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Entrevista ao Professor Domingos Sávio Pimentel Siqueira da Universidade Federal da Bahia

Entrevistadora: Então, professor, vamos começar a entrevista falando um pouco sobre algumas palavras-chave da sua pesquisa.

Professor: Na realidade, eu me interesso por muitas coisas, mas existem algumas que me são mais caras. Então, por exemplo, eu como sou professor de inglês desde sempre, tudo em relação à língua inglesa por um viés mais crítico me interessa; então eu diria que uma palavra-chave do que eu venho pesquisando seria “inglês como língua franca”, dentro desse construto contemporâneo que a gente chama, o que seria de inglês como língua franca. Mas há outras palavras-chave que eu tento juntar dentro desse contexto em que eu trabalho, com formação de professores. Eu diria, por exemplo, que “interculturalidade” é uma palavra-chave pra mim e, digamos, algumas derivadas dessa palavra. Eu faço parte de um grupo que trabalha com transculturalidade, mas interculturalidade, os estudos interculturais me interessam muito. E eu diria que um terceiro tripé seria “pedagogia crítica”, mas de uma forma mais ampla, voltada para a educação de segunda língua; ou o que eu chamo de educação linguística e, de uma forma mais específica, o que a gente vem chamando de ensino, ou pedagogia de línguas crítica, que em inglês seria Critical Language Pedagogy. Há outras palavras-chave, mas eu diria que essas três são pilares que eu venho orientando, tanto mestrandos, quanto doutorandos que estão dentro dessa linha mais ampla.

Entrevistadora: Em que momento da sua formação o senhor decidiu por esse tema de pesquisa especificamente?

Professor: Eu acho que isso surgiu muito forte um pouco antes de eu entrar no doutorado, porque eu tinha uma experiência anterior muito grande e já era professor há mais de 15 anos; eu trabalhava numa escola de inglês e comecei a sentir necessidade de ir muito além, de ser apenas professor. Eu trabalhei muito na administração, fui coordenador, fui coordenador administrativo, e quando resolvi fazer o meu doutorado, a pesquisa foi um divisor de águas na minha vida, porque eu sabia que isso no futuro me forçaria a sair desse trabalho de muitos anos, e foi o que aconteceu. Então, eu diria que logo quando entrei eu fiz 3 disciplinas especiais, ainda para o doutorado, e um ano antes de fazer a prova para entrar realmente eu já estava decidido que era aquilo que eu queria, que esses temas eram os que me interessavam, e foi exatamente isso que aconteceu. Então quando entrei no doutorado, lá na UFBA, eu já tinha praticamente um esboço de como eu ia produzir uma tese, e era exatamente isso: pedagogia crítica, estudos com cultura, que depois eu vim trazer mais o termo intercultural e pedagogia crítica. Isso estava muito na minha cabeça, na minha praxis, e eu disse: “não, eu acho que eu vou por aqui”, e terminei escrevendo uma tese exatamente nessa linha.

Entrevistadora: De que forma a sua pesquisa dialoga com a formação de professores de língua atualmente?

Professor: Atualmente, no programa de pós-graduação, na nossa linha, de Linguística Aplicada, praticamente todos nós dialogamos com a formação de professores. Nós temos orientadores da área de vernáculas, de línguas estrangeiras (aí tem inglês, alemão, espanhol…), mas para mim, esse diálogo é talvez a espinha dorsal do meu trabalho com pesquisa. Praticamente todos os meus orientandos são professores, ou em formação, ou já professores que vêm fazer o trabalho de educação continuada. E alguns, muito poucos, que teorizam, estão mais voltados para a teoria, mas eu diria que eu e alguns colegas somos muito procurados por essa demanda por formação de professor. Então, ela é totalmente voltada, tanto em formação inicial, quanto em formação continuada.

Entrevistadora: E quais são algumas das dificuldades encontradas para implementar sua pesquisa?

Professor: Eu diria que as dificuldades, para mim, não são muitas porque, por exemplo, eu tenho um grupo de pesquisa que é tanto aprovado pela UFBA, quanto pelo CNPq, que não tem demandas financeiras. Então, por exemplo, eu tenho acesso tanto via CAPES periódicos, ou via minha relação com algumas universidades internacionais, a materiais de ponta e tenho conseguido manter um grupo atualizado em termos de bibliografia. É um grupo muito procurado; se eu tenho uma dificuldade maior, talvez seja a de poder conciliar a vida profissional e acadêmica dos meus estudantes para ter uma continuidade. Porque muitos, praticamente todos, são professores de inglês, ou em formação, ou já trabalhando. Eu gosto de trabalhar com graduandos, porque eles são futuros pós-graduandos. Mas muitos são empregados, têm uma vida muito atribulada, e aí eu sofro um pouco com essa questão da continuidade. Então, entra um, sai outro; a não ser que eles consigam entrar na pós-graduação, conseguem uma bolsa e ficam. Mas eu diria que eu disponho de um espaço, a gente pode se encontrar; eu coordeno a extensão da UFBA hoje, o núcleo de extensão, então eu tenho uma disponibilidade de material. Mas acho que essa questão da continuidade dos estudos; e precisa estar o tempo todo garimpando novos membros.

Entrevistadora: E de que forma a teoria que orienta seus estudos pode ser alinhada com a prática de sala de aula?

Professor: Olha essa é uma ótima pergunta, e é um desafio grande, porque ao mesmo tempo que nós estamos trabalhando com construtos relativamente novos, principalmente no tocante a inglês como língua franca, e também de interculturalidade, pedagogia crítica. Esses são elementos ou aspectos que mexem com o status quo, mexem com o tradicional. E, às vezes, eu diria que eu sinto, trabalhando com os alunos, há uma receptividade muito interessante da parte deles, mas eles vivem certos conflitos, porque, por exemplo, eles chegam para mim e dizem: “olha, Sávio, tudo isso é muito interessante, tudo isso nos leva a refletir e a pensar, a descolonizar nossa prática, mas a gente tá amarrado a um currículo extremamente engessado, tradicional, e também, há disciplinas outras que nos deixam também amarrados dessa forma”. Mas eu acho que essa teorização tem alimentado de uma forma bastante interessante e, principalmente, porque eu vejo isso na prática com os alunos, que são os professores de formação da extensão; eu vejo esses jovens falando muito de variação, falando de desterritorialização da língua, de desterritorialização de cultura, de pensamento crítico, questionando materiais, tópicos, temáticas absolutamente distantes do aluno, representatividade, principalmente na Bahia, em que a gente discute muito questões étnicas. Então, embora eles vivam nessa dualidade, eu acredito que toda essa literatura que tem sido produzida, e eu tenho usado muita coisa produzida aqui, por colegas, não só da UFBA, mas também do Brasil, onde eu possa valorizar essa epistemologia do Sul. Eu sempre digo para eles: “olha, eu acho que hoje, mesmo nessa zona de conflito em que vocês se encontram, vocês são melhores do que quando eu tinha a idade de vocês como professor”, que fui formado de uma forma mais tradicional, questão da Cultura 1, da Língua 1. Então, eu acho que há um diálogo muito forte, mas ainda para se traduzir isso na sala de aula eu acho que tem um caminho aí. E eu sempre digo: “eu nunca advogo paradigmas destruindo paradigmas, eu advogo que você faça uma análise crítica de um paradigma que aí está, e veja o que serve e o que não serve nesse momento e, se for o caso, você poder traçar caminhos paralelos. Então, em vez de ser um contra o outro, ser um com o outro.”

Entrevistadora: Na sua experiência como pesquisador, professor e orientador, o senhor considera que a noção de inglês como língua franca está bem difundida entre os professores de ensino fundamental e médio, ou no ensino superior, em cursos de língua?

Professor: Eu acho muito incipiente, ainda. Há uma consciência de que nós não podemos pensar ELT (ensino da língua inglesa) da forma que sempre se pensou, vindo do tal centro hegemônico. Eu sinto que, mesmo em escolas tradicionais, as que eu tenho acesso, até cursos de língua inglesa, se dá pelo menos um espaço a tentar discutir essas questões. Mas eu acho que ainda é algo que os professores sentem dificuldade, porque há sempre essa demanda de “como é que eu coloco isso na prática?”. Então, a gente tem produzido alguns livros já, alguns materiais, tentando trazer essa visão, essa perspectiva mais pedagógica do conceito de ELF. Mas, sendo bem objetivo, eu acho que não está muito difundido, e onde há uma awareness - uma consciência, eu acho que há ainda uma insegurança porque você desestabiliza, por exemplo, a gente diz que o ELF é uma função, e aí, que inglês eu vou ensinar? Mas, para mim, é um processo natural em que há de haver um estranhamento para que cada um na sua prática, a partir das suas crenças, a partir da própria demanda de grupos, de cada aluno, você possa trazer para a sala de aula essas discussões, que não têm volta, porque o nosso grande desafio está lançado, que é realmente transformar a sala de aula de inglês, e de todas as línguas, no mundo real. Não a gente se destacar do mundo e transformar a nossa sala nessa bolha, em que você fala de Cultura 1, de Língua 1, de língua-padrão, etc. Eu acho que ainda há um caminho longo a se percorrer.

Entrevistadora: O senhor tocou na questão de materiais didáticos, já disse que há alguma coisa produzida no Brasil, e eu iria perguntar se esse conceito de língua franca já está perpassando os materiais didáticos, e se o senhor pode nos dar alguns exemplos de materiais didáticos já disponíveis que incorporam isso.

Professor: Depois que a BNCC foi concluída e lançada em 2018, aparece lá o conceito de língua franca, só que eu tenho uma colega (Ana Paula Duboc), da USP, que faz uma leitura muito interessante. Ela fala de um conflito epistemológico, no sentido de que o conceito está lá mas o que foi colocado para seguir este construto não é inglês como língua franca, é inglês como língua estrangeira; os eixos, os materiais, as linhas propostas. Eu não conheço um material completo, um livro que seja baseado em inglês como língua franca. Nos próprios livros do PNLD há sempre a menção ao inglês como língua franca, em inglês como língua internacional, e buscam-se caminhos para que sejam sistematizadas pelo menos as linhas mestras. Trabalhar, então, com variação, exemplos de ingleses em outros espaços que não os espaços nativos, ou ditos nativos, mas eu diria que material didático que possa dizer que o inglês como língua franca perpassa por todo material eu nunca vi nem aqui, nem fora do Brasil. Agora há, por exemplo, adaptações bem interessantes, há materiais, ou, por exemplo, programas, até livros, como o que Nicos Sifakis e a professora Natasha Tsantila (2019SIFAKIS, Nicos; TSANTILA, Natasha. English as a Lingua Franca for EFL Contexts. Bristol: Multilingual Matters, 2019.) lançaram e nós editamos, que têm a busca de uma forma mais prática de alinhar o ELF dentro da sala de aula e, ao invés de você ter o ELF contra o ensino de língua estrangeira, mas trabalhando juntos e levando o professor a fazer essas adaptações. Então, eu acho que nós vamos caminhar para isso, mas eu, ainda, se você me perguntasse, tenho dúvida se pode surgir materiais totalmente baseados no construto do ELF. Eu acredito que teríamos provavelmente uma coisa mais híbrida; não é fácil você juntar o espaço da sala de aula, porque o ELF, de certa forma, desconstrói determinadas questões que nem sempre vão ser tão facilmente aceitáveis até pelos alunos. Mas há iniciativas que você pode, de alguma forma, trazer elementos e aspectos do ELF tranquilamente e muitos materiais fazem isso já, mas de uma forma disfarçada, dizendo: “é um material internacional, a gente trabalha com outras culturas, com insights e inputs de diversos ingleses etc”., mas quando você vai olhar nas entrelinhas, ainda há, no mundo editorial, uma predominância muito forte do EFL. Acredito que, depois que resolvermos, ou não totalmente resolver, mas que nós alinharmos uma coerência maior, principalmente no nível de currículo, aí você pode produzir materiais. Mas acho que nós ainda estamos um passo atrás, e isso é uma coisa bem brasileira, tanto que essa colega diz que nós precisamos pensar num ELF made in Brazil. E há um pensamento teórico de realmente trabalhar isso num nível curricular. Quando a gente resolver isso aqui eu acho que é possível produzir mais materiais, se não totalmente ELF, mas não aquela coisa meio disfarçada. O que tem acontecido, pelo menos o que eu vejo, é que são adaptações: materiais que os professores vêm adaptando, mas a partir de um material que já existe. Agora, na minha experiência com o PNLD, há temas que há muito nos livros ditos internacionais sequer chegavam. Há alguns bons materiais que já vêm trabalhando nessa visão. Também, por exemplo, falar mais de variação, trazer o texto literário de língua inglesa não-hegemônica de países pós-coloniais. Então, não chegou em mim ainda um livro todo baseado em construto ELF. Mas acho que deve estar a caminho em algum momento.

Entrevistadora: E quais são possíveis tópicos de pesquisa para quem deseja investigar o ensino crítico de línguas na atualidade?

Professor: São muitos, mas eu acho que a própria pedagogia de línguas é um tópico, para mim, super urgente para se trabalhar e, principalmente, saindo do inglês, porque os estudos no inglês estão mais avançados. Inclusive, porque tem sido produzida muita coisa fora dos centros hegemônicos que realmente tomam o inglês como língua franca, ou internacional, como quiser, mas há tópicos que eu diria serem extremamente interessantes, como a própria concepção de língua, os estudos de práticas translíngues estão na ponta cada vez mais. Eu acho que, por conta do momento que nós vivemos, em que você pode se tornar, ou ter acesso a um mundo multilingue sem sair de casa, práticas translíngues é um tópico muito interessante. Eu diria que materiais didáticos também, que possam desafiar esse construto atual que é extremamente autoritário, ainda com um viés muito imperialista, eu vejo muito interesse em pesquisadores, tanto novos, como os mais antigos, querendo avançar nessa coisa de material didático, formação de professor; eu acho que também aí é uma constante, até para que você tenha um professor que se sinta estimulado a sair daquela velha história de ser apenas mais um professor, que possa estimular sua prática, que se sinta de alguma forma, eu não gosto muito do termo, mas vou usar: empoderado a construir uma teoria a partir da sua própria prática. Eu acho que formação de professores, material didático, concepções de língua, práticas translíngues, e interculturalidade sempre, ou interculturalidade a partir de outras derivadas ou termos de transculturalidade etc. Porque são esses encontros o tempo inteiro, as pessoas estão experimentando encontros o tempo inteiro sem precisar sair de casa. Eu acho que essas pessoas são as que chegam na nossa sala de aula. Também os novos letramentos, não precisamos nem mais chamar de novos, toda essa semiotização do mundo, eu acho que são temáticas que precisam ser melhor investigadas e que possam confluir para, primeiro, se formar um professor de línguas crítico, interessado em ir muito além dessa coisa da sala de aula e, consequentemente, ele vai se apresentar para um aluno que, mesmo que não tenha essa consciência, ele será capaz de estimular todas essas questões no seu aluno. No fundo, o que me preocupa é que o bom professor de língua ainda é visto como aquele professor tradicional que sabe a língua, sabe gramática, sabe o aspecto linguístico e tem conhecimento da cultura daquele país. Toda essa tradição que ainda é muito forte que ainda é muito colocada nessa comoditização da língua. As pessoas querem aprender língua por língua, e a gente tem que educar essas pessoas a entender: o professor de língua é (ou deve), ser tão habilitado quanto o professor de qualquer disciplina, que as pessoas venham à sua aula, e aos poucos a língua se transforme em um fim, mais do que no meio. Então a partir daquela língua eu vou aprender ou adquirir algo para a vida, não apenas para trabalho, que eu chamo de forma utilitária. É lógico que, no início do percurso, você vai lidando com todas essas questões de forma mais palpável, mas é preciso formarmos e termos um professor que, de alguma forma, comece a sair dessa coisa da língua somente como um fim. E à medida que ela se torna meio, é o que Mignolo diz: a gente aprende língua para a vida, para enxergar o mundo, para nos colocarmos no mundo, para nos fazermos apresentados no mundo. Acho que também a Sociolinguística e uma boa parte dos seus achados sempre ficaram muito distantes da sala de aula de línguas; acho que pela Linguística Aplicada a gente tem um diálogo muito grande, questões voltadas para estudos culturais também. Eu acho que todos esses diálogos e pontos de contato devem ser estimulados para que venham confluir para uma educação realmente do professor. E isso tem acontecido em alguns programas, em alguns cursos, e que possam, de alguma forma, até romper com esse currículo. E aí eu diria também que teorias de currículo precisam ser revistas para responder a isso, precisamos de um maior diálogo com a Educação. Eu acho que a Educação e a Letras não dialogam como deveriam dialogar, pelo menos em alguns espaços. E termina com a gente fraturando essa formação. Eu acho que nunca vou visualizar um professor completo, porque não existe, mas um professor que preste atenção no que é ensinar e aprender uma nova língua. E se a gente pensar no que é língua? Então, todos esses conceitos mais contemporâneos precisam entrar via disciplinas na universidade, para que a universidade consiga sair dessa posição de vanguarda sem fazer papel de vanguarda. E eu digo universidade desde a graduação, e muitas dessas questões que devem ser discutidas desde a graduação ficam, ou limitadas a grupos de pesquisa, quando você tem professores que trabalham com isso, ou elas vão ser discutidas na pós-graduação de uma forma um pouco estanque. Você tem que trazer isso desde o início da formação; então todas essas questões devem estar presentes porque o mundo está aí demandando outras habilidades, outras competências, outros letramentos, e eu acho que esse professor que vai lidar com esse novo aluno que está aí, muito semiotizado, que se a gente bobear, está sabendo mais coisas, pelo menos a um certo nível, do que o próprio professor. Então aquele professor que sabe a língua bem é, na minha visão de pesquisador, um professor incompleto: ele precisa saber muito mais do que a língua que vai ensinar.

Entrevista concedida à profa. Rosane Silveira, no dia 3 de outubro de 2019, no prédio CCE-B da Universidade Federal de Santa Catarina.

References

  • SIFAKIS, Nicos; TSANTILA, Natasha. English as a Lingua Franca for EFL Contexts Bristol: Multilingual Matters, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2019
  • Aceito
    10 Dez 2019
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