there are ancient texts they feel they have to obey but have forgotten how to interpret? Have I ruined them?

Todos esses questionamentos de Toby certamente ficarão sem respostas, considerando o final em aberto da trilogia. Porém, algumas reflexões sobre a escolha de algumas palavras me parecem pertinentes para discussão da tese. Foco-me, em especial, na indagação: “What can of worms have I opened?” (que quer dizer, literalmente, “Que lata de minhocas eu abri?”, uma referência à imagem pouco atrativa de uma lata contendo vários desses bichos usados como isca pelos pescadores, e que, como expressão idiomática, alude a algo que seja fonte de problemas imprevisíveis e desagradáveis). Esta metáfora imediatamente me direciona a outra, ao termo “bookworm”, que é a palavra inglesa rotineira para “traça de livro”, mas que também com conotações positivas quando usada para descrever alguém que está sempre lendo livros.

Embora os Crakers ainda não saibam ler, o sentimento de “bookworm” se manifesta nos momentos em que demandam a contação de histórias. Nessa linha de reflexão, reitero mais uma vez que os Crakers parecem se alimentar de narrativas. Como argumenta Jacobson-Konefall, os momentos de contação de histórias ressaltam o consumo metafórico inerente aos atos de narração. Nas palavras de Jacobson-Konefall (2017, p. 63, tradução minha)JACOBSON-KONEFALL, Jessica. It’s some cannibal thing: Canada and Brazil in Margaret Atwood’s MaddAddam trilogy. A journal of Canadian literary and cultural studies, [s.l.], v. 6, p. 57-65, 2017.: “Os Crakers consomem [tais] histórias como sustento espiritual, como a história da sua criação: simbólica, espiritual, e comunal”20 20 No original: “The Crakers consume [such] stories as spiritual sustenance, as their creation story: symbolic, spiritual, and communal”. .

Este é o aspecto mais ambivalente concernente a tais criaturas. Como será o desenrolar a partir da inserção da escrita e da leitura na formação da nova raça? Sendo crianças muito perspicazes, como a narrativa sugere, certamente aprenderão rápido e passarão as informações umas para as outras, consumindo e transcriando aquilo que foi ensinado por Toby. A própria narradora questiona: “Have I ruined them?” [Será que os estraguei?]. A indagação remete ao projeto original de Crake, que previa uma raça sem acesso às informações do mundo humano. Como eles se desenvolverão a partir da interferência de Toby?

Esta é uma questão que nos direciona para a noção de devir desses humanoides, os quais se apresentam como seres fluidos e híbridos na própria constituição de misturado material genético humano com o de animais e plantas. Na interação com os humanos, subvertem inclusive a condição imposta pelo seu criador (parar a condição humana), e a partir da alfabetização de Blackbeard — o primeiro dos Crakers a desenvolver a habilidade da escrita — podemos vislumbrar um provável processo de reumanização, através do resgate daquilo que Crake tentou apagar:

Eu sou Blackbeard, e esta é a minha voz que estou escrevendo para ajudar Toby. Se olharem para este escrito que eu fiz, vocês podem me ouvir (eu sou Blackbord) falando com vocês, dentro da sua cabeça. Isto que é escrita. Mas os Porcões podem fazer isso sem escrever. E às vezes nós podemos também, os Filhos de Crake. Os duas-peles não podem fazer isso

(Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 377, tradução minha).21 21 No original: “I am Blackbeard, and this is my voice that I am writing down to help Toby. If you look at this writing I have made, you can hear me (I am Blackbord) talking to you, inside your head. That is what writing is. But the Pig Ones can do that without writing. And sometimes we can do it, the Children of Crake. The two-skinned ones cannot do it”.

As orações simples e erro de ortografia do próprio nome (Blackbord) sinalizam que a personagem ainda tem certa dificuldade em articular a escrita. Independentemente disso, no entanto, Blackbeard destaca nesse excerto um traço marcante dos Crakers: a cooperação. Como ele mesmo coloca, escreve para ajudar Toby. Através da citação, o/a leitor/a consegue vislumbrar o encontro de três espécies distintas: os Filhos de Crake, os Porcões [Pig Ones] e os humanos, os ditos “duas-peles” [two-skinned ones]. Este grupo de seres diferentes é o que vai formar uma comunidade multiespécie no contexto pós-humano, conforme proponho analisar a partir daqui.

Antes de prosseguir, recorro mais uma vez às reflexões de Krenak em uma das passagens que considero mais genuínas e potentes em seu Futuro ancestral. Ele, portanto, nos narra acerca de seu aprendizado enquanto indígena que recebeu a partir da fricção com a natureza:

Essa liberdade que tive na infância de viver em conexão com tudo aquilo que percebemos como natureza me deu o entendimento de que eu também sou parte dela. Então, o primeiro presente que ganhei com essa liberdade foi a de me confundir com a natureza num sentido amplo, de me entender como uma extensão de tudo, e ter essa experiência do sujeito coletivo. Trata-se de sentir a vida nos outros seres, numa árvore, numa montanha, num peixe, num pássaro, e se implicar

(Krenak, 2022KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 102-103).

O pensamento acima evoca reverberações na caracterização dos neoindígenas em MaddAddam. Os Crakers são na verdade seres híbridos, resultado de uma mistura de espécies distintas, desafiando assim os limites impostos por uma visão antropocêntrica, informada pela lógica ocidental, e que é frequentemente criticada pela filosofia de Ailton Krenak. Parece-me que ambos, Krenak (a partir de sua experiência) e Atwood (na sua criatividade especulativa) convergem na mesma direção: o resgate de vínculos com a ancestralidade para a construção de uma aliança multiespécie.

Esse tipo de aliança é claramente promovido no universo especulativo de Atwood. Conforme nos é apresentado em Oryx and Crake, os Porcões, porcos geneticamente modificados, foram projetados com o uso de tecido de cérebro humano. Em MaddAddam, é-nos revelado que eles podem se comunicar com os Crakers, e no capítulo Piglet [Porquinho], fala-se de um tipo de acordo estabelecido entre as três espécies. Os Porcões se aproximam do território dos MaddAddamites (sobreviventes da espécie humana) para pedir ajuda conta os ataques dos violentos Painballers (outros sobreviventes humanos que são os vilões). Parte dessa cena pode ser ilustrada com o trecho a seguir:

“Eles estão falando, ah, Toby,” diz Blackbeard. “Eles estão pedindo ajuda. Querem parar aqueles. Aqueles que estão matando seus porquinhos.” Ele respira fundo. “Dois porquinhos — um com um desses espetos que você fura, um com uma faca. Os Pig Ones querem que eles [os Painballers] sejam mortos”

(Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., pp. 269-270, tradução minha).22 22] “‘They are talking, Oh Toby,’ says Blackbeard. ‘They are asking for help. They want to stop those ones. Those ones who are killing their pig babies.’ He takes a deep breath. ‘Two pig babies — one with a stick you point, one with a knife. The Pig Ones want those ones to be dead’”.

Eu diria que esta cena representa um dos clímaces da trilogia. A comunicação entre as três espécies é um elemento inesperado da narrativa porque o único prenúncio possível seria o fato de os Porcões possuírem neocórtex humano na sua constituição genética. Por alguma razão, os Crakers compreendem o que os porcos gigantes “falam” e então traduzem para os humanos. Na citação, aliás, fica evidente a importância de Blackbeard como intérprete. Nas palavras de Zeb, um dos protagonistas do romance, Blackbeard é muito útil por conta de sua função de liaison com os porcos. A meu ver, essa palavra, que significa “ligação”, “contato”, “conexão”, expressa bem o comportamento geral dos Crakers, sempre dispostos em cooperar. A cooperação entre espécies se apresenta, portanto, como um caminho importante para a sobrevivência na terceira parte da trilogia. Vale salientar, portanto, que a trégua com os Porcões surge apenas diante da ameaça dos Painballers, que chegam a matar dois porcos menores.

Considero importante observar, além disso, o arco evolutivo dos Porcões enquanto personagens, ao longo da narrativa. É um ponto que tem a ver com o fato de a trilogia ser claramente informada pela ideia de evolucionismo. É com isso em mente que observo, então, que os Porcões [Pigoons], em momento anterior ao apocalipse, são meramente porcos; animais que, tal como outras espécies, são vítimas dos experimentos biotecnológicos. Num segundo momento, porém, já se tornam os monstruosos Porcões que ameaçam a sobrevivência humana. Por fim, os Pig Ones, como Blackbeard se refere a estas criaturas, se aproximam dos humanos para estabelecer um pacto no combate aos Painballers que parecem ser, neste momento da narrativa, a única ameaça para humanos e não humanos. Uma evidência em relação ao arco evolutivo desses seres geneticamente modificados diz respeito à mudança do nome (porcos, Porcões [Pigoons], Pig Ones). Vale reforçar que este é um aspecto recorrente na trilogia, quando observamos o percurso narrativo dos protagonistas, todos alinhados com a ideia de devir.

No terceiro estágio evolutivo dos Porcões, o agenciamento cooperativo de Blackbeard é essencial porque ele consegue mediar a comunicação entre esses seres e os humanos. A cooperação interespécie da obra dialoga com o que Braidotti assevera como sendo uma virada Zoe-igualitária.23 23] No original: “a zoe-egalitarian turn. Braidotti distingue Bio de Zoe, em que o primeiro se refere a ideia de vida centrada no humano (anthropos), enquanto o segundo concerne a uma força transversal que valoriza a vida de espécies previamente segregadas, assim como categorias e domínios do não-humano”. Utilizando as próprias palavras da estudiosa,

O pós-humano, no sentido do pós-antropocentrismo, desloca o esquema dialético de oposição, substituindo dualismos bem consolidados pelo reconhecimento de um profundo zoe-igualitarismo entre humanos e animais. A vitalidade da conexão entre eles baseia-se na partilha deste planeta, território ou meio ambiente, em termos que já não são mais claramente hierárquicos nem evidentes (Braidotti, 2013BRAIDOTTI, Rosi. The posthuman. Cambridge: Polity, 2013., p. 71, tradução minha).24 24 No original: “The posthuman in the sense of post-anthropocentrism displaces the dialectal scheme of opposition, replacing well-established dualisms with the recognition of deep zoe-egalitarianism between humans and animals. The vitality of their bond is based on sharing this planet, territory or environment on terms that are no longer so clearly hierarchical, nor self-evident”.

O cenário pós-apocalíptico de MaddAddam nos direciona para esse entendimento porque a sobrevivência das espécies remanescentes, principalmente a humana, encontra-se ameaçada. Na obra, esta postura pós-antropocêntrica apenas surge graças à sensibilidade dos Crakers em reconhecer as intenções dos Porcões. Isso sugere, a meu ver, que a relação dos humanoides para com os outros está claramente baseada no respeito e na empatia. Nesse sentido, Braidotti (2013)BRAIDOTTI, Rosi. The posthuman. Cambridge: Polity, 2013. assevera que a ênfase na empatia atinge objetivos significativos na visão de uma teoria pós-humana da subjetividade. Inicialmente, ela afirma que esta ênfase reavalia a comunicação como uma ferramenta evolutiva; em seguida, o foco na empatia identifica nas emoções, no lugar da razão, a chave para um despertar de consciência.

Eu delimito minha análise a esses dois pontos propostos por Braidotti, pois considero que se aplicam à suscetibilidade da empatia dos Crakers para com outros, independentemente da espécie. A habilidade dos humanoides de comunicarem-se com os Porcões denota que os humanos estão em um nível diferente, para não dizer aquém, em termos de empatia. Isso pode ser ilustrado pelo momento em que Toby pensa: “No mundo de Blackbeard, ela é surda e cega” (Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 343, tradução minha).25 25 No original: “In the world of Blackbeard she’s deaf and blind”. Esta metáfora é bastante significativa, pois coloca seres humanos como uma espécie limitada no contexto da trilogia atwoodiana. Por esta razão, a condição pós-humana se impõe como uma alternativa diferente, na qual se é capaz de ouvir e ver o mundo natural, ou melhor “pós-natural”, recorrendo aqui ao termo de Bill McKibben (2006) que coaduna com a noção de antropoceno e atrela-se diretamente aos estudos ecocríticos.

Em relação à ênfase nas emoções em detrimento da razão, os Filhos de Crake são, sem dúvida alguma, criaturas com o caráter emocional bem acentuado. Eles costumam cantar canções sem sentindo, ou que pelo menos assim soam aos ouvidos humanos. Até mesmo nos momentos de contação de histórias, interrompem os narradores com suas canções repetitivas. A empatia dessas criaturas é ainda mais evidente quando se referem a outros seres da espécie animal, assim como aos humanos, num tom muito respeitoso. Conforme a mitologia Craker, todos os animais são considerados filhos da “deusa” Oryx; por esta razão, suas vidas são valorizadas e respeitadas pelo menos do ponto de vista da nova raça.

O comportamento dos Crakers em geral nos permite contemplar como é difícil superar os valores solidificados sob a premissa do antropocentrismo. Para eles, é fácil estabelecer laços porque o continuum natureza-cultura é inerente à sua condição pós-humana. Esta seria uma característica baseada na ética do pós-humano. E, como Braidotti salienta, este tipo de ética nos instiga a tolerar o princípio do não Um — o que implica que a supremacia humana deve ser superada, reconhecendo-se os laços que nos vincula aos múltiplos outros. Este é um ensinamento que os humanos poderiam aprender da postura zoe-igualitária dos Crakers, em que todas as vidas indistintamente importam. Uma possibilidade que, no entanto, é totalmente desconsiderada quando Porcões e humanos votam, decidindo que os dois Painballers devem ser mortos.

Ao narrar esse evento, Blackbeard reitera que tanto o julgamento quanto a execução são uma invenção humana. Os Crakers não participam desta decisão. De fato, eles nem sequer presenciam o momento em que os “condenados” são mortos. Blackbeard narra o seguinte:

E depois do Julgamento, todos os Pig Ones desceram até a orla. E Toby foi com eles e tinha aquela coisa de arma que nós não devemos tocar. E Zeb foi. E Amanda foi, e Ren. E Crozier e Shackleton. Mas nós não fomos, nós Filhos de Crake, porque Toby disse que seria doloroso para nós

(Atwood, 2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Nan A. Talese Doubleday, 2013., p. 370, tradução minha).26 26 No original: “And after the Trial, all the Pig Ones went down to the seashore. And Toby went with them, and she had her gun thing that we should not touch. And Zeb went. And Amanda went, and Ren. And Crozier and Shackleton. But we did not go, we Children of Crake, because Toby said it would be hurtful to us”.

Como se percebe, o encontro da diferença das espécies em MaddAddam parece ser celebrado. E no cenário pós-apocalíptico da narrativa, a união entre três espécies distintas é um modo de garantir a sobrevivência de todas. Isso só é possível graças aos Crakers (em especial, Blackbeard), que exercem o papel de uma força conciliadora. Apesar deste aspecto controverso, eu argumento que os humanos remanescentes, os Porcōes e os Crakers estão todos interligados em termos do dilema pós-humano, aqui repetindo uma expressão proposta por Braidotti.

Para além de qualquer dilema ou controvérsia que seja evocado pelo texto de Atwood, defendo que as três espécies acima destacadas se encontram na condição de um devir pós-humano. O que então proponho é de fato expandir essa concepção, oferecendo uma discussão que leve em consideração o encontro dos devires do pós-humano e os desdobramentos a partir de uma interação entre espécies. Uma possibilidade de leitura nessa direção pode se respaldar em algumas reflexões sobre o que Ursula Heise denomina “justiça multiespécie” [multispecies justice]. Em suas palavras: “A justiça multiespécie [...] é o tipo de um projeto que requer uma diplomacia mais que humana – um projeto que busca a justiça com um senso tanto de diferenças culturais quanto de diferenças de espécie”27 27 No original: “Multispecies justice, then, is the kind of project that requires a more-than-human diplomacy that pursues justice with both a sense of cultural differences and a sense of species differences”. (Heise, 2016HEISE, Ursula. Imagining extinction: the cultural meanings of endangered species. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2016., p. 199, tradução minha).

À guisa de conclusão, gostaria de reiterar que a justiça multiespécie é algo que capta minha atenção em MaddAddam. Mesmo que, inadvertidamente, algumas de suas personagens humanas, a exemplo de Toby que foi analisada ao longo deste artigo, pavimentaram o caminho para uma consciência mais integradora entre as espécies distintas apresentadas na narrativa. A sensibilidade e a empatia de Toby como guia e narradora das histórias dos Crakers foram essenciais para o desfecho. Como consequência disso, Blackbeard, por sua vez, emerge como figura central que vai mediar o encontro da diferença, mas estabelecendo conexões possíveis, ou melhor nos lembrando que humano e natureza (e tudo que há nela) deve ser entendido com um único organismo. Em suas eloquentes palavras, Krenak nos apresenta a ideia de florestania (uma possibilidade para a palavra cidadania tão usada, mas pouco praticada). Por fim, quero acreditar que Atwood e Krenak, mesmo que por vias diferentes, dialogam no sentido de nos convocar a experimentar outras formas de existir e de nos implicarmos de uma maneira multiespécie, permitindo-nos “conjugar o nós: nós-rio, nós-montanhas, nós-terra” (Krenak, 2022KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 14). Esta parece ser uma das formas imaginadas e concretas de garantir a sobrevivência de humanos e não humanos na Terra.

Notas

  • 1
    A tese intitulada Apocalipse, sobrevivência e pós-humano: uma narrativa ecocrítica da trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood, foi defendida na Universidade Estadual da Paraíba em 2019, sob a orientação da Professora Dra. Sueli Meira Liebig, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade.
  • 2
    Survival: thematic guide to Canadian literature é um manual publicado por Margaret Atwood em 1972, cujo objetivo consistiu em colocar a tímida Canlit [Canadian literature] na cartografia literária mundial. O tema central deste livro é a sobrevivência sob vários aspectos, como explorado por Atwood ao analisar obras literárias do Canadá.
  • 3
    Oryx e Crake são nomes de personagens do primeiro romance da trilogia de Atwood. São eles que dão nome ao livro. Um fato interessante de mencionar acerca de tais nomes tem a ver com sua conexão com o tema da extinção das espécies. Oryx e Crake referem-se a espécies animais que já estão extintas no contexto da obra, conforme nos é informado pelo enredo, através de um jogo de vídeo game: Extinctathon. Coincidentemente, as duas personagens estão mortas em Oryx e Crake, sendo mobilizadas através das memórias do protagonista, Jimmy ou Snowman.
  • 4
    No original: “The story of the egg, and of Oryx and Crake, and how they made people and animals; and of the chaos; and of Snowman-the-Jimmy; and of the smelly bone and the coming of the two bad men”.
  • 5
    Trato da ideia do pós-humano de maneira mais aprofundada na minha tese (SILVA, 2019SILVA, Suênio Stevenson Tomaz da. Apocalipse, sobrevivência e pós-humano: uma narrativa ecocrítica da trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood. 2019. 225 f. Tese (Doutorado em Literatura e Interculturalidade) – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2019.). Mais adiante neste artigo, resgato algumas breves reflexões sobre o conceito de pós-humano para fundar meus argumentos neste breve texto.
  • 6
    No original: “He’d have seen the Crakers as indigenous people, no doubt. […] And Homo sapiens sapiens as the greedy, rapacious Conquistadors.”
  • 7
    No original: “Indigenous peoples are those who have creation stories, not colonization stories, about how they came to be in a particular place.”
  • 8
    No original: “About the events of that evening — the events that set human malice loose in the world again — Toby later made two stories. The first story was the one she told out loud, to the Children of Crake; it had a happy outcome, or as happy as she could manage. The second, for herself alone, was not so cheerful. It was partly about her own idiocy, her failure to pay attention, but also it was about speed. Everything had happened so quickly”.
  • 9
    No original: “I hope Crake’s Frankenpeople aren’t moving in with us”.
  • 10
    No original: “The comic way is not always funny. Humor is sometimes a part of the comic experience (as it also is of tragic experience), but humor is not essential to the meaning of comedy. Comedy is more an attitude toward life and the self, and a strategy for dealing with problems and pain”.
  • 11
    No original: “Once Toby has made her way through the story, they urge her to tell it again, then again. They prompt, they interrupt, they fill in the parts she’s missed. What they want from her is a seamless performance, as well as more information than she either knows or can invent. She’s a poor substitute for Snowman-the-Jimmy, but they’re doing what they can to polish her up”.
  • 12
    No original: “In fact, a great deal of the story is believed to be inside the listener; the storyteller’s role is to draw the story out of the listeners”.
  • 13
    No original: “story within story, the idea that one story is only the beginning of many stories and the sense that stories never truly end”.
  • 14
    No original: “Blackbeard, the notorious murdering pirate? This sweet child? A child who will never have a beard when he grows up because Crake did away with body hair in his new species.”
  • 15
    Além da referência a Blackbeard, outros nomes dados aos Filhos de Crake merecem destaque, tais como: Abraham Lincoln, Marie Antoinette e Sojourner Truth.
  • 16
    Esse foi um dos conceitos que explorei ao longo da minha tese sobre a trilogia MaddAddam. Na tese, proponho alguns devires de (pós)humano ora para se referir aos humanos sobreviventes ora aos humanoides projetados para viverem contexto pós-apocalíptico. Para mais informações sobre o tema, convido-lhes para ler o texto da minha tese na íntegra que figura nas referências deste artigo.
  • 17
    No original: “‘What are those lines?’ […] ‘I’m doing writing: that is what these lines are. I’ll show you’”.
  • 18
    No original: “Then she sounds out each letter for him. “See?” She says. “It means you. Your name.” She puts the pen in his hand, curls his fingers around it, guides the hand and the pen: the letter B. “This is how your name begins”, she says. “B. Like bees. It’s the same sound”.
  • 19
    No original: Now what have I done? She thinks. What can of worms have I opened? They’re so quick, these children: they’ll pick this up and transmit it to all the others. What comes next? Rules, dogmas, laws? The Testament of Crake? How soon before there are ancient texts they feel they have to obey but have forgotten how to interpret? Have I ruined them?
  • 20
    No original: “The Crakers consume [such] stories as spiritual sustenance, as their creation story: symbolic, spiritual, and communal”.
  • 21
    No original: “I am Blackbeard, and this is my voice that I am writing down to help Toby. If you look at this writing I have made, you can hear me (I am Blackbord) talking to you, inside your head. That is what writing is. But the Pig Ones can do that without writing. And sometimes we can do it, the Children of Crake. The two-skinned ones cannot do it”.
  • 22]
    “‘They are talking, Oh Toby,’ says Blackbeard. ‘They are asking for help. They want to stop those ones. Those ones who are killing their pig babies.’ He takes a deep breath. ‘Two pig babies — one with a stick you point, one with a knife. The Pig Ones want those ones to be dead’”.
  • 23]
    No original: “a zoe-egalitarian turn. Braidotti distingue Bio de Zoe, em que o primeiro se refere a ideia de vida centrada no humano (anthropos), enquanto o segundo concerne a uma força transversal que valoriza a vida de espécies previamente segregadas, assim como categorias e domínios do não-humano”.
  • 24
    No original: “The posthuman in the sense of post-anthropocentrism displaces the dialectal scheme of opposition, replacing well-established dualisms with the recognition of deep zoe-egalitarianism between humans and animals. The vitality of their bond is based on sharing this planet, territory or environment on terms that are no longer so clearly hierarchical, nor self-evident”.
  • 25
    No original: “In the world of Blackbeard she’s deaf and blind”.
  • 26
    No original: “And after the Trial, all the Pig Ones went down to the seashore. And Toby went with them, and she had her gun thing that we should not touch. And Zeb went. And Amanda went, and Ren. And Crozier and Shackleton. But we did not go, we Children of Crake, because Toby said it would be hurtful to us”.
  • 27
    No original: “Multispecies justice, then, is the kind of project that requires a more-than-human diplomacy that pursues justice with both a sense of cultural differences and a sense of species differences”.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Aceito
    24 Jul 2023
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