Acessibilidade / Reportar erro

A potência dos encontros entre as fissuras da rua: cuidado, afetos e redução de danos

The power of encounters among the pavement cracks: care, affect and harm reduction

La potencia de los encuentros entre las fisuras de la calle: cuidado, afectos y reducción de daños

Resumo

Este artigo apresenta as cartografias produzidas com a população de rua em Florianópolis, Brasil, e tem como objetivo dar visibilidade às estratégias de redução de danos (RD) como produção de cuidado nas ruas. As primeiras cenas partem dos debates em uma oficina de RD com a população de rua, quando se teve contato com a proposta da RD. Em seguida, as cenas cartografadas apresentam o encontro com Cigana e Alemão(c c Todos os nomes apresentados são codinomes utilizados para proteger a identidade dos participantes do estudo. ), um casal que se conheceu em cenas de uso de crack, e, a partir desse encontro, foram agenciados por afetos que os movimentaram a deixar o uso daquela substância. Essas cartografias demonstraram que a população de rua inventa outros jeitos de se encontrar, criando linhas de fuga como forma de reafirmar sua existência e utilizando estratégias de RD como produção de cuidado.

População em situação de rua; Redução de danos; Cartografia; Afeto

Abstract

This article presents maps created with the homeless population in Florianópolis, Brazil and aims to create greater visibility for harm reduction (HR) strategies as a form of care provision on the streets. The first scenes draw on discussions during a HR workshop with homeless people, when they had their first contact with the strategy. The mapped scenes are the result of an encounter with Cigana and Alemão, a couple who met each other in the midst of scenes of crack use and, thereafter, through the agency of affect, were motivated to stop using the substance. The maps demonstrate that homeless people invent other ways to find themselves, creating lines of flight as a way of reaffirming their existence and using HR strategies as a form of care provision.

The homeless population; Harm reduction; Cartography; Affect

Resumen

Este artículo presenta las cartografías producidas con la población sin hogar a en Florianópolis, Brasil, y su objetivo es dar visibilidad a las estrategias de reducción de daños (RD) como producción de cuidado en las calles. Las primeras escenas parten de los debates de un taller de RD con la población sin hogar, cuando se tuvo contacto con la propuesta de RD. Enseguida, las escenas cartografiadas presentan el encuentro con Gitana y Alemán, una pareja que se conoció en escenas de uso de crack y, a partir de ese encuentro, fueron agenciados por afectos que los llevaron a dejar el uso de esa substancia. Esas cartografías demostraron que la población sin hogar inventa otras formas de encontrarse, creando líneas de fuga como forma de reafirmar su existencia y utilizando estrategias de RD como producción de cuidado.

Población sin hogar; Reducción de daños; Cartografía; Afecto

Introdução

O uso de substâncias psicoativas (SPA) na contemporaneidade é marcado por dinâmicas complexas e mutáveis, principalmente pelo estabelecimento de um discurso hegemônico organizado em torno do “problema das drogas” – uma maneira simplista e homogeneizante de tratar sobre o uso de substâncias que alteram a consciência humana. De toda forma, as drogas persistem ao longo das diferentes sociedades e disputam espaço; e seus usos se mantêm ao longo do tempo, apesar de todo o aparato estatal-jurídico-moral e sua guerra permanente a elas. Assim, ao longo dos anos, algumas substâncias foram elevadas ao estatuto de problema social, devendo ser reprimidas, perseguidas e combatidas11. Espinheira G. Os tempos e os espaços das drogas. In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 11-26.,22. Fiore M. Uso de drogas: substâncias, sujeitos e eventos [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2013..

Tomamos o assunto drogas como um dispositivo (ou dispositivos). Explicamos: Foucault conceituou “dispositivo” como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”33. Foucault M, organizador. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. Sobre a história da sexualidade; p. 243-76. (p. 244). Há um emaranhado de ditos e não ditos que determina uma epistémè, ou seja, enunciados aceitáveis ou não sobre um assunto, sendo o dispositivo quem opera a separação e o controle de discursos e práticas33. Foucault M, organizador. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. Sobre a história da sexualidade; p. 243-76.. Ainda sobre o conceito de dispositivo, Deleuze avança no debate e o define como um conjunto de múltiplas linhas de distintas naturezas, as quais não só o compõem, mas também o atravessam por completo. Desse modo, o dispositivo é produzido pelas linhas de força que se cruzam e se transpõem, projetando-se sobre si mesmas ou escapando umas às outras, criando linhas de fuga44. Deleuze G, organizador. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega; 1996. O que é um dispositivo? p. 83-96..

Os dispositivos-drogas estão em constante produção nas sociedades e são linhas de visibilidades, enunciações e de subjetivações, mas também linhas de fissuras e de rupturas, que se misturam e promovem mutações ao longo do tempo44. Deleuze G, organizador. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega; 1996. O que é um dispositivo? p. 83-96.. Pode-se pensar que há uma difusão de dispositivos-drogas, tendo em vista que há diferentes formas de significar e abordar o uso de SPA, a depender do contexto em que ele ocorre. O uso de cocaína em um apartamento de luxo não é visto – e muito menos combatido – com o mesmo arsenal bélico que se combate o uso de crack na região da estação da Luz em São Paulo. As substâncias utilizadas não são as mesmas, os sujeitos que as utilizam não são os mesmos, os espaços nos quais o uso ocorre não são os mesmos. No entanto, há uma linha comum que conecta essas situações: o desejo por usar drogas.

Por assim dizer, as SPA (sejam elas consideradas lícitas ou ilícitas) se enquadram como uma questão humana, considerando que há um desejo a mobilizar o seu uso e, por esse motivo, precisam ser analisadas a partir das dimensões social e subjetiva inerentes à vida humana55. Nery Filho A. Introdução: por que os humanos usam drogas? In: Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2012. p. 11-20.. Entretanto, o uso de drogas é tratado pelo viés de uma certa moralidade, com a qual se justificam ações violentas contra uma parcela específica de usuários. O campo biomédico, tendo incorporado a noção de norma oriunda da fisiologia como eixo central de sua atuação, trata o uso de SPA como um desvio de uma norma, sendo esse desvio fortemente patologizado66. Canguilhem G. O normal e o patológico. 6a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009.. Essa concepção de norma não se restringe ao campo biológico, invadindo o campo social; passando a delimitar comportamentos e hábitos; e enquadrando os desvios como não conformidades, as quais são definidas pelo discurso dominante. A definição de uma normatividade social implica em compreender a sociedade como um todo homogêneo e, portanto, tudo aquilo que desorganiza esse enorme “organismo social” deve ser combatido77. Nery Filho A, Messeder ML. Exclusão ou desvio? Sofrimento ou prazer? In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 59-70..

Essa forma reducionista de pensar a organização social funciona como motor para a manutenção do discurso dominante, uma vez que negar a complexidade da sociedade significa um esforço em escamotear os recortes (de classe, raça e gênero, por exemplo) que atravessam a sociedade contemporânea. Esses planos de clivagem determinam o que se enquadra como um comportamento desviante na esfera pública e, no que tange ao uso de drogas, esses recortes marcam a marginalização como um processo socialmente construído. Pensar o uso de drogas entre a população de rua é abordar múltiplos processos de marginalização, iniciando-se pelo desvio de uma norma quando fazem dos espaços urbanos seus locais de vida, o que explicita uma ruptura radical com a normalidade da sociedade burguesa e, somando-se a isso, há também o uso de SPA nos diferentes espaços urbanos, que, de certa forma, configura um uso público. Tal publicização tem sido alvo de políticas repressivas, cuja forma militarizada se assume como “guerra”, constantemente utilizada como justificativa para um processo de higienização social – com políticas de Estado que tratam esses sujeitos como descartáveis urbanos77. Nery Filho A, Messeder ML. Exclusão ou desvio? Sofrimento ou prazer? In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 59-70.,88. Varanda W, Adorno RCF. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(1):56-69..

A assim chamada forma-guerra às drogas opera como uma das linhas de força do dispositivo drogas e, junto das forças midiáticas, fundamentalistas e moralistas, produzem o efeito contrário do que se propõe a realizar e acaba por expandir o mercado das drogas e o próprio consumo. Lancetti99. Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015. nomeou esse processo de contrafissura, ou seja, uma tentativa de resolver de forma rápida e simplificada uma questão complexa. A contrafissura atua com foco na droga, propondo a abstinência (na maioria das vezes, compulsória) como única solução possível para essa questão. Quando se refere à população de rua, o modo de operar contrafissurado funciona como álibi para a criação de territórios de estados de exceção, de extrema desumanização e violência. De modo completamente inverso, a redução de danos (RD) coloca os sujeitos no centro das ações, conformando práticas diametralmente opostas àquelas instituídas pela lógica dominante. Em conversa com Lancetti, Davi Abdo Benetti1010. Lancetti A. Clínica peripatética. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2016. se refere à RD como uma metodologia que opera na suavidade, uma vez que lança mão de tecnologias leves (relacionais). A RD se esforça em pautar a autonomia dos sujeitos em reconhecer os limites do uso abusivo e, conscientemente, encontrar as estratégias possíveis para reduzir os efeitos deletérios do consumo de SPA. Assim, a RD trabalha com um objetivo claro: ampliar a vida, tendo a tolerância como princípio norteador99. Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015.

10. Lancetti A. Clínica peripatética. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2016.
-1111. Andrade TM. Redução de danos: um novo paradigma? In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 87-95..

O artigo aqui apresentado tem como objetivo dar visibilidade às redes de cuidado produzidas entre a população de rua, tendo como eixo central os encontros nas ruas atravessados por afecções, encontros potencialmente cuidadores e que operam como ferramenta de RD no campo micropolítico.

Itinerários de uma viagem cartográfica

Como produto de uma dissertação de mestrado, este artigo tem seu ponto de partida em uma pergunta de pesquisa. A questão que mobilizou esse corpo-pesquisador se referia à produção de cuidado entre as pessoas que vivem nas ruas, um cuidado produzido na composição de relações intersubjetivas. Nessa busca, o pesquisador, de corpo aberto, deparou-se com uma multiplicidade de possibilidades para conceber o cuidado, sendo as relações de afeto como potencialmente redutoras de danos uma delas.

Para apreender tais possibilidades, exigiu-se um percurso metodológico que se propusesse sensível às questões que perpassam a vida nas ruas, rompendo com abordagens binárias que determinam uma relação sujeito-objeto. Viajar pela produção de subjetividades no campo social exigiu uma abordagem que permitisse acompanhar os fluxos e as forças que estão em jogo1212. Paulon SM, Romagnoli RC. Pesquisa-intervenção e cartografia: melindres e meandros metodológicos. Estud Pesqui Psicol. 2010; 10(1):85-102.. Tendo como base o conceito de rizoma de Deleuze e Guattari, a vida nas ruas pode ser entendida como uma produção rizomática de existências, uma composição que não se remete a uma unidade homogeneizante – são conexões criadas entre os sujeitos, agenciados por linhas e fluxos heterogêneos1313. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. Vol. 1.. Nesse sentido, utilizou-se o método cartográfico, uma vez que ele se propõe a acompanhar os processos que estão em curso, não tendo como objetivo representar um objeto. A cartografia parte de um movimento construtivista, no qual a viagem cartográfica se constrói no caminho, apostando na experimentação do real1414. Passos E, Kastrup V, Escóssia L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2015.,1515. Hur DU. Cartografia das intensidades: pesquisa e método em esquizoanálise. Praxis Educ. 2021; 17(46):275-92..

Os trâmites formais para que a pesquisa viajante pudesse acontecer foram todos executados. O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e aprovado com número de parecer 4.099.819. O trabalho de campo foi realizado na região central da cidade de Florianópolis, Brasil, e teve como principal fonte de dados as anotações realizadas em um diário de campo.

A opção pelo diário de campo se deu por compreendê-lo como um dispositivo que atua de forma circular entre os encontros, as anotações e a escrita acadêmica, uma processualidade que abre a possibilidade de revisitar o campo de pesquisa e falar de dentro dele. Para tanto, as anotações regulares continham desde informações objetivas – como nomes, datas e locais de encontro – até descrições das impressões e efeitos sentidos pelo pesquisador em cada encontro, incluindo-se tudo aquilo que escapa à materialidade, aos significantes linguísticos e à representação. Dessa forma, as anotações no diário incluíram os componentes de expressão que passam pelo plano das forças e dos afetos agenciados no percurso. Todo o processo de anotação se deu posteriormente aos encontros, evitando interferências dentro do campo e favorecendo a fluidez dos encontros1616. Kastrup V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2015. p. 32-51.

17. Medrado B, Spink MJ, Méllo RP. Diários como atuantes em nossas pesquisas: narrativas ficcionais implicadas. In: Spink MJP, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadores. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014. p. 273-92.
-1818. Pezzato LM, Botazzo C, L’Abbate S. O diário como dispositivo em pesquisa multicêntrica. Saude Soc. 2019; 28(3):296-308..

Primeira parada – A vida nas ruas: entre invisibilidades e hipervisibilidades

Em 12 de fevereiro de 2021, por volta das 16h30, cheguei ao centro de Florianópolis e me desloquei até a Passarela Nego Quirido. Esse espaço funciona há anos como ponto de apoio à população de rua da cidade, sendo que, até 2017, ali funcionava o Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro-Pop), um ponto da rede de assistência social do município. Porém, naquele ano, o Centro-Pop foi deslocado para outro espaço e a gestão da passarela, antes pública, passou a ser realizada por organizações da sociedade civil contratadas pela prefeitura da cidade, conformando o projeto chamado de Passarela da Cidadania. Na época, a mudança foi recebida com forte resistência da população de rua, que tinha o espaço do Centro-Pop como referência de acolhimento e vínculo.

Hoje, a Passarela da Cidadania segue como ponto estratégico para a população de rua, ainda que sob forte crítica, tendo em vista que o serviço sofre com mudanças, a depender da organização que faz a gestão do espaço. Entre debates em torno daquele espaço, ele continua prestando serviços à população de rua, disponibilizando, por exemplo, leitos para pernoite; três refeições diárias (café da manhã, almoço e jantar); local para a realização da higiene pessoal; locais de guarda de pertences e limpeza de roupas; atividades de convivência no espaço; e atendimento socioassistencial e psicológico.

Com a pandemia de Covid-19, houve um aumento significativo na procura por acolhimento naquele espaço, fato que mobilizou outros grupos e organizações que já atuavam com a população de rua e que passaram a realizar atividades na passarela. Entre as ações que ocuparam o local, está a oficina de RD1919. Raupp L, Schneider DR, Pereira GT. A redução de danos como metodologia de promoção de saúde às pessoas em situação de rua. Rev Debates Insubmissos. 2021; 4(14):115-38.. Na primeira ocasião em que pude acompanhar aquele espaço, a oficina foi guiada por um redutor de danos, que viveu nas ruas da cidade, sendo bastante conhecido por sua militância no Movimento da População de Rua, com forte atuação na produção de redes de apoio às pessoas em situação de rua. Durante a atividade, foi utilizado um projetor para apresentar um vídeo, que fazia parte de uma reportagem de programa de televisão abordando a temática da população de rua. O vídeo estimulou o debate entre os participantes da oficina acerca da invisibilização de suas próprias existências, no que diz respeito à implementação e execução de políticas públicas que visem à melhoria nas suas condições de vida.

A reportagem utilizada para disparar a discussão trouxe a questão da inclusão da população de rua no Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que segue sendo negligenciada e que continuará sem avanço na próxima edição, uma vez que a população de rua continua excluída desse estudo. O ponto central discutido pelos participantes esteve ligado a essa invisibilidade, que é fortemente produzida pelo Estado quando se trata de conhecer essa população, suas características e necessidades. O levantamento sobre a população de rua mais conhecido foi realizado entre os anos de 2007 e 20082020. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua aprendendo a contar: pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília: MDS; 2009. e, desde então, não houve nenhum movimento para que um novo estudo fosse realizado no Brasil, excetuando-se aqueles realizados localmente em alguns municípios. Como pensado naquela roda de conversa: “Se não estamos no censo, não existimos. Se não existimos, não tem política pública para nós”.

Em contrapartida, o Estado promove uma hipervisibilidade quando se trata de intervenções armadas e de cunho higienista. A população de rua de Florianópolis convive cotidianamente com ações cujo objetivo central é tirá-la de vista por meio de expulsões dos espaços urbanos. Há uma conhecida operação que acontece na cidade desde 2017, fortemente criticada entre a população de rua e outros movimentos sociais, dada as constantes ações de repressão e intimidação. Essa “força-tarefa”, que se propõe à “defesa, orientação e apoio” das pessoas em situação de rua, esteve em pauta durante uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Santa Catarinad d A audiência pública está disponível na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=mBCVCpubYro em junho de 2021, sendo anunciada como um “case de sucesso”. Na ocasião, foram apresentadas imagens de ações realizadas durante esses anos, fotografias dos espaços urbanos ocupados e, em um dado momento, a imagem de uma pessoa em situação de rua, seu nome e até mesmo um diagnóstico médico são publicizados. As referências à população de rua eram frequentemente vinculadas a questões de doenças, de segurança e ao uso de drogas. Entre os termos frequentemente utilizados no evento em questão, pode-se citar: “saúde pública”, “doenças infectocontagiosas”, “limpeza urbana”, “segurança pública”, “turismo”, “comércio”, “esmolas”, “drogas”, “crack”, etc. Ainda, utilizou-se a expressão “coitadismo”, cunhada por um dos apresentadores para se referir às pessoas que recebem algum tipo de apoio nas ruas (seja ele financeiro, de roupas ou alimentação), dando a entender que essas pessoas não precisariam, de fato, desse tipo de apoio. Enfatizou-se que essas pessoas não passam necessidades, já que não há fome em Florianópolis, e que, ao dar esmola, a população estaria colaborando com o financiamento do tráfico de drogas.

A ocasião demonstra a hipervisibilidade que é dada pelo Estado que, ao mesmo tempo em que não garante a presença dessa população naquele espaço, corrobora o tratamento da população de rua a partir de um discurso marcado por estigmatizações, com forte teor moralista e sensacionalista. As soluções para o “problema” da população de rua são apresentadas como simples e eficientes: cortes de água e energia para desestimular a estadia das pessoas nos locais; ações de mídia e comunicação (como as conhecidas placas de “Não sustente a miséria, não dê esmolas”, espalhadas pela cidade); as nomeadas “zonas de desconforto”, as quais impedem a estadia dessas pessoas nos ambientes urbanos (como a colocação de pedras em espaços comumente ocupados por pessoas em situação de rua); demolições de imóveis desocupados; e internações em clínicas de reabilitação ou comunidades terapêuticas. O “sucesso” dessas ações é referenciado a uma suposta redução no número de pessoas em situação de rua na cidade, apesar de isso não ser confirmado nem por dados, nem pela realidade das ruas.

Entre a invisibilidade, que dificulta o acesso às condições materiais de vida, e a hipervisibilidade, que produz ações discriminatórias e de violações, a população de rua inventa outros modos de se encontrar, criando conexões e redes de apoio que possibilitam a manutenção de suas existências, tão fortemente marginalizadas pelo senso comum e pelo discurso dominante inscrito no Estado. Durante a primeira oficina de RD, o debate demonstrou que, nesse contexto de múltiplas vulnerações, reduzir danos na rua se liga à ideia de manutenção e ampliação da vida, como elucidado por um dos sujeitos envolvidos na oficina:

Uma reflexão feita por um dos participantes marcou o debate: A RD não é só sobre drogas, ela é sobre o direito de viver, porque viver nas ruas é reduzir danos o tempo todo. (Diário de campo, 12 de fevereiro de 2021)

De fato, a RD aponta como uma postura diante dos riscos objetivos e subjetivos que a vida nas ruas impõe. No entanto, a RD não trata unicamente de uma proposta redutiva, uma vez que reduzir danos resulta em, paradoxalmente, ampliar as estratégias de vida. Isso porque, ao reduzirem-se danos, ampliam-se as possibilidades de as pessoas seguirem compondo suas existências, em um processo autopoiético de ampliação e afirmação da vida1010. Lancetti A. Clínica peripatética. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2016..

Segunda parada – Sobre o direito ao prazer e do prazer a ter direitos

Sua existência se torna conturbada por um fazer.

O que mostra incomoda, seu gozo incomoda.

Como suportar alguém cujo gozo tão claramente se mostra?2121. Cohin J. Se faz de que? In: Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2012. p. 429-32. (p. 429)

A contemporaneidade, dominada pela lógica do capital, impõe uma armadilha ao sujeito: ofertam-se inúmeros objetos de gozo para que o sujeito satisfaça seu desejo; objetos esses que estão em disputa com o Outro. No entanto, não há satisfação completa da pulsão, exigindo-se constantemente uma nova busca pelo gozo prometido. Assim, o gozo se transforma em uma exigência, um imperativo de gozo que submete o sujeito a uma busca constante por objetos de mais-gozar. Por outro lado, o gozo ligado ao uso de SPA evidencia uma outra dinâmica, na qual há uma pretensa unidade entre sujeito e droga, uma anulação do Outro na busca pela satisfação do gozo. Pode-se dizer que, no uso abusivo, as SPA se configuram como objetos de mais-de-gozar absolutos, inserindo o sujeito em um gozo transgressivo que prescinde o Outro2222. Tavares LA. Toxicomania: um imperativo de gozo. In: Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2012. p. 151-64..

O sujeito, ao fazer o uso abusivo de alguma substância, acaba por se descolar do imperativo do gozo: há uma renúncia a seguir na busca pelos objetos de mais-gozar, determinando um certo afastamento da realidade, de um real conturbado e ameaçador, criando-se, assim, um refúgio2323. Ávila MT. A perspectiva da psicanálise no futuro das toxicomanias In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 213-20.. No entanto, as SPA não precisam ser tomadas como objeto de mais-de-gozar absoluto, e a RD opera exatamente no sentido de desfazer a aparente unidade sujeito-droga, colocando-o de volta na dinâmica objetal em busca de outras formas de gozo. Dessa forma, em outra ida ao campo, retornei à oficina de RD e, na ocasião, a questão da necessidade de satisfação dos prazeres foi central na discussão:

A oficina continua com um questionamento: o que nos dá prazer? Reduzir danos passa por encontrar outras formas de prazer, para que o uso de substâncias passe a ser mais uma fonte de prazer, e não a única. O condutor da oficina propõe uma dinâmica simples: pensarmos naquilo que nos dá prazer e escrever em um pedaço de papel. Os papéis foram reunidos e lidos para todo os envolvidos naquele espaço. O prazer foi entendido a partir de diferentes perspectivas, envolvendo relações interpessoais e até mesmo a realização de atividades básicas e essenciais da vida cotidiana. O prazer estava ligado ao uso de substâncias, como álcool e maconha, mas também estava vinculado ao sexo, a uma boa conversa e ao relacionamento afetivo. Além disso, o prazer se referia a direitos básicos, como comer, dormir e tomar um banho, possibilidades muitas vezes negadas, interrompidas, retiradas dessas pessoas. Enquanto são retirados os direitos que promovem prazeres cotidianos a esses sujeitos, exige-se que não usem drogas, quando muitas vezes é a fonte de prazer mais fácil e acessível. (Diário de campo, 12 de fevereiro de 2021)

Evidencia-se a importância de rituais comuns do cotidiano como formas de prazer, sendo que estes nem sempre são de fácil acesso à população de rua. As restrições de sono e de alimentação são frequentes nesse contexto, somando-se à impossibilidade de acessar espaços para a realização de suas necessidades fisiológicas básicas e da higiene pessoal. Durante o período em campo, foi possível sentir no corpo-pesquisador a dificuldade de encontrar um banheiro público no centro da cidade. O banheiro da praça Fernando Machado, localizada nas proximidades da Praça XV, por exemplo, é fiscalizado por um guarda e custa R$2,00. Usar um banheiro, tomar um banho, comer, dormir: situações do nosso cotidiano que passam despercebidas em nossas rotinas, mas que são fontes de prazer e funcionam como práticas potencialmente redutoras de danos no contexto das ruas. Contrariamente, a dinâmica dominante, em seu modo de operar contrafissurado, costuma dificultar que esses sujeitos acessem direitos básicos para manutenção de suas vidas, fato que fica escancarado quando líderes de ações higienistas se orgulham de cortar pontos de acesso à água e luz, ou desestimulam ações de solidariedade que podem garantir a manutenção da vida de muitos. Enquanto o Estado não garante políticas públicas, a população de rua encontra obstáculos para gozar dos seus direitos, ao passo que tem seu direito ao prazer menosprezado.

O uso abusivo encontra na droga o único objeto de desejo, quando o corpo é preenchido pela SPA em um gozo absoluto, sendo a falta da droga que a transforma em objeto insubstituível – é a falta desse objeto que o torna insubstituível, fato que impele o sujeito a uma busca incessante por ela2424. Ferreira OS. Reflexões sobre a pulsão na toxicomania à luz de dois textos metapsicológicos de Freud. In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 103-9.. A RD segue na contramão da dinâmica hegemônica, escapa da rigidez e exige o que Lancetti chama de plasticidade psíquica99. Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015.: uma postura de abertura às possibilidades, considerando as singularidades de cada sujeito, tendo como base as implicações do próprio sujeito no processo de compreensão do lugar que o uso de SPA ocupa em sua vida. Dessa forma, a RD não promove uma cisão entre aqueles que usam ou não alguma substância, mas busca amparar os sujeitos nas suas escolhas, para que sejam promotoras de mais vida, em um caminhar pautado na autonomia de efetuar as melhores decisões possíveis em um dado momento de vida2525. Niel M, Silveira DX, organizadores. Drogas e redução de danos: uma cartilha para profissionais de saúde. São Paulo: PROAD, Unifesp, Ministério da Saúde; 2008..

Acompanhar a oficina de RD possibilitou o contato com essa maneira completamente inversa de tratar o uso de SPA, já que naquele espaço não havia separação entre usuários ou não usuários, uma vez que a RD aposta na multiplicidade de possibilidades que existem entre o uso de drogas e a abstinência. Uma série de reflexões foram desencadeadas a partir dos agenciamentos desse encontro, elaboradas no diário de pesquisa:

Em uma segunda oficina que acompanhei, a pergunta de um dos participantes disparou o debate: “Vocês usam drogas? Vocês são uns drogados que vêm aqui falar pra gente sobre como usar drogas?”. Pensei comigo: “De certa forma, todos ali usam ou já usaram alguma substância lícita ou ilícita”. A potência da RD está exatamente em não criar o limite entre quem usa ou não (alguém não usa?). O que é droga? Qual relação mantemos com nossas substâncias de escolha? A oficina possibilita que aqueles sujeitos possam ver outras possibilidades de lidar com o uso de suas substâncias. Entre o uso e a abstinência existe um mundo de alternativas, e outras tantas a serem inventadas. Pensar a RD é traçar o caminho na transversal, criar linhas de fuga. Transversalizar a organização social, problematizar o modelo que criminaliza alguns usuários pelas suas escolhas, enquanto naturaliza outros tantos usos. (Diário de campo, 12 de março de 2021)

Assim, a roda de conversa tornou visíveis as maneiras de se encontrar nas ruas ao oferecer um espaço de compartilhamento de estratégias de RD e produtor de vida, uma vez que se apresenta como efetivo cuidado. O cuidado é aqui entendido como ampliação daquelas existências, como aumento das suas potências de agir no sentido de manter seus modos de ser. Um cuidado enquanto produção do comum, no sentido que Teixeira2626. Teixeira RR. As dimensões da produção do comum e a saúde. Saude Soc. 2015; 24 Supl 1:27-43. apresenta: a arte da composição em um processo de invenção de si e do mundo, de produção de conexões que aumentam a potência de vida.

Terceira parada – A dinâmica dos afetos como redução de danos

A oficina de RD apontou a importância das relações afetivas como fontes de prazer, demonstrando a potencialidade dos encontros intersubjetivos e das conexões existenciais como estratégias que podem atuar como redutoras de danos, fato que foi percebido ao cartografar o processo de partilha dos percursos de Cigana e Alemão nas ruas, suas histórias e experiências atravessadas por afecções que ampliaram suas potências de agir.

O primeiro encontro com o casal se deu na tarde de 30 de abril de 2021, quando passava pela região da Catedral Metropolitana, na Praça XV de Novembro. O entorno de uma guarita da Polícia Militar é um espaço de estadia de um grande grupo de pessoas em situação de rua, um espaço em movimento com mesas e bancos de concreto. Nessa ocasião, um homem me abordou pedindo cigarro e logo convidou para me sentar junto deles. Ao longo da conversa do grupo, os participantes foram relatando que costumam ficar naquele espaço por encontrarem abrigo do sol e da chuva e pelo fato de que frequentemente acontece distribuição de marmitas na praça. Além disso, aquele também era um espaço de encontro e diversão, como afirmado por um dos homens envolvido na conversa:

O pessoal está sempre aqui jogando e se divertindo. Tem ‘nois’ da rua, mas vem um pessoal conhecido nosso que mora aqui pelos prédios do centro, uns são nossos padrinhose e Padrinhos são aqueles que costumam ajudar pessoas em situação de rua com alimentação, roupas, cobertores, etc. que gostam de jogar um baralho aqui com a gente. (Carioca)

Durante a conversa, um casal se aproximou do grupo. Eram Cigana e Alemão, conhecidos por todos ali. Cigana logo inicia um movimento para adquirir uma garrafa de cachaça Camelinho, organizando uma colaboração coletiva com os demais. Quando volta com uma garrafa, senta-se ao meu lado e fala orgulhosa:

“Eu já fui muito louca, usei muito pó e crack. Agora eu só bebo. O Alemão também, não usamos mais crack há muito tempo, desde que estamos juntos não usamos mais”. Alemão confirma acenando com a cabeça. Ele carregava duas mochilas, a sua e de Cigana. Quando pergunto se eles costumam dormir ali, Cigana responde que sim: “Eu vou lá na Passarela por causa do banho, mas dormir lá não rola. Os dormitórios são separados, e eu gosto de dormir com meu amor, né?”. Alemão concorda, diz que prefere dormir na rua com ela. (Diário de campo, 30 de abril de 2021)

Cigana e Alemão se conheceram há cerca de dez anos em cenas de uso de crack de Florianópolis, ambos eram de fora da cidade – ela gaúcha e ele catarinense, e tiveram seus primeiros encontros no momento em que Cigana estava em um relacionamento no qual sofria violência. Entre os episódios de uso, criaram uma forte conexão, que foi construindo uma relação afetiva, a partir da qual Cigana conseguiu interromper aquele relacionamento violento, o que os levou a ficar um tempo no trechof f O trecho se refere ao deslocamento entre uma cidade e outra, sem permanência prolongada. . A relação do casal aguça o questionamento feito por Spinoza2727. Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009. acerca do que pode um corpo – corpos que se encontram no mundo, corpos eufóricos pelo crack que passam a compor e compartilhar suas trajetórias na rua. Que poder é esse que os corpos têm de se encontrar e entrar em composição? A economia dos afetos teorizada por Spinoza apresenta o corpo em sua potência de afetar e ser afetado2727. Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009..

No andar da vida, os corpos estão ora em movimento, ora em repouso, sendo que o que determina essas condições são os encontros com outros corpos, que produzem afecções responsáveis pelo movimento ou pelo repouso. Dessa forma, Spinoza se opunha ao pensamento filosófico de primazia da mente sobre o corpo, uma vez que, para esse filósofo, mente e corpo eram uma só coisa que atua de forma simultânea, determinando uma singularidade, entendida como pensamento e extensão. Os corpos que se encontram produzem afecções, enquanto a mente produz ideias de afecções (os afetos), que podem influenciar positiva ou negativamente a potência de vida dos sujeitos2727. Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009..

Nessa economia dos afetos, Spinoza explica que existem três afetos primários: a alegria, a tristeza e o desejo. A alegria é um afeto que faz uma existência passar de uma perfeição menor para uma maior, ao passo que a tristeza produz o contrário. O desejo são os impulsos, tudo aquilo que mobiliza um modo de ser a caminhar sua vida. A partir desses três afetos primários se produzem outros afetos vinculados à mesma perspectiva de aumentar ou diminuir a potência de agir, como o amor e o ódio. O amor é compreendido como sendo o afeto alegria, cuja causa é exterior, enquanto o ódio é a tristeza produzida por uma extensão2727. Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009..

Aquele grupo havia construído uma “maloca”g g Espaço ocupado pelo grupo para produzir sua vida. É comum encontrar papelões, colchões, cobertores, mochilas e outros pertences de pessoas em situações de rua em tais lugares. coletiva na guarita da polícia e era ali que deixavam seus pertences, jogavam, bebiam e dormiam. Para Cigana e Alemão, esse espaço era um ponto de convivência durante o dia, mas, à noite, costumam procurar uma maloca mais “mocozada”h h Um lugar mais “mocozado” é um local mais escondido e que marca uma tentativa de encontrar espaços com maior privacidade. para os dois. Aquele território tem sua definição geográfica e existencial, apesar das mudanças percebidas entre uma ida e outra até lá. Novas pessoas chegavam, outras saíam. A chuva praticamente esvaziava aquele território, que logo se compunha novamente quando a calçada secava. A dinâmica de compartilhamento e solidariedade se mantinha, há naquele território uma economia dos afetos produtora de cuidado enquanto encontro com a alteridade, um cuidado tomado a partir de uma atitude de desvelo e preocupação com a existência do outro. Desse modo, tem-se a produção de modos de ser no mundo que escapam à sociabilidade individualista dominante na lógica do capital, inventando, assim, outras maneiras de se encontrar e produzir mais vida em meio à precariedade material2828. Boff L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 20a ed. Petrópolis: Vozes; 2014.. No circuito dos afetos criado naquele território existencial, predominam-se afetos que aumentam a potência de vida daquelas pessoas, singularidades que se conectam e compõem suas vidas de jeitos outros:

Encontro Alemão e Cigana quando estou descendo a praça em direção ao terminal velho. Alemão me reconhece e em seguida chama Cigana, que me recebe com um forte abraço. Eles estão indo para a mesma guarita onde nos conhecemos. Subo a praça junto com eles. Alemão segue carregando sua mochila e a de Cigana, ofereci para levar uma delas e ele respondeu que não precisava: “Ela sofreu muito já, quero tentar fazer a vida dela mais tranquila, cuidar dela. Gosto muito da Cigana, a gente se conheceu por causa da pedra e a gente largou a pedra por causa da gente. Louco, né?”.

Chegamos à região da guarita e lá está um grupo grande reunido. Logo que me sento em uma das mesas escuto um homem falando para o outro: “Outro dia você me apoiou no “gole”i i O gole se refere à bebida alcoólica. , hoje eu te dou um cigarro. Assim a gente vai indo, ninguém fica sozinho”. Aquelas pessoas compartilham o espaço da calçada, as marmitas, as garrafas de Camelinho, os cigarros, os frutos dos “mangueios”j j O mangueio é uma das estratégias para conseguir dinheiro nas ruas. . Compartilham suas vidas, suas existências, seus modos de ser. (Diário de campo, 10 de maio de 2021)

Ao acompanhar aquele território, notou-se que as conexões realizadas mobilizam aqueles sujeitos a seguir compondo novos territórios e produzindo redes de cuidado ampliadoras de vida. Os corpos de Cigana e Alemão, ao se encontrarem, foram agenciados pelas afecções que mudaram o circuito dos afetos responsável por colocá-los na dinâmica de uso abusivo do crack. Outros afetos mais potentes passaram a presidir suas vidas, afetos que operaram a redução dos danos causados pelo uso recorrente dessa substância. Como abordado por Kinoshita2929. Kinoshita RT. O circuito dos afetos na drogadição: uma explicação alternativa para a servidão às drogas. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200787. doi: 10.1590/interface.200787., a reconfiguração do círculo dos afetos é capaz de refrear, reduzir ou até mesmo cessar os afetos que movem os corpos em direção ao uso abusivo de uma SPA. Cigana e Alemão, ao serem agenciados um pelo outro, puderam restabelecer esse circuito, produzir novos afetos que aumentaram sua potência de agir e, com autonomia de escolha, caminharam para a abstinência do crack possível naquele momento.

Apontamentos finais

A partida para essa viagem cartográfica se deu sem bagagem alguma, apenas com o corpo pesquisador e seu diário de campo, sem pontos de referência, em um mapa com múltiplas entradas. Por outro lado, na chegada, carrego uma mala abarrotada e, ao abri-la, vou deixando sair as experiências, encontros, aprendizados, afetos e contradições apresentadas no decorrer deste artigo.

As cenas cartografadas demonstraram que, em meio às forças dominantes que tentam expulsá-la dos espaços urbanos, a população de rua inventa estratégias coletivas de produção de vida. Essas pessoas fabricam suas maneiras de reafirmação de suas existências; e criam conexões e laços de solidariedade. A política de guerra às drogas se inscreve no modo contrafissurado de abordar o uso de SPA, principalmente quando se refere à população de rua. A lógica da higiene social, da violência e da abstinência forçada hegemonizam o modo de operar contrafissurado, responsável por anular as singularidades existenciais de uma população heterogênea, passando a funcionar como álibi para ações estigmatizantes e violentas contra as pessoas que vivem nas ruas.

Por outro lado, a rua inventa outros modos de lidar com as drogas, fabricando estratégias de RD que ampliam essas vidas “rueiras”. Cigana e Alemão ilustram a forma que as relações de afeto são potencialmente redutoras de danos e efetivas relações de cuidado. Dessa forma, a população de rua segue traçando linhas de fuga, instituindo outros jeitos de se encontrar a partir de sua heterogeneidade existencial.

Referências

  • 1
    Espinheira G. Os tempos e os espaços das drogas. In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 11-26.
  • 2
    Fiore M. Uso de drogas: substâncias, sujeitos e eventos [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2013.
  • 3
    Foucault M, organizador. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979. Sobre a história da sexualidade; p. 243-76.
  • 4
    Deleuze G, organizador. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega; 1996. O que é um dispositivo? p. 83-96.
  • 5
    Nery Filho A. Introdução: por que os humanos usam drogas? In: Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2012. p. 11-20.
  • 6
    Canguilhem G. O normal e o patológico. 6a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009.
  • 7
    Nery Filho A, Messeder ML. Exclusão ou desvio? Sofrimento ou prazer? In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 59-70.
  • 8
    Varanda W, Adorno RCF. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(1):56-69.
  • 9
    Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015.
  • 10
    Lancetti A. Clínica peripatética. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2016.
  • 11
    Andrade TM. Redução de danos: um novo paradigma? In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 87-95.
  • 12
    Paulon SM, Romagnoli RC. Pesquisa-intervenção e cartografia: melindres e meandros metodológicos. Estud Pesqui Psicol. 2010; 10(1):85-102.
  • 13
    Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. Vol. 1.
  • 14
    Passos E, Kastrup V, Escóssia L. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2015.
  • 15
    Hur DU. Cartografia das intensidades: pesquisa e método em esquizoanálise. Praxis Educ. 2021; 17(46):275-92.
  • 16
    Kastrup V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2015. p. 32-51.
  • 17
    Medrado B, Spink MJ, Méllo RP. Diários como atuantes em nossas pesquisas: narrativas ficcionais implicadas. In: Spink MJP, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadores. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014. p. 273-92.
  • 18
    Pezzato LM, Botazzo C, L’Abbate S. O diário como dispositivo em pesquisa multicêntrica. Saude Soc. 2019; 28(3):296-308.
  • 19
    Raupp L, Schneider DR, Pereira GT. A redução de danos como metodologia de promoção de saúde às pessoas em situação de rua. Rev Debates Insubmissos. 2021; 4(14):115-38.
  • 20
    Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua aprendendo a contar: pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília: MDS; 2009.
  • 21
    Cohin J. Se faz de que? In: Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2012. p. 429-32.
  • 22
    Tavares LA. Toxicomania: um imperativo de gozo. In: Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Nuñez ME, Rêgo M, organizadores. As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2012. p. 151-64.
  • 23
    Ávila MT. A perspectiva da psicanálise no futuro das toxicomanias In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 213-20.
  • 24
    Ferreira OS. Reflexões sobre a pulsão na toxicomania à luz de dois textos metapsicológicos de Freud. In: Almeida ARB, Nery Filho A, McRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA; 2004. p. 103-9.
  • 25
    Niel M, Silveira DX, organizadores. Drogas e redução de danos: uma cartilha para profissionais de saúde. São Paulo: PROAD, Unifesp, Ministério da Saúde; 2008.
  • 26
    Teixeira RR. As dimensões da produção do comum e a saúde. Saude Soc. 2015; 24 Supl 1:27-43.
  • 27
    Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2009.
  • 28
    Boff L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 20a ed. Petrópolis: Vozes; 2014.
  • 29
    Kinoshita RT. O circuito dos afetos na drogadição: uma explicação alternativa para a servidão às drogas. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200787. doi: 10.1590/interface.200787.
  • c
    Todos os nomes apresentados são codinomes utilizados para proteger a identidade dos participantes do estudo.
  • d
    A audiência pública está disponível na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=mBCVCpubYro
  • e
    Padrinhos são aqueles que costumam ajudar pessoas em situação de rua com alimentação, roupas, cobertores, etc.
  • f
    O trecho se refere ao deslocamento entre uma cidade e outra, sem permanência prolongada.
  • g
    Espaço ocupado pelo grupo para produzir sua vida. É comum encontrar papelões, colchões, cobertores, mochilas e outros pertences de pessoas em situações de rua em tais lugares.
  • h
    Um lugar mais “mocozado” é um local mais escondido e que marca uma tentativa de encontrar espaços com maior privacidade.
  • i
    O gole se refere à bebida alcoólica.
  • j
    O mangueio é uma das estratégias para conseguir dinheiro nas ruas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br