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A incidência do eurocomunismo na política do Partido Comunista Brasileiro e a difusão da obra de Gramsci

The incidence of eurocommunism in the policy of the Brazilian Communist Party and the diffusion of Gramsci's work

Resumo

A intenção deste artigo é mostrar como a incidência do eurocomunismo no Partido Comunista Brasileiro e a difusão da obra de Gramsci fazem parte de um mesmo processo e como o eurocomunismo foi um esforço fracassado de atualizar a orientação estratégica do movimento comunista. A ênfase encontra-se na ação política e cultural dos intelectuais, de modo que se trata também de uma breve página de história dos intelectuais brasileiros, sem abordar centralmente os usos das categorias teóricas de Gramsci. Não faz parte desta exposição a incidência do pensamento de Gramsci nas esquerdas que depois confluiriam no PT: a esquerda católica e outras variantes marxistas. Tampouco algumas produções precursoras apresentadas na academia. A documentação disponível encontra-se em livros, jornais e revistas. Percebe-se que esse caminho serviu para difundir o nome de Gramsci no Brasil em meio a luta política, mas, do ponto de vista teórico científico, os ganhos não foram muitos, apesar da promissora ensaística que se delineou.

Palavras-chave:
Gramsci; Eurocomunismo; Partido Comunista Italiano; Partido Comunista Brasileiro

Abstract

The intention of this article is to show how the incidence of Eurocommunism in the Brazilian Communist Party and the dissemination of Gramsci’s work are part of the same process, and how Eurocommunism was a failed effort to update the strategic orientation of the communist movement. The emphasis is on the political and cultural action of intellectuals, so it is also a brief page on the history of Brazilian intellectuals, without centrally addressing the uses of Gramsci’s theoretical categories. It is not part of this exhibition the impact of Gramsci’s thought on the left that would later converge in the creation of PT (Brazilian Workers’ Party): the Catholic left and other Marxist variants. Neither are some precursor productions presented at the academy. Available documentation can be found in books, newspapers, and magazines. This path served to spread Gramsci’s name in Brazil during the political struggle, but from the theoretical-scientific point of view, the gains were not many, despite the promising essay that was outlined.

Keywords:
Gramsci, Eurocommunism; Italian Communist Party; Brazilian Communist Party

Este escrito deseja apresentar um capítulo muito particular da trajetória de Gramsci no Brasil, uma trajetória de muitas facetas e também de muita polêmica. A intenção é mostrar como o nome e as ideias de Gramsci se apresentaram na luta pela reorganização do Partido Comunista Brasileiro depois da violenta repressão de que foi vítima em 1974-1975, como esse processo ocorreu em paralelo com a fortuna da formulação do chamado eurocomunismo na trajetória do Partido Comunista Italiano e, por fim, no desaparecimento de ambos os partidos. Não se trata de mais um estudo sobre a recepção das ideias de Gramsci no Brasil e sim de como os escritos de Gramsci e sobre Gramsci foram usados na disputa interna sobre a teoria e a prática política dos comunistas.

Há, contudo, uma breve pré-história desse ocorrido. Desde o fim dos anos 1950, Astrojildo Pereira, diretor da revista pecebista Estudos Sociais, manteve correspondência com o argentino Hector Agosti, que conduzia a revista Pasado y Presente, não casualmente o nome de um dos volumes da chamada edição temática dos Quaderni del Carcere, aquela organizada com a orientação de Felice Platone e Palmiro Togliatti. Não era a primeira vez que se ouvia falar de Gramsci no Brasil, mas essa foi a semente que se desenvolveria nos anos seguintes por meio de alguns jovens intelectuais comunistas, apreciadores de Lukàcs e que consideravam bastante a obra de Sartre. As referências quase óbvias são Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Luiz Werneck Vianna, além de outros nomes (SECCO, 2002SECCO, Lincoln. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas ideias. São Paulo: Cortez editora, 2002.).

Foram exatamente esses jovens intelectuais, na verdade Carlos Nelson Coutinho e Luiz Mario Gazzaneo, que, entre 1966 e 1968, cuidaram da tradução de 4 dos 6 livros da edição temática, cujo editor foi Ênio Silveira da Civilização Brasileira. Sempre em 1966, com tradução de Noênio Spinola, foram publicadas as Cartas do cárcere, seguindo a edição italiana de 1965. Importa lembrar que, em abril de 1964, teve início a Ditadura Militar no Brasil, que veio a se aprofundar ao final de 1968.

Os livros não serviram de qualquer referência mais nítida na cultura política dos comunistas e da esquerda mais em geral. A época era do predomínio de outras ideologias dentro da esquerda, como o maoismo e o guevarismo, da forte incidência dos exemplos de luta popular em Cuba, Argélia e Vietnam, ainda que o PCB - que se opôs à luta armada - continuasse a ser a maior organização da esquerda brasileira. Não deixa de ser notável que também em 1966 tenha sido publicado no Brasil um livro apresentado por Jean Paul Sartre, sempre pela editora Civilização Brasileira, O caminho italiano para o socialismo, de Palmiro Togliatti. Tratava-se do documento apresentado por Togliatti no VIII Congresso do Partido Comunista Italiano, em 1956. Essa publicação servia aos argumentos contra as esquerdas que, dentro ou fora do PCB, defendiam a resistência armada à Ditadura (TOGLIATTI, 1966TOGLIATTI, Palmiro. O caminho italiano para o socialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1966.).

A partir de 1969, o número de militantes e de intelectuais exilados por conta da repressão política e cultural da Ditadura aumentou bastante. Brasileiros foram para o Chile para viver a experiência do governo da Unidade Popular, para o Peru do General Velasco Alvarado e para Cuba. Foram também para a União Soviética, Polonia, Checoslováquia e para diversos países da Europa ocidental, em particular França e Itália, para Portugal depois da Revolução Democrática de 1974. Com a derrota das guerrilhas frente ao terror de Estado, o exílio criou um imenso caldeirão de reflexão autocrítica para o conjunto das esquerdas, tornado muito mais complexo na sequência da violenta derrubada do governo da Unidade Popular no Chile.

As condições da emergência de Gramsci na fase que antecipava a crise orgânica do movimento comunista

As divergências apareceram tremendas entre dois caminhos que terminaram em séria derrota em toda América Latina. Acontece que também na Europa os maiores partidos comunistas encontravam-se numa situação de bloqueio na estratégia seguida desde o início da chamada guerra fria, de maneira mais visível após os marcantes acontecimentos de 1968. O PCF - Partido Comunista Francês - se encaminhava para a proposta da Frente de esquerda, considerada a reorganização dos socialistas em 1971, que formaram o PSF - Partido Socialista Francês. Já o PCI teve que se ver com os desafios postos pelo segundo “biennio rosso”, em 1968/1969.1 1 Na história do movimento operário italiano os nos 1919-1920 ficaram conhecidos como biennio rosso, momento marcado pela experiencia dos conselhos de fábrica. Por cerca de uma década, a Europa viveu um significativo processo de democratização, mesmo que nos limites impressos pela hegemonia burguesa.

Na Itália e na Alemanha, dos movimentos de 68 emergiu importante opção pela luta armada, derivada do entendimento que os partidos operários estabelecidos não estavam em condições de romper efetivamente a dominação burguesa e que mesmo a forma democrática estava em risco frente à violência fascista e a repressão estatal. O PCI se postou claramente contrário a luta armada, cujo principal expoente foram as Brigate Rosse2 2 As Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas) foram uma organização de luta armada contra o Estado italiano que atuou nos anos 1970. Surgiu do movimento estudantil e contou com significativa base operária. Foi derrotada pela repressão estatal e se fragmentou no começo dos anos 1980. , e enfatizou a necessidade de defender os preceitos da Constituição republicana. Parecia que o dilema da América Latina, entre a luta armada e a via democrática nacional, se replicava de certo modo também na Itália (DE BERNARDINIS, 2019DE BERNARDINIS, Silvia. Luta de classes e luta armada na crise do fordismo na Itália da década de setenta do século XX: as Brigadas Vermelhas. 2019. 344 f. Tese (Doutorado em História Econômica), Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. ).

Desde fevereiro de 1969, Enrico Berlinguer auxiliava Luigi Longo na direção do partido, pois o então secretário-geral estava parcialmente incapacitado por conta de um ictus. Em 1972, com o afastamento definitivo de Longo, Berlinguer foi confirmado como secretário geral do PCI. A cena política apontava para o crescimento do PCI, mas também para o crescimento da direita fascista e certa divisão de águas no mundo católico, entre direita e esquerda. Era preciso definir uma estratégia que anulasse a opção revolucionária armada, que combatesse a violência fascista, aumentasse a força do partido, ampliasse as alianças sociais e a base de consenso para a progressão democrática e para as reformas que necessitavam advir. A ideia era estabelecer um compromisso histórico entre diferentes forças políticas culturais interessadas em fazer cumprir a Constituição democrática e assim abrir a transição socialista (DEL ROIO, J. L., 1986DEL ROIO, José Luiz. Enrico Berlinguer e a evolução política do PCI. São Paulo: editora Novos Rumos, 1986.).

A tragédia do Chile, com o sangrento Golpe Militar reacionário desfechado contra o governo da Unidade Popular, em setembro de 1973, ofereceu motivos para que Berlinguer aprofundasse a reflexão que já estava a desenvolver. A tradução da situação chilena para a Itália dizia que o cerne da questão política girava em torno do respaldo ou não do mundo católico e da Democracia Cristã como sua expressão política. Em outros termos, sem a esquerda da DC não seria possível qualquer avanço revolucionário com amplo consenso. Logo, para que a Itália tivesse êxito onde o Chile fracassara, haveria a necessidade de um compromisso entre as forças populares comunistas e do mundo católico, incluindo ainda socialistas e republicanos (SANTONI, 2008SANTONI, Alessandro. Il PCI e i giorni del Cile. Roma: Carocci editore , 2008.).

Esse projeto pareceu ser a superação da “via democrática ao socialismo”, proposta por Togliatti em 1956. Pode-se observar, no entanto, que poderia ser na verdade um resgate em novos termos da política de unidade nacional que prevaleceu no momento de fundação da república democrática, entre 1945 e 1947. A insistência no consenso democrático entre as forças políticas do arco constitucional contra a insurgência armada e contra a subversão fascista confirma essa orientação. Assim é que a questão democrática passa a ser o eixo da vida política na Itália, e, dentro dela, a questão comunista, cujo significado seria a extinção do pacto de exclusão do PCI do governo da república, o qual vigia desde 1947, conforme a imposição dos Estados Unidos nos quadros da chamada “Guerra Fria”.

O avanço político do PCI foi notável nos anos seguintes e conseguiu ser atrativo para outros partidos ou segmentos de outros partidos do movimento comunista. O PCI conseguiu difundir a ideia de uma transição socialista particular para o “Ocidente”, tendo chegado à afirmação, em 1977, de que a democracia seria um valor universal. PCI e PCF começaram a se aproximar em 1974, depois de muito tempo de divergências acentuadas. A conjuntura nacional de França e Itália facilitou essa aproximação, de modo que, em julho de 1975, PCI e PCE - Partido Comunista de Espanha - assinalaram ampla convergência de pontos de vista. O encontro dos dirigentes do PCI e do PCF, em novembro do mesmo ano, possibilitou que a expressão eurocomunismo ganhasse difusão, ainda que a proximidade entre os três partidos não tenha durado muito e as fissuras aparecessem já em 1977 (LIGUORI, 2014LIGUORI, Guido. Berlinguer rivoluzionario: il pensiero político di un comunista democrático. Roma: Carocci editore, 2014., p. 39-45).

Se para o PCF e o PCE poderia parecer apenas um movimento de oportunidade, o PCI tinha um forte alicerce ideológico desde Gramsci e Togliatti para que pudesse garantir a continuidade da pretendida atualização de sua política. De fato, Togliatti já havia promovido uma verdadeira operação com o nome e com a obra de Gramsci, que oferecia elementos para a formulação teórica política e contribuía na defesa da autonomia do partido no conjunto do movimento comunista, além de abrir a possibilidade de atração de significativa massa de intelectuais (CHIAROTO, 2011CHIAROTO, Francesca. Operazione Gramsci. Milano: Bruno Mondadori, 2011. ).

Mesmo que se considere a grande importância da publicação dos escritos de Gramsci na Argentina e Brasil nos anos 1950 e 1960, pode-se dizer que até a fase do eurocomunismo Gramsci era conhecido quase que exclusivamente na Itália (pouco na Grã-Bretanha, pouco na França). Em boa medida, portanto, a difusão do nome e obra de Gramsci contou com grande estímulo da política eurocomunista, por mais indefinida que essa fosse. De fato, segundo essa formulação, a chamada estratégia da democracia de massas, a única viável no Ocidente, indicava a necessidade de uma guerra de posições em busca de um consenso ampliado para que se alcançasse a hegemonia da classe operária. De algum modo, a fórmula política do eurocomunismo induzia determinada leitura da obra de Gramsci, como se fosse ele um autor que advogasse uma república democrática liberal. Mesmo que essa interpretação fosse útil para a prática política e fosse passível de muita contestação, não foi empecilho para que estudos de alto nível fossem produzidos em encontros científicos, como os de comemoração dos 35 anos de morte de Gramsci (SPINELLA, 1977SPINELLA, Mario (ed.). Attualità di Gramsci. Milano: Il Saggiatore, 1977.; FERRI, 1978FERRI, Franco (org.). Política e História em Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. ).

Muitos foram os formuladores teóricos do PCI naquele momento e nem sempre prevaleceu o consenso. Grosso modo, a direção do PCI se encontrava polarizada entre uma direita referida em Giorgio Amendola, que priorizava a luta institucional, e a esquerda movimentista de Pietro Ingrao, com Berlinguer fazendo o papel de mediador. Apenas a título de exemplo, recorde-se que Pietro Ingrao, importante dirigente e teórico do PCI, nesse mesmo ano de1977, lançou o livro Masse e potere, no qual apresenta a conexão da política eurocomunista com Gramsci como inspiração, referência, releitura, e não como expressão filológica ou desenvolvimento orgânico do mesmo pensamento. A justificativa estaria na história, na diferença de condições reais da luta de classe dos anos 1930 e dos anos 1970. Foi com a leitura de Pietro Ingrao que ganhou importância decisiva a fórmula da democracia de massas (ou democracia de base) (INGRAO, 1977INGRAO, Pietro. Masse e Potere. Roma: Editori Riuniti, 1977. ).

Não pode haver muita dúvida que essa poderia ser uma espécie de atualização da formulação gramsciana da frente única, mas parece que a versão mais à direita do eurocomunismo, a que priorizava a luta institucional, veio a prevalecer. O fracasso da experiência eurocomunista - somada às sempre mais evidentes limitações da experiencia socialista na Europa oriental e na URSS - foi forte indicativo de que todo o movimento comunista ingressava em situação de crise orgânica. A guinada à esquerda de Berlinguer, com a proposta de uma Alternativa democrática para fazer frente a coalizão conservadora que se delineava, veio quando a derrota diante da ofensiva do capital desencadeada mundialmente era já incontornável. A crise de regime na Polônia, eclodida em 1979, mostrava que também as experiências socialistas viriam a enfrentar a crise que as levaram ao inglório final uma década depois.

A incidência do eurocomunismo na política do PCB e a difusão da obra de Gramsci nos estertores da Ditadura Militar no Brasil

Foi então essa leitura contemporânea da obra de Gramsci, dita eurocomunista, que predominou amplamente na Itália a que incidiu na reflexão de setores intelectuais do PCB. Aos poucos se formou um grupo de interessados na obra de Gramsci no Rio de Janeiro. Afinal, a editora e os tradutores estavam no Rio e dali se irradiou esse interesse de estudo, que derivava da prática política. Os que se encontravam no Brasil mantiveram relações com aqueles outros que precisaram sair do país. Claro que esse interesse se difundiu para outras regiões, mas é indiscutível que o núcleo dessa recepção estava no Rio de Janeiro.

O PCB (1984PCB ‒ Partido Comunista Brasileiro. Uma Alternativa Democrática para a Crise Brasileira. São Paulo: edições Novos Rumos, 1984.) sofreu feroz ofensiva repressiva do Regime Ditatorial entre 1974 e 1976, com a desarticulação quase completa da organização, com prisão e morte de muitos dirigentes. O Comitê Central, que já se encontrava parcialmente no exterior desde 1971, entendeu, em 1976, que deveria ir todo para a Europa. Os que ficaram se empenharam no que fosse possível para a reconstrução do partido, mas importa aqui destacar a atividade intelectual que se desenvolvia. Deixada à parte a questão da estética e da literatura, cabe lembrar, no campo das ciências políticas, a publicação da tese de doutoramento de Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil, defendida e publicada em 1976VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., mas que faz uso eclético de categorias de Gramsci (como revolução passiva) com categorias de Lenin (como via prussiana) e da sociologia americana (modernização conservadora) (VIANNA, 1976VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.). Sempre nesse ano de 1976, foi também publicada a segunda edição de Maquiavel, a política e o Estado moderno, de Gramsci, agora com muito melhor resultado editorial (GRAMSCI, 1976GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1976. ).

Em 1977, foi traduzido o pequeno volume de Hugues Portelli (1977PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra , 1977.), Gramsci e o bloco histórico, e em 1978 apareceram as traduções de O conceito de hegemonia em Gramsci, de Luciano Gruppi (1978GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Graal, 1978.), e A favor de Gramsci, de Maria Antonieta Macciochi (1976MACCIOCHI, Maria Antonieta. A favor de Gramsci. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976.). Ainda em 1978, foi publicado, pela Civilização Brasileira, traduzido por Luis Mario Gazzaneo, uma coletânea de textos de alto gabarito de nome Política e história em Gramsci. Trata-se de uma parte das conferencias proferidas na convenção de estudos gramscianos de 1977, organizado por Franco Ferri. Foi a primeira publicação desse tipo no Brasil. Gramsci entrava na universidade pela primeira vez com algum sucesso e começava também a entrar com mais força nos círculos dirigentes do PCB.3 3 Importante notar a presença de alguns trabalhos precursores como os de Alba Maria P. de Carvalho, A Questão da Transformação e o Trabalho Social: uma Análise Gramsciana, São Paulo, Cortez 1968 e de Francisco Weffort. “Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco, 1968. Cadernos do Cebrap, SP, n. 5, 1972.

Entre 1977 e 1981, circulou no Brasil uma revista de nome Temas de Ciências Humanas (1977-1981Temas de Ciências Humanas, São Paulo, 1977-1981.), iniciativa de José Chasin e produzida por intelectuais comunistas animados com a perspectiva da instauração da democracia no país. Foram 10 números a trazer ao público de esquerda uma contribuição de alto padrão intelectual. A revista apresentava trabalhos de autores brasileiros que tinham inspiração, principalmente, em Lukács ou Gramsci. Até por isso pode-se observar que os textos “clássicos” que trazia eram desses autores, além de escritos de Marx e Lênin. O número inaugural trazia de Gramsci (1977GRAMSCI, Antonio. Alguns temas da questão meridional. Temas de Ciências Humanas, São Paulo, Editorial Grijalbo, n. 1, p. 19-45, 1977.) Alguns temas da questão meridional, e, no nº 9, foi publicado A situação italiana e as tarefas o PCI (1980GRAMSCI, Antonio. A situação italiana e as tarefas o PCI. Temas de Ciências Humanas, São Paulo, LECH, n. 9, p. 1-37, 1980.), parte das teses do III Congresso (ambos os textos são de 1926). Nesse mesmo nº 9, saiu o único artigo específico sobre Gramsci, de autoria de João Agostinho dos Santos (1980SANTOS, João Agostinho. Gramsci: ideologia, intelectuais orgânicos e hegemonia. Temas de Ciências Humanas, São Paulo, LECH, n. 9, p. 39-64, 1980.), intitulado Gramsci: ideologia, intelectuais orgânicos e hegemonia.

Percebe-se claramente que o peso de Lukács era mais significativo no conjunto da revista e mesmo alguns autores que depois seriam identificados com o epíteto de eurocomunistas escreviam com ponderável peso de Lukàcs em suas reflexões. Logo depois da revista surgiu a editora Livraria Editora Ciências Humanas, que publicou livros relativos ao PCB, livros de autores próximos ou vinculados ao PCB, obras de Lukács e textos de autores italianos contemporâneos vinculados ao PCI, como Umberto Cerroni, Giorgio Napolitano e Pietro Ingrao. Isso tudo refletia a maior capacitação ideológica da nova geração da esquerda e dos comunistas sob influência do eurocomunismo.

As divergências nesse grupo de intelectuais e que levaram a revista ao fim viriam com a disputa política na direção do PCB. José Chasin estava mais próximo das posições de Prestes e ficou em minoria na revista frente aqueles qualificados de “italianos”. Ao se observar o elenco de colaboradores da revista se comprova essa hipótese. Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Luis Sergio Henriques, Luiz Werneck Vianna, Mauro Malin (todos do Rio de Janeiro), Marco Aurélio Nogueira e Gildo Marçal Brandão (de São Paulo) participaram na facção eurocomunista do PCB, mas nem todos estudaram a obra de Gramsci com a mesma dedicação. Essa corrente foi logo identificada como de “direita” pelos adversários internos.

Aqueles reticentes ao eurocomunismo e também ao nome de Gramsci, em favor de Lukàcs, vieram também a se dividir. As diferenças eram de caráter filosófico ou político. Uma parte significativa entendeu que o respaldo à maioria do Comitê Central era a decisão melhor, mas outros, que estavam mais próximos das posições de Prestes, entenderam que deveriam aderir ao Partido dos Trabalhadores (fundado em fevereiro de 1980), ou ainda se agrupar como facção autônoma em torno do nome do professor José Chasin.

Dentro do Comitê Executivo do PCB, foi Armênio Guedes quem atraiu e passou a representar a corrente que viria a se denominar como renovadora ou eurocomunista. Guedes era o responsável também pela Voz Operária, porta-voz do partido, que voltara a circular a partir de abril de 1976 na Europa. Ao lado do jornal e identificada com o eurocomunismo, foi formada uma “comissão assessora do Comitê Central”, composta por sete pessoas: Armênio Guedes, Zuleika Alambert, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Antonio Carlos Peixoto, Aluísio Nunes Ferreira, Mauro Malin.

A catástrofe que afetara o partido merecia uma autocrítica que não foi feita. Formalmente, todo o Partido entendia ainda a validade das decisões do VI Congresso (dezembro de 1967) e da resolução política de 1973, que identificava o regime como uma ditadura militar fascista e que colocava já a questão democrática como central. Parece que o Secretário Geral Luiz Carlos Prestes começava a fazer uma reavaliação da política do partido, com críticas às posições exaradas naquele Congresso e mesmo na citada resolução. A crítica se dirigia contra a insistência do partido em conceber ainda alianças com frações da burguesia (PRESTES, 2015PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo editorial , 2015., p. 456-462).

Para Armênio Guedes, era decisivo que o partido reconhecesse que na questão democrática encontrava-se o eixo da tática / estratégia da luta política. Haveria de se travar a luta pela democracia política junto com todas as forças que se opunham ou viessem a se opor à Ditadura Militar, inclusive frações burguesas. As divergências eram de pouca monta num primeiro instante e isso se percebe na publicação de Voz Operária. Tomem-se os artigos escritos por Carlos Nelson Coutinho como exemplo melhor.

Coutinho na Voz Operária

Carlos Nelson Coutinho havia saído do Brasil em 1976, rumo à Itália, onde permaneceu por quase dois anos, indo depois para Paris, com breve intervalo em Lisboa. Na Itália, por suposto, teve ocasião de acompanhar de perto a política do PCI, sua formulação teórica, ao mesmo tempo em que se aprofundava no estudo da obra de Gramsci. Não é demais recordar que a edição crítica dos Quaderni del cárcere, coordenada por Valentino Gerratana, fora publicada em 1975, e Coutinho logo teve acesso.

Assim, quando chegou a Paris para participar de maneira mais efetiva da assessoria do Comitê Central e da Voz Operária, Coutinho estava plenamente convencido da correção da formulação eurocomunista e da leitura de Gramsci que predominava na Itália, uma leitura muitas vezes acusada de politicismo pelos críticos. Coutinho colaborou com a Voz Operária de dezembro de 1976 a setembro de 1978, tendo feito uso de diferentes pseudônimos, sendo Josimar Teixeira o mais frequente. Os quatro artigos publicados entre dezembro de 1976 e maio de 1977Voz Operária, Paris, 1976-1979., números 131 a 134 de Voz Operária, sem qualquer dúvida, seguem a orientação política do PCB, proposta em 1973 e atualizada pela conjuntura (DEL ROIO, M., 2016DEL ROIO, Marcos. A questão democrática: Carlos Nelson Coutinho na Voz Operária . In: BRAZ, Marcelo; RODRIGUES, Mavi (org.). Cultura, democracia e socialismo: as ideias de Carlos Nelson Coutinho em debate. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2016. p. 183-200. ).

A reunião plenária do Comitê Central, realizada em março de 1977, havia começado depois do informe do secretário geral Luiz Carlos Prestes ser recusado pelo Comitê Executivo. Apareciam agora diferenças substantivas na análise do regime e de como se encaminharia a sua superação. O documento final da reunião plenária foi visivelmente resultado de um acordo, mas a colocação de Prestes em situação de minoria era já patente (PRESTES, 2015PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo editorial , 2015., p. 462-472).

No artigo de dezembro de 1977, na Voz Operária, nº 141, Carlos Nelson Coutinho surge mais desenvolto ao expressar posições próximas às do chamado eurocomunismo. O texto traz o título de A questão democrática para realçar mais uma vez qual seria o fulcro da estratégia comunista. Coutinho sugeria haver indícios de “desagregação da Ditadura”, o que obrigava o partido a enunciar qual compreensão tinha de democracia que estava por vir. De fato, afirmava Coutinho, “o PCB tem uma noção própria da democracia que supera dialeticamente - que ao mesmo tempo conserva e eleva a nível superior - os institutos puramente formais da democracia liberal” (Voz Operaria, nº 141, 1977, p. 3).

Coutinho insere com força também a noção de pluralismo, decerto uma noção de acento liberal (e católico) bastante forte. Mas a ideia, enfim, é que o pluralismo seja mais do que um arranjo institucional liberal, mas que engloba também a sociedade civil e seja assim estabelecido um vínculo entre Estado e sociedade civil. Certo que essa proposição se assemelhe mais a concepção da poliarquia de Robert Dahl do que qualquer formulação de Gramsci e que, na verdade, não passa da discrição de uma democracia burguesa. De fato, o processo de expansão de direitos e de criação de instituições adequadas parecia indicar que a superação da Ditadura Militar pudesse tomar esse endereço anotado por Robert Dahl (DAHL, 2005DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: EdUSP, 2005. ).

Em junho de 1978, Carlos Nelson Coutinho publica novo artigo na Voz Operária, nº 147. A defesa da democracia era justificada porque

o proletariado poderá se organizar livremente e, desse modo, fazer valer com maior força os seus interesses específicos, corporativos. Mas também, e sobretudo, porque a democracia é o terreno mais adequado para que o proletariado, formulando propostas globais de transformação econômica e social, consiga aliados, defina-se como classe nacional, hegemônica, [...] (Voz Operária, nº 147, 1978, p. 8).

Pouco antes, no mês de maio, a revista IstoÉ publicava entrevista com Coutinho especificamente sobre Gramsci e o Brasil. Coutinho usa categorias, como “modernização conservadora”, que não são do universo gramsciano, mas que foi incorporada por parcela dos gramscianos brasileiros. De todo modo, com essa entrevista, o vínculo do PCB com a formulação política do PCI e a inspiração teórica de Gramsci estava feita.

No artigo de setembro, ainda na Voz Operária, nº 150, Coutinho afirma que,

Ao que tudo indica, a ruptura com o atual regime -- sua completa substituição - não assumirá a forma de uma mudança brusca, de um único choque frontal, mas ocorrerá no quadro de uma “guerra de posição”, (para nos valermos de uma metáfora militar) de um conjunto de combates e lutas parciais entre o regime e os vários setores e segmentos da frente democrática (Voz Operária, nº 150, 1978, p. 8).

Os textos de Coutinho sugerem com nitidez como a política do PCI mediava o pensamento de Gramsci que incidia numa fração do PCB e como essa se sentia forte nesse momento. O que os unia era a centralidade da questão democrática. Mas a diferença de temporalidade era clara. O PCI foi o eixo da resistência antifascista na Itália e participou da revolução democrática incompleta que culminou na fundação da república; tinha agora, nos anos 1970, de enfrentar novamente a questão democrática, considerando-se que a democracia estava em risco e que o único modo de preservá-la seria ampliando e aprofundando a própria democracia liberal-burguesa existente. Já o PCB ainda participava na resistência antifascista em favor de uma revolução democrática. Ocorre que o PCB aos poucos deixou de lado o tema da revolução democrática e aceitou a fórmula da via espanhola da “transição democrática”. De fato, o “eurocomunismo” nunca foi algo de entendimento homogêneo, nem na Itália, nem na Espanha, nem alhures.

Ápice do eurocomunismo no Brasil

Na disputa na direção do PCB, para a reunião agendada para novembro de 1978, a assessoria da direção não conseguiu elaborar um projeto de resolução que tivesse o aval do secretário geral Prestes e da maioria da Comissão Executiva. Ao fim, o projeto foi feito com a participação do próprio Prestes. Entre as divergências principais estava a discordância de Prestes em relação a uma suposta “desagregação da Ditadura” e a uma negociada “transição democrática”. Prestes insistia na “derrota” da Ditadura pelo movimento de massas. O documento final foi produto de um acordo, mas percebe-se a presença de passagens que claramente refletiam a posição dos eurocomunistas (PRESTES, 2015PRESTES, Anita Leocadia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo editorial , 2015., p. 472).

Essa reunião plenária do CC serviu também para fazer uma avaliação de Voz Operária, que não estaria de fato a expressar a linha política do partido, mas apenas do setor que se autodenominava renovador e os adversários rotulavam como eurocomunista. Apesar de tudo, a direção do jornal por um ano mais continuou com Armênio Guedes, a grande referência teórica e política do grupo, quando então foi afastado e a publicação foi suspensa.

Além da revista Temas, que circulava em São Paulo desde 1977, e era uma revista mais claramente comunista, no Rio de Janeiro, em 1978, começou a circular a revista Encontros com a Civilização Brasileira (1978-1982Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978-1982. ), editada por Ênio Silveira e Moacyr Felix. Essa revista trazia um perfil mais marcado de revista de frente democrática. Em março de 1979, a revista publicou o artigo de Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor universal, que trazia uma formulação teórica claramente inspirada no eurocomunismo, especificamente em Berlinguer. Sofreu uma enxurrada de críticas de vários setores da esquerda, mas também dentro do PCB, tendo ajudado assim a separar as águas na luta ideológica e política que se travava.

Formava-se um senso comum na jovem militância do partido de que o eurocomunismo e os eurocomunistas brasileiros eram seguidores de Gramsci, que deveria pensar de acordo com essas formulações. Se havia pretensa tradução entre o tempo de Gramsci e o tempo de Berlinguer, como defendeu Pietro Ingrao, o eurocomunismo no Brasil será uma tradução do eurocomunismo italiano para o outro espaço social, o Brasil. Com isso, o próprio Gramsci chegava ao Brasil por meio de muitas mediações de espaço / tempo e um tanto descaracterizado.

Na reunião do CC, realizada em maio de 1979, as posições se tornaram mais claras. A aliança dos eurocomunistas com o centro majoritário no CC isolou Prestes e seus poucos aliados. As diferenças giravam em torno da questão da autocrítica (qual e quando deveria ser feita), do valor ou não da política implantada desde 1958, em particular do VI congresso (1967), das condições para a assembleia constituinte, do significado de democracia e de capitalismo monopolista de Estado. O documento de 1973, que conclamava a formação da frente patriótica antifascista, era visto pela maioria como um desvio à esquerda em relação às decisões do VI Congresso, do qual se deveria partir para atualizar a política dos comunistas. Decidiu-se pela convocação do VII Congresso do partido, com data a ser marcada.

A aguardada anistia política (mesmo que limitada), foi decretada em agosto de 1979 pela Ditadura, o que permitiu que os exilados e os dirigentes do PCB retornassem aos poucos. Talvez tenha sido subestimado o impacto entre dirigentes e militantes com experiência de exílio, quando puderam estudar e viver experiências de outros partidos e de outros países, e a militância que reconstruía o partido em solo nacional. Mas o fato é que as divergências só se aprofundaram.

Em março de 1980, Luiz Carlos Prestes lança sua Carta aos comunistas, na qual insistia que “... a orientação política do PCB está superada e não corresponde à realidade do movimento operário e popular do momento que hoje atravessamos. Estamos atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira, [...]” (PRESTES, 1980 apudCARONE, 1982CARONE, Edgard (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982. , p. 319-331). Prestes defendia a unidade da esquerda no interior da frente democrática, pois seria essa a forma de fortalecer a classe operária dentro da frente e assim disputar a hegemonia política no processo, o que poderia redundar na instauração de uma democracia mais avançada do ponto de vista econômico político, mesmo que não superasse a hegemonia burguesa que se projetava.

Em relação ao partido, Prestes defendia uma completa renovação da organização e de seus quadros dirigentes, o que deveria ocorrer no VII Congresso do partido, desde que esse fosse um processo realmente democrático. É verdade que Prestes cometeu um erro tático fatal ao abandonar o partido e pregar uma rebelião contra o Comitê Central, pois atordoou a parte da militância que estava de acordo com suas posições. É também verdade que Prestes tinha uma visão de frente democrática mais à esquerda, mas a ideia de completa renovação do partido, enquanto organização e enquanto visão da realidade brasileira, confluía com as esperanças dos renovadores eurocomunistas. Os seguidores de Prestes se dividiram entre os que permaneceram no partido, os que foram para o Partido dos Trabalhadores, que foi fundado em fevereiro de 1980, e aqueles que estiveram fielmente até o fim com o velho comandante. No entanto, o poder de Prestes influenciar os rumos da esquerda se diluiu quase que completamente.

Logo depois da Carta de Prestes, em substituição a Voz Operária, porta-voz do CC do partido no exterior e que fora extinta, em março de 1980, foi lançado em São Paulo o semanário Voz da Unidade. O nome era uma solicitação a unidade do partido e a unidade das forças democráticas. Se unidade significa síntese, o jornal fracassou em seu inicial intento. O periódico foi, no fim das contas, uma expressão da perspectiva política dos eurocomunistas, os quais, desde 1977, com mais força, organizavam o PCB, tendo como ponto de partida um grupo de médicos conduzidos por Davi Capistrano da Costa Filho, que talvez não se identificassem com o eurocomunismo, mas com essa vertente confluiu na disputa interna. A ausência do Comitê Central, que se encontrava no exílio europeu, garantiu a autonomia dos esforços de reorganização partidária em São Paulo.

No número inaugural da Voz da Unidade, o editorial anunciava - algo certamente consensual entre os comunistas - que

“Voz da Unidade” surge para ser expressão e veículo de uma corrente de pensamento, cuja linha de ação está orientada para ajudar a classe operária e todas as forças democráticas do país a conseguirem que a solução dos problemas políticos, econômicos e sociais que afligem a nação se dê em benefício das grandes massas do nosso povo, rompendo com os privilégios dos monopólios, banqueiros e latifundiários. E buscará contribuir para que essa classe operária, e com ela a maioria do povo brasileiro, amadureça para a compreensão de que só o socialismo é capaz de oferecer soluções definitivas para seus problemas fundamentais (Voz da Unidade, n° 01, março de 1980Voz da Unidade, São Paulo, 1980-1991., p. 1).

Já nesse número aparece um artigo que dá notícia de uma conferência de Prestes, na qual defendeu a formação de uma frente única de luta contra a Ditadura, que deveria ter o seu cerne na unidade das forças populares, assim como insistiu na importância da legalização do PCB, mas uma legalidade conquistada pela pressão de massas. Avaliava que nessa situação

o partido poderá rapidamente organizar todas as forças de luta contra a ditadura e formar um bloco para conquistar o poder e implantar uma democracia política, econômica e social, abrindo o caminho para o socialismo (Voz da Unidade, nº 1, 1980Voz da Unidade, São Paulo, 1980-1991., p. 8).

Por esse enfoque, nota-se que Prestes era bastante otimista, mas é fato que essa posição política, que defendia a unidade das esquerdas dentro da frente democrática, mostrava mais atenção ao movimento operário e popular eclodido desde 1978 no ABC paulista. Intuía que a revolução burguesa no Brasil havia se concluído, que a classe operária deveria buscar a sua autonomia e deveria ser o centro da atividade do partido, considerado que a natureza da revolução brasileira havia mudado com a Ditadura e passava a ser uma revolução socialista, que subsumiria a questão da democracia e a questão nacional, vistas de um ponto de vista burguês, para que fossem postas de um ponto de vista proletário. Assim que questão da democracia era já a questão da revolução socialista.

A posição dos eurocomunistas e do centro majoritário do CC antevia o Brasil pós-Ditadura como uma democracia liberal burguesa com amplos direitos sociais, uma democracia de massas que aos poucos avançaria para o socialismo por meio da construção de amplos “consensos”, num compromisso histórico com os liberal-democratas. Os liberal-democratas representariam setores importantes da pequena burguesia e mesmo da burguesia. Aqui, o fulcro da polemica estava na questão de se entabular ou não alianças com frações burguesas e onde estaria o eixo da frente. Se o objetivo era a democracia política ou se a democracia desde logo exigia mudanças econômicas sociais substantivas.

Se o partido estava em frangalhos como garantira poucos dias antes, como a expectativa de Prestes poderia ser alimentada? Aliás, no número seguinte do semanário foi publicada a Carta aos comunistas. Talvez houvesse ainda esperança de segurar Prestes no partido, mas a reunião de maio do CC, mais uma vez realizada com Prestes ausente, decidiu declarar vacante o cargo de secretário geral e escolheu Giocondo Dias como substituto. Com Prestes fora das fileiras do partido, nesse mesmo encontro, certamente como contrapeso, Armênio Guedes foi afastado da Comissão Executiva. As primeiras manifestações do novo secretário geral também poderiam ser consensuais entre os comunistas, mas apenas escondiam as graves diferenças. A busca pela conciliação de interesses e posições políticas fracassou. A disputa entre a maioria e a agora bem definida oposição eurocomunista se escancarou com o início do processo congressual.

O que pelo momento unia a facção dita eurocomunista com a posição “centrista” predominante no CC era o reconhecimento da validade das conclusões do congresso de 1967. A ofensiva ideológica dos chamados eurocomunistas, que vinha desde 1977, continuou até 1982, quando foram definitivamente derrotados no VII Congresso. A partir desse momento aconteceu o declínio dessa facção política e também o relativo eclipse da presença de Gramsci na vida política e intelectual do Brasil, mesmo que se considere a incidência de Gramsci também no PT. O ano de 1980 coincidiu com forte ofensiva política e ideológica dos eurocomunistas, momento provável do seu apogeu. Na Itália e na Europa essa fase estava já superada, em seguida ao apoio externo do PCI ao “governo de salvação nacional” da Democracia Cristã, em 1979.

Nesse mesmo ano de 1979, quando a Ditadura aprofundou o seu empenho de institucionalização, o momento ainda era propício a esse avanço ideológico dos eurocomunistas, mas também a difusão de Gramsci. A editora Paz & Terra publicou nesse ano a biografia clássica de Gramsci, escrita por Giuseppe Fiori (1979FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: Paz & Terra , 1979.), A vida de Antonio Gramsci, e, no ano seguinte, veio a lume Gramsci e o Estado, de autoria de Christine Buci-Glukdmann (1980BUCI-GLUKDMANN, Christine. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1980.).

Ainda em 1980, pela editora Graal, apareceu o livro de Leandro Konder (1980KONDER, Leandro. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal , 1980.), Os comunistas e a democracia no Brasil, que defendia a posição de que o PCB levava a questão democrática em larga conta pelo menos desde 1958. Por iniciativa de Marco Aurélio Nogueira (1980NOGUEIRA, Marco Aurélio (org.). PCB: vinte anos de política (1958-1979). São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas , 1980.), foi publicada, com a LECH, uma coletânea de documentos partidários de 1958 a 1979, em que procurava reafirmar essa tese na apresentação do volume. Se os renovadores eurocomunistas por um lado conclamavam a renovação e atualização do partido, por outro parecia que seria uma renovação sem ruptura, já que fundada numa tradição democrática que não havia se consolidado. Pode ter sido esse também um erro tático, pois ao eleger Prestes como adversário principal, em vez de fortalecer a ideia da renovação em convergência na divergência, a enfraqueceu ao se aliar com o centro majoritário na direção partidária.

Foi também no ano de 1980 que foi lançado o livro de Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor universal, que reunia o texto - revisado - com esse mesmo nome - antes publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira - com outros três ensaios. Foi decerto um instrumento de luta ideológica entre eurocomunistas e o núcleo dirigente, considerando-se que Prestes já não incidia com força na vida interna do partido. O texto principal é ainda aquele que oferece o nome ao livro. Coutinho reconhecia ser o Brasil um país plenamente capitalista, especificamente um capitalismo monopolista de Estado. A tarefa agora seria a de promover a renovação democrática no país e instaurar uma democracia política permanente em cujo terreno se travaria a luta pelo socialismo. A construção do socialismo deveria ocorrer por meio de um “consenso majoritário” na sociedade civil (NEVES, 2019NEVES, Victor. Democracia e Socialismo: Carlos Nelson Coutinho no seu tempo. Marilia: Lutas Anticapital, 2019.).

Coutinho insiste que a proposição que faz apresenta uma linha de continuidade com as formulações anteriores do partido nas quais eram valorizadas as tradições liberais. Cita o próprio Prestes, que em afirmação bastante polemica de 1961, dizia:

Reconhecem os comunistas que o povo brasileiro é herdeiro de um rico patrimônio de tradições liberais. Essas tradições são valores que os comunistas querem enriquecidas para todo o povo e não apenas para as camadas mais afortunadas, como, de fato, tem ocorrido em nossa história (PRESTES, 1961 apudCOUTINHO, 1980COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. , p. 14).

No entanto, prossegue o autor, haveria agora uma “nova concepção” do vínculo entre socialismo e democracia, que surge da crítica a URSS. Essa foi outra questão de divisão entre os comunistas: até onde poderia ir a crítica à experiência socialista da URSS. Essa concepção crítica que beirava a ruptura fora exposta em forma de síntese por Enrico Berlinguer, secretário geral do PCI, por ocasião do 60º aniversário da Revolução Russa, em 1977. Coutinho, então, faz a citação de Berlinguer, que fundamenta toda a sua reflexão exposta nesse artigo e no livro:

A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista (BERLINGUER, 1977 apudCOUTINHO, 1980COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. , p. 20).

Ora, a questão é que a democracia faz parte do terreno do particular e não do universal, ou melhor, a democracia se objetiva e se torna universal apenas quando está ao ponto de se extinguir o Estado, considerando-se ser a própria democracia uma forma de Estado. Lembre-se que Berlinguer falava de um valor sobre o qual fundar uma sociedade socialista, que na sua concretização universalizaria a democracia, a qual estaria presente, portanto, em todas as dimensões da vida social. A universalização da democracia se constituiria na medida em que a luta de classes avançasse e a burguesia recuasse. Não se trata de um valor universal em abstrato.

Desse grave equívoco de Coutinho outros derivam. As democracias que existiram historicamente nas cidades da Grécia ou da Itália medieval ou nos Estados liberal-burgueses estão na dimensão do particular. Lembra-se que a burguesia sempre se opôs a democracia, tendo-a por poder despótico das massas. A burguesia só aceitou uma versão restrita de democracia exatamente por conta da luta popular por direitos. A democracia só se universaliza na medida em que avança a transição socialista, não antes (LENIN, 2017LENIN, Vladímir. O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo editorial, 2017.).

A relação de relativa continuidade entre democracia liberal e democracia socialista, tal como enunciada por Coutinho incorre o sério risco de apontar para uma fórmula na qual o processo de democratização parece ser geral e universal e que o Estado tenderia a perder o seu caráter de condensador de um poder político classista ao se submeter a uma pluralidade de sujeitos coletivos emersos na sociedade civil. Diz Coutinho:

A pluralidade de sujeitos políticos, a autonomia dos movimentos de massa e dos organismos da sociedade civil em relação ao Estado, a liberdade de organização, a legitimação da hegemonia através da obtenção permanente do consenso majoritário: todas essas conquistas democráticas, tanto as que nasceram com a sociedade burguesa tanto as que resultam das lutas populares no interior do capitalismo passam a ter pleno valor na sociedade socialista (COUTINHO, 1980COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. , p. 24).

De modo concreto, então, para Coutinho “a democracia socialista pressupõe, por um lado, a criação de novos institutos políticos que não existem, ou que existem apenas embrionariamente, na democracia liberal clássica; e por outro, a mudança de função de alguns institutos liberais”. E continua: “trata-se de eliminar o domínio burguês sobre o Estado, a fim de permitir que esses institutos políticos democráticos possam alcançar pleno florescimento, e, desse modo, servir integralmente a libertação da humanidade trabalhadora” (COUTINHO, 1980COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. , p. 25).

Coutinho não diz como se deve eliminar o domínio burguês sobre o Estado, e tudo se passa como se o próprio Estado não fosse burguês na sua materialidade. A resposta implícita é que se trataria de democratizar o Estado de tal modo e a tal ponto que perderia o caráter de dominação da burguesia. Como se sabe esse é o cerne da teoria reformista desde Bernstein.

Um artigo de Carlos Nelson Coutinho, na Voz da Unidade de 26 de setembro de 1980COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. , é muito claro a esse respeito:

O elemento de renovação consiste na ideia de que não se trata no ‘Ocidente’ de construir um Estado inteiramente novo. Mas de promover uma articulação dialética entre instituições herdadas do passado (que mudam de função graças precisamente a essa articulação) e instituições novas geradas diretamente pelas lutas das massas trabalhadoras. A reforma do Estado passa assim pela criação de uma democracia de massas (COUTINHO, 1980COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. , p. 15).

A democracia de massas transformaria, então, o Estado liberal-burguês num Estado socialista. Nem sinal de ruptura, de salto dialético, apenas um natural evolver do “Ocidente”. Colocar o Brasil como “Ocidente” no mesmo nível da Europa parece um equívoco indesculpável. Se mesmo na Europa essa formulação poderia ser muito questionável, em relação ao Brasil era ainda mais. Que instituições do Estado brasileiro seriam recicláveis considerando a sua ontogênese classista? A perspectiva reformista (e ilusória) não pode ser negada.

Alguns anos depois, em 1987, na Itália, foi publicado um esboço inédito de Lukàcs, escrito no segundo semestre de 1968, sob o enorme impacto da intervenção de tropas do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia. O texto de Lukàcs traz o nome de Democratização hoje e amanhã, mas foi publicado com o nome de L’Uomo e la democrazia, e mostra claramente como é contraditório o processo de democratização liberal e o processo de democratização socialista, pois cada um deles reforça o domínio de uma classe, burguesia ou proletariado (LUKACS, 1987LUKACS, Georg. L’Uomo e la democrazia. Roma: Lucarini editore, 1987.).4 4 Esse escrito foi publicado no Brasil em 2008, traduzido por Carlos Nelson Coutinho, dentro de uma coletânea de textos de Lukàcs (2008) nomeada Socialismo e democratização. Escritos políticos (1956-1971). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. A reação de Coutinho, no entanto, nas edições posteriores do seu livro, limitou-se a trocar a expressão democracia por democratização!

Ainda em 1981, marcando o apogeu do eurocomunismo no Brasil, Carlos Nelson Coutinho (1981COUTINHO, Carlos Nelson. Introdução ao pensamento político de Gramsci. Porto Alegre: LP&M, 1981.) lança o livro Introdução ao pensamento político de Gramsci, trabalho que teve bastante peso na formação de estudantes. Importante lembrar novamente que na Europa e na Itália já não se falava mais em eurocomunismo. A derrota e a aceleração da crise orgânica do movimento comunista eram já visíveis, tanto no Oriente socialista, quanto no Ocidente capitalista. Houve, ainda, uma derradeira iniciativa de Berlinguer, sempre em 1981, ao invocar uma alternativa democrática para a Itália. Em 1982, Coutinho traduziu uma biografia de Gramsci escrita por Laurana Lajolo (LAJOLO, 1982LAJOLO, Laurana. Antonio Gramsci: uma vida. São Paulo: editora Brasiliense, 1982.).

A derrota do eurocomunismo e o aprofundamento da crise orgânica do PCB

No início de maio de 1981 foram apresentadas as teses para o VII congresso do PCB. O debate, com a dispersão dos prestistas, envolveria os eurocomunistas “gramscianos” em oposição ao núcleo dirigente assentado no Comitê Central, respaldado em parte por intelectuais “lukacsianos”. O debate sobre as teses se desenrolou nas páginas de Voz da Unidade, ao modo de suplemento, tendo se prolongado até fevereiro de 1982, quando o processo congressual já estava em andamento.

Não foi uma discussão de alta densidade teórica, mas se percebe que a linguagem do partido havia mudado. Já não se falava de Ditadura Militar fascista e se adotou a expressão regime autoritário (de claro viés liberal), quase não se fala mais de revolução, mas de renovação, não se fala destruição ou substituição do Estado burguês, mas de reforma do Estado. Muito se falou de sociedade civil, mas pouco de luta de classes. Essa linguagem, pretensamente inspirada em Gramsci e no PCI, alimentava uma facção do PCB, mas logo se difundiu para parte do centro dirigente. Certo que o conteúdo da questão democrática e da política de alianças ocupou bastante espaço, que ao fim das contas era a questão da estratégia dos comunistas. Como a produção teórica e ideológica da facção eurocomunista havia sido significativa desde 1977, parte dos argumentos críticos tentaram também se embasar nos textos de Gramsci, o que decerto contribuiu para maior difusão de seu pensamento, mesmo que ao modo vulgar.

As teses não fizeram qualquer mudança significativa frente à elaboração que vinha desde 1958, quando pela primeira vez se refletiu sobre a “via nacional democrática” no Brasil. A ideia fundamental era a mesma: construir um bloco de forças sociais que lutasse pela democracia, contra o latifúndio e o imperialismo. Esse bloco seria constituído pelo proletariado, campesinato, camadas médias e fração da burguesia que acatasse a democracia. Se antes se pensava em alguma fração da burguesia que assumisse uma posição anti-imperialista, agora se procurava a fração que abraçasse a democracia. A indispensável análise das classes, das relações sociais de produção e de poder ficaram muito aquém do necessário. A luta pela hegemonia do proletariado deveria ser fundamental, até que, por meio de uma “guerra de posição”, a democratização progressiva da vida social possibilitasse o ingresso no socialismo. Claro que não se sabe como essa luta pela hegemonia seria travada, nem quais os seus objetivos em relação ao Estado político. Enfim, a tentativa de conciliar e incorporar elementos da contribuição das facções eurocomunista e prestista falhou completamente.

A demanda geral para que o congresso procedesse de forma democrática não foi atendida. A disputa interna ganhou ferocidade e a ética comunista foi deixada de lado com frequência. O centro dirigente, até então majoritário, lutava por sua sobrevivência política, fazendo concessões ideológicas à esquerda e à direita. Antes mesmo do congresso, grande parte dos prestistas havia se afastado, seguindo o exemplo do líder e agora era o momento de neutralizar os eurocomunistas. A mudança na direção do periódico Voz da Unidade foi o sinal mais claro. A crise orgânica do PCB estava em andamento.

A reunião dos delegados para o congresso nacional ocorreu em São Paulo no dia 12 de dezembro de 1982, informação divulgada ao público, mesmo com a Ditadura perdurando e o partido na ilegalidade. O resultado foi que a intervenção policial deteve todos os delegados, ainda que por pouco tempo. O congresso só foi concluído em 1984, com a aprovação das teses que trouxeram o nome de Uma alternativa democrática para a crise brasileira (título claramente inspirado na formulação do PCI), um documento publicado em forma de livro sem qualquer incidência na vida política do País ou mesmo das esquerdas.

A esse ponto, a fração eurocomunista havia também se dispersado. Em 1983, um grupo de dirigentes paulistas que havia sido destituído do Comitê Estadual discutiu a criação de um novo jornal, que se chamaria A esquerda (1983-1985A esquerda, São Paulo, 1983-1985.), e também uma revista, que viria a se chamar Presença (1983-1992Presença, São Paulo; Rio de Janeiro, 1983-1992.). A revista Presença teve o seu número inaugural publicado em novembro de 1983. Pretendia ser uma revista de frente democrática na qual se apresentariam diferentes posições sobre a política e a cultura, ainda que seus colaboradores mais permanentes fossem da vertente eurocomunista (mesmo que o eurocomunismo não mais existisse como tal na Europa ou em outro lugar). Uma reunião realizada em São Paulo, no segundo semestre de 1984, tomou a decisão de se organizar o grupo como fração dentro do PMDB, selando, assim, mais uma divisão entre os comunistas.

O grupo que girava em torno do novo jornal tentou, por sua vez, uma aproximação com Prestes, mas a iniciativa tardia não foi bem-sucedida. No entanto, esse grupo, até então aliado aos eurocomunistas, se deslocou claramente à esquerda. O jornal teve apenas 22 números, publicados quinzenalmente entre fevereiro de 1984 e junho de 1985. Pouco tempo depois, houve a adesão de alguns militantes ao PT, com destaque para Davi Capistrano da Costa Filho, enquanto que outros se juntaram ao PMDB.

Nesse mesmo ano de 1983, o grupo que se alinhava com José Chasin (e Lukàcs) deu nova forma à pré-existente revista Ensaio (1982-1992Ensaio, São Paulo, 1982-1992.), que teve importante trajetória intelectual, até se extinguir também no começo dos anos 1990. Deve-se, ainda, lembrar de passagem da revista Teoria & Debate, que existiu entre 1980 e 1990, produzida por alguns ex-militantes do PCdoB - Partido Comunista do Brasil -, que fundaram o PRC - Partido Revolucionário Comunista - em 1984, mas que logo aderiram ao PT - Partido dos Trabalhadores. Essa revista foi outra porta de entrada para Gramsci no Brasil, principalmente com Adelmo Genro. Essas três revistas acompanharam o processo de “democratização” no Brasil e ofereceram um painel rico do debate marxista da época. Todas se extinguiram quando a crise orgânica do movimento comunista alcançou a culminância com a dissolução da URRS, com o fim do PCI, com a formalização da democracia liberal burguesa no Brasil, com o fim daquele PCB.

A revista Presença durou até 1992, quando foi encerrada com o nº 18, como expressão dessa corrente. Ainda que com uso habitual de terminologia que poderia ser acoplada a Gramsci, mas que já era de uso comum em grande parte da esquerda (e mesmo entre liberais), como sociedade civil e hegemonia, a revista não apresentou artigos de fundamentação teórica mais consistente. Presença ocupou-se principalmente em seguir a conjuntura política e econômica ou, como ficou enfim identificada a época da sua existência, a transição democrática. Ainda que por algum tempo houvesse referências à necessidade de um partido comunista, aos poucos essa ideia desapareceu.

Um primeiro balanço dessa página importante da história política e intelectual no Brasil, que vinculou uma proposta política inspirada na formulação teórica do PCI e de Gramsci a fim de renovar o PCB, mas que, em meio à crise orgânica do conjunto do movimento comunista, acabou derrotada, foi feita em 1985, por Marco Aurélio Nogueira, em capítulo de livro organizado por Carlos Nelson Coutinho e ele mesmo, que trazia o nome de Gramsci e a América Latina. O ensaio de Nogueira, “Gramsci, a questão democrática e a esquerda no Brasil”, é bastante informativo, bastante crítico, mas pouco autocrítico, algo muito compreensível pela gravidade e proximidade temporal da derrota desastrosa que essa fração da esquerda brasileira havia sofrido. Mesmo assim, não pode deixar de ser referência essencial para o objeto em pauta (NOGUEIRA, 1985NOGUEIRA, Marco Aurélio. Gramsci, a questão democrática e a esquerda no Brasil. In: COUTINHO, Carlos Nelson; NOGUEIRA, Marco Aurélio. Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz & Terra , 1985. p. 129-152.).

Essa corrente sofreu ainda defecções importantes como o exemplo de 1988, quando Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Milton Temer decidiram pelo ingresso no PT. Com o PMDB se deslocando mais à direita, com a cisão que daria no PSDB, com o PCB perto do fim, a esses intelectuais não restava outro caminho senão aderir ao PT, enquanto outros persistiram no PMDB. Ademais, no seu 7º Encontro Nacional, realizado em 1987, o PT parecia assimilar formulações que já tinham sido do PCB, qual seja a perspectiva antilatifundiária, antimonopolista, anti-imperialista. Deve-se considerar ainda que Gramsci começava a incidir no PT também por outros caminhos que não o PCB, mas com resultados parecidos, qual seja o transborde para o reformismo, como nos casos dos remanescentes da revista Teoria & Debate, como Tarso Genro e José Genoíno.

Chama atenção que apenas o nº 17, já em 1991, a revista Presença tenha mostrado a capa com a imagem de Gramsci e um dossiê organizado por Luiz Sérgio Henriques, por conta do centenário do nascimento do comunista sardo, mas que traz quatro artigos de autores italianos e apenas o do organizador entre os brasileiros. Os italianos são Norberto Bobbio, Valentino Gerratana, Claudia Mancina e Biaggio Di Giovanni. Era o marco também do fim do PCI e do surgimento do PDS - Partito Democratico della Sinistra.5 5 Hoje esse partido chama-se Partito Democratico, agrupa egressos do antigo PCI, mas também da Democracia Cristã. Não tem mais qualquer relação com a tradição e a cultura comunista e se pode dizer que ocupe uma posição de centro direita na cena política.

Últimas considerações

A dificuldade imensa que o PCB tinha para se reerguer depois da perda da vertente prestista e da vertente eurocomunista ficou muito evidente. De fato, o núcleo dirigente do partido preservou a sua posição, mas não fez outra coisa que conduzir o partido ao fim, numa profunda crise orgânica: o PCB se descolou da classe operária e gastou seus últimos anos em intrigas internas. Não deixa de ser interessante que nesses anos o PCB tenha usado, com frequência, ideias exaradas pelo PCI e visto em Gorbatchov a tábua de salvação. Repita-se que, em 1991-1992, a bancarrota foi geral: acabava a URSS, acabava o PCI, acabava aquele resíduo de PCB, o PT encampava o reformismo, o PMDB perdia o governo federal e o Brasil ingressava na era neoliberal. A grande maioria da esquerda se homologava à nova ordem, Gramsci permanecia vivo apenas como um liberal americanista (VIANNA, 1997VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: liberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997.).

A antiga vertente eurocomunista do PCB, no decorrer dos anos 1990, mantendo todo o respeito a Gramsci, autor importante para seguidas releituras, passaram na verdade a ver maior atualidade no pensamento de Norberto Bobbio (1992BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ) e de Jürguen Habermas (1981HABERMAS, Jürguen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1981. 2 v.). Diante da crise ideológica profunda se difundiu a ideia de que o Brasil poderia entrar - com a nova Constituição (1988) - em alguma era dos direitos na qual viesse a predominar a ação comunicativa. Essa leitura não é que descartasse Gramsci, apenas aprofundava a interpretação liberal-democrata que já existia. Assim, a vertente eurocomunista desaguava no liberalismo, na Itália e no Brasil. O transformismo foi fenômeno de massa entre os intelectuais pelos 30 anos seguintes!

O século se concluiu com a publicação de uma edição dos Cadernos do cárcere, organizada e traduzida por Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, três nomes importantes nessa história e que despertou renovado interesse pela obra de Gramsci, somente que agora quase sem aderência imediata na atividade política. De toda forma, uma nova geração de estudiosos de Gramsci começava a se formar no Brasil, muitos dos quais abraçam a atividade política e enfrentam o desafio de estabelecer o vínculo entre a teoria e a prática revolucionária que a obra de Gramsci enseja. Obra que precisa ser mais bem conhecida para que seja traduzida para as condições brasileiras e se faça práxis efetiva.

Referências

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  • 1
    Na história do movimento operário italiano os nos 1919-1920 ficaram conhecidos como biennio rosso, momento marcado pela experiencia dos conselhos de fábrica.
  • 2
    As Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas) foram uma organização de luta armada contra o Estado italiano que atuou nos anos 1970. Surgiu do movimento estudantil e contou com significativa base operária. Foi derrotada pela repressão estatal e se fragmentou no começo dos anos 1980.
  • 3
    Importante notar a presença de alguns trabalhos precursores como os de Alba Maria P. de Carvalho, A Questão da Transformação e o Trabalho Social: uma Análise Gramsciana, São Paulo, Cortez 1968 e de Francisco Weffort. “Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco, 1968. Cadernos do Cebrap, SP, n. 5, 1972.
  • 4
    Esse escrito foi publicado no Brasil em 2008LUKACS, György. Socialismo e democratização. Escritos políticos (1956-1971). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008., traduzido por Carlos Nelson Coutinho, dentro de uma coletânea de textos de Lukàcs (2008) nomeada Socialismo e democratização. Escritos políticos (1956-1971). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
  • 5
    Hoje esse partido chama-se Partito Democratico, agrupa egressos do antigo PCI, mas também da Democracia Cristã. Não tem mais qualquer relação com a tradição e a cultura comunista e se pode dizer que ocupe uma posição de centro direita na cena política.
  • Declaração de financiamento: A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do CNPq Proc:305847/2019-8.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
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