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Orlandos: Intercâmbio Entre Virginia Woolf e Sally Potter

Orlandos: Interchange Between Virginia Woolf And Sally Potter

Resumo

Proponho, neste artigo, pensar os diálogos entre narrativa literária e fílmica a partir de uma perspectiva sintonizada com o pensamento feminista. Para isso, trago ao palco o intrigante livro de Virginia Woolf, Orlando: a biography (1928), seguido da (re)criação cinematográfica, OrlandoORLANDO. Direção: Sally Potter. Produção: Christopher Sheppard; Martine Kelly; Laurie Borg. Roteiro: Sally Potter e Virginia Woolf. Reino Unido: 1992, 93 min. (1992), dirigida e produzida pela autêntica Sally Potter, tendo em vista que ambas as autoras, em suas obras, demonstram certa preocupação e engajamento em questionar os papéis sociais que mulheres e homens desempenham culturalmente. O objetivo é refletir, portanto, sobre as convergências entre esses dois textos, em se tratando das problematizações referentes ao gênero identitário, construído de modo ambivalente, da protagonista.

Palavras-chave:
Feminismos; Gênero; Orlando; Virginia Woolf; Sally Potter

Abstract

I intend, in this essay, to think over the dialogue between literary and filmic narratives from a perspective that is in tune with feminist thought. For this, I'll bring into view Virginia Woolf's intriguing book, Orlando: a biography (1928), followed by its cinematographic re-creation, Orlando (1992), directed and produced by the authentic Sally Potter, keeping in mind that both authors, in their work, demonstrate certain concern and engagement in questioning the social roles played by women and men culturally. Therefore, the objective is to reflect on the convergences between these two texts, concerning the problematization related to the ambivalently built identitary gender of the protagonist.

Keywords:
Feminisms; Gender; Orlando; Virginia Woolf; Sally Potter

De Virginia à Sally: nos interstícios da autoria

Duas mulheres, duas temporalidades, duas produções artísticas diferentemente semelhantes: de um lado, Virginia Woolf (1882-1942); do outro, Sally Potter (1949-); ambas unidas por esta personagem emblemática chamada Orlando. Entre livro e filme, as camadas narrativas são tão inúmeras quanto os pontos de convergência possíveis e, embora se tratem de textualidades diferentes, a dimensão poética é, sem dúvida, o aspecto mais claramente em comum.

Publicado em 1928 pela Hogarth Press, editora de Woolf e seu esposo Leonard, Orlando: a biography narra a história da vida de Orlando: uma personagem que vive por quatrocentos anos e, em dado momento, transforma-se magicamente em mulher. A partir dessa informação, bastante superficial em comparação à riqueza da obra, já é possível entrever certo questionamento no modo como concebemos a História e o Sujeito. Se pensarmos, por exemplo, que a parte do título posterior aos dois pontos sugere, com algum humor, os limites ambíguos entre “biografia” e “romance”, perceberemos que essa provocação será estendida por toda a narrativa. Afinal, seria uma “biografia ficcionalizada” ou um “romance documental”? Virginia Woolf dedicou essa obra à poeta e amiga Vita Sackville-West, por quem também nutriu uma relação amorosa, de modo que até mesmo algumas das ilustrações do livro são fotografias suas, fato que reforça o tom parodístico da narrativa. Esse jogo entre vida e fantasia é uma constante que vai do abrir ao fechar das capas.

É possível que o interesse da escritora britânica por biografias tenha sido “herança” do seu pai, Leslie Stephen, que se tornou editor da Dictionary of National Biography no ano em que a pequena Virginia nasceu. Porém, diferente dele e do seu estilo biográfico tradicional, Woolf optou por atravessar as características fixas do gênero e reinventá-lo. No ensaio “The art of biography”, a escritora faz considerações sobre a biografia, tendo em vista as tensões com o gênero ficcional:

One is made with the help of friends, of facts; the other is created without any restrictions save those that the artist, for reasons that seem good to him [sic], chooses to obey. That is a distinction; and there is good reason to think that in the past biographers have found it not only a distinction but a very cruel distinction. (WOOLF, 2015_____. The art of biography. In: The death of the moth, and other essays. The University of Adelaide Library, 2015. Disponível em: <http://ebooks.adelaide.edu.au/w/woolf/virginia/w91d/index.html>
http://ebooks.adelaide.edu.au/w/woolf/vi...
)1 1 A data da primeira publicação desse ensaio é 1939, mas a versão consultada é de 2015, listada nas referências.

Enquanto a ficção se caracteriza pela falta de restrições, a biografia é, ou tenta ser, completamente amarrada aos fatos, mesmo que a escolha deles seja de caráter subjetivo. Talvez a crueldade dessa distinção, apontada por Woolf nessa citação, esteja relacionada ao caráter cristalizador da dicotomia entre factual e ficcional.

Ainda que tenha afirmado essa distinção no referido ensaio, em Orlando: a biography, por outro lado, Woolf põe em relevo as armadilhas de se diferenciar nitidamente ficção de realidade factual, motivando uma reflexão mais aprofundada sobre a literatura e sua pretensa especificidade e autonomia, que foi um dos pilares da estética modernista na qual se situou. Ao escolher esse título, a escritora então joga com o “ser ou não ser”; isto é, faz tremer as fronteiras entre um fato narrado por um/a biógrafo/a e outro narrado por uma voz ficcional. A tenuidade entre esses dois extremos é acentuada ainda mais com os acontecimentos decorrentes, de modo que se pode observar certa antecipação nessa obra de questões relativas à estética pós-modernista. A presença de ilustrações na obra também “play[s] overtly with gender, time, and identity by providing portraits of several different people to represent Orlando” (BATTERSHILL, 2012BATTERSHILL, Claire. “No one wants biography”: The Hogarth Press classifies Orlando. In: Interdisciplinary/Multidisciplinary Woolf: selected papers from the twenty-second annual international conference on Virginia Woolf. Canada: 7-10 jun. 2012., p. 245).

Embora a escrita woolfiana tenha herdado certo conservadorismo do contexto social e de produção no qual está inserida, é também notável sua dimensão crítica, na medida em que muitas das obras “show an intellectual commitment to political, social and feminist principles” (SHIHADASHIHADA, Isam. A feminist perspective of Virginia Woolf’s selected novels: Mrs. Dalloway and To the lighthouse. Disponível em: <http://www.alaqsa.edu.ps/ar/aqsa_magazine/files/44.pdf>.
http://www.alaqsa.edu.ps/ar/aqsa_magazin...
, p. 121), principalmente no que diz respeito às condições da lady, da mulher londrina.

Em Mrs. Dalloway (1925), um de seus romances mais famosos, por exemplo, é narrado apenas um dia na vida da personagem Clarissa Dalloway, desde sua saída à floricultura até a realização da festa promovida por ela ao final da narrativa. Ao andar pelas ruas de Londres, a protagonista recua constantemente ao passado para rememorar eventos importantes, de modo que o tempo narrativo condensa-se para abarcar o tempo da história, mais dilatado. Primeiramente no título, o romance dá indícios da posição que Clarissa ocupa em toda a narrativa, quando a presença do sobrenome do marido, Richard, sobrepõe-se ao seu. Esse apagamento simbólico do primeiro nome é metonimicamente estendido à ausência da personagem nas questões “sérias” do dia-a-dia, ou seja, à protagonista é negada a participação nos assuntos econômicos e políticos. Sob sua responsabilidade estão a casa e a filha. Woolf ficcionaliza a realidade da mulher de classe alta inglesa, reinscrevendo-a no contexto literário por meio de uma atmosfera letárgica que se fragmenta a cada instante. Embora o objetivo final da festa reafirme as amarras sociais às quais se submete a personagem, a inserção de outras camadas temporais faz emergir sobreposições identitárias de Clarissa que, não se fixando apenas como um “anjo do lar”,2 2 Referência ao poema de Coventry Patmore “The angel in the house”, publicado inicialmente em 1854, no qual o poeta idealiza sua esposa e estabelece, de modo geral, um perfil de mulher vitoriana “perfeita”. Descrevendo e criticando esse anjo como uma figura que se “destacou nas artes difíceis da vida familiar”, que era simpático, puro, entre outras funções, Woolf afirmou, em contrapartida, que “matar o anjo do lar era parte da ocupação de uma escritora”. Cf. Woolf (2014). é revelada como uma mulher que transgride as fronteiras do seu gênero ao interessar-se pela personagem Sally Seton. Como se pode observar, o compromisso, do qual fala Isam Shihada, é assim um dos pontos recorrentes da produção woolfiana, além de ser produto de suas próprias experiências numa sociedade patriarcal.

A preocupação política da autora, porém, está fortemente aliada à outra, estética, ponto que permite observar como Woolf combinou as tendências formais de vanguarda da época, como por exemplo a autoreflexividade, aos questionamentos sobre o indivíduo. Dessa forma, por ir além das questões “puramente” literárias do período modernista é que sua obra pode ser concebida à luz de perspectivas mais atuais, no sentido de serem possíveis leituras que abarcam o que se entende como pós-modernismo, momento compreendido por Hutcheon (1991HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo - História. Teoria. Ficção. Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.) como uma fase paradoxal de dependência e independência com o modernismo.

Segundo Pamela Caughie, “[...] postmodern and poststructuralist theories can change, and have changed, the way we read Woolf - that is, the kinds of questions that motivate our readings, the objectives that guide our analyses, and the contexts in which we place her works” (2007, p. 1). Essa necessidade de propor um outro olhar sobre a produção woolfiana é evidenciada também nas observações de Toril Moi, em “Who’s afraid of Virginia Woolf?”, capítulo inicial do livro Sexual/textual politics: feminist literary theory (1985),3 3 A edição consultada é de 2002, listada nas referências. um marco da crítica feminista dos anos 80, quando a autora reflete sobre a recepção negativa de algumas feministas e defende, por outro lado, um resgate positivo de Woolf, ao caminhar em direção a leituras alternativas que possibilitem uma análise detalhada de seus textos.

Se, por um lado, os críticos rejeitaram-na por causa de sua boemia frívola, como ressalta Moi, muitas teóricas anglo-americanas detiveram-se na observação de sua estética em relação à perspectiva feminista. Na esteira desse ponto de vista, a crítica mordaz que Elaine Showalter tece em A literature of their own: british women novelists from Bronte to Lessing (1977SHOWALTER, Elaine. A literature of their own: british women novelists from Bronte to Lessing. New Jersey: Princeton University Press, 1977.), título que faz analogia ao ensaio A room of one’s own, questiona, entre outras acepções, o “voo para androginia” como uma recusa em revelar sua própria experiência feminina. Essa “transcendência” da dicotomia de gênero construída pela técnica narrativa multifacetada de Woolf, que explora a paródia, os diversos pontos de vista e a repetição, por exemplo, disfarça, para Showalter (apud MOI, 2002MOI, Toril. Who’s afraid of Virginia Woolf? Feminist readings of Woolf. In: Sexual/textual politics: feminist literary theory. p. 1-18. Routledge, 2002.) a marca da subjetividade feminina. Em sua concepção, a ambiguidade que emerge com a androginia seria, portanto, produto de uma dissimulação estética que deveria ser rejeitada, sob o risco de negligenciar os “authentic feminist states of mind” (apud MOI, 2002, p. 3). Para que haja então um voo para a estética feminista, faz-se necessário o desvencilhamento do jogo narrativo; com isso, é definida a “feminist writing”, entendida como um “work that offers a powerful expression of personal experience in a social framework”(apud MOI, 2002, p. 4).

Em concordância com Showalter, Patrícia Stubb também tece críticas sobre Woolf. Sua reivindicação é que “there is no coherent attempt to create new models, new images of woman” (apud MOI, 2002MOI, Toril. Who’s afraid of Virginia Woolf? Feminist readings of Woolf. In: Sexual/textual politics: feminist literary theory. p. 1-18. Routledge, 2002., p. 5) na produção da escritora britânica. Segundo Moi, a postura humanista dessas feministas concebe o texto como a expressão do indivíduo único, tornando-se, portanto, autobiográfico (2002, p.8).

Na tentativa de resgatar Woolf desse contexto de acusação que lhe atribuiu um caráter pouco feminista, a postura teórica de Moi propõe, por outro lado, um redirecionamento de olhar que permite observar melhor a articulação da obra da autora britânica com as políticas feministas. Questionando reflexões como as de Showalter e Stubb, Moi argumenta que “if feminist critics cannot produce a positive political and literary assessment of Woolf’s writing, then the fault may lie with their own critical and theoretical perspectives rather than with Woolf’s texts” (MOI, 2002MOI, Toril. Who’s afraid of Virginia Woolf? Feminist readings of Woolf. In: Sexual/textual politics: feminist literary theory. p. 1-18. Routledge, 2002., p. 9). Na esteira de Jacques Derrida, a crítica ainda enfatiza o caráter desconstrutivista da escrita woolfiana, ressaltando também a importância de um exame detalhado das estratégias textuais. Afastando-se, portanto, do reducionismo empreendido por algumas teóricas, em que seria preciso desconsiderar os recursos narrativos em virtude de uma “melhor” percepção do aspecto feminista, seja em se tratando dos ensaios ou da produção literária, como já mencionado, o pensamento de Moi sugere a precariedade da separação dos posicionamentos literários, políticos e ideológicos de Woolf. Dito de outra forma, a escrita woolfiana é construída por meio da articulação desses eixos, de modo que se faz necessário um olhar múltiplo para sua obra.

Em seu enfático texto “Postmodern and poststructuralist approaches to Virginia Woolf” (2007), Pamela Caughie, seguindo um pensamento semelhante ao de Moi, também ressalta o desafio de reler a obra woolfiana a partir de novas perspectivas de análise. Longe de discutir, porém, obras modernistas apenas nos termos do pós-modernismo, Caughie propõe releituras através de práticas diferentes que permitam também uma mudança dos tipos de questões a serem levantadas, isto é, que permitam mudar “our ways of reading, not just our readings of Woolf” (CAUGHIE, 2007CAUGHIE, Pamela L.. Postmodern and poststructuralist approaches to Virginia Woolf. Palgrave Advanges in Virginia Woolf Studies, ed. Anna Snaith, 2007. Disponível em: <http://ecommons.luc.edu/english_facpubs/6/>
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, p. 26). Para ela, “what we find in Woolf’s writings, then, are not her ideas about art or patriarchy or gender expressed through her particular style, but the theoretical, political, and aesthetic implications of her changing textual practices” (p. 24).

Concebendo o texto, à luz do pós-estruturalismo, como “a ‘field of forces’ not an autonomous object” (p. 28), Caughie caminha para uma prática analítica performática. A autora cita, por exemplo, a análise sobre Flush (1933), discutida em seu livro Virginia Woolf and postmodernism, refletindo sobre a questão do valor estético, tão controverso em história da arte e literatura. A escolha dessa obra para discorrer sobre um tópico teoricamente problemático torna-se instigante, visto tratar-se de uma narrativa em que a protagonista é um cão. Considerada um best-seller de tom brincalhão, Flush é, de modo geral, absorvida como uma obra de menor valor se comparada a outras produções woolfianas, não sendo, portanto, levada a sério pela crítica. Caughie, no entanto, ao relê-la tendo em vista uma problematização do sistema de valor que estabelece o cânone, distinguindo a alta da baixa literatura, leva-nos a pensá-la como uma sátira que “exposes the illusion of purity, prestige, and consensus that shores up a canonical economy” (CAUGHIE, 2007CAUGHIE, Pamela L.. Postmodern and poststructuralist approaches to Virginia Woolf. Palgrave Advanges in Virginia Woolf Studies, ed. Anna Snaith, 2007. Disponível em: <http://ecommons.luc.edu/english_facpubs/6/>
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, p. 25). Ao conceder o espaço biográfico-ficcional a um cão e atribuir importância a seus sentimentos, Woolf implicitamente abala as fronteiras da “boa” e da “má” literatura.

Em direção similar à de Moi, Caughie_____. Virginia Woolf & Postmodernism: Literature in Quest & Question of Itself. University of Illinois, 1991. inicia seu livro Virginia Woolf and postmodernism distinguindo dois grandes momentos da recepção feminista da obra woolfiana. O primeiro, que perdurou até meados dos anos 70 e que trouxe nomes como o de Showalter, como já mencionado; e o segundo, por volta de 1985, momento em que emergiu uma mudança significativa na crítica. Ao denunciar o caráter reducionista de perspectivas críticas dicotômicas, nas quais as análises estão centradas em pares como masculino/feminino, estético/político, por exemplo, Caughie propõe traçar novos modos de lidar com as contradições e ambiguidades dos textos de Woolf. Segundo ela, “what is needed in Woolf criticism is a perspective that can free Woolf’s writings from the cage of modernism and the camps of feminism without denying these relations in her texts” (1991, p. 2). Torna-se necessário, então, falar-se em uma performance do uso da linguagem que permite revelar “how different narrative strategies generate different thematic significances”; isto é, a ficção woolfiana “forces us to consider how meanings are possible, how they are produced” (p. 12). Dessa forma, a relação entre Virginia Woolf e o pós-modernismo possibilita reler sua obra por meio de um novo aparato analítico que considera questionamentos antes deixados de lado, ou nem sequer vislumbrados. Nas palavras de Caughie:

I do not argue, then, that ‘postmodernism’ is the appropriate category for Virginia Woolf, only that her works are susceptible to analysis by means of this category and, further, that this category enables us to deal with certain contradictions in Woolf’s works and with the problems critics face when they try to resolve or choose among them. (1991, p. 21)

Em concordância com Moi e Caughie, compreendo a produção escrita de Woolf como um tecido sem fim, no qual todos os fios que o compõem estão em articulação dinâmica, de modo que tudo está interligado e qualquer olhar separatista que pretenda se impor estará reduzindo essa infinitude de significados a um número restrito de possibilidades. Esse recorte teórico-crítico na recepção de Woolf explicitado acima nos permite observar como, também no contexto de uma política feminista, existem leituras divergentes e restritivas que podem ser revistas se atentarmos para os meios de análise oferecidos por uma perspectiva pós-moderna.

É nesse contexto de revisão crítica que podemos situar a releitura fílmica de Sally Potter. Orlando (1992), assim como seu duplo anterior, condensa com maestria o político e o poético, desdobrando-se em imagens grandiosas que dialogam estreitamente com os questionamentos empreendidos pelos feminismos. Além de diretora, roteirista e coreógrafa, Potter também desenvolveu trabalhos de composição relacionados à música, tendo produzido, em parceria com David Motion, a trilha do filme. Essa versatilidade da artista é bastante notável com a repercussão de Orlando que, segundo Silvia Maria Guerra Anastácio, “ganhou mais de vinte e cinco prêmios internacionais” (2006ANASTÁCIO, Silvia Maria Guerra. A criação de Orlando e sua adaptação fílmica: feminismo e poder em Virginia Woolf e Sally Potter. Salvador: Edufba, 2006., p. 61). Foi com esse trabalho único, permeado por diversas outras linguagens, como a dança, o teatro e a música, que Potter pôde se projetar a um público mais amplo.

Dentre seus principais filmes, podemos listar, por ordem cronológica: The tango lesson (1996); The man who cried (2000); Yes (2004); Rage (2009) e, o mais recente, Ginger & Rosa (2012). Este último, ambientado na Londres sessentista, traz à tona a amizade entre as adolescentes que dão título ao filme e as relações que ambas mantém com suas mães e familiares, além da complexa trama envolvendo o pai de Ginger. Como é recorrente na filmografia da diretora britânica, o questionamento político, especificamente no que diz respeito às mulheres, é um dos pontos mais importantes de sua obra, assim como é também característica marcante da escrita woolfiana, como expus anteriormente.

É importante frisar, no entanto, que não se trata de uma mera adaptação do livro à tela, pois o filme não está preso totalmente à narrativa de origem. Aliás, não existe uma “origem”, no sentido de fonte de significados a serem transpostos literalmente para um outro código. Inquestionavelmente, o livro é o ponto que permite o desdobrar dessa outra linguagem, mas não exerce um poder sobre ela. Não há hierarquia. Ambas as narrativas dialogam entre si a partir de suas especificidades e é isso que nos permite falar em uma “recriação” de Potter sobre o livro de Woolf, como sugere Guerra Anastácio (2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006.).

Entre o papel e a tela: Orlando

O livro é narrado em terceira pessoa e dividido em seis capítulos enumerados; o filme, além dos diálogos entre as personagens, também possui uma narradora que abre e encerra a narrativa - curiosamente, trata-se da voz da aclamada atriz Tilda Swinton, também protagonista de Orlando - e está segmentado em sete partes intituladas: 1600 death; 1610 love; 1650 poetry; 1700 politics; 1750 society; 1850 sex e, por último, Birth.

Já nas primeiras linhas de Orlando: a biography, há indícios expressivos do papel que os trajes desempenham na construção ambígua da personagem quanto ao seu gênero identitário. Observemos: “He - for there could be no doubt of his sex, though the fashion of the time did something to disguise it - was in the act of slicing at the head of a Moor which swung from the rafters” (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 11). A colocação do pronome “ele” no início do romance, como afirmação inicial do gênero da personagem, e a posterior referência à função de disfarce empreendida pela moda do tempo, é um desdobramento significativo para todo o jogo narrativo em torno da construção oscilante de sua identidade e sugere que a dúvida será sempre iminente. Ainda nessa passagem, a ideia de uma masculinidade desse “ele” é posta em destaque a partir da ação4 4 Muitas passagens de Orlando: a biography, sobretudo as mais iniciais, seguem certo tom cavalheiresco, o que sugere uma relação mais profunda entre essa personagem e outra mais antiga na história literária, que remonta aos poemas épicos: “La chanson de Roland” (século XI), de autoria desconhecida; “Orlando innamorato (1476), de Matteo Maria Boiardo; e “Orlando furioso” (1516), de Ludovico Ariosto. Devido ao percurso analítico proposto neste estudo e ao recorte necessário para cumpri-lo, detenho-me nessa observação apenas como forma de sublinhar e situar melhor as possíveis relações intertextuais que a obra estudada estabelece com outras historicamente. de ataque ao mouro; de maneira que essa relação entre força e virilidade é geralmente atribuída de forma natural, na cultura, à maioria dos homens; Segundo Simone de BeauvoirBEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970., “ela é exigida quando o homem parte para a pesca, para a caça, e principalmente quando se prepara para a guerra [...]” (1970, p. 203). A descrição posterior à cena, no entanto, opera um abalo nas primeiras impressões que temos da personagem, observemos:

The red of the cheeks was covered with peach down; the down on the lips was only a little thicker than the down on the cheeks. The lips themselves were short and slightly drawn back over teeth of an exquisite and almond whiteness. Nothing disturbed the arrowy nose in its short, tense flight; the hair was dark, the ears small, and fitted closely to the head. But, alas, that these catalogues of youthful beauty cannot end without mentioning forehead and eyes. Alas, that people are seldom born devoid of all three; for directly we glance at Orlando standing by the window, we must admit that he had eyes like drenched violets, so large that the water seemed to have brimmed in them and widened them; and a brow like the swelling of a marble dome pressed between the two blank medallions which were his temples. Directly we glance at eyes and forehead, thus do we rhapsodize. (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 12-13).

Orlando surge, assim, de forma mais poética e lírica. O detalhamento descritivo do rosto da personagem, com excesso de metáforas, sugere uma imagem mais romantizada e, consequentemente, desloca o foco da ação viril inicial. A proporção e simetria dos traços, unidos à mistura de cores fortes, como o vermelho das bochechas, o branco dos dentes e o escuro dos cabelos, também são marcantes em revelar uma imagem quase sensualmente feminina de Orlando, que é gradativamente enfatizada pelo choro baixo da voz narradora em “But, alas”.

No filme, o primeiro momento em que vemos Orlando é tão forte quanto no livro e compreende uma espécie de preâmbulo às partes intituladas (ou capítulos), citadas anteriormente. A personagem surge na tela lendo ao redor de uma árvore, caminhando de um lado para o outro, até que a narradora pronuncia: “There can be no doubt about his sex. Despite the feminine appearance that every young man at the time aspires to. And there can be no doubt about his upbringing. Good food, education, a nanny, loneliness, and isolation” (POTTER, 1992). Orlando então se senta sob a grande árvore e a narradora prossegue: “And because this is England Orlando would therefore seem destined to have his portrait on the wall. And his name in the history books. But when he...”; Orlando interrompe a narração e, já com o rosto em close, diz olhando para a câmera: “that is I”, para depois deixá-la concluir: “... came into the world. He was looking for something else” (1’45’’).

Como podemos notar, as primeiras aparições de Orlando, no filme e na obra literária, convergem em apenas alguns pontos, mas ganham contornos específicos também. Se em uma a ambiguidade de gênero é fortalecida pelo contraste entre a ação que remete virilidade e as descrições mais líricas da personagem, em outra, vemos a personagem imersa completamente no contexto da leitura, e a exposição quase pictórica do rosto em close de Orlando, protagonizado por Swinton, é suficiente para dar conta da textura andrógina da imagem. Outra referência parecida diz respeito à personagem rainha Elizabeth I que é interpretada pelo ator Quentin Crisp (1908-1999).

Parece haver, na narrativa woolfiana, uma névoa pairando sobre as personagens que nos impede de poder vê-las por completo, de modo que, no filme, esse aspecto ganha corpo com a tonalidade mais escura e, por vezes leitosa, de certas cenas. Estamos autorizadas/os apenas a uma visão parcial de suas identidades, seja pelas descrições do vestuário, no caso do livro, ou pela inversão de papéis das atrizes e atores escolhidas/os por Potter, no que se refere ao filme.

Uma das cenas mais emblemáticas e bonitas em ambos os textos é a transformação de Orlando. Woolf tece toda a passagem com excesso de metáforas e lirismos, de maneira que tudo acontece de forma fantástica. Estão presentes as alegorias da Castidade, da Pureza e da Modéstia, além das trombetas que urgem exigindo uma suposta verdade. Observemos:

We are, therefore, now left entirely alone in the room with the sleeping Orlando and the trumpeters. The trumpeters, ranging themselves side by side in order, blow one terrific blast: -“THE TRUTH!”at which Orlando woke.He stretched himself. He rose. He stood upright in complete nakedness before us, and while the trumpets pealed Truth! Truth! Truth! we have no choice left but confess - he was a woman. (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 102)

O contraponto que essa cena produz em relação à identidade de gênero da personagem é significativo, pois relativiza a certeza incontestável instituída pelo pronome no trecho inicial do romance, como vimos anteriormente. Assim, se antes era um “ele” que a voz narradora nos apresentava como “autêntico”, agora, sob a etiqueta da “verdade”, é um “ela” que é posto à vista. É interessante notar o modo como Woolf conduz essa passagem no que diz respeito ao ritmo. A repetição pronominal produz uma reverberação que é quebrada com o choque entre o feminino e o masculino que habitam na curta sentença “he was a woman”.

Em Orlando de Potter, esse momento de transformação é (re)criado de forma esplêndida, no capítulo “1700 politics”. A personagem acorda e permanece estática por alguns segundos, com o olhar fixo, até se levantar e sair pelo canto esquerdo da tela, no mesmo instante em que tira a peruca dourada e deixa-a cair sobre cama, seguida pelo traje de dormir. Há um corte de cena e, logo depois, Orlando é mostrado quase de perfil enquanto joga água pelo rosto e cabelo. A câmera pára com o rosto da personagem em foco. Orlando gira levemente a cabeça e direciona seu olhar para um grande espelho. A imagem que vê(mos) é o reflexo do seu corpo completamente despido mostrado à meia luz. Ao virar-se, numa inclinação de pés teatralmente cadenciada, podemos perceber uma nítida referência à famosa pintura de Sandro Boticelli, O nascimento de Vênus (1484-1486). Toda a cena está imersa numa sonoridade onírica e ao final dela, a personagem, que ainda se olha no espelho, afirma: “Same person. No difference at all”. Olha para a câmera com um meio sorriso e conclui: “Just a different sex” (POTTER, 1992, 57’33”).

Voltando ao Orlando de Woolf, podemos notar certa semelhança entre as duas construções. Assim como no filme, somos interpeladas/os a olhar, juntamente com a personagem, no espelho, embora este seja de papel:

The sound of the trumpets died away and Orlando stood stark naked. No human being, since the world began, has ever looked more ravishing. His form combined in one the strength of a man and a woman's grace. As he stood there, the silver trumpets prolonged their note, as if reluctant to leave the lovely sight which their blast had called forth; and Chastity, Purity, and Modesty, inspired, no doubt, by Curiosity, peeped in at the door and threw a garment like a towel at the naked form which, unfortunately, fell short by several inches. Orlando looked himself up and down in a long looking-glass, without showing any signs of discomposure, and went, presumably, to his bath. (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p.102)

A ideia de não alteração da personagem mesmo após a transformação de gênero, seja no livro ou no filme, faz referência (in)direta à noção de androginia. Em seu ensaio crítico A room of one’s own, também publicado em 1928, Woolf, na tentativa de conceber como se dá a relação entre mulher e ficção, adentra questionamentos mais profundos sobre as tensões entre os gêneros feminino e masculino. A escritora defende que a mente andrógina “is naturally creative, incandescent and undivided” (WOOLF_____. A room of one’s own. The university of Adelaide Library, 2015. Disponível em: <https://ebooks.adelaide.edu.au/w/woolf/virginia/w91r/complete.html>
https://ebooks.adelaide.edu.au/w/woolf/v...
, p. 121) e cita nomes como o de William Shakespeare e outros escritores imortalizados pelo cânone como exemplos de mentes andróginas. Para ela:

It is fatal to be a man or woman pure and simple; one must be woman-manly or man-womanly. […] Some collaboration has to take place in the mind between the woman and the man before the art of creation can be accomplished. Some marriage of opposites has to be consummated. The whole of the mind must lie wide open if we are to get the sense that the writer is communicating his experience with perfect fullness. (WOOLF, p. 127)

A ideia de uma mente que conjugue uma parte feminina e outra masculina é a pista de que as oposições binárias produzidas como naturais e verdadeiras ainda gravitam na literatura, prova esta de que estão fortemente enraizadas pela cultura. A união de que se fala, no ensaio, entre esses opostos revela-se ainda sintomática da quimera do casamento como dever e põe também a completude da mente, sua perfeita plenitude, como finalidade a ser alcançada. Por outro lado, é necessário salientar o caráter revolucionário desse ensaio na época de sua publicação e a abertura que possibilitou para teorizações mais aprofundadas sobre o assunto e também sobre outras agendas da crítica feminista da cultura.5 5 É interessante ressaltar que as primeiras publicações de ambas as obras datam do mesmo ano e que há muitas leituras críticas sobre o entrecruzamento dos dois textos, no que se refere à discussão sobre androginia. Dentro dessa perspectiva cf. Sarah Hastings (2008), Rory Fleming (2010), Marte Rognstad (2012) e Alda Maria Correia (1987). Como lembra Wehr (1992WEHR, Demaris S. Androgyny. In: Feminism and psychoanalysis: a critical dictionay. WRIGHT, Elizabeth (ed.). USA: Blackwell, 1992.), a noção de um ser andrógino tem bases em sua raiz grega, na qual “andro” quer dizer homem e “gyn”, mulher; além de ter se tornado popular enquanto ideal, na década de 70, entre as feministas.

Embora muito criticada por algumas feministas, como por exemplo, Elaine Showalter que acusou a autora de trair o feminismo por seu “flight into androgyny” (apud MOI, 2002MOI, Toril. Who’s afraid of Virginia Woolf? Feminist readings of Woolf. In: Sexual/textual politics: feminist literary theory. p. 1-18. Routledge, 2002., p. 2), como mencionado anteriormente, Christy L. BurnsBURNS, Christy L.. Re-dressing feminist identities: tensions between essential and constructed selves in Virginia Woolf’s Orlando. In: Twentieth century literature. Vol 40, n. 3 (Autumn, 1994) 342-364. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/441560>.
http://www.jstor.org/stable/441560...
, por outro lado, assinala a importância de reconhecer que o estilo de Woolf consistentemente “weaves together contrary strands” (1994, p. 347), no sentido de valorizar suas ambivalências. Burns ainda afirma que os fios do feminino e do masculino da personagem Orlando combinam em vários caminhos (idem), o que leva a crer que a androginia não é explorada no romance sob um aspecto fechado e irrefutável. Para Pamela L. Caughie, a androginia em Orlando: a biography longe de ser uma resolução ou síntese de contrariedades, caracteriza-se como “a way to remain suspended between opposed beliefs [...]. Androgyny embodies this oscillation between positions. It figures a basic ambiguity, not only a sexual ambiguity but a textual one as well. Androgyny is a refusal to choose” (1989, p. 44). Assim, se por um lado, ao considerarmos o ensaio crítico de Woolf mencionado acima, pode ser sedutor conceber a identidade andrógina de Orlando como um ideal de mente superior, por outro, as reflexões de Burns e Caughie evidenciam a produtividade da androginia em possibilitar uma multiplicidade de caminhos de análise, pois não se trata de “an ideal type, but a contextual response” (CAUGHIE, 1989_____. “Virginia Woolf’s double discourse”. Discontented Discourses : Feminism/textual Intervention/psychoanalysis. Ed. Marleen S. Barr & Richard Feldstein. Urbana, IL: University of Illinois Press, 1989. 41-53. Disponível em: < https://pdfs.semanticscholar.org/e41f/1d63a3dbeff33231528846b1ee420b0dbd10.pdf>
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, p. 48).

A ideia de equilíbrio entre masculino e feminino em Orlando pode ser reforçada pela ausência de inquietação da personagem após a transformação: “without showing any signs of discomposure” (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 102); ou ainda, partindo do que Elise Swinford afirmou ser um “pseudo-gestational period” (2010SWINFORD, Elise. Transforming nature: Orlando as elegy. In: Virginia Woolf and the Natural World: selected papers from the twentieth annual international conference on Virginia Woolf, Georgetown, 2010. 196-201., p. 198), como citado anteriormente, a tranquilidade da protagonista diante de sua imagem frente ao espelho permite pensar no “nascimento” da nova subjetividade de Orlando. Em outras palavras, o período de profunda inércia que durou sete dias, anterior à metamorfose de gênero, metaforiza uma pequena morte de Orlando homem, para renascer mulher, embora a personagem continue sendo apenas: Orlando.

As correntes de muitas anáguas: vestuário feminino em questão

Após a transformação, Orlando foge com os ciganos e passa a experienciar um novo modo de vida que não lhe era familiar; uma nova cor é misturada a essa aquarela narrativa. Voltando a Londres, aparentemente já em meados do início do século XVIII, tem vários pensamentos sobre sua nova condição e, como se tomada por um tom filosófico, começa a refletir sobre “the penalties and the privileges” (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 113) de ser mulher. O contexto da sociedade da época começa a exigir da personagem outra postura e roupas diferentes, de modo que, nesse ponto da narrativa (capítulo IV), é possível observar com mais clareza o quão opressora pode ser a relação entre vestuário e gênero, sobretudo no que diz respeito às mulheres. Orlando passa então a se submeter aos compromissos sociais requeridos por esse contexto patriarcal que traz já as marcas do que mais tarde viria a ser conhecido como período vitoriano. A castidade torna-se assim simbolicamente uma peça de seu vestuário feminino: “chastity is their jewel, their centre piece” (Ibidem). Observemos o trecho abaixo:

These skirts are plaguey things to have about one's heels. Yet the stuff (flowered paduasoy) is the loveliest in the world. Never have I seen my own skin (here she laid her hand on her knee) look to such advantage as now. Could I, however, leap overboard and swim in clothes like these? No! Therefore, I should have to trust to the protection of a blue-jacket. Do I object to that? Now do I? (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 114)

Percebe-se a inquietação de Orlando com sua nova “condição”. A configuração das saias como “praga” introduz seu aborrecimento frente às diferenças dos trajes feminino e masculino, quando percebe a liberdade que antes lhe era concedida enquanto homem e a impossibilidade atual de nadar com vestidos e sem a ajuda de um marinheiro. Esse trecho sugere assim uma reflexão sobre a condição de submissão da mulher perante o homem, parodiando os mitos de inferioridade/superioridade, imanência/transcendência, objeto/sujeito, reverberados pelo senso comum. Pode-se depreender que “os estilos de roupa podem ser uma camisa de força, restringindo (literalmente) os movimentos e gestos do indivíduo [...]” (CRANE, 2013CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. Tradução Cristiana Coimbra. 2ª ed. São Paulo: Senac, 2013., p. 22), como sugere a passagem acima. Em outras palavras, as reflexões de Orlando caminham para um questionamento, que será mais fortemente marcado no capítulo V, sobre o vestuário feminino, na medida em que este limita e conforma os corpos das mulheres. A substituição das meias calças que contornavam bem as pernas da personagem, quando homem, pelos vestidos com saias volumosas que as ocultam pode sugerir os ‘perigos’ que eram atribuídos ao ‘sexo feminino’, isto é, a ocultação das pernas de Orlando mulher, sob pena de pôr em risco que algum homem caia em desejos, permite uma associação com o antigo mito da feitiçaria, relacionado com a perda da racionalidade masculina.

A personagem conclui então que é melhor estar vestida com pobreza e ignorância que são os “obscuros ornamentos” (dark garments) (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 119) do sexo feminino. As roupas femininas nesse contexto significam um meio de tornar o corpo “comportado”, de fazê-lo imóvel e submisso, literalmente preso como em correntes, desenhando o gênero feminino nas linhas da inutilidade. No capítulo V, ambientado claramente na época vitoriana, essa pressão dos vestidos sobre o corpo da mulher é reiterada com o surgimento da crinolina, como se pode perceber no trecho abaixo:

So she stood mournfully at the drawing-room window (Bartholomew had so christened the library) dragged down by the weight of the crinoline which she had submissively adopted. It was heavier and more drab than any dress she had yet worn. None had ever so impeded her movements. No longer could she stride through the garden with her dogs, or run lightly to the high mound and fling herself beneath the oak tree. Her skirts collected damp leaves and straw. The plumed hat tossed on the breeze. The thin shoes were quickly soaked and mud-caked. Her muscles had lost their pliancy. (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 178-179)

Embora não exercendo uma relação de adjetivação do tipo “crinolina pesada”, a referência explícita à impossibilidade de movimentos permite refletir sobre a variante de peso como uma categoria de interdição corporal que faz do vestuário “asa ou mortalha, sedução ou autoridade” (BARTHES, 2009BARTHES, Roland. Sistema da moda. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., p. 194). Além dela, pode-se perceber também, mas implicitamente, uma variante de comprimento (p. 203); novamente a qualificação da espécie não se dá por meio da adjetivação, mas sim pela sugestão conotada. Assim, a variação se concentra na passagem “agarravam folhas úmidas e palha”, por sugerir metaforicamente por meio do verbo “agarrar” (ou do original “collected”) um movimento de arrastamento e consequente desproporção entre o comprimento do corpo e do vestuário, este excedendo aquele. A combinação entre essas duas variantes sobre a espécie “crinolina”, embora no nível da materialidade escrita do vestuário, serve como desdobramento conotativo, pois possibilita refletir também sobre os sentidos produzidos a partir da destituição do caráter de utilidade do corpo da mulher. Sob o peso e o comprimento das saias, furtava-se das mulheres qualquer movimento e participação ativa em atividades que não se restringissem apenas ao contexto familiar.

Reportemo-nos à Europa do século XIX, na época vitoriana. A crinolina, parte da lingerie feminina nesse período, constituía-se num “conjunto de aros colocado sob a saia para dar-lhe mais volume” e “era um dos aspectos mais visíveis dos vestidos da moda durante o terceiro quarto do século” (CRANE, 2013CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. Tradução Cristiana Coimbra. 2ª ed. São Paulo: Senac, 2013., p. 110). Sobre a moda feminina desse período, Diana Crane afirma:

As roupas da moda para as mulheres do século XIX tinham elementos de controle social, pois exemplificavam a concepção dominante e bastante restritiva dos papéis femininos. O papel ideal da mulher de classe alta, que não devia trabalhar nem dentro nem fora de casa, refletia-se na natureza ornamental e nada prática do estilo das roupas da moda (p. 48).

Assim, caracterizando-se como mulher de classe alta, como se pode observar com o trecho do romance citado acima, Orlando arrastou-se em sua condição de mulher vitoriana, adotando com submissão os trajes pomposos e pesados desse período. Comparando-o a outras roupas que a protagonista usou “nenhum[a] lhe tinha entravado tanto os movimentos”, no que diz respeito à liberdade de seu corpo, o traje vitoriano configura-se como o menos flexível, fato que a referência à crinolina reforça. Sob o estigma de “sexo frágil”, na época vitoriana, a posição de inutilidade que foi atribuída às mulheres na sociedade se assemelhava à função de adorno que a mobília desempenhava no interior das casas.

No final do capítulo “1700 politics”, Potter ilustra bem o contexto opressivo sugerido na narrativa woolfiana, mas a partir de uma configuração diferente: a diretora recria a virada do século XVIII para o XIX, expressa na última linha do capítulo IV do livro, por meio de um embaralhamento de alguns dos aspectos dessas duas temporalidades. Então não é por acaso que Orlando seja mostrada em trajes que remetem, mesmo que antecipadamente, ao período de vigência da rainha Vitória. No filme, ao retornar a sua mansão em Londres, Orlando é mostrada numa cena em que são necessárias duas outras senhoras para ajustar seu vestido. A opressão desse vestuário é reforçada pelos solavancos do corpo da personagem, enquanto uma das ajudantes puxa por trás os cordões para apertar o corpete. Não há trilha musical durante a cena, tudo é feito quase silenciosamente. Os únicos sons presentes são do próprio ambiente: sinos; miados de algum/a gato/a; passos.

Em seguida, a personagem caminha pela casa com mobílias cobertas, e o intrigante dessa cena está na semelhança que o vestido tem com os tecidos e dimensões dos móveis. Os contrastes entre as texturas e tonalidades são quase imperceptíveis. A limitação dos movimentos é clara. Enquanto mulher, Orlando era ornamento.

Essa metáfora é reiterada ainda ao longo do capítulo seguinte “1750 society”. Orlando entra na sala em que uma reunião entre poetas está em curso, caminha em direção ao sofá e senta-se. Com vestido azul claro repleto de flores e babados, a personagem ocupa todo o espaço onde caberiam pelo menos mais duas pessoas e espera. Há, nessa cena, toda uma reverência a Mr. Pope; a protagonista é interpelada, com um gesto de mão de um dos poetas, a se juntar aos outros dois. Dá-se, nesse instante, uma conversa acerca das mulheres; transcrevo-a por completo:

Dr. Johnson: Well how pleasant it is I’d live to sip tea in the presence of a gracious lady.Mr. Swift: Do you Pestradus. As our good friend, Dr. Johnson, says ‘every man is or desires to be an idler’.Madam: Perhaps not every woman, Mr. Swift. (única mulher, além de Orlando)Mr. Swift: Women have no desires, only affectation.Mr. Pope: Indeed women are but children of a larger growth.Dr. Johnson: Ah, but I consider woman to be a beautiful romantic animal who should be adorned in furs and feathers, pearls and diamonds. Apart from my wife of course. Will insist upon attempting to learn Greek. It’s so very unbecoming I can hardly tolerate her company at the breakfast table. Why do they do it?Mr. Pope: Oh, every woman is adverse to contradiction and frankly most women have no characters at all.Dr. Johnson: Present company excepted of courseMr. Pope: Oh, the lady is aflame… and silent… perfect.Orlando: Gentlemen, I find it strange… You are poets, each one of you and speak of your muse in the feminine. And yet you appear to feel neither tenderness nor respect towards your wives nor towards females in general.Dr. Johnson: Madam, I have only the highest regard and purest respect for femalesOrlando: I find no evidence of that sentiment in your conversationPope: Conversation is a place where one plays with ideas, my dear lady. The one forges them quite alone.Quite so. Quite quite.Pope: The intellect is a solitary place. And therefore quite unsuitable a terrain for females who must discover their natures through the guidance of father or husband.Orlando: And if she has neither?Pope: Then, however charming she may be dear lady… she is lost. (POTTER, 1992, 1h4-1h6)

A disparidade é imediatamente perceptível: a quantidade de homens é o dobro da de mulheres. Eles observam Orlando e dirigem-se a ela com certo desdém. A cena sugere fortemente a hierarquia entre os gêneros, na medida em que as mulheres são equiparadas a animais e crianças, em contraste com os homens que são detentores do saber, intelecto sem o qual elas estariam perdidas, como sugere a personagem Pope. Reitera-se a associação essencializadora entre mulher/natureza e homem/razão. Potter constrói essa passagem em dissonância com a woolfiana, a começar pela condensação dos eventos: no livro, esse diálogo curto está disperso de forma diferente; é um momento que, segundo a narrativa, dura horas, ao passo que, no filme, tudo se passa em dois minutos. A diretora rearranja a cena fazendo pequenos deslocamentos, como é o caso da afirmação de Mr. Pope “women are but children of a larger growth”, que, na narrativa de Woolf, é sussurrada por Lord Chesterfield ao seu filho: “Lord Chesterfield whispered it to his son with strict injunctions to secrecy, “women are but children of a larger growth.... A man of sense only trifles with them, plays with them, humours and flatters them […]” (WOOLF, 2006WOOLF, Virginia. Orlando: a biography. Cidade: Harcourt, 2006., p. 156).

Essa incongruência não deve ser vista, no entanto, como um ponto negativo do filme, visto que se trata menos de uma adaptação em termos convencionais, do que uma (re)criação do percurso de Orlando. Potter mantém o tom crítico acerca da sociedade da época e essa é uma das características mais presentes na narrativa de Woolf. A transição dos séculos, no livro, nem sempre é bem marcada; pelo contrário, por vezes podemos percebê-la a partir de eventos muito sutis ou até mesmo não percebê-la de imediato. Potter, em seu experimento fílmico de Orlando, parece optar por deslocar temporalmente certos eventos e isso não é, necessariamente, um ponto negativo, já que o aspecto questionador permanece.

À medida que o tempo passa e chega-se no século XX, a protagonista vai se reinventando novamente. A quebra pode ser sentida com a mudança de postura e vestuário de Orlando, que aparece trajando uma jaqueta de couro no último capítulo do romance. Cabe a observação de que essa peça de roupa era usada geralmente por homens para designar rebeldia e resistência à cultura dominante (CRANE, 2013CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. Tradução Cristiana Coimbra. 2ª ed. São Paulo: Senac, 2013., p. 465), de maneira que Woolf, ao fazê-la parte do vestuário da personagem, dá um passo significativo à frente em seu contexto histórico específico. Em outras palavras, Orlando desafia o campo referencial de viés determinista acerca das expectativas de gênero.

Por ter se transformado em mulher (além de ter tido uma filha e não um filho), Orlando perde os direitos à casa que herda da rainha Elizabeth I, logo no começo do filme (e do romance) e não é por acaso que Potter intitula o último capítulo de sua película de “Birth”. Apesar de falida, vemos a personagem liberta; a ironia reside nessa inversão de perspectiva, pois é só a partir de sua idade madura (devemos lembrar dos quatrocentos anos) que Orlando parece nascer finalmente. O anjo que canta ao final do filme serve de alegoria para esse (re)nascimento e faz referência à morte do “anjo do lar”, ou melhor dizendo, a sua tão almejada libertação.

Referências

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  • BARTHES, Roland. Sistema da moda Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
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  • BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo Tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
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  • _____. “Virginia Woolf’s double discourse”. Discontented Discourses : Feminism/textual Intervention/psychoanalysis. Ed. Marleen S. Barr & Richard Feldstein. Urbana, IL: University of Illinois Press, 1989. 41-53. Disponível em: < https://pdfs.semanticscholar.org/e41f/1d63a3dbeff33231528846b1ee420b0dbd10.pdf>
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  • _____. Virginia Woolf & Postmodernism: Literature in Quest & Question of Itself University of Illinois, 1991.
  • CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas Tradução Cristiana Coimbra. 2ª ed. São Paulo: Senac, 2013.
  • HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo - História. Teoria. Ficção Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
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  • SHIHADA, Isam. A feminist perspective of Virginia Woolf’s selected novels: Mrs. Dalloway and To the lighthouse Disponível em: <http://www.alaqsa.edu.ps/ar/aqsa_magazine/files/44.pdf>.
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  • SHOWALTER, Elaine. A literature of their own: british women novelists from Bronte to Lessing New Jersey: Princeton University Press, 1977.
  • SWINFORD, Elise. Transforming nature: Orlando as elegy. In: Virginia Woolf and the Natural World: selected papers from the twentieth annual international conference on Virginia Woolf, Georgetown, 2010. 196-201.
  • WEHR, Demaris S. Androgyny. In: Feminism and psychoanalysis: a critical dictionay WRIGHT, Elizabeth (ed.). USA: Blackwell, 1992.
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    » https://ebooks.adelaide.edu.au/w/woolf/virginia/w91r/complete.html
  • 1
    A data da primeira publicação desse ensaio é 1939, mas a versão consultada é de 2015, listada nas referências.
  • 2
    Referência ao poema de Coventry Patmore “The angel in the house”, publicado inicialmente em 1854, no qual o poeta idealiza sua esposa e estabelece, de modo geral, um perfil de mulher vitoriana “perfeita”. Descrevendo e criticando esse anjo como uma figura que se “destacou nas artes difíceis da vida familiar”, que era simpático, puro, entre outras funções, Woolf afirmou, em contrapartida, que “matar o anjo do lar era parte da ocupação de uma escritora”. Cf. Woolf (2014).
  • 3
    A edição consultada é de 2002, listada nas referências.
  • 4
    Muitas passagens de Orlando: a biography, sobretudo as mais iniciais, seguem certo tom cavalheiresco, o que sugere uma relação mais profunda entre essa personagem e outra mais antiga na história literária, que remonta aos poemas épicos: “La chanson de Roland” (século XI), de autoria desconhecida; “Orlando innamorato (1476), de Matteo Maria Boiardo; e “Orlando furioso” (1516), de Ludovico Ariosto. Devido ao percurso analítico proposto neste estudo e ao recorte necessário para cumpri-lo, detenho-me nessa observação apenas como forma de sublinhar e situar melhor as possíveis relações intertextuais que a obra estudada estabelece com outras historicamente.
  • 5
    É interessante ressaltar que as primeiras publicações de ambas as obras datam do mesmo ano e que há muitas leituras críticas sobre o entrecruzamento dos dois textos, no que se refere à discussão sobre androginia. Dentro dessa perspectiva cf. Sarah Hastings (2008), Rory Fleming (2010), Marte Rognstad (2012) e Alda Maria Correia (1987).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2016
  • Aceito
    10 Out 2016
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