Acessibilidade / Reportar erro

Alexandre Rodrigues Ferreira: as estratégias narrativas das “Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais” (1790)

Alexandre Rodrigues Ferreira: The narrative strategies of the “General and particular observations on the class of mammals” (1790)

Resumo

A proposta deste artigo é refletir sobre as estratégias narrativas empregadas pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira nas “Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais”, assinadas em 1790, de maneira a atender a alguns dos objetivos da Viagem Filosófica (1783-1792) pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso. A partir do cotejamento de textos, analisaremos as escolhas e as apropriações textuais feitas de livros e manuscritos consultados durante a expedição. Além disso, mostraremos também que no escrito se apresentam conhecimentos que foram resultado de observações próprias do naturalista e de apropriações de saberes indígenas.

Palavras-chave:
Alexandre Rodrigues Ferreira; viagem filosófica; cultura escrita; animais; América portuguesa

Abstract

The aim of this article is to reflect on the narrative strategies employed by the naturalist Alexandre Rodrigues Ferreira in the “General and particular observations on the class of mammals”, signed in 1790, in order to meet some of the objectives of the Philosophical Journey (1783-1792) through the captaincies of Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso. From the comparison of texts, we will analyze the choices and textual appropriations made from books and manuscripts consulted during the expedition. In addition, we will also show that the writing presents knowledge that resulted from the naturalist's own observations and appropriations of indigenous knowledge.

Keywords:
Alexandre Rodrigues Ferreira; philosophical journey; written culture; animals; Portuguese America

A historiografia tem buscado compreender a maneira como foi construído o conhecimento produzido no âmbito da Viagem Filosófica, expedição liderada pelo naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (Salvador-1756 - Lisboa-1815) pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso entre 1783 e 1792. Atentou-se para fatores envolvidos de diversas ordens: a formação do naturalista e dos demais membros da comitiva em instituições científicas portuguesas, a aprendizagem do uso de instrumentos, materiais e técnicas de manejo de produtos naturais e de pintura e o planejamento e as condições materiais oferecidas para a execução da viagem (FARIA, 1992FARIA, M. Os estabelecimentos artísticos do Museu de História Natural do Palácio Real da Ajuda e a Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. In: ALMAÇA, C.; DOMINGUES, A.; FARIA, M. Viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira - Ciclo de Conferências. Lisboa: Academia de Marinha, 1992. p. 33-72.; RAMINELLI, 1998RAMINELLI, R. Ciência e colonização - Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Tempo, Niterói, n. 6, p. 1-20, 1998.; PATACA, 2006PATACA, E. M. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808). 2006. 245 f. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006., 2015PATACA, Ermelinda Moutinho. Mobilidades e permanências de viajantes no Mundo Português: entre práticas e representações científicas e artísticas. 2015. 385 f. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.); a inserção do naturalista e sua equipe em redes de informação no Império português e a forma como circulavam os escritos e produtos naturais coletados (DOMINGUES, 2001DOMINGUES, A. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informações no Império português em finais de Setecentos. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. III, p. 823-838, 2001.; KURY, 2004KURY, L. B. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 11, p. 109-129, 2004. Supl. 1.); a dimensão epistemológica do saber produzido - das representações feitas das populações indígenas, principalmente - (RAMINELLI, 1998RAMINELLI, R. Ciência e colonização - Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Tempo, Niterói, n. 6, p. 1-20, 1998.; CARVALHO JÚNIOR, 2000CARVALHO JÚNIOR, A. D. Do índio imaginado ao índio inexistente: a construção da imagem do índio na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. 2000. 239 f. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.; RAMINELLI, 2001RAMINELLI, R. Do conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. VIII, p. 969-992, 2001.; SAFIER, 2007SAFIER, N. “Every day that I travel … is a page that I turn”: Reading and Observing in Eighteenth-Century Amazonia. Huntington Library Quarterly, v. 70, n. 1, p. 103-128, mar. 2007.; COELHO, 2010COELHO, M. C. A epistemologia de uma viagem. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010. 176 p.; RAMINELLI, 2008RAMINELLI, R. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008.; RAMINELLI; SILVA, 2014RAMINELLI, R.; SILVA, B. da. Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 2, p. 323-342, maio/ago. 2014.). Muitos desses trabalhos chamaram a atenção para as obras e os manuscritos que Ferreira e sua comitiva carregaram consigo, bem como outros que teriam sido acessados durante o percurso da viagem, analisando como as concepções presentes nesses escritos se reverberaram na produção do conhecimento da viagem, em particular as elaboradas pelos naturalistas Carl Lineu (1707-1778) e Conde de Buffon (1707-1788), bem como pelo historiador William Robertson (1721-1793).

O presente artigo também trata da construção do conhecimento no âmbito da Viagem Filosófica. Todavia, adotaremos uma perspectiva mais próxima da história da cultura escrita: pretende-se atentar para as efetivas “práticas” (de leitura e escrita) do naturalista (CHARTIER, 1998CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1998., 1999CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: Editora UnB, 1999.). A proposta consiste em examinar uma memória específica elaborada durante a expedição: as “Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais” (1790) - e apenas as partes relativas aos animais não humanos.1 1 Uma análise dos trechos da memória referentes às populações indígenas pode ser conferida em Ferreira (2020). Trata-se da memória na qual Ferreira desenvolveu mais profundamente a sua visão sobre os animais da América portuguesa, em particular os “mamais” (mamíferos), aí compreendidos também os povos indígenas.2 2 A memória se insere num quadro mais amplo de estudos de mamalogia em Portugal (ALMAÇA, 1991). A atenção a esse documento específico, escolhido entre dezenas de outros, permitirá desvelar detalhes a respeito das formas como foram construídos os conhecimentos naquela expedição. O trabalho será feito a partir do cotejamento do texto de Ferreira com as obras consultadas (publicadas e manuscritas) durante a viagem, identificando as exatas edições de que dispôs. Dessa maneira, intenciona-se conhecer os diversos níveis e formas de apropriação textual realizadas pelo naturalista e refletir sobre as estratégias narrativas utilizadas. Com isso, corremos o risco de fazer uma análise talvez excessivamente pormenorizada de trechos da memória, mas pensamos que, procedendo dessa forma, traremos elementos reveladores das escolhas, concepções e formas de pesquisar e escrever do naturalista.

A memória não foi publicada à época, assim como nenhuma outra de sua autoria. Para esse fato, diversas explicações já foram dadas, inclusive a de que o autor teria padecido de uma “melancolia”, a partir do momento em que retornou a Portugal. Porém, deve-se levar em conta também que, com exceção de algumas de João da Silva Feijó (Cabo Verde e Ceará), também memórias escritas no mesmo contexto por outros viajantes filosóficos (Joaquim José da Silva, em Angola, e Manuel Galvão da Silva, em Goa e Moçambique) não foram publicadas à altura. Dificuldades quanto à manutenção dos produtos naturais remetidos a Portugal, à ausência de equipes preparadas para a análise daquele material e ao fato de Ferreira ter sido encarregado, após seu retorno, de postos na burocracia governamental que o afastaram do mesmo são algumas das razões que justificam o não aproveitamento dos resultados da pesquisa, inclusive em termos de publicações (RAMINELLI, 2008RAMINELLI, R. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008.). Assim, trechos das “Observações gerais e particulares” (os relativos aos povos indígenas) vieram a ser publicados somente no século XIX - no segundo tomo da Corographia historica, de Alexandre José de Mello Moraes (MELLO MORAES, 1859MELLO MORAES, A. J. de. Corographia historica, chronographica, genealogica, nobiliaria e politica do Império do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: Typographia Americana de José Soares de Pinho, 1859.) -, mas edições completas vieram à luz no século XX, a começar pela transcrição publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (volume 60, de 1934), posteriormente reproduzida na edição publicada pelo Conselho Federal de Cultura (FERREIRA, 1972FERREIRA, A. R. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Conselho Federal de Cultura, 1972.). Utilizaremos aqui, no entanto, a edição preparada por José Pereira da Silva (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.), que cotejou o texto publicado pela revista com a versão do documento que consta da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (FERREIRA, 1972FERREIRA, A. R. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Conselho Federal de Cultura, 1972.).

Concebemos por estratégias narrativas as maneiras pelas quais Ferreira pretendeu cumprir, no escrito, os objetivos da expedição relacionados aos animais locais tais como estabeleceram os idealizadores e organizadores da expedição. Entendemos que a memória é o resultado da apropriação, em diferentes níveis, que fez dos textos escritos e dos saberes - especialmente indígenas - das populações locais com quem estabeleceu contato durante a expedição, combinada com as observações diretas da natureza e dos povos locais feitas por ele mesmo. Todos esses elementos podem ser desvelados a partir da análise da própria escrita da memória. Por atentar também ao papel exercido pelas populações indígenas, esta pesquisa mostra-se alinhada a uma perspectiva historiográfica recente que vem atentando para a importância dos agentes locais (não europeus) nas expedições e na construção do conhecimento (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, G. B. Rios de Conhecimento: os povos das conquistas e expedições científicas na Amazônia e na África oriental portuguesa (1780-1798). 2020. 278 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.; DOMINGUES; ALVES-MELO, 2021DOMINGUES, A.; ALVES-MELO, P. Iluminismo no mundo luso-brasileiro: um olhar sobre a Viagem Filosófica à Amazônia, 1783-1792. Ler História, n. 78, p. 157-178, 2021.).

Há um grande número de autores e obras referidos na memória. A maioria deles não consta da conhecida listagem da Biblioteca da Ajuda - único documento conhecido que contém os escritos que a comitiva levou consigo de Portugal para o Brasil. É plausível, então, que se pense que outros escritos tenham sido acessados durante a viagem, e a esse respeito a historiografia aponta duas fontes por onde isso teria acontecido. Em primeiro lugar, Ferreira e sua equipe teriam entrado em contato com eles em Vila Bela, na biblioteca de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1739-1797), governador de Mato Grosso. Ali, o naturalista teria consultado a Histoire naturelle, de Buffon, e Voyage sur la Rivière des Amazones, de Charles de la Condamine (SIMON, 1983SIMON, W. J. Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983.). Contudo, ao menos no que se refere às “Observações”, mostraremos que as passagens que teriam sido embasadas em sua leitura de Condamine foram, na verdade, retiradas de volumes da Histoire naturelle, aos quais realmente teve acesso na biblioteca do governador. E, em segundo lugar, aponta-se a consulta aos livros de um antigo colega coimbrão, Joaquim José Cavalcanti de Albuquerque Lins, também em Vila Bela, entre os quais constariam obras de Charlevoix, Anson, Damper, Adam Smith, William Robertson, Barrère e Godin, além do próprio Buffon (SAFIER, 2007SAFIER, N. “Every day that I travel … is a page that I turn”: Reading and Observing in Eighteenth-Century Amazonia. Huntington Library Quarterly, v. 70, n. 1, p. 103-128, mar. 2007.). O fato é, porém, que as referências e citações feitas a esses e a outros autores como esses, ao menos na memória aqui analisada, foram tomadas também de Buffon, assim como de uma tradução francesa de The history of America, de Robertson.3 3 Uma das evidências de se tratar da edição francesa é o uso do termo “Hist. De l’Amerique” (FERREIRA, 2003, p. 34n). Ver também Ferreira (2020). Nesse caso, já tinha a obra em mãos pelo menos desde 1787, quando redigiu a Participação geral do Rio Negro (FERREIRA, 2020FERREIRA, B. F. L. A compreensão dos povos indígenas da América portuguesa por Alexandre Rodrigues Ferreira durante a Viagem Filosófica (1783-1790): A apropriação de uma tradução francesa de The History of America, de William Robertson. Revista de Indias, v. LXXX, n. 280, p. 719-750, 2020.). Mas, como também pretendemos deixar claro neste artigo, para além de Buffon e Robertson (e Lineu), Ferreira fez uso dos escritos de outros autores, menos ou nunca discutidos pela historiografia da Viagem Filosófica: Padre Manuel Bernardes, Giovanni Antonio Scopoli, Bernardo Pereira de Berredo, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio e Georg Marcgraf.

O título da memória é revelador a respeito da maneira como concebia a história natural: “Observações gerais e particulares, sobre a classe dos mamais observados nos territórios dos três rios, das Amazonas, Negro, e da Madeira: com descrições circunstanciadas, que quase todos eles, deram os antigos, e modernos naturalistas, e especialmente, com a dos tapuios”. Quem seriam os “antigos” e os “modernos” naturalistas? Ferreira não responde, mas pode-se supor que Lineu, Buffon e Robertson seriam alguns dos modernos, a despeito do fato de não aceitar completamente os dois primeiros. Em relação a Lineu, por exemplo, chega a manifestar preferência, em alguns momentos, à taxonomia de Scopoli (outro naturalista que pode ser considerado moderno). No tocante aos “antigos”, pode-se depreender que compreendiam, entre outros, cronistas e historiadores dos primeiros séculos da colonização da América, mencionados por ele a partir de Robertson, um autor crítico a esses mesmos escritores, considerados autores de relatos entendidos como fantasiosos (CAÑIZARES ESGUERRA, 2007CAÑIZARES ESGUERRA, J. Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo. Mexico: FCE, 2007. 638 p.). Cabe ainda atentar para o reconhecimento que ele deu, também no título da memória, às “descrições” oferecidas pelos “tapuios”.

Entendemos que as “Observações” se dividem em duas partes principais, as quais foram redigidas, em sua maior parte, em momentos distintos da viagem. A historiografia enfatizou o “cunho prático” - voltado à utilidade - das Luzes portuguesas e luso-americanas, especialmente em relação à pesquisa naturalística, que discutia possíveis soluções para os problemas financeiros portugueses das últimas décadas do século XVIII (NOVAIS, 1994NOVAIS, F. A. O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 7, p. 105-117, mar. 1994.; DIAS, 2009DIAS, M. O. L. da S. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: DIAS, M. O. L. da S. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 39-126.). A segunda parte da memória corresponde a esse caráter pragmático, estando ali contidos, para além da classificação dos animais, os seus usos econômicos, médicos e dietéticos. Nesse sentido, o conteúdo do texto se aproxima à concepção de história natural de Lineu, que compreendia a taxonomia e a busca das utilidades dos produtos naturais visando o desenvolvimento econômico do Estado (no caso dele, da Suécia) (KOERNER, 1999KOERNER, L. Linnaeus: nation and nature. Cambridge: Harvard University Press, 1999.). Todavia, essa constituía apenas um dos entendimentos do que esse domínio do saber deveria constituir. Contrapondo-se ao naturalista sueco, Buffon desenvolveu uma tradição em história natural bastante diversa: rejeitava a ideia da divisão hierárquica da natureza entre reinos, classes, ordens, gêneros e espécies e a nomenclatura lineana, interessando-se muito mais pela questão da diversidade do mundo natural e suas razões (MAYR, 1998MAYR, E. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e herança. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.). As reflexões da primeira parte condizem com a essa concepção de história natural por ter Ferreira discutido a respeito das razões da variedade (física e moral) dos animais americanos (incluindo os ameríndios).

Isto posto, o artigo está dividido em três itens. No primeiro, trataremos das circunstâncias que permitiram a escrita da memória: a formação do naturalista, os objetivos e orientações de viagem relativos a animais instituídos pelas autoridades, o planejamento da excursão, a equipe que foi constituída e as obras que a comitiva carregou consigo. Exporemos também a estrutura da memória e alguns de seus aspectos centrais. Nos itens seguintes, examinaremos separadamente cada uma das partes da memória. O segundo item tratará das apropriações e usos feitos de obras na primeira parte (Lineu, Robertson, Manuel Bernardes, Bernardo Pereira de Berredo e Scopoli); por fim, o terceiro item será dedicado às apropriações de escritos (de Lineu, Buffon, Marcgraf e Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio) e de saberes indígenas da segunda parte. Destacaremos também trechos em que o autor assinala conhecimentos que se originaram de suas próprias observações.

A Viagem Filosófica e as “Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais”

Nascido em Salvador, Alexandre Rodrigues Ferreira se transferiu para Portugal em 1770, formando-se em Filosofia na Universidade de Coimbra em 1778. Vivenciou de perto as transformações introduzidas no ensino a partir da promulgação dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772), que criaram a própria Faculdade de Filosofia, um curso voltado principalmente ao estudo das ciências naturais. Lá, teve como professor de História Natural o naturalista Domenico Agostino Vandelli (Padua-1735 - Lisboa-1816), também o idealizador do projeto de inventariação dos produtos naturais e da cultura dos povos do Império português conhecido como História Natural das Colônias, do qual a Viagem Filosófica fez parte. Ferreira veio a ser escolhido para liderar a expedição, que fez parte de um conjunto mais amplo de viagens científicas promovidas pelo Estado português, em 1783.4 4 Uma visão de conjunto sobre as viagens científicas, com a análise minuciosa das trajetórias e documentos dos naturalistas viajantes, pode ser encontrada em Simon (1983).

As “Observações gerais e particulares” constituem uma das memórias produzidas com a finalidade de atender ao objetivo de se formular conhecimento sobre povos indígenas e animais locais.5 5 Alguns dos outros escritos produzidos sobre animais foram: “Memória sobre o peixe pirarucu”, “Memória sobre as tartarugas”, “Memória sobre a jurararetê”, “Memória sobre os jacarés do Estado do Grão-Pará” e “Memória sobre o peixe-boi e o uso que lhe dão no Estado do Grão-Pará”. Estes foram publicados em Ferreira (1972). Nas “Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar” (1779), Vandelli fornecera orientações para que os naturalistas em viagens registrassem todo o “conhecimento físico e moral dos povos” das regiões visitadas, o que incluía, por um lado, sua “estatura, fisionomia e figura” e, por outro, todas as suas demais características econômicas e culturais - registro do número de habitantes, forma de construção de casas, modos com que faziam festividades, maneira como educavam os filhos, produção e consumo de alimentos, entre outros aspectos - (VANDELLI, 2008VANDELLI, D. Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar (1779). In: BRIGOLA, J. et al. (org.). O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli. Dantes Editora, 2008. p. 93-158., p. 95-96). Tratava-se de produzir uma verdadeira “etnografia” das populações indígenas, conforme foi assinalado no decreto da nomeação de Ferreira (1783 apudCOSTA, 2001COSTA, M. F. Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. VIII, p. 993-1014, 2001., p. 995). O documento de Vandelli assinalava também a necessidade de que todos os produtos naturais encontrados (dos reinos animal, vegetal e mineral) fossem descritos “conforme o sistema da natureza” e, quando possível, recolhidos e remetidos a Lisboa. Quando o envio não fosse viável (como no caso de “animais ferozes”), que fossem “[...] debuxados e, se é possível, iluminados com toda a exatidão” (VANDELLI, 2008VANDELLI, D. Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar (1779). In: BRIGOLA, J. et al. (org.). O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli. Dantes Editora, 2008. p. 93-158., p. 93). Assim, Vandelli instruía que deveria ser redigida uma “história” dos “quadrúpedes”, “aves”, “anfíbios”, “peixes” e “insetos”, isto é, a descrição de

[...] seu sustento, o tempo do seu coito, da sua prenhez, o número de seus filhos, os seus gêneros de vida, os seus costumes e instintos, as suas habitações, o modo de os caçar, o que tudo se alcança pela observação contínua feita sobre animais guardados em viveiros como pela conversação com os homens naturais do país. (VANDELLI, 2008VANDELLI, D. Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar (1779). In: BRIGOLA, J. et al. (org.). O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli. Dantes Editora, 2008. p. 93-158., p. 137-140).

Ou seja, informações que deveriam ser obtidas tanto pela observação direta quanto pela consulta às populações locais, sobretudo indígenas. O documento sublinhava também a necessidade de dar destaque aos animais que fossem “úteis” aos homens, o que significava conhecer principalmente como poderiam ser aproveitados para o comércio e a alimentação. E isso implicava, por exemplo, conhecer as formas com que eram criados, caçados ou pescados, as maneiras como eram cozidos e de que modo poderiam servir como matéria-prima para outras produções (a exemplo do couro) (VANDELLI, 2008VANDELLI, D. Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar (1779). In: BRIGOLA, J. et al. (org.). O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli. Dantes Editora, 2008. p. 93-158.).

Os problemas enfrentados na execução da viagem foram grandes. Pouco antes, sua comitiva acabou por ser desmembrada,6 6 Os demais naturalistas que fariam parte da comitiva, também formados em Coimbra, acabaram por serem enviados para outras partes do Império, também em 1783: João da Silva Feijó para Cabo Verde, Manuel Galvão da Silva para Goa e Moçambique e Joaquim José da Silva para Angola. tendo sido feitos também cortes financeiros e materiais (RAMINELLI, 1998RAMINELLI, R. Ciência e colonização - Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Tempo, Niterói, n. 6, p. 1-20, 1998.). Ferreira acabou por constituir o único naturalista (isto é, formado em Filosofia em Coimbra) da equipe, composta ainda pelo jardineiro botânico Agostinho Joaquim do Cabo e pelos desenhistas Joaquim José Codina e José Joaquim Freire. O naturalista considerou se tratar de uma tarefa muito superior à sua capacidade e das condições que lhe foram oferecidas. As instruções específicas - provavelmente escritas por Vandelli - assinalavam a necessidade de, em cada “[...] povoação, como vilas, aldeias, e lugares”, que se examinasse “todas as suas produções dentro da cidade e por toda a costa; nas aldeias para uma inteira averiguação da sua História Natural” (MENDES, 1946MENDES, J. R. Instruções relativas à viagem philosophico effectuada pelo naturalista Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, nos anos de 1783-1792. Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, t. LIII, p. 46-52, 1946., p. 48). Tratar-se-ia de um “imenso trabalho” (MENDES, 1946MENDES, J. R. Instruções relativas à viagem philosophico effectuada pelo naturalista Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, nos anos de 1783-1792. Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, t. LIII, p. 46-52, 1946., p. 51) a ser executado, conforme afirmado nas mesmas instruções, entendimento que também seria manifestado por Ferreira em carta (1784) a Melo e Castro ao relatar o quão extensa era a tarefa que tinha sido confiada a “um só homem”, a qual incluía “[...] averiguar Inscrições, costumes, Literaturas, Comércios, Agriculturas, além do peso enorme das produções dos 3 Reinos, mas que há de fazer, copiar de tudo cópias para irem, e para ficarem” (FERREIRA, 1784, p. 97-99 apudSIMON, 1983SIMON, W. J. Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983., p. 28). As dificuldades da viagem compreenderam também inúmeros episódios de doenças, como, por exemplo, o que vitimou Agostinho Joaquim do Cabo (PATACA, 2015PATACA, Ermelinda Moutinho. Mobilidades e permanências de viajantes no Mundo Português: entre práticas e representações científicas e artísticas. 2015. 385 f. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.).

O fato é, porém, que toda uma rede foi organizada no sentido de se acolher os viajantes na América portuguesa. Ademais, a comitiva incorporou indivíduos locais (sobretudo indígenas), chegando a contar com 26 pessoas (AMADO; ANZAI, 2014AMADO, J; ANZAI, L. C. Luís de Albuquerque: viagens e governo na capitania de Mato Grosso (1771-1791). São Paulo: Versal, 2014. 352 p.). Além de toda a bagagem, que incluía instrumentos de pesquisa, eram levados livros. A conhecida relação de obras do Real Gabinete da Ajuda informa os seguintes: “Flora Guyana”, “Margrav et Pison”, “Linn. Systema Naturae”, “Linn. Genera Plantarum”, “Linn. Especie Plantarum”, “Valerio”, “Chimica de Baumé”, “Scopoli”, “Govan. Histoire de Poisson”, “Histoire des Insectes” e “Diario de Capitania de S. José do Rio Negro” (Inventory list of equipment for Ferreira's expedition to Para, 1783, apudSIMON, 1983SIMON, W. J. Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983., p. 144). Nos próximos itens, comentaremos aquelas que foram utilizadas na memória sobre mamíferos.

A pesquisa foi toda feita durante o percurso de ida, navegando-se pelos rios da Bacia do Amazonas - Rio Amazonas, alguns de seus afluentes (como o Madeira e o Rio Negro) e o Rio Guaporé. Acabou-se por perfazer um total de cerca de 40 mil quilômetros. Os viajantes partiram de Lisboa a 14 de julho de 1783 e chegaram a Belém (Grão-Pará) a 21 de outubro de 1783. Em setembro do ano seguinte, adentraram à Capitania de São José do Rio Negro, na qual contaram com o apoio do governador João Pereira Caldas e a qual exploraram até janeiro de 1786. Em agosto de 1788, a equipe partiu para Vila Bela (Mato Grosso), chegando lá em outubro de 1789. De lá, Ferreira e sua comitiva excursionaram a Cuiabá, voltando para Vila Bela antes de iniciar, a 3 de outubro de 1791, o retorno a Belém, onde chegaram a 12 de janeiro de 1792. No ano seguinte, o naturalista já estava em Lisboa. A memória data de 28 ou 29 de fevereiro em Vila Bela - a depender da versão (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.). A 16 de abril de 1790, Ferreira comunicou por carta ao ministro Melo e Castro que mandara o texto original a Lisboa por meio do governador Pereira e Cáceres, que então retornava a Portugal:

Aproveito o oferecimento que S. Exa. me faz, de em sua própria companhia poder eu remeter para o Real Gabinete de História Natural, tanto os Produtos da Natureza, que tenho a meu cargo, observar e recolher; como as observações que estão feitas, e ordenadas sobre a classe dos Mamais observados nos territórios dos três rios, das Amazonas, Negro e da Madeira. (LIMA, 1953LIMA, A. P. de. O Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira. Documentos Coligidos e Prefaciados Américo Pires de Lima. Agência Geral do Ultramar, 1953., p. 294).

Na primeira parte da memória, o naturalista distingue os animais dos vegetais e minerais, define o que são mamíferos e tece considerações sobre os mamíferos americanos. Nela, os principais autores referidos são Lineu e Buffon. Porém, argumentamos que as passagens referentes ao segundo autor foram, nesse momento da memória, tomadas de obra de Robertson.7 7 As exceções são os comentários sobre a cor dos negros, baseados no “tomo 6, página 328º” de Buffon (25 e 26n) e uma citação feita do mesmo sobre religião dos índios (“Hist. Nat.; t. 6º, p. 299”) (40, n. 231). Trata-se da edição sobre a qual comentaremos no item 3a. (BUFFON, t. 6, 1752). As concepções do historiador escocês serviram de base para sua compreensão dos povos indígenas das regiões visitadas (RAMINELLI, 2008RAMINELLI, R. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008.; RAMINELLI; SILVA, 2014RAMINELLI, R.; SILVA, B. da. Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 2, p. 323-342, maio/ago. 2014.). Para concretizar o objetivo supramencionado de se obter um “conhecimento físico e moral dos povos”, fez uma grande apropriação textual de uma tradução francesa de The history of America na composição dos itens “Constituição física” (“corporal” e “espiritual”), “Constituição moral” e “Constituição política”. Neles, teceu considerações sobre aspectos físicos, religião, guerras, festas, preparo de comidas, criação dos filhos, economia, organização política, língua e sua origem - isto é, como chegaram às Américas (FERREIRA, 2020FERREIRA, B. F. L. A compreensão dos povos indígenas da América portuguesa por Alexandre Rodrigues Ferreira durante a Viagem Filosófica (1783-1790): A apropriação de uma tradução francesa de The History of America, de William Robertson. Revista de Indias, v. LXXX, n. 280, p. 719-750, 2020.).

Há nessa primeira parte também uma significativa relação de autores (“nacionais” e “estrangeiros”) e obras (de História, Matemática, Medicina e História Natural). No campo “História Natural”, referiu-se a textos que tratam “do Brasil em particular” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 51-65). Nesse contexto, a Historia Rerum Naturalium Brasiliae, de Marcgraf, é a única obra impressa que diz conhecer (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.). Ferreira faz menção a importantes autoridades relacionadas às pesquisas em História Natural no Brasil, incluindo o ministro Melo e Castro e governadores locais como Pereira e Cáceres. De forma significativa, refere-se ainda a dois “índios”, Cipriano de Souza - natural do Soure, e provavelmente incorporado à comitiva na Ilha Grande de Joanes - e José da Silva - nascido em Alter do Chão, e possivelmente com Ferreira desde a viagem pelo Rio Amazonas (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, G. B. Rios de Conhecimento: os povos das conquistas e expedições científicas na Amazônia e na África oriental portuguesa (1780-1798). 2020. 278 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.) -, os quais serviram “de preparadores dos referidos produtos com a habilidade e sujeição que havia representado o naturalista”. Como ele mesmo atesta, Souza e Silva foram tão relevantes para sua pesquisa que, em contrapartida, foram promovidos a alferes pelo governador do Grão-Pará, Martinho de Souza e Albuquerque (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.). Os agradecimentos aos “patronos da expedição”, que incluíam essas referências a Souza e Silva, já constavam do diário relativo ao Grão-Pará, de 1787 (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, G. B. Rios de Conhecimento: os povos das conquistas e expedições científicas na Amazônia e na África oriental portuguesa (1780-1798). 2020. 278 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.). Há ainda nessa parte do texto de Ferreira uma relação de “memórias” e “participações”, outros agradecimentos aos “auxílios prestados por autoridades” e uma tabela dos “mamais” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.).

Na segunda parte, o autor descreve e classifica 71 espécies ou variações dessas espécies de mamíferos (ou “Ordem dos Quadrúpedes”) das regiões percorridas, divididas em 25 gêneros. Via de regra, a exposição de cada animal segue o mesmo padrão: primeiramente, fornece-se o gênero e o nome da espécie, de acordo com o sistema de Lineu. Depois, insere-se o nome da espécie (e, quando há, de suas “variações”) em “Paraensibus” (nome local, aprendido junto aos locais) e em “Lusitanis” (nome português). Segue-se uma relação de autores e obras que já haviam tratado do animal em questão, uma descrição e uma lista de suas características físicas, uma “História” - com mais características físicas, e geralmente informações de seu “comportamento”, com o que atende à orientação de Vandelli de se anotar a “história” do animal - e, por fim, são assinalados seus “usos”, isto é, as utilidades “médicas”, “dietéticas” e “econômicas” que podem proporcionar ao homem. Aqui Robertson praticamente desaparece,8 8 Com exceção de trecho da primeira espécie descrita, o Homo sapiens, no qual há uma citação de Robertson (FERREIRA, 2003, p. 79-80). Esse verbete (do “Homem”, em “Lusitanis”; “Abá Mir”, em “Paraensibus”) constitui-se como uma exceção, pois nele não há listagem de autores e obras, descrição de características físicas, “História” e “Usos”. Nele, discute-se principalmente sobre a existência de seres “monstruosos” (“por artifício” e “por natureza”) (FERREIRA, 2003, p. 73-78). e o naturalista se vale principalmente da Histoire naturelle, de Buffon, agora sim diretamente, numa edição que havia sido recém adquirida por Pereira e Cáceres. Fez também usos de Lineu, Marcgraf e Francisco Xavier Pereira de Sampaio, além de observações pessoais e dos saberes indígenas.

Primeira parte

Lineu

Conforme a relação de obras retiradas da Biblioteca da Ajuda, os livros de Lineu levados à América portuguesa foram Systema naturae, Genera plantarum9 9 Publicadas diversas edições a partir de 1737 (LINNAEI, 1737). e Species plantarum10 10 Publicadas diversas edições a partir de 1753 (LINNAEI, 1753). . Porém, aqui os utilizados foram Systema naturae e Philosophia botanica. Da primeira obra, fornece referência: “Syst. Nat. Edit. 12. Tom. 1º”, seguido pelo número da página. Trata-se certamente do primeiro tomo da 12ª edição, publicado em Estocolmo em 1766 (LINNÉ, 1766LINNÉ, C. Systema Naturae. Tomus I. Holmiae: Impensis Direct. Editio Duodecima, Laurentii Salvii, 1766.). Elas aparecem nas definições de animais e mamíferos. Assim, assinala serem os animais e vegetais “máquinas hidráulicas” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 15), tal como Lineu faz na página a que se referiu (“Syst. Nat. Edit. 12. Tom. 1º, Pág. 15”). Nesta, Lineu define os animais como “organização viva” (“organisatione viva”) e “máquina hidráulica” - o que os vegetais também seriam (“Machina Animalis hydraulica, conformis Vegetabili”) (LINNÉ, 1766, p. 15). Já com base na Philosophia botanica11 11 Assumimos aqui se tratar da primeira edição, de 1751. , afirma serem os animais “corpos naturais que são organizados, vivem e sentem”; diferem dos vegetais pois estes são organizados e vivem, mas não “sentem”, e dos minerais, que “nem são organizados, nem vivem, nem sentem” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 15). Faz alusão ao “Aphor 3” desta obra, em que há o mesmo entendimento: “LAPIDES crescunt. VEGETABILIA crescunt & vivunt. ANIMALIA crescunt, vivunt, & sentiunt” (LINNAEI, 1751LINNAEI, C. Philosophia Botanica. Stockholmiae: Apud Godofr. Kiesewetter, 1751., p. 1).

Já para caracterizar os mamíferos, primeiramente aponta constituírem “[...] a primeira das seis classes que, no Sistema de Lineu, se divide o Reino Animal” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 15). Nesse ponto, reconheceu estar usando o termo “mamais” em vez de “quadrúpedes”, mudança instituída a partir da 10ª edição do Systema naturae (LINNAEI, 1758LINNAEI, C. Systema naturae. Tomus I. Editio Decima. Holmiae: Impensis Direct. Laurentii Salvii, 1758.):

Ao antigo nome de ‘quadrúpedes’, com que a maior parte dos naturalistas distinguiu sempre esta classe, substituiu Lineu, o de ‘mamais’, porque, sendo o caráter das mamas universalmente constante, ou eles sejam terrestres como são o boi, a ovelha, o porco e a cabra; ou aquáticos como a foca, o boto, o peixe-boi, o golfinho e a baleia; ou anfíbios como a lontra, a anta, a capivara; ou aéreos como o morcego e o lêmure, todos têm estre e o maior número de outros caracteres distintivos dela. Pelo que lhe devem pertencer, segundo um sistema natural e não arbitrário. (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 16).

Para além das mamas, os outros critérios usados por Lineu para caracterizar os mamíferos (LINNÉ, 1766LINNÉ, C. Systema Naturae. Tomus I. Holmiae: Impensis Direct. Editio Duodecima, Laurentii Salvii, 1766., p. 16 e 19) também foram assinalados e valeriam “tanto [para] europeus como americanos”. São os pertinentes à “estrutura interna” - “coração”, “respiração pulmonar recíproca” e “cinco câmaras” (“Animal, que é a medular”, “Vital ou pneumática”, “Natural ou hidráulica”, “Alimentar ou digestiva” e “Genital ou espermática”) - e “externa” - “maxilas incumbentes e cobertas”, “órgão genital masculino penetrante”, “cinco sentidos”, “pelos”, “artos” e “cauda”. (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 17).

William Robertson

Em meio à lista de autores estrangeiros que trataram do Brasil, Ferreira anotou: “Mr. Rubertson, principal da Universidade de Edimburgo e historiógrafo de Sua Majestade Britânica, no prefácio à História que escreveu da América, prometeu ajuntar-lhe a das colônias portuguesas e outros estabelecimentos europeus nas ilhas da América” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 56). A promessa nunca foi cumprida, mas Ferreira de certa forma realizou esse trabalho. Nesse caso, ele foi muito além de um uso de informações retiradas do livro original, como fez com Lineu: o naturalista efetivou uma verdadeira apropriação textual. Para além do uso da Historie de l’Amérique na compreensão dos povos indígenas - com o que cumpriu a exigência dos supracitados decreto de sua nomeação e orientações de viagem de se realizar uma “etnografia” dos povos locais (FERREIRA, 2020FERREIRA, B. F. L. A compreensão dos povos indígenas da América portuguesa por Alexandre Rodrigues Ferreira durante a Viagem Filosófica (1783-1790): A apropriação de uma tradução francesa de The History of America, de William Robertson. Revista de Indias, v. LXXX, n. 280, p. 719-750, 2020.) -, utilizou livremente trechos da mesma obra, de maneira traduzida e adaptada, em sua análise dos animais americanos, e o fez nas suas quatro “observações”.

No “Livre Quatrième”, Robertson traça um quadro das características geográficas, físicas e naturais da América, que incluíam reflexões sobre os animais americanos. Essas considerações são em grande medida amparadas na Histoire naturelle, de Buffon. São quatro os itens em que tratou diretamente dos animais: “Animaux”, “Quadrupedes”, “Insectes & reptiles” e “Oiseaux” (ROBERTSON, 1777ROBERTSON, W. Histoire de l’Amérique. Tome Second. Paris: Panckoucke, 1777.). Excetuando-se o último (sobre aves), Ferreira mobilizou os demais na escrita da primeira, segunda e quarta “observações”, ainda que não o afirme (Quadro 1). Anteriormente, Robertson vinha argumentando que a natureza e o clima do continente americano são, por diferentes razões, muitas vezes diferentes daqueles do Antigo Continente, mesmo em regiões de mesma latitude. Em particular, em relação à “América Meridional”, considera que se trata de um território dominado pela vegetação. Seus habitantes - “grosseiros” e “indolentes” - poderiam trabalhar para “melhorá-la” (cultivando-a, por exemplo), mas nada fazem. Ferreira tem em mente esse quadro de uma natureza inóspita, relegada a um estado “bruto” e “abandonado” (ROBERTSON, 1777ROBERTSON, W. Histoire de l’Amérique. Tome Second. Paris: Panckoucke, 1777.), quando inicia a sua 1ª “observação”.

As duas primeiras “observações” guardam correspondência com “Animaux” e “Quadrupedes”. Vejamos paralelamente os textos. A escrita de Robertson, como se poderá ver, foi reorganizada, de forma traduzida e adaptada.

Quadro 1 -
William Robertson e Alexandre Rodrigues Ferreira

O cotejamento mostra não apenas a incorporação das concepções robertsonianas, mas também de sua escrita. Assim, por exemplo, “o princípio da vida animal [...] não tem na América Meridional uma tão grande força e atividade como a da vida vegetal” é praticamente uma paráfrase traduzida de “Le principe de la vie sembloit y avoir moins de force & activité que dans l’ancien continent”. Ou mesmo “Ultimamente, de quantas espécies de quadrúpedes povoavam a superfície do globo, observou De Buffon que apenas se achou a terça parte na América quando se descobriu”, a sua versão para “De deux cents especes différentes de quadrupes répandues sur la surface de la terre, on n’en trouva en Amérique qu’environ um tiers lorsqu’ele fut découverte”. A referência da Histoire naturelle, de Buffon (tomo IX, página 86) é igual a que consta em Robertson, evidência de que o uso feito do naturalista francês, nesse momento do texto, deu-se por via indireta, sem recorrer à obra original.12 12 Indicação que não corresponde à edição que, tal como sugerimos adiante, foi a acessada em Vila Bela. Ele acaba por reproduzir, por meio de Robertson, a tese buffoniana da inferioridade dos animais americanos, em termos de tamanho, vigor e “ferocidade”.13 13 Sobre a questão, ver Gerbi (1996, p. 19-41). Destaca-se também a reprodução do comentário de Robertson sobre o “tapir du Brésil” - traduzido como “anta” - e o “pumas o juguars”, que ele chama de “onça”, reverberando também a argumentação do historiador escocês de que a denominação “tigre” (assim como “leão”) seria incorreta. Nesse momento, além de Buffon, Robertson inclui também a referência à Historia naturalis Brasiliae, de Marcgraf (e Piso) - uma questão à qual retornaremos mais adiante.

A intertextualidade entre esses trechos é, portanto, evidente, diferentemente do que ocorre na 3ª “observação”. Nesse momento, ele parte também do pressuposto da inferioridade dos animais americanos, mas insere outros exemplos de animais brasileiros; afirma que há, no Brasil, “animais pequenos”, como “diversas espécies de macacos, de preguiças, de tatus, de tamanduás, de mucuras, de acutipurus”, os quais são “muito mais débeis e tímidos que do Antigo Mundo”. Por sua vez, outros animais “introduzidos pelos europeus” - o “cavalo, o macho, a mula, o jumento, o boi, a ovelha e a cabra - “[...] raras vezes se fazem aqui tão grandes e tão robustos, como ali”. O mesmo se dá com gatos e cães: em relação a este último, suas “raças” logo “degeneram”. Todavia, fornece um exemplo em contrário, com o que de certa forma abre margem para a contestação da tese buffoniana da degeneração. O gado introduzido em algumas regiões do Brasil constituiria exceção entre os da América: “[...] todo o gado da colônia é grande, robusto e de melhor sabor que o das outras províncias” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 18).

Na 4ª “observação”, sobre insetos, apropria-se também de trechos de Robertson, como o no qual afirma: “Porém, a razão é que as mesmas causas que diminuem a força e o volume dos grandes são as que favorecem e aumentam a propagação dos pequenos” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 19). Trata-se de uma reescrita adaptada de “Mais les mêmes causes qui concourient à diminuer le volume & la vigueur des plus grands animaux, favorisoient la propagation & l’accroissemant des reptiles & des insectes”, de “Insectes & reptiles” (ROBERTSON, 1777ROBERTSON, W. Histoire de l’Amérique. Tome Second. Paris: Panckoucke, 1777., p. 21). Além disso, acrescenta comentários sobre sua própria experiência no local: “Só quem por aqui viaja pode formar uma justa ideia das nuvens de insetos de que se tolda o céu e do prodigioso número de cobras e de lagartos que alastram a terra”, assegurando que os “tapuios” consideram a formiga o “Rei do Brasil”. Insere também trechos sobre formigas da Nova floresta (1706), obra do Padre Manuel Bernardes (1644-1710) (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 19).14 14 A passagem encontra-se em Bernardes (1706, p. 273).

Segue-se um “Problema”. Afirma ter lhe sido relatado pelo Capitão Inácio Rodrigues da Silva a descoberta de ossos de grande tamanho na vila de São João del-Rei, entre 1770 e 1771, o que lhe permite questionar (abre-se “uma porta franca a milhares de conjecturas”) a noção buffoniana de que a “América, desde o seu princípio, não tem produzido senão pequenos animais, em comparação com os do Antigo Mundo”. Anota também terem sido encontradas grandes ossadas “perto do rio Ohio”, de acordo com o “Diário do coronel Jorge Groglan” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 20-21). Essa informação foi retirada de uma das notas de fim da Histoire de l’Amérique, a “Note XXXIV”. Nesta, Robertson comenta sobre a grande ossada encontrada no rio Ohio e reportada no “Journal of colonel George Croglan”, assinalando também o grande número de “conjectures” provocadas pela existência desses grandes animais na América (ROBERTSON, 1777ROBERTSON, W. Histoire de l’Amérique. Tome Second. Paris: Panckoucke, 1777., p. 453-454).

Bernardo Pereira de Berredo

Ferreira certamente não consultou todas as obras citadas na relação de “escritores da América”. Embora não mencione, extraiu boa parte delas do “Catálogo dos Livros, e Relações Manuscritas, em que se acham algumas memórias do Estado do Maranhão”, que consta da obra de Bernardo Pereira de Berredo (governador do Estado do Maranhão entre 1718 e 1722), Anais Históricos do Estado do Maranhão (BERREDO, 1749BERREDO, B. P. Annaes historicos do Estado do Maranhaõ. Lisboa: Na Oficina de Francisco Luiz Ameno, 1749.).15 15 O Catálogo encontra-se na parte inicial da obra, na qual não há numeração. Da listagem de Berredo, selecionou aquelas que tratavam diretamente do Brasil, dividindo-as entre “publicadas” e “manuscritas”. Entre as primeiras, encontram-se obras como as de Francisco de Brito Freire, Antônio Galvão, Pedro de Magalhães, Sebastião da Rocha Pita e Simão de Vasconcelos. Entre as segundas, a “Relação da jornada de Jerônimo de Albuquerque para a conquista do Maranhão”. Inseriu também a própria obra de Berredo na sua relação: “BERREDO. Bernardo Pereira de Berredo, governador e capitão-general que foi do Estado do Maranhão. Anais históricos do referido Estado” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 51-52).

No item sobre História Natural, assinalou que o “autor dos Anais históricos do Estado do Maranhão nos assegura ter achado, na Biblioteca do conde de Vimieiro”, o manuscrito Relação geral de toda a conquista do Maranhão, de Frei Cristóvão de Lisboa. Da mesma forma, registra ter Berredo encontrado outro manuscrito, História natural e moral do Maranhão e Pará, do mesmo frade, na “Biblioteca de D. Antônio Álvares da Cunha” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 63). Essas informações foram extraídas do mesmo Catálogo de Berredo.

Giovanni Antonio Scopoli

A primeira parte da memória se encerra com uma tabela de classificação dos “mamais” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.). Trata-se da taxonomia na qual se sustentará parcialmente a classificação dos mamíferos das regiões percorridas da segunda parte. Antes, explica que, embora siga a “distribuição de Lineu quanto às classes”, não faz o mesmo em relação às ordens (“nem em todas elas a sigo”). Manifesta preferência pela maneira de classificar oferecida pelo naturalista ítalo-austríaco Giovanni Antonio Scopoli (1723-1788) em sua obra Introdvctio ad historiam natvralem (1777), retirada da Biblioteca da Ajuda. A diferença residiria no fato de que, enquanto as ordens do sistema de Lineu são fundamentadas “principalmente nos dentes”, o “método” de Scopoli estabelece como critério as extremidades dos membros. Assim, acaba por optar em dividir os mamíferos entre as ordens dos “Unguiculados” (dedos terminados em unhas) e “Ungulados” (em cascos). O problema do “Sistema de Lineu” é que nele

[...] se reduzirem a diferentes ordens, como ele faz, o manatus e o delphinus, o vespertilio e o noctilio, o rinoceronte e o elefante; e para se familiarizar e reduzir a uma e a mesma ordem, o cão, por exemplo, que é quadrúpede e terrestre, e a foca, que é pinada e pelágica, obstam as leis das afinidades. (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 68).

Scopoli havia classificado 46 animais divididos em dois “Gens”: “Cetacea” e “Quadrupedia”. Este último apresenta também duas divisões: “Aqvatilia” e “Terrestria”. A segunda divisão é composta por duas ordens: “Vungulata” e “Vnguiculata” (SCOPOLI, 1777SCOPOLI, G. A. Introdvctio ad Historiam Natvralem. Pragae: Apud Wolfangvm Gerle, Bibliopolam, 1777., p. 485-503). Foi com base nessa classificação de animais que Ferreira elaborou sua tabela. Os mamíferos que constam nela correspondem, em sua maioria, aos do texto de Scopoli. O naturalista luso-americano, todavia, inseriu outros animais e alterações na classificação: Os “Gens” passaram a ser três, “Quadrúpedes”, “Alados” e “Pinados”; os Quadrúpedes foram divididos entre “Terrestres” e “Anfíbios”. A classificação da tabela é a que sustentará a descrição das 71 espécies (e variações) de mamíferos da América portuguesa, que constará da parte seguinte. Nesta, os animais serão identificados por seu “gênero” e “espécie” de acordo com o Sistema natural, de Lineu. Apenas no caso da anta é que são assinalados conforme o sistema de Scopoli (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.).

Para completar, Ferreira inseriu ao final da segunda parte uma citação da mesma obra de Scopoli, dessa vez fornecendo a referência: “Scopol. Int. ad. Hist. Nat. Trib. XII, pág. 485” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 70).

Segunda parte

Buffon, Lineu e Marcgraf

A partir do segundo gênero, “Simia” (em Paraensibus, “Macaca”), fez uso contínuo da Histoire naturelle, de Buffon, em conjunto com Lineu e Marcgraf. Dessa vez, todavia, não foi por meio de Robertson: se valeu dos volumes da biblioteca do governador Pereira e Cáceres, em Vila Bela. Segundo Janaína Amado e Leny Caselli Anzai, “[...] em 1788, o capitão [governador Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres] recebeu ‘Histoire Naturelle de Buffon, 52 volumes em 12’” (AMADO; ANZAI, 2014AMADO, J; ANZAI, L. C. Luís de Albuquerque: viagens e governo na capitania de Mato Grosso (1771-1791). São Paulo: Versal, 2014. 352 p., p. 138). No entanto, desconhecemos edição em 52 volumes vinda à luz até 1790, e sugerimos a possibilidade de que se tratava da edição em 31 volumes, também “em 12”, publicada pela “Imprimerie royal” entre 1752 e 1768 em Paris. Nos oito primeiros tomos desta, há a menção de que se trata da 5ª edição; é a única cujas referências fornecidas (data da publicação e número de página) correspondem aos dos tomos assinalados: os de número 14, 16, 17, 20, 21, 24, 25, 26, 27 e 30 (o tomo 9, antes citado a partir de Robertson, não é mais referido). Os verbetes da Histoire naturelle, em geral, contêm comentários sobre o animal, que incluem considerações sobre os autores que já dele trataram e de aspectos como suas características físicas, comportamento, habitat e alimentação, seguidas por uma “Descrição” (especialmente medições das partes do corpo) deles feita por Louis-Jean-Marie Daubenton (1716-1800) e imagens dos animais.

A apropriação mais constante de Buffon se dá na construção da listagem de autores e obras que trataram dos animais. Via de regra, Ferreira copia as indicações bibliográficas que constam das notas de rodapé da Histoire naturelle, de Buffon, acrescentando à mesma listagem o próprio volume consultado. Quando o Systema Naturae é citado pelo naturalista francês, ele geralmente substitui a edição mencionada pela que tinha em mãos (de 1766). Outro uso frequente é a utilização de passagens do texto (traduzidas) em que Buffon trata de outros autores (sem mencionar que foram tomadas de Buffon).

Vejamos o caso do “Tatu-guaçu”, ou “Tatu grande”. Ferreira lista os seguintes autores e obras: “Tatououassou. Abbewille. Mission au Margnon. Paris, 1614, p. 247”, “Tatus maior, moschum redolens. Tatou Kabassou. Barrere. Franc Equinoct., p. 163”, “Tatu. s [ou “Tatus”] Armadillo Africanus. Seba, vol. 1º, p. 47, tab. 30, fig. 3ª e 4ª”, “Cataphractus Scutis duobus, cingulis duodecim. Armadillo Africanus. Brisson. Regn. Animal, p. 43”, “Le Kabassou, ou Tatou à douze bandes. De Buffon. Hist. Nat., t. 21, p. 52” e “Dasypus unicinctos, tegmine tripartito, pedibus pentadactylis. Lineu. Syst. Nat., p. 53, Gen. 10, sp. 1ª” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 99). Com exceção das referências a Lineu e ao próprio Buffon, são referências que se encontram nas notas do verbete “Le Kabassou, ou Tatou à douze bandes”, do 21º tomo da Histoire naturelle (BUFFON, 1765aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-unième. A Paris, De L’Imprimerie Royale. 1765a., t. 21, p. 53n). Neste, Buffon fez uma menção a Lineu a partir da obra de Brisson, mas Ferreira preferiu fazê-la a partir da edição que acessou. À referida página 53 do Systema naturae (1766) encontramos justamente a descrição do Gênero “10. Dasypus”, na qual menciona o “unicinctus. I. D. tegmine tripartito, pedibus pentadactylis”. No texto de Lineu, segue-se também uma listagem de autores e obras que trataram do animal, que inclui algumas das mesmas referências dadas por Buffon, como “Tatu S. Armadillo africanus. Seb. mus. I. p. 47, t. 30, f. 3, 4” e “Cataphractus scutis duobus, cingulis 12, Briss. quadr. 43” (LINNÉ, 1766LINNÉ, C. Systema Naturae. Tomus I. Holmiae: Impensis Direct. Editio Duodecima, Laurentii Salvii, 1766., p. 53), citados de maneira ligeiramente diferente. Mas há também na lista outros autores não mencionados por Ferreira.

Há também itens em que a listagem de autores e obras não foi extraída de Buffon, mas inteiramente de Lineu. É o caso das obras sobre o “Saguaçu-apara” (“Paraensibus”) ou “Veado galheiro”, entre as quais não consta a Histoire naturelle. As obras citadas são: “Mazama. Hernand. Hist. Mexic. 324” e “Cuguaçu-apara, Marcgrav. Brasil. 235”, além de “Cervus cornibus ramosis teretibus; erectis; summitate bífida. Syst. Nat., p. 94, sp. 6º” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 135). Na edição do Sistema naturae de 1766 (Gênero “Cervus”, espécie “6. Capreolus”), encontram-se essas referências (LINNÉ, 1766LINNÉ, C. Systema Naturae. Tomus I. Holmiae: Impensis Direct. Editio Duodecima, Laurentii Salvii, 1766., p. 94), o que mostra que mesmo Marcgraf foi citado por via indireta.

Porém, para além das listagens, quando, no corpo do texto, menciona algum autor ou introduz alguma citação, geralmente o faz por meio de Buffon. Alguns dos “verbetes” com mais referências a autores são: “Raposa do Brasil”, “Anta”, “Peixe-Boi” e “Tatu-Guaçu”.

O item sobre a “Raposa do Brasil” (Lusitanis), ou “Mucura-uaçu” (Paraensibus), ou ainda “Saruê, Gambá, Jupatiíma” (Brasilensibus aliis), contém uma longa lista de autores e obras, na qual seguiu o padrão de extraí-los de Buffon, alterando também a referência de Lineu. Uma das obras é “Carigueya. s. Marsupiale americanum. Anathomy of an opossum, by Edward Tyson”. Durante o texto, ele introduz uma longa “circunstanciada descrição que dela [a “Raposa do Brasil”] deu Eduardo Tison”. O início da citação atribuída ao anatomista inglês Edward Tyson (1651-1708) é o seguinte: “No ventre da fêmea (diz ele) há uma fenda do comprimento de duas até três polegadas, a qual é formada por duas peles que compõem um bolso, mais cabeludo por fora do que por dentro, e no referido bolso estão encerradas as mamas” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 117). Tal trecho foi, na verdade, extraído de Buffon: “Sous le ventre de la femelle est une fente qui a deux ou trois pouces de longueur, cette gente est formée par deux peaux qui composent une poche velue à l’exterieur & moins garnie de poil à l’interieur, cette poche renferme les mamelles” (BUFFON, 1765aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-unième. A Paris, De L’Imprimerie Royale. 1765a., t. 21, p. 167). Não se trata, portanto, de uma citação direta de Tyson, mas de um trecho no qual Buffon relata o que foi descrito por Tyson.

Quando trata da “Anta” (Lusitanis), ou “Tapireté” (Paraensibus), registra:

É o maior dos quadrúpedes do Novo Continente, de maneira que De Buffon lhe chama o elefante da América. Marcgraf o compara a um bezerro semestre. Acunha, a uma mula e De Buffon, a uma pequena vaca. O manipori, diz o Pe. Fauche, é uma espécie de mula selvagem. Pouco menor é que uma mula, diz Herreira. De Lery diz que se pode dizer que ela é meia vaca e meia burra, se bem que de ambos aqueles animais difere em ter a cauda muito curta e os dentes muito mais cortantes e agudos. Do mesmo parecer é Thevet, o qual diz que a tapihira lhe parece participar tanto de burra como de vaca. (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 140).

Nesse caso, Ferreira reuniu diversos trechos dispersos do volume 23 da Histoire naturelle.16 16 No caso da anta, o tomo assinalado por Ferreira é o 24 (FERREIRA, 2003, p. 140n), porém o verbete encontra-se no 23. Certamente cometeu um engano. Com exceção do trecho segundo o qual “De Buffon lhe chama o elefante da América”, que não consta do verbete relativo à anta,17 17 Consta do tomo 18, no capítulo intitulado “Animaux du Nouveau Monde”: “cet animal, le plus grand de tous, cet éléphant du noveau monde” (BUFFON, 1764a, t. 18, p. 127). os demais foram tomados deste. A partir da página 271, conforme indicado, encontramos as seguintes afirmações, as quais traduziu: a do próprio Buffon, segundo o qual “C’est ici l’animal le plus grand de l’Amérique” (BUFFON, 1766aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-troisième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1766a., t. 23, p. 271) e “Le tapir (pl. XLIII) est de la grandeur d’une petite vache ou d’un zebu” (BUFFON, 1766aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-troisième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1766a., t. 23, p. 274); de Marcgrav: “Animal quadrupes, magnitudine juvenci Semestris” (BUFFON, 1766aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-troisième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1766a., t. 23, p. 274n); do P. Fauche: “Le manipouri est une espèce de mulet sauvage” (“Lettres édifiantes, XXIVe recueil. Lettre du P. Fauche, datée d’Ouyapok, 20e Avril 1738”) (BUFFON, 1766aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-troisième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1766a., t. 23, p. 277n); e dos demais:

Quelques voyageurs l’ont appelé Mulet ou Mule sauvage, Asne-vache, Vache sauvage - Les dantes, dit Acosta, ressemblent aux petites vaches & encore mieux à des mulets, parce qu’ils n’ont point de cornes; Histoire naturelle des Indes, page 200. - Tapiroussou, âne-vache du Brasil...... On peut dire que cet animal est demi-vache & demi-âne, quoiqu’il difere entièrement de tous les deux, tant de la queue, qu’il a fort courte, que des dents, lesquelles il a beaucoup plus tranchantes & plus aiguës. Voyage de de Lery, page 151 - Le tapihire me semble participer autant de l’âne que de la vache. Thevet. Page 96. - Les ants sont des bêtes quase comme des mulets, moindres toutesfois. Herrera, pag. 251. (BUFFON, 1766aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-troisième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1766a., t. 23, p. 272n).

Outro caso significativo é o do “Yuarauá” (Paraensibus), ou “Peixe-boi” (“Lusitanis”). Diz Ferreira (entre colchetes, as notas de rodapé):

O peixe-boi, que observou e mediu Mr. De la Condamine, tinha o comprimento de sete pés e meio (medida de pé de rei) e a grossura de dous [“Voyage sur la Riviere des Amasones, in 8º, p.154”]. De entre os muitos que Mr. Adanson, quando esteve no Senegal, mediu e pesou, os maiores, diz ele que não excederam o comprimento de oito pés e o peso de quase 800 libras. E que uma fêmea de cinco pés e três polegadas pesara 194 [“Lamantin do Senegal”]. Doze pés dá Lineu ao que descreve, e 100 libras de peso [“Syst. Nat. Edit. 12, p. 49, s. 2”]. O peixe-boi que descreveu o autor da Viagem às Ilhas da América tinha de comprimento quatorze pés e nove polegadas [“Nouveau Voyage aux îles del’Amérique. Paris, 1722, t. 2, p.200”]. Alguns há (diz Oviedo) que têm quinze pés de compridos e seis de grossos [“Hyst. Ind. Occident, lib. 13, cap. 10”/“Hist. Nat. Occidental Sib.”]; de maneira que, para transportá-los, é precisa uma junta de bois. De dezesseis pés e meio, certifica Clurio que vira uma pele, a qual tinha sete e meio de larga [“Exot. 133”]. De outros, afirma Gomara que se estendem a vinte pés [“Hist. Gen. cap. 31”]. Binnet compara a sua grossura à de um boi e a figura de um tonel [“Voyage en île de Cayenne”]. Os que habitam nos lagos do Orinoco, diz Gumilla, pesam de 500 a 750 libras [“Orinoco III”]. (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 151-152).

Todos os excertos foram tirados de tomo da Histoire naturelle, referenciando-o na lista de autores e obras: o “t. 27, p. 207” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 151). Numa longa citação de Condamine feita por Buffon, encontra-se: “Celui que je deffinai (ajoute M. de la Condamine) étoit femelle, sa longueur étoit de sept pieds & demi de roi, & sa plus grande largeur de deux pieds” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 223), cuja fonte é “Voyage sur la rivière des Amazones, par M. de la Condamine, in-8º pag. 154 & suiv. Mémoires de l’Acad. Des Sciences, 1745, pages 484 & 485” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 225n). Os trechos referentes aos demais autores também provieram de Buffon: “J’ai beaucoup de ces animaux (dit M. Adanson); les plus grands n’avoient que huit pieds de lougueur & pefoient environ huit cents livres” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 226); “celui qu’il vit & qu’il mesura, avoit quatorze pieds neuf pouces” (BUFFON, 1766b, t. 27, p. 229), citação feita do “Nouveau Voyage aux îles de l’Amérique, tome II, page 200 & suiv” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 221n); “Il y a de ces animaux qui ont plus de quinze pieds de longueur sur six pieds d’épaisseur” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 213), tomada de “Ferdin. Oviedo. Hist. Int. occid. Lib XIII, cap. X” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 212n); “Clusius dit avoir vu & mesuré la peau d’un de ces animaux, & l’avoir trouvée de seize pieds & demi de longueur, & de sept pieds & demi de largeur” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 212); “Gomara assure qu’il s’en trouve quelquefois qui ont vingt pieds de longueur” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 212), tomada de “Fr. Lopes de Gomara. Hist. gen. cap. XXXI” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 212n); “Binet dit que le lamantin est gros comme um boef, & tout ronde comme un tonneau” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 215), tomada de “Voyage en l’île do Cayenne, par Antoine Binet, page 346” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 215n); e a citação feita de Gumilla: “ces animaux, - dit-il, pèsent chacun depuis cinq ‘cents jusqu’à sept cent cinquante livres” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 222), tomada de “Histoire de l’Orénoque, par le P. Gumilla” (BUFFON, 1766bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b., t. 27, p. 222n). A exceção é Lineu, cuja informação foi extraída do original de que dispunha.

Outro exemplo interessante se dá nos “usos médicos” do “Tatu-guaçu”, nos quais registrou:

O autor da anotação ao Capítulo 8 de Marcgrav, transcrevendo a Monardo e Ximenes, sobre as virtudes médicas que aqueles autores atribuíram aos cascos dos tatus, escreveu que, pulverizado ele, e tomado interiormente em pequena dose, era um excelente sudorífico. Que o das lâminas da maior parte inferior do dorso, dado em pó, era antivenéreo, e em massa, sendo aplicado interiormente, extraía os espinhos de toda e qualquer parte do corpo. Que o primeiro osso da cauda, aplicado aos ouvidos, removia a surdez etc. Semelhantes virtudes não sei que até agora tenham sido autorizadas pela experiência dos Doutos. Mas, quanto a mim, o que diz De Buffon é verdade: que “o casco e os ossos do tatu são da mesma natureza que os dos outros animais. (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 100).

Temos, portanto, as menções a Marcgraf e Buffon. Na Histoire naturelle, em “Cirquinçon ou Tatou à dix-huit bandes”, encontra-se o seguinte:

Monard, Ximénès, & plusieurs autres après eux, ont attribué d’admirables propriétés médicinales à différentes parties de ces animaux. Ils ont affuré que le têt réduit en poudre & pris intérieurement, même à petite dose, est un puissant sudorifique; que l’os de la hanche aussi pulvérisé, guérit du mal vénérien; que le premier os de la queue appliqué sur l’oreille fait entendre les sourds, &c. Nous n’ajoutons aucune foi à ces propriétés extraordinaires, le têt & les os des tatous sont de la même nature que les os des autres animaux. Des effets aussi merveilleux ne sont jamais produits que par des vertus imaginaires. (BUFFON, 1764BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-huitième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764a., t. 21, p. 70-71).

Porém, percebe-se que não há aí qualquer referência a Marcgraf.

Nesse caso, Ferreira certamente utilizou a obra do naturalista alemão. Como vimos, na lista de obras retiradas da Biblioteca da Ajuda constava “Margrav et Pison”, e ele afirmou que a Historia rerum naturalium Brasiliae era a única obra impressa de História Natural que conhecia. Trata-se da obra Historia naturalis Brasiliae (PISONIS; MARCGRAVI, 1648PISONIS, G.; MARCGRAVI, G. Historia Naturalis Brasiliae. Lugdun. Batavorum, apud Franciscum Hackium, et Amstelodami, apud Lud. Elzevirium, 1648.), em particular da parte de autoria de Marcgraf.18 18 Tratou-se certamente da Historia Naturalis Brasiliae (1648), de Piso e Marcgraf, e não da obra publicada posteriormente por Piso, De Indiae Utriusque Re Naturali et Medicae (PISONIS, 1658). Foi na primeira em que o escrito de Marcgraf foi denominado Historiae Rerum Naturalium Brasilium. A obra de 1658 foi, de fato, por algumas vezes referida na segunda parte da memória de Ferreira, como na listagem de autores e obras do “Tamanduá-guaçu” (menciona “Pison. Brasil, p. 320”), mas isso se explica por ter extraído a referência de Buffon (BUFFON, 1765b, t. 20, p. 89n).

A referida “anotação ao Capítulo 8 de Marcgrav” - denominada “Annotatio” - consta do verbete “Tatu Apara” da Historia naturalis Brasiliae:

Nota. Fizemos menção deste animal na descrição da América, lib. XV, cap. V, onde, conforme o ensino do Monarde e Fr. Ximenes, notamos que o pó da cartilagem, que é de natureza óssea e dura, é muito útil, em medicina, quer contra a doença venérea, quer contra zunido dos ouvidos ou surdez; de um modo particular têm esta utilidade dos ossinhos da cauda, que se acham perto da sua origem. O pó da cauda é também diurético; o pó da cartilagem cozido, preparado em forma de massa, serve para extrair espinhos de qualquer parte do corpo. É fácil fazer experiência, porque frequentemente nos vêm da América peles deste animal (MARCGRAVE, 1942MARCGRAVE, J. História Natural do Brasil. Tradução de Mons. José Procopio de Magalhães. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942., p. 232).19 19 Na edição original: (PISONIS & MARCGRAVI, 1648, p. 232).

Ou seja, trata-se de um caso em que ambos (Ferreira e Buffon) parecem ter se apropriado de Marcgraf. Outro exemplo significativo de uso da Historia rerum naturalium por parte de Ferreira se deu na descrição da onça.

Como vimos, na 2ª Observação (primeira parte da memória), o naturalista anotou ser a onça o maior dos animais americanos “em vigor”. Considerou também receber ela o nome inapropriado de “tigre”, comentário apropriado de Robertson. O historiador havia dito também que os “pumas” e “juguars” eram os mais “farouches” (ferozes) dos animais carnívoros do Novo Mundo.

Dos tomos da Histoire naturelle que tinha em mãos, aqueles nos quais Buffon tratou de tigres, onças e jaguares foram o 18º e o 19º. No primeiro, o naturalista francês assinala ser “tigre” um nome genérico usado para denominar muitos animais diferentes, entre eles o leopardo, a pantera e a onça. Afirma ser esta uma pequena espécie de pantera usada pelos orientais para a caça (BUFFON, 1764aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-huitième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764a., t. 18, p. 71). Ele considera que o mesmo erro de usar a denominação “tigre” para animais distintos da Ásia e da África foi também transportado para a América, em função da semelhança (BUFFON, 1764aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-huitième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764a., t. 18, p. 74-75). Já no capítulo “Animaux du Nouveux Monde”, incluiu-os entre os que seriam os maiores animais do continente: “Le tapir, le cabiai, le tajacou, le fourmilier, le paresseux, le cariacou, le lama, le pacos, le bison, le puma, le jaguar, le couguar, le jaguarète, le chat-pard” (BUFFON, 1764aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-huitième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764a., t. 18, p. 127).

No 19º tomo, ao tratar do “jaguar”, afirma que no Brasil era conhecido também como “Jaguara”. Assemelhar-se-ia à onça por seu tamanho, mas na verdade seria outro animal. O autor diz adotar o nome “jaguar” para distingui-lo do tigre, da pantera, da onça e do leopardo, e anota terem sido Piso e Marcgraf os primeiros a utilizarem a denominação “jaguara” (BUFFON, 1764bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-neuvième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764b., t. 19, p. 1-2) para se referirem a esse animal chamado onça pelos portugueses (BUFFON, 1764bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-neuvième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764b., t. 19, p. 9).

Nesse caso, porém, Ferreira optou por não seguir Buffon, mantendo o termo “Onça” (Lusitanis), e assinalando ser chamada “Jaguarité” em “Paraensibus”. A Histoire naturelle está ausente das listas de autores e obras referentes às três variedades de onças assinaladas: “pintada” (ou “Penima”), “parda” (“Suaçurana”) e “preta” (“Jaguaruna”). Entre as obras relacionadas sobre as onças está “Marcgrav. Brasil, p. 235” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 105-107). A nomenclatura utilizada foi, portanto, tomada da Historia naturalis Brasiliae. As variedades assinaladas correspondem às descritas por Marcgraf: “Iagvara Brasiliensibus, nobis Tigris, Lusitanis Onca”, “Cvgvacvarana, Brasiliensibus, Tigre Lusitanis” e “Iagvarete Brasiliensibus, Onca itidem Lusitanis”, respectivamente (PISONIS; MARCGRAVI, 1648PISONIS, G.; MARCGRAVI, G. Historia Naturalis Brasiliae. Lugdun. Batavorum, apud Franciscum Hackium, et Amstelodami, apud Lud. Elzevirium, 1648., p. 235). Interessante notar também que o termo “tigre”, usado por Marcgraf mas criticado por Robertson, também foi descartado.

Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio

Fez também uso do “Diário da viagem, em visita e correição pelas povoações do Rio Negro, nos anos de 1774 e 75” (manuscrito da listagem da Ajuda - “Diário de Capitania de S. José do Rio Negro”), de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio.20 20 Existem versões diferentes do manuscrito. É difícil precisar qual foi o que tinha em mãos, se é que é alguma das versões conhecidas hoje. Utilizamos aqui a versão reproduzida por Nelson Papavero que consta do Arquivo Ultramarino de Lisboa. Sobre animais não humanos,21 21 No verbete em que trata do Homo sapiens (FERREIRA, 2003, p. 75-76), reproduziu trechos do manuscrito (SAMPAIO, 2015, p. 115-16), para embasar sua crítica à ideia da existência de uma “nação” de índios “caudatos” no Brasil. uma apropriação textual clara, porém, se deu no item sobre o peixe-boi. Trata-se de um trecho que, na verdade, era basicamente o mesmo que constava da “Memória sobre o peixe-boi e o uso que lhe dão no Estado do Grão Pará”, assinada em 2 de fevereiro de 1786, em Barcelos (FERREIRA, 1972FERREIRA, A. R. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Conselho Federal de Cultura, 1972., p. 59-65).

A respeito da informação de que o “comprimento ordinário” do mamífero é de “três para quatro varas”, atribuiu-a a Sampaio (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 152). Ele havia anotado: “A sua grandeza ordinária é de três para quatro varas de cumprimento, e três ou mais quartas de largura” (SAMPAIO, 2015SAMPAIO, F. X. R. de. Diário da viagem em que Vizita, e Correição das Povoações da Capitania de S. Jozé do Rio Negro. In: PAPAVERO, N.; CHIQUIERI, A.; TEIXEIRA, D. M. A viagem de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio na Capitania de S. José do Rio Negro (1774-1775). São Paulo: NEHiLP/FFLCH-USP, 2015. p. 21-64. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/81/68/332-1 . Acesso em 05 jul. 2021.
http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/por...
, p. 113). Além disso, a comparação entre os escritos revela também apropriações não mencionadas. Veja-se, por exemplo, a afirmação de que “A semelhança que este mamal aquático tem com o boi, mais precisamente com a vitela, na configuração da cabeça e do focinho, nos costumes e usos dietéticos das diferentes partes de seu corpo, lhe fez dar o nome de peixe-boi ao macho e o de vaca marina à fêmea” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 152). No texto de Sampaio, consta: “Entre as diversíssimas espécies de Peixes do nosso Amazonas, nenhum há mais singular, que o Peixe-Boi, ou Vacca Marinha. A semelhança da sua cabeça e fucinho a iguais partes de huma Vitela, lhe faz dar este nome bastantemente impróprio” (SAMPAIO, 2015SAMPAIO, F. X. R. de. Diário da viagem em que Vizita, e Correição das Povoações da Capitania de S. Jozé do Rio Negro. In: PAPAVERO, N.; CHIQUIERI, A.; TEIXEIRA, D. M. A viagem de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio na Capitania de S. José do Rio Negro (1774-1775). São Paulo: NEHiLP/FFLCH-USP, 2015. p. 21-64. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/81/68/332-1 . Acesso em 05 jul. 2021.
http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/por...
, p. 112-113).

Alexandre Rodrigues Ferreira e os saberes indígenas

Há também todo um conhecimento não reproduzido dos livros. O próprio naturalista luso-americano afirma ter examinado diretamente animais. Em algumas ocasiões, valeu-se das suas próprias observações para contestar o que leu nos livros. É o caso do “Coati” (ou “Quati”): “Lineu faz consistir a sua diferença em ser quase fusca e em ter a cauda de uma só cor. Porém quanto a mim, semelhante diferença não produz mais que uma variedade” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 109). Em outro momento, registra o que diversos autores disseram sobre o tamanho da anta e assinala: “Eu, a maior que tenho visto, entre mais de 30, que há 6 anos a esta parte se tem morto em viagem, tive o cuidado de a pesar, e vi que pesou 12 arrobas menos duas libras e ¼” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 140). Cabe destacar que incluiu uma série de animais sem correspondência com os descritos nas obras, e que, portanto, foram assinalados como espécies e/ou variedades novas. Nesse sentido, o exame físico foi uma necessidade. Foi o caso do “Yupará”: “O que serviu de objeto a esta descrição tinha 13 polegadas de comprimento, desde a ponta do focinho até ao princípio da cauda [...]” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 113).

Porém, fez uso também dos saberes indígenas. Trata-se de um saber proveniente da cultura oral, apropriado de agentes “anônimos” (DOMINGUES; ALVES-MELO, 2021DOMINGUES, A.; ALVES-MELO, P. Iluminismo no mundo luso-brasileiro: um olhar sobre a Viagem Filosófica à Amazônia, 1783-1792. Ler História, n. 78, p. 157-178, 2021.) - poucos nomes desses agentes são conhecidos, como os dos supracitados José da Silva e Cipriano de Souza -, que fizeram parte da comitiva ou com os quais Ferreira teve contato ao longo da expedição. É difícil precisar, mas pode-se afirmar que grande parte daquilo que não foi reproduzido por meio dos livros foi conhecido a partir dos agentes locais.

Vejamos alguns exemplos de como eles aparecem na memória. Dentro da “História” de cada animal, Ferreira descreve muitas vezes as suas “variedades”. É o caso das “três variedades de coatás” distinguidas pelos “índios” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 83), as cinco “distinções que fazem os naturais” do “Suguaçu-apara” (ou “Veado galheiro”) (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 135) e as três “castas” de antas feitas pelos “paraenses” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 141). Mobilizou também outras informações indígenas para redigir a “História” dos animais. Um exemplo é o “Hiá”:

A sua vida é noturna. Os índios se agouram com ele, em o ouvindo gritar, de noite, ao redor de suas palhoças, ou em cima delas. Aquele em cuja maca sucede cair a ourina de algum hiá, assenta que infalivelmente morre. E como faz tenção de morrer, privando-se logo da comunicação e do alimento, assim lhe vem a suceder porque acaba garrotado às mãos da melencolia e da languidez. (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 93).

Entretanto, a apropriação mais frequente do conhecimento local se dá, de fato, na descrição dos “usos” econômicos, médicos e dietéticos. As populações indígenas são referidas por diversas vezes. Assim, “De suas peles [dos Yuparás] fazem os caçadores patronas, bolsas, guarda-feixos das armas etc.” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 113). Os “empíricos do país” receitam a carne do guariba vermelha “aos que padecem queixas venéreas”, e os “índios e os pretos comem a sua carne ou fresca, ou de moquém, isto é, defumada” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 80-81). Os “gentios lhes aproveitam os pelos [do “Maricá-uçu”, ou “Barrigudo”] para os entretecerem com o fio da piteira, fazendo uns trancelins, em que prendem as penas das asas e das caudas das aves, para lhes servirem de fitas, com que ornam as cabeças” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 82). Os “empíricos, para as febres rebeldes, receitam as cinzas de seus pelos [do “tamanduá-guaçu”, ou “tamanduá grande”], bebidas em água” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 97), assim como atribuem “inumeráveis virtudes médicas” aos dentes das onças pardas e comem a sua carne (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 107). Ou ainda “De suas peles [da “Acuti-uaia”, ou “Cutia de rabo”], se calça a maior parte dos habitantes do Pará. Os seus dentes são as goivas dos gentios” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 126).

Considerações finais

A análise pormenorizada do texto, comparando-o com outros escritos aos quais teve acesso durante a expedição (Lineu, Robertson, Bernardes, Berredo, Scopoli, Buffon, Marcgraf, Sampaio) permite compreender quais foram as estratégias narrativas utilizadas para atender a alguns dos objetivos relativos ao “Reino Animal” estipulados pelos idealizadores e organizadores da Viagem Filosófica.

Aqui não analisamos os trechos sobre os povos indígenas, com os quais cumpriu a orientação de se fazer uma “etnografia” dos povos locais, e que constituem a principal reflexão da primeira parte. Nesta, Ferreira apresenta uma concepção robertsoniana das sociedades humanas e uma visão buffoniana da natureza, por compreender os animais americanos como inferiores (em “tamanho” e “vigor”) em relação aos do Antigo Continente - entendimento que, nesse momento de seu texto, tomou da obra de Robertson e apresentou nas suas quatro “observações”. Ele confirmou, com novos exemplos, essa tese, por exemplo ao incluir o trecho de Manuel Bernardes sobre as formigas do Brasil, que serviu para ratificar a ideia de que se tratava de um continente dominado por animais menores. Mesmo a dúvida sobre essa mesma tese buffoniana, lançada a partir da afirmação da descoberta de uma grande ossada em Minas Gerais, foi apropriada de Robertson, que dera exemplo parecido relativo aos Estados Unidos.

Da tradução francesa de The history of America, Ferreira não incorporou apenas as ideias e concepções, mas operou uma verdadeira apropriação textual. É diferente do que fez, também na primeira parte da memória, com o Systema naturae (12ª edição, de 1766) e a Philosophia botanica, de Lineu. Seu uso foi mais restrito e lhe serviu para a definição de “animais” e, particularmente, “mamíferos”. O uso de “mamais” (mamíferos), ao invés de “quadrúpedes”, havia sido uma inovação do naturalista sueco introduzida a partir da 10ª edição do Systema naturae, de 1758. Essa nova concepção foi, inclusive, apontada por Ferreira. Todavia, assinale-se também que, ao longo do texto, emprega tanto “mamais” quanto “quadrúpedes” - refletindo o uso desse termo por outros autores (Robertson, Buffon e Scopoli).

Ainda na primeira parte, de outra obra, fez uma apropriação textual não assinalada: Anais históricos do Estado do Maranhão, de Berredo. Nesse caso, tratou-se apenas de tomar emprestadas as referências feitas pelo autor em seu “catálogo”, para compor a sua relação de “escritores da América”. É possível que tenha sido acessada em Vila Bela, o que não foi o caso da Introdvctio ad historiam Naturalem, de Scopoli, retirada junto à Biblioteca da Ajuda. Vandelli havia instituído a necessidade de que os produtos naturais fossem classificados de acordo com o “sistema da natureza”, sem delimitar qual. A historiografia enfatizou a importância da taxonomia lineana por Ferreira, que de fato lhe foi fundamental, mas vimos também que chegou a manifestar preferência pela de Scopoli, construindo um quadro dos mamais com base na obra do naturalista italiano.

Não apenas pela taxonomia e nomenclatura, mas também pela inclusão dos “usos” (econômicos, médicos e dietéticos), a segunda parte reflete a concepção de História Natural de Lineu. Assinalar as utilidades dos produtos naturais, lembre-se, também constava das instruções de viagem. Porém, curiosamente, a Historie naturelle é aqui a obra mais utilizada. Tendo tido acesso a diversos volumes de Buffon em Vila Bela, ele pode utilizá-la - agora diretamente - para construir os “verbetes” de cada espécie. Ferreira se valeu dela, primeiramente, para compor as listagens de autores e obras. Nelas, utilizou-se de um método: além da extração dos autores e obras dos volumes de Buffon, a inclusão da referência a Lineu a partir da edição do Systema naturae de que dispunha. Em casos excepcionais, não fez uso de Buffon e recorreu somente à obra de Lineu.

A apropriação textual de Buffon também se fez presente nos trechos em que apresenta cada animal e na “História”. Mostramos como foi por meio desse procedimento que diversos autores foram incluídos no texto, entre eles Condamine. Alguns historiadores apontaram a consulta à obra desse naturalista em Vila Bela, mas, ao menos no que se refere à memória aqui analisada, não foi o caso de ter sido utilizada. A apropriação da Histoire naturelle pode ter sido um recurso elaborado em função das dificuldades em realizar o “imenso trabalho” para o qual havia sido designado. Todavia, foi possível identificar também momentos em que o naturalista argumenta ter obtido informações a partir do exame in loco de animais, tendo algumas, inclusive, lhe servido para contestar conhecimentos assinalados nas obras. As “Observações gerais e particulares” também não teriam sido possíveis sem todo o conhecimento indígena acessado durante a expedição, que consta sobretudo da “História” e dos “usos” - cumprindo-se, assim, outra das orientações de Vandelli. O naturalista se viu também diante de situações em que necessitava descrever alguma espécie - ou variação da espécie - que não constava nas obras, e nesses casos o recurso aos saberes locais foi também imprescindível.

Mamíferos como a anta e a onça foram abordados nas duas partes da memória: na primeira, como parte da discussão em que se fornece uma explicação sobre o tamanho dos animais americanos e, na segunda, nos “verbetes” que lhes são relativos. Robertson, fornecendo como referências Buffon e Marcgraf, havia assinalado a inadequação do uso dos termos “tigres” e “lions” para designar os “pumas” e “juguars”. Ferreira concordou com ele, traduzindo-os, já na primeira parte, como “onça”. Contudo, vimos também como, na segunda parte, referiu-se à onça igualmente como “jaguar”, apesar de Buffon ter assinalado constituírem animais diferentes. Nesse caso, acabou por manter a nomenclatura de Marcgraf (“Iaguarete”) - “Jaguareté”.

Referências

  • ALMAÇA, C. The beginning of the portuguese mammalogy Lisboa: Edição da Universidade de Lisboa, 1991. 58 p.
  • ALMEIDA, G. B. Rios de Conhecimento: os povos das conquistas e expedições científicas na Amazônia e na África oriental portuguesa (1780-1798). 2020. 278 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.
  • AMADO, J; ANZAI, L. C. Luís de Albuquerque: viagens e governo na capitania de Mato Grosso (1771-1791). São Paulo: Versal, 2014. 352 p.
  • BERNARDES, M. Nova floresta Primeiro Tomo. Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706.
  • BERREDO, B. P. Annaes historicos do Estado do Maranhaõ Lisboa: Na Oficina de Francisco Luiz Ameno, 1749.
  • BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle Tome Vingt-troisième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1766a.
  • BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle Tome Vingt-unième. A Paris, De L’Imprimerie Royale. 1765a.
  • BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle Tome Dix-huitième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764a.
  • BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-neuvième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764b.
  • BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle Tome Sixième. Cinquiéme Édition. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1752.
  • BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle Tome Vingtième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1765b.
  • BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle Tome Vingt-septième. A Paris, de L’Imprimerie Royale, 1766b.
  • CAÑIZARES ESGUERRA, J. Cómo escribir la historia del Nuevo Mundo Mexico: FCE, 2007. 638 p.
  • CARVALHO JÚNIOR, A. D. Do índio imaginado ao índio inexistente: a construção da imagem do índio na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. 2000. 239 f. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
  • CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1998.
  • CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: Editora UnB, 1999.
  • COELHO, M. C. A epistemologia de uma viagem São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010. 176 p.
  • COSTA, M. F. Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. VIII, p. 993-1014, 2001.
  • DIAS, M. O. L. da S. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: DIAS, M. O. L. da S. A interiorização da metrópole e outros estudos São Paulo: Alameda, 2009. p. 39-126.
  • DOMINGUES, A. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informações no Império português em finais de Setecentos. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. III, p. 823-838, 2001.
  • DOMINGUES, A.; ALVES-MELO, P. Iluminismo no mundo luso-brasileiro: um olhar sobre a Viagem Filosófica à Amazônia, 1783-1792. Ler História, n. 78, p. 157-178, 2021.
  • FARIA, M. Os estabelecimentos artísticos do Museu de História Natural do Palácio Real da Ajuda e a Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. In: ALMAÇA, C.; DOMINGUES, A.; FARIA, M. Viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira - Ciclo de Conferências Lisboa: Academia de Marinha, 1992. p. 33-72.
  • FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158.
  • FERREIRA, A. R. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá Conselho Federal de Cultura, 1972.
  • FERREIRA, B. F. L. A compreensão dos povos indígenas da América portuguesa por Alexandre Rodrigues Ferreira durante a Viagem Filosófica (1783-1790): A apropriação de uma tradução francesa de The History of America, de William Robertson. Revista de Indias, v. LXXX, n. 280, p. 719-750, 2020.
  • GERBI, A. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • KOERNER, L. Linnaeus: nation and nature. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
  • KURY, L. B. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos Rio de Janeiro, v. 11, p. 109-129, 2004. Supl. 1.
  • LIMA, A. P. de. O Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira Documentos Coligidos e Prefaciados Américo Pires de Lima. Agência Geral do Ultramar, 1953.
  • LINNAEI, C. Genera Plantarum Lugduni Batavorum: apud Conradum Wishoff, 1737.
  • LINNAEI, C. Philosophia Botanica Stockholmiae: Apud Godofr. Kiesewetter, 1751.
  • LINNAEI, C. Species plantarum Holmiae: Imprensis Laurentii Salvi, 1753.
  • LINNAEI, C. Systema naturae Tomus I. Editio Decima. Holmiae: Impensis Direct. Laurentii Salvii, 1758.
  • LINNÉ, C. Systema Naturae Tomus I. Holmiae: Impensis Direct. Editio Duodecima, Laurentii Salvii, 1766.
  • MARCGRAVE, J. História Natural do Brasil Tradução de Mons. José Procopio de Magalhães. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942.
  • MAYR, E. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e herança. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.
  • MELLO MORAES, A. J. de. Corographia historica, chronographica, genealogica, nobiliaria e politica do Império do Brasil Tomo II. Rio de Janeiro: Typographia Americana de José Soares de Pinho, 1859.
  • MENDES, J. R. Instruções relativas à viagem philosophico effectuada pelo naturalista Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, nos anos de 1783-1792. Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, t. LIII, p. 46-52, 1946.
  • NOVAIS, F. A. O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 7, p. 105-117, mar. 1994.
  • PATACA, E. M. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas (1755-1808) 2006. 245 f. Tese (Doutorado em Geociências) - Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
  • PATACA, Ermelinda Moutinho. Mobilidades e permanências de viajantes no Mundo Português: entre práticas e representações científicas e artísticas. 2015. 385 f. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
  • PISONIS, G. De Indiae et Utriusque Re Naturali et Medica Amstelaedami: apud Ludovicum et Danielem, 1658.
  • PISONIS, G.; MARCGRAVI, G. Historia Naturalis Brasiliae Lugdun. Batavorum, apud Franciscum Hackium, et Amstelodami, apud Lud. Elzevirium, 1648.
  • RAMINELLI, R. Ciência e colonização - Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. Tempo, Niterói, n. 6, p. 1-20, 1998.
  • RAMINELLI, R. Do conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. VIII, p. 969-992, 2001.
  • RAMINELLI, R. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008.
  • RAMINELLI, R.; SILVA, B. da. Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 2, p. 323-342, maio/ago. 2014.
  • ROBERTSON, W. Histoire de l’Amérique Tome Second. Paris: Panckoucke, 1777.
  • SAFIER, N. “Every day that I travel … is a page that I turn”: Reading and Observing in Eighteenth-Century Amazonia. Huntington Library Quarterly, v. 70, n. 1, p. 103-128, mar. 2007.
  • SAMPAIO, F. X. R. de. Diário da viagem em que Vizita, e Correição das Povoações da Capitania de S. Jozé do Rio Negro. In: PAPAVERO, N.; CHIQUIERI, A.; TEIXEIRA, D. M. A viagem de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio na Capitania de S. José do Rio Negro (1774-1775) São Paulo: NEHiLP/FFLCH-USP, 2015. p. 21-64. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/81/68/332-1 Acesso em 05 jul. 2021.
    » http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/81/68/332-1
  • SCOPOLI, G. A. Introdvctio ad Historiam Natvralem Pragae: Apud Wolfangvm Gerle, Bibliopolam, 1777.
  • SIMON, W. J. Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983.
  • VANDELLI, D. Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar (1779). In: BRIGOLA, J. et al (org.). O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli Dantes Editora, 2008. p. 93-158.

NOTAS

  • 1
    Uma análise dos trechos da memória referentes às populações indígenas pode ser conferida em Ferreira (2020FERREIRA, B. F. L. A compreensão dos povos indígenas da América portuguesa por Alexandre Rodrigues Ferreira durante a Viagem Filosófica (1783-1790): A apropriação de uma tradução francesa de The History of America, de William Robertson. Revista de Indias, v. LXXX, n. 280, p. 719-750, 2020.).
  • 2
    A memória se insere num quadro mais amplo de estudos de mamalogia em Portugal (ALMAÇA, 1991ALMAÇA, C. The beginning of the portuguese mammalogy. Lisboa: Edição da Universidade de Lisboa, 1991. 58 p.).
  • 3
    Uma das evidências de se tratar da edição francesa é o uso do termo “Hist. De l’Amerique” (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 34n). Ver também Ferreira (2020FERREIRA, B. F. L. A compreensão dos povos indígenas da América portuguesa por Alexandre Rodrigues Ferreira durante a Viagem Filosófica (1783-1790): A apropriação de uma tradução francesa de The History of America, de William Robertson. Revista de Indias, v. LXXX, n. 280, p. 719-750, 2020.).
  • 4
    Uma visão de conjunto sobre as viagens científicas, com a análise minuciosa das trajetórias e documentos dos naturalistas viajantes, pode ser encontrada em Simon (1983SIMON, W. J. Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983.).
  • 5
    Alguns dos outros escritos produzidos sobre animais foram: “Memória sobre o peixe pirarucu”, “Memória sobre as tartarugas”, “Memória sobre a jurararetê”, “Memória sobre os jacarés do Estado do Grão-Pará” e “Memória sobre o peixe-boi e o uso que lhe dão no Estado do Grão-Pará”. Estes foram publicados em Ferreira (1972FERREIRA, A. R. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Conselho Federal de Cultura, 1972.).
  • 6
    Os demais naturalistas que fariam parte da comitiva, também formados em Coimbra, acabaram por serem enviados para outras partes do Império, também em 1783: João da Silva Feijó para Cabo Verde, Manuel Galvão da Silva para Goa e Moçambique e Joaquim José da Silva para Angola.
  • 7
    As exceções são os comentários sobre a cor dos negros, baseados no “tomo 6, página 328º” de Buffon (25 e 26n) e uma citação feita do mesmo sobre religião dos índios (“Hist. Nat.; t. 6º, p. 299”) (40, n. 231). Trata-se da edição sobre a qual comentaremos no item 3a. (BUFFON, t. 6, 1752BUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Sixième. Cinquiéme Édition. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1752.).
  • 8
    Com exceção de trecho da primeira espécie descrita, o Homo sapiens, no qual há uma citação de Robertson (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 79-80). Esse verbete (do “Homem”, em “Lusitanis”; “Abá Mir”, em “Paraensibus”) constitui-se como uma exceção, pois nele não há listagem de autores e obras, descrição de características físicas, “História” e “Usos”. Nele, discute-se principalmente sobre a existência de seres “monstruosos” (“por artifício” e “por natureza”) (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 73-78).
  • 9
    Publicadas diversas edições a partir de 1737 (LINNAEI, 1737LINNAEI, C. Genera Plantarum. Lugduni Batavorum: apud Conradum Wishoff, 1737.).
  • 10
    Publicadas diversas edições a partir de 1753 (LINNAEI, 1753LINNAEI, C. Species plantarum. Holmiae: Imprensis Laurentii Salvi, 1753.).
  • 11
    Assumimos aqui se tratar da primeira edição, de 1751.
  • 12
    Indicação que não corresponde à edição que, tal como sugerimos adiante, foi a acessada em Vila Bela.
  • 13
    Sobre a questão, ver Gerbi (1996GERBI, A. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 19-41).
  • 14
    A passagem encontra-se em Bernardes (1706BERNARDES, M. Nova floresta. Primeiro Tomo. Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706., p. 273).
  • 15
    O Catálogo encontra-se na parte inicial da obra, na qual não há numeração.
  • 16
    No caso da anta, o tomo assinalado por Ferreira é o 24 (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 140n), porém o verbete encontra-se no 23. Certamente cometeu um engano.
  • 17
    Consta do tomo 18, no capítulo intitulado “Animaux du Nouveau Monde”: “cet animal, le plus grand de tous, cet éléphant du noveau monde” (BUFFON, 1764aBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Dix-huitième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1764a., t. 18, p. 127).
  • 18
    Tratou-se certamente da Historia Naturalis Brasiliae (1648), de Piso e Marcgraf, e não da obra publicada posteriormente por Piso, De Indiae Utriusque Re Naturali et Medicae (PISONIS, 1658PISONIS, G. De Indiae et Utriusque Re Naturali et Medica. Amstelaedami: apud Ludovicum et Danielem, 1658.). Foi na primeira em que o escrito de Marcgraf foi denominado Historiae Rerum Naturalium Brasilium. A obra de 1658 foi, de fato, por algumas vezes referida na segunda parte da memória de Ferreira, como na listagem de autores e obras do “Tamanduá-guaçu” (menciona “Pison. Brasil, p. 320”), mas isso se explica por ter extraído a referência de Buffon (BUFFON, 1765bBUFFON, G.-L. L. Histoire Naturelle. Tome Vingtième. A Paris, De L’Imprimerie Royale, 1765b., t. 20, p. 89n).
  • 19
    Na edição original: (PISONIS & MARCGRAVI, 1648PISONIS, G.; MARCGRAVI, G. Historia Naturalis Brasiliae. Lugdun. Batavorum, apud Franciscum Hackium, et Amstelodami, apud Lud. Elzevirium, 1648., p. 232).
  • 20
    Existem versões diferentes do manuscrito. É difícil precisar qual foi o que tinha em mãos, se é que é alguma das versões conhecidas hoje. Utilizamos aqui a versão reproduzida por Nelson Papavero que consta do Arquivo Ultramarino de Lisboa.
  • 21
    No verbete em que trata do Homo sapiens (FERREIRA, 2003FERREIRA, A. R. Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais. In: SILVA, J. P. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. V. III. Transcrição e comentários de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2003. p. 9-158., p. 75-76), reproduziu trechos do manuscrito (SAMPAIO, 2015SAMPAIO, F. X. R. de. Diário da viagem em que Vizita, e Correição das Povoações da Capitania de S. Jozé do Rio Negro. In: PAPAVERO, N.; CHIQUIERI, A.; TEIXEIRA, D. M. A viagem de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio na Capitania de S. José do Rio Negro (1774-1775). São Paulo: NEHiLP/FFLCH-USP, 2015. p. 21-64. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/81/68/332-1 . Acesso em 05 jul. 2021.
    http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/por...
    , p. 115-16), para embasar sua crítica à ideia da existência de uma “nação” de índios “caudatos” no Brasil.
  • Declaração de financiamento:

    A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da FAPESP (Proc. 2016/23264-1).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2021
  • Aceito
    13 Maio 2022
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br