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De olhos postos na Europa, de olhos abertos para a América: as conexões francesas dos Centros Sociais da Companhia de Jesus na América Latina (1930-1980)

With eyes posted on Europe, with eyes open to America: the french connections of the Social Centres of the Society of Jesus in Latin America (1930-1980)

Resumo:

Este artigo visa analisar a formação dos Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) fundados pela Companhia de Jesus na América Latina a partir da década de 1950, tendo como eixo da investigação as conexões francesas presentes na origem e na consolidação destes. Partindo da hipótese de que o apostolado social promovido por esses centros sociais configurou uma transição entre o Catolicismo Social e o Cristianismo da Libertação, pretende-se averiguar as redes de intercâmbio e cooperação tecidas entre a Europa e a América Latina entre 1930 e 1980, tendo como fulcro a atuação específica do centro social jesuítico francês Action Populaire, que serviu de inspiração para a constituição dos referidos CIAS. Adotando a perspectiva de uma história transnacional do Catolicismo, procuraremos abordar tais contatos sob a ótica de múltiplas trocas e transferências culturais, atentos não apenas para a produção como também para a circulação e recepção destas ideias, bem como para seus distintos usos, interpretações e apropriações.

Palavras-chave:
Companhia de Jesus; centros sociais; América Latina; conexões francesas; história transnacional.

Abstract:

This article aims to analyze the formation of the Research and Social Action Centres (CIAS) founded by the Society of Jesus in Latin America from the 1950s on, having as axis of investigation the french connections present in their origin and consolidation. Starting from the hypothesis that the social apostolate promoted by these social centers configured a transition between Social Catholicism and Liberation Christianity, we intend to investigate the networks of exchange and cooperation woven between Europe and Latin America between 1930 and 1980, having as the fulcrum the specific performance of the french jesuit social center Action Populaire, which served as inspiration for the constitution of the mentioned CIAS. Adopting the perspective of a transnational history of Catholicism, we will seek to approach such contacts from the optics of multiple exchanges and cultural transfers, attenting not only to the production but also to the circulation and reception of these ideas, as well as to their distinct uses, interpretations and appropriations.

Keywords:
Society of Jesus; social centres; Latin America; french connections; transnational history

História transnacional

Cada vez mais vem ganhando corpo a perpectiva de uma história transnacional da religião. No caso da Igreja Católica, nada mais compreensível, na medida em que essa organização bimilenar de dimensão global, cuja pretensão de universalidade (catolicidade) esteve presente desde o seu nascedouro, sempre estimulou e promoveu o trânsito de pessoas, ideias e produtos culturais que operam para além das balizas nacionais. Não deixa de ser um paradoxo, portanto, que o enfoque da historiografia tradicional do Catolicismo tenha sido predominantemente nacional, quando muito internacional. Via de regra, tal história é elaborada a partir de suas circunscrições (arqui)diocesanas, sem que os mecanismos de transferência e mediação cultural que marcam os contatos entre elas sejam efetivamente realçados. Por outro lado, os esforços de síntese terminam por privilegiar uma abordagem mais internacional (da Cúria romana, das ordens religiosas mundiais etc.), sem, no entanto, salientar os sistemas de negociação construídos pelos distintos agentes (hierarquia, clero, laicato) para adaptar e traduzir os conteúdos, práticas e comportamentos religiosos, muito menos desnudar o emaranhado de redes intelectuais, políticas e econômicas que se vão tecendo no decurso.

Não obstante, na esteira de uma história “global” ou “conectada”, nos últimos anos tem emergido, sobremaneira no espaço da Euro-América, uma história transnacional do Catolicismo, concebida em três escalas (a micro, relativa ao afluxo dos missionários; a meso, referente às dioceses e instituições clericais nacionais, e a macro, concernente às redes intercontinentais da Cúria romana e das estruturas eclesiásticas latino-americanas), e por meio da qual se entrecruzam (i) a história institucional da Igreja Católica numa dimensão tricontinental (Europa, América do Norte e América Latina), (ii) a história social dos fluxos migratórios, dos tráfegos intereclesiais e dos intercâmbios intelectuais destes religiosos e (iii) a história religiosa das sociedades de partida e de recepção (Cf. CHATELAN, 2017CHATELAN, Olivier. Les circulations intra-ecclésiales Europe-Amérique Latine au XXe siècle: un repérage dans l’historiographie francophone récente. Chrétiens et sociétés, n. 24, p. 133-145, 2017.; CHATELAN; ROUTHIER; SAPPIA, 2019CHATELAN, Olivier; ROUTHIER, Gilles; SAPPIA, Caroline. Introducción. Les organismes européens et nord-américains d’envoi de prêtres Fidei Donum en Amérique Latine, 1949-2000. Chrétiens et sociétés, n. spécial III, p. 5-13, 2019.; VANDERPELEN-DIAGRE, 2017VANDERPELEN-DIAGRE, Cécile. National, international, transnational? Quelques tendances de l’historiographie du catholicisme contemporain. Chrétiens et sociétés, n. 24, p. 109-118, 2017.).

Aos poucos os estudos vão descortinando essas redes internacionais “conduzidas pela Igreja Católica para impulsionar os movimentos sociais cristãos em diversas partes do mundo e promover o Humanismo Cristão” (BEIGEL, 2011BEIGEL, Fernanda. Misión Santiago: el mundo académico jesuita y los inicios de la cooperación internacional católica. Santiago: LOM, 2011., p. 37, tradução nossa), como desvela a investigação seminal de Fernanda Beigel acerca da Companhia de Jesus. No seio desses ambientes foram sendo consolidadas relações de intercâmbio e cooperação entre conferências episcopais (em especial, a norte-americana), universidades católicas (na Europa ou nos Estados Unidos) e centros sociais (a exemplo do Centro Bellarmino, de Santiago) no sentido de viabilizar a concessão de bolsas de estudo para centenas de jesuítas latino-americanos realizarem “um circuito internacional de especialização que começava com a formação teológica em Lovaina e terminava com estudos de pós-graduação em outras Universidades católicas europeias ou norte-americanas, como Notre-Dame, Georgetown, Woodstock e Chicago” (BEIGEL, 2011BEIGEL, Fernanda. Misión Santiago: el mundo académico jesuita y los inicios de la cooperación internacional católica. Santiago: LOM, 2011., p. 39, tradução nossa). Doravante, o apostolado social da Companhia de Jesus tenderia a se profissionalizar cada vez mais, investindo na constituição de centros de produção intelectual ligados às questões sociais, sem, com isso, afrouxar os vínculos com os episcopados católicos nacionais e as redes humanitárias de ativismo transnacional e defesa dos direitos humanos (Cf. CATOGGIO, 2014CATOGGIO, María Soledad. La trama religiosa de las redes humanitarias y el activismo transnacional en las dictaduras del Cono Sur de América Latina. In: JENSEN, Silvina; LASTRA, Soledad. Exilios: militancia y represión. Nuevas fuentes y nuevos abordajes de los destierros de la Argentina de los años setenta. La Plata: Universidad Nacional de La Plata, 2014. p. 187-213.). Aliás, como já apontava Michel Löwy em sua obra acerca do Cristianismo da Libertação na América Latina, “certas ordens, tais como os jesuítas e os dominicanos, são verdadeiras redes de intelectuais ‘orgânicos’ da Igreja, envolvidos em um intercâmbio e em diálogos constantes com o mundo intelectual acadêmico e ‘profano’” (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016., p. 88).

Nessa mesma trilha se situam as pesquisas a respeito dos organismos europeus e norte-americanos de envio de padres Fidei Donum à América Latina na segunda metade do século passado (Cf. CHATELAN; ROUTHIER; SAPPIA, 2019CHATELAN, Olivier; ROUTHIER, Gilles; SAPPIA, Caroline. Introducción. Les organismes européens et nord-américains d’envoi de prêtres Fidei Donum en Amérique Latine, 1949-2000. Chrétiens et sociétés, n. spécial III, p. 5-13, 2019.),* * Publicada em abril de 1957 pelo papa Pio XII, a Encíclica Fidei Donum lançou um apelo ao apostolado missionário de apoio às Igrejas do Terceiro Mundo, particularmente na África, mas também na América Latina, Ásia e Oceania. A partir de então, o termo Fidei Donum passou a designar os sacerdotes diocesanos (oriundos sobretudo da Bélgica, Canadá, Espanha, França e Itália) que exerceram seu ministério por um determinado tempo naquelas regiões mais necessitadas. bem como a análise de Suzanne Clavette (2006CLAVETTE, Suzanne. Participation des travailleurs et réforme de l’entreprise. Quebec: Presses de l’Université Laval, 2006.) sobre a atuação dos jesuítas de Action Populaire junto ao movimento operário canadense do final da década de 1940, demonstrando o papel fundamental exercido pela obra coletiva de Gustave Desbuquois e Pierre Bigo (Les réformes de l’entreprise et la pensée chrétienne, Paris, Spes, 1945) nas concepções e práticas da Comissão Sacerdotal de Estudos Sociais, órgão criado para assessorar o episcopado canadense nas questões sociais, estando na base das jornadas sacerdotais de estudos sociais de 1947 e da histórica greve dos operários do amianto ocorrida em Quebec dois anos depois. Por conta disso, inclusive, ambos haveriam de sofrer uma intensa campanha movida por sindicatos patronais e grupos católicos conservadores desejosos de obter a condenação de suas ideias e práticas “socialistas” por parte de Roma.

Contudo, além de proporcionar uma visão mais complexa do fenômeno religioso em suas múltiplas circularidades, tais investigações têm igualmente contribuído para o questionamento do modelo centro-periferia, na medida em que apontam para certas reversões dos termos de troca convencionais. Ou seja, a partir de meados do século XX, as permutas entre os polos formativos europeus (Roma, Lovaina, Madri, Paris, Lyon etc.) e latino-americanos (Cuernavaca, Petrópolis, Bogotá etc.) não se restringiram mais a um sentido unidirecional - do Velho para o Novo Mundo - mas seguiram caminhos secundários ou até mesmo inversos. É o que indica, por exemplo, o trabalho de Oliver Compagnon sobre as relações entre o catolicismo europeu e o latino-americano na conjuntura do pós-Segunda Guerra, quando a Igreja Católica francesa estava mergulhada numa multifacetada crise, ao tempo em que as igrejas latino-americanas experimentavam uma intensa renovação:

Os textos fundadores da Teologia da Libertação foram objeto de precoces traduções para o francês. Os sacerdotes que por algum tempo exerceram o ministério no além-mar retornaram para a França enriquecidos pela experiência das Comunidades Eclesiais de Base. A irrupção das experiências latino-americanas no mundo católico francês parece ser consequência das novas sociabilidades que surgiram desde o fim da Segunda Guerra Mundial entre as duas margens do catolicismo (...). Esses dados permitem, então, pensar a evolução do catolicismo francês na década de 1970 - em particular o que Denis Pelletier chamou de “momento esquerdista” - no quadro de uma história cultural que leva em conta as contribuições provenientes de espaços que já não são tão periféricos como se poderia pensar. (COMPAGNON, 2009COMPAGNON, Olivier. L’Euro-Amérique en question. Comment penser les échanges culturels entre l’Europe et l’Amérique Latine? Nuevo Mundo Mundos Nuevos, p. 1-12, 2009., p. 10, tradução nossa).

Seguramente, umas das mais apaixonantes experiências de intercâmbio entre as duas margens do catolicismo no século XX se deu em meio à vastidão da ação social jesuíta, por cujas águas navegaremos a partir de agora.

Uma virada histórica

Em que pese o Apostolado Social fazer parte do carisma inaciano desde a fundação da Sociedade de Jesus, em 1534, a constituição e atuação dos Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) latino-americanos 400 anos depois representaram uma inflexão notável não apenas na trajetória da Companhia de Jesus como também na própria história contemporânea da Igreja Católica. Como explicar essa sensível reorientação ao interior do cristianismo, rompendo com uma longa tradição política conservadora e regressiva? E como essa nova tendência, por muitos denominada Cristianismo da Libertação, pôde se desenvolver e amadurecer num momento histórico determinado do continente latino-americano?

De acordo com Michael Löwy, um dos mais fecundos estudiosos dos nexos entre religião e política, tal “virada” resultou “de uma combinação ou convergência de mudanças internas e externas à Igreja que ocorreram na década de 1950, e que (...) se desenvolveu a partir da periferia e na direção do centro da instituição” (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016., p. 84). Segundo ele, entre as categorias marginais do campo religioso-eclesiástico que iriam se tornar impulsoras dessa renovação vale ressalvar “os movimentos laicos, e seus consultores, especialistas laicos, padres estrangeiros, ordens religiosas” (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016., p. 85). Para entender adequadamente tal argumentação, cumpre aclarar que as mudanças internas aludidas incluíam as inovadoras correntes teológicas (principalmente francesas e alemãs), as novas formas de cristianismo social (como o movimento dos padres operários), o pontificado de João XXIII (1958-1963) e o Concílio Vaticano II (1962-1965); por sua vez, por externas, tem-se em mente, sobretudo, a industrialização sob a hegemonia do capital multinacional, o êxodo rural e a consolidação de uma nova classe trabalhadora urbana, bem como a Revolução Cubana de 1959.

Em trabalhos anteriores, discutimos de maneira abrangente a origem e articulação dos referidos centros sociais (Cf. COSTA, 2012COSTA, Iraneidson Santos. História dos CIAS latino-americanos: Origens (1892-1965). Anais do Xº Encontro Internacional da ANPHLAC, v. 10, pp. 1-8, 2012.; 2016COSTA, Iraneidson Santos. Amar e servir no Sul da América: origem e articulação dos centros sociais jesuítas. Caderno CRH, v. 29, n. 3, p. 171-186, 2016.; 2017bCOSTA, Iraneidson Santos. Uma história para não esquecer: os Centros Sociais da Companhia de Jesus na América Latina. Em Companhia, ano 4, n. 39, p. 22-23, 2017b.), assim como demonstramos de que maneira suas formulações teóricas e práticas concretas desempenharam um papel relevante na transição entre o Catolicismo Social e o Cristianismo da Libertação (Cf. COSTA, 2017aCOSTA, Iraneidson Santos. O jesuíta Manuel Foyaca de la Concha e o Apostolado Social na América Latina: uma transição do Catolicismo Social ao Cristianismo de Libertação. Interações, v. 12, n. 22, p. 250-263, 2017a.; 2021aCOSTA, Iraneidson Santos. Entre o espectro aterrorizante do comunismo e as desigualdades sociais: teoria e prática dos Centros Sociais da Companhia de Jesus na América Latina (1950-1966). História Unisinos, v. 25, n. 1, p. 94-107, 2021a. ). É surpreendente como suas concepções e ações, a princípio afins ao Catolicismo Social - movimento surgido em meados do século XIX com um forte conteúdo reativo ao liberalismo e ao individualismo capitalistas, mas igualmente infenso a qualquer influência do pensamento marxista e, menos ainda, a qualquer vínculo orgânico com movimentos políticos de esquerda (Cf. ÁVILA, 1991ÁVILA, Fernando Bastos de. Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1991., p. 70-71) - terminaram por desaguar no Cristianismo da Libertação, concebido como um amplo movimento sociorreligioso que “vai bem mais além dos limites da Igreja como instituição (...) [por] incluir tanto a cultura religiosa e a rede social quanto a fé e a prática” (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016., p. 74). Neste texto, avançaremos um pouco mais no entendimento desse processo, aprofundando a hipótese aventada pelo próprio Michael Löwy acerca das conexões francesas da radicalização católica latino-americana:

Desde o final do século XIX a França é um país onde se desenvolve, dentro do catolicismo, uma corrente crítica, anticapitalista, atraída pelo socialismo, que vai de Charles Péguy à CFDT [Confederação Francesa Democrática do Trabalho] dos anos 1960, passando por Emmanuel Mounier, pelos Cristãos Revolucionários da Frente Popular, pelo “Testemunho Cristão”, pela revista Espirit, pela JEC [Juventude Estudantil Católica] e a JUC [Juventude Universitária Católica] etc. Na década de 1950 houve uma grande efervescência na Igreja francesa, que viu surgir as correntes teológicas que levam ao Vaticano II (Henri de Lubac, Yves Congar, Christian Duquoc), bem como outras tendências com sensibilidade social como os padres operários ou “Economia e Humanismo”. Nada comparável (salvo exceções) ocorreu na Espanha ou Itália. Por isso, não é de admirar que a Igreja latino-americana, mais próxima do catolicismo francês seja também a que chegou à maior abertura e radicalização. (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016., p. 234).

Ao enunciar sua instigante provocação, Michel Löwy chamou a atenção para o caráter incipiente, parcial e fragmentário das pesquisas até então realizadas em torno dessas “fontes francesas”, os quais deveriam ser seguidos “por trabalhos mais detalhados e sistemáticos” (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016., p. 235). É justamente nessa linhagem de estudos específicos que se insere o presente artigo acerca das conexões francesas dos CIAS latino-americanos.

Matrizes francesas

Afortunadamente, nas últimas décadas esse repertório investigativo tem sido significativamente encorpado, tanto no âmbito estritamente brasileiro quanto do continente em sua totalidade. No caso da Ação Católica Brasileira (ACB), Luiz Alberto Gómez de Souza, um dos mais prestigiosos intelectuais católicos brasileiros, além de importante dirigente, tanto no plano nacional quanto internacional (chegou a ser secretário-geral da JEC Internacional em Paris entre 1959 e 1961), reconhece em seu livro de memórias a preponderância francesa na formação das primeiras gerações jucistas: “Líamos bastante, especialmente autores franceses. (...) Estávamos, assim, bastante atualizados. (...) O pensamento de Mounier passou a ser central em minha reflexão, substituindo o de Maritain” (SOUZA, 2015SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. Um andarilho entre duas fidelidades: religião e sociedade. Rio de Janeiro: Ponteio; Educam, 2015., p. 55-56). Aliás, ele já havia acentuado tal aspecto em sua tese de doutorado em sociologia defendida na Sorbonne sobre os estudantes católicos e a política no Brasil:

Se, de um lado, Maritain e seu Humanismo Integral tinham inspirado os movimentos social-cristãos e os partidos democrata cristãos (do Chile, da Venezuela e mesmo da seção paulista do PDC brasileiro), a ação dos militantes da JUC, sobretudo em Belo Horizonte e em São Paulo, se orientava mais pelo pensamento de Mounier, num compromisso que pouco a pouco se ia explicitando como personalista e socialista. (SOUZA, 1984SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. A JUC: os estudantes católicos e a política. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 156).

Também o historiador da Igreja Católica José Oscar Beozzo frisava a predominância gálica no rol das leituras usuais da juventude católica brasileira: Congar, de Lubac, Daniélou, Perrin, Voillaume, Suhard, Thils, Maritain, Lebret, Mounier, Calvez e Karl Rahner (Cf. BEOZZO, 1984BEOZZO, José Oscar. Cristãos na universidade e na política. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 56-57). Desse elenco, porém, é inegável a recepção privilegiada da tríade formada por Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e Louis-Joseph Lebret. Ao analisar a gênese da democracia cristã na América Latina e no Brasil, Áureo Busetto afirma que a ênfase

na distinção entre ação cristã (práticas social e politicamente influenciadas por motivos cristãos) e ação do cristão (ato propriamente religioso, confessional ou ritual) formulada por Maritain [na parte final de sua obra capital, Humanismo Integral], que estimulava os fiéis a serem livres nas suas escolhas e ações políticas sem o comprometimento da Igreja, funcionou como um dínamo para a emergência de lideranças democratas cristãs no seio do catolicismo latino-americano, sobretudo entre intelectuais e jovens universitários católicos pertencentes aos setores dominantes da classe média urbana. (BUSETTO, 2002BUSETTO, Áureo. A democracia cristã no Brasil: princípios e práticas. São Paulo: Unesp, 2002., p. 41-42).

Ainda sobre o percurso do maritainismo na América do Sul, Olivier Compagnon defendeu acertadamente (em que pese sua questionável interpretação acerca da Teologia da Libertação) a “filiação europeia” da democracia cristã sul-americana, no seio da qual “a onipresença de Maritain é a consequência última da recepção política da sua obra, tal como foi estabelecida na segunda metade dos anos 30” (COMPAGNON, 2003COMPAGNON, Olivier. Jacques Maritain et l’Amérique du Sud. Paris: Septentrion, 2003., p. 316, tradução nossa).

Por seu turno, em sua “teologia a partir do reverso da história”, Gustavo Gutiérrez apresenta de maneira objetiva as limitações do pensamento de Jacques Maritain, compreendido como uma síntese da ala moderna do liberalismo católico, do catolicismo social francês e da Doutrina Social da Igreja, devidamente “enquadrado no ‘ideal histórico concreto’ de uma sociedade inspirada em valores cristãos, considerados compatíveis com uma reivindicação moderada das liberdades democráticas e da justiça social”, e que, em função da carência de um método científico de análise socioeconômica, “só deixava lugar, em última instância e apesar das intenções, para genéricas e vagas defesas da dignidade da pessoa humana” (GUTIÉRREZ, 1981GUTIÉRREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981., p. 274). Destarte, como já nos havia recordado há pouco Gómez de Souza, Maritain terminou sendo “substituído” por Mounier. Corroborando esse apreciável desvio teórico, Emanuel de Kadt sublinha em seu estudo clássico a respeito do “catolicismo radical” no Brasil o que ele designa como “o elemento personalista na weltanschauung progressista católica”:

Os católicos progressistas no Brasil compartilhavam com os membros de muitos outros movimentos progressistas do pós-guerra no mundo uma orientação profundamente humanista (...) Os princípios básicos - e vagos - que guiariam as relações sociais após a grande transformação derivavam amplamente de uma outra fonte, que também foi levada em conta na ênfase do movimento sobre o “homem” e a expansão de seu potencial: o existencialismo “personalista” cristão de Emmanuel Mounier. (KADT, 2007KADT, Emanuel de. Católicos radicais no Brasil. Brasília: MECUnesco;, 2007., p. 117).

Uma das maiores contribuições desse trabalho consiste em sua riqueza empírica, uma vez que Kadt procede a uma pesquisa amostral com 56 dirigentes do Movimento de Educação de Base (MEB), uma organização criada em 1961 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com a finalidade de promover a educação popular de jovens e adultos através de uma interessante combinação do tradicional método “ver, julgar e agir” da ACB com a inovadora pedagogia de Paulo Freire. Ao serem inquiridos sobre quais pensadores ou sistemas de pensamento haviam efetivamente exercido influência direta em sua formação, nada menos do que 84% das lideranças do MEB entrevistados apontaram o padre dominicano francês Louis-Joseph Lebret, seguido de longe por Mounier (52%), Henrique Lima Vaz (52%), Teilhard de Chardin (45%), Marx (34%) e Sartre (27%) (Cf. KADT, 2007KADT, Emanuel de. Católicos radicais no Brasil. Brasília: MECUnesco;, 2007., p. 317).

Nesse particular, é digno de nota o incremento recente dos estudos sobre Economia e Humanismo, movimento fundado por Lebret e alguns de seus confrades em 1941, sobretudo por ter evidenciado uma verdadeira rede de cooperação internacional na qual a América Latina (sobretudo Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai e Venezuela) exerceu um papel proeminente. Com efeito, desde a primeira viagem de Lebret ao Brasil, em 1947, quando “intelectuais, clérigos, em especial os da ordem dominicana, políticos, militantes da ACB, principalmente os integrantes da JUC, e líderes sindicais” participaram de diversos cursos e conferências, a progressiva internacionalização do movimento gerou uma “diversificação organizacional, havendo até mesmo a criação de grupos locais na América Latina, na África, na Ásia e no Oriente Médio. Formou-se, assim, uma rede internacional de especialistas que serviu de suporte para a atuação do Économie et Humanisme” (PONTUAL, 2016PONTUAL, Virgínia. Louis-Joseph Lebret na América Latina: um exitoso laboratório de experiências em planejamento humanista. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016., p. 28; 69).

Não causa espanto, portanto, a escolha de São Paulo para sediar, em 1954, o Primeiro Congresso Internacional de Economia Humana, nem que três anos depois a Sessão Interamericana de Economia Humana tenha ocorrido em Montevidéu, com mais de uma centena de participantes latino-americanos, evento do qual resultou o lançamento dos Cuadernos Latinoamericanos de Economía Humana e do Centro Latinoamericano de Economia Humana (CLAEH), ambos instalados na capital uruguaia. No terreno testemunhal, Alfredo Bosi, outro insigne intelectual católico brasileiro, confessa ter sido impactado na juventude pelo ideário lebretiano, “uma das matrizes da passagem que se operou, entre os anos 1950 e 1960, de um tímido catolicismo de centro (o da democracia cristã ocidental) para o cristianismo de esquerda no Brasil” (BOSI, 2012BOSI, Alfredo. Economia e Humanismo. Estudos Avançados, São Paulo, n. 75, p. 249-266, 2012., p. 250). Esse viés progressista é confirmado por Michelly Angelo:

A condição desigual dos países latino-americanos teve atenção especial de Lebret entre os anos de 1947 e 1966, quando passou a visitá-los, seja para proferir palestras, efetuar novos estudos ou estabelecer contatos políticos. (...) Nos países da América Latina, o movimento Economia e Humanismo teve diversos pontos em comum, e foi evidente a integração entre seus membros no momento decisivo dos anos de 1960, no seio de organismos públicos nacionais ou regionais de desenvolvimento. Esse impacto se deu especialmente nos círculos católicos progressistas que estavam em crescente expansão nesses países. (ANGELO, 2013ANGELO, Michelly Ramos de. Louis-Joseph Lebret e a SAGMACS: a formação de um grupo de ação para o planejamento urbano no Brasil. São Paulo: Alameda, 2013., p. 129, 133).

E, como não poderia deixar de ser, a mais original das formulações teológicas latino-americanas também se espraiou na esteira deste processo:

Entre as grandes correntes do pensamento social cristão [se encontram] tanto os pensadores do pós-guerra, a exemplo do renomado economista François Perroux e do padre Louis-Joseph Lebret, fundador de Économie et Humanisme, como aqueles posteriores ao Concílio Vaticano II, quando talvez já não se encontrem personalidades tão eminentes, mas há debates animados entre marxistas cristãos e aqueles que os contestam, quando se desenvolve todo um comentário moderno sobre a doutrina social católica oficial. Este último período é também o tempo da Teologia Política na Alemanha e da Teologia da Libertação da América Latina. (CALVEZ, 2002CALVEZ, Jean-Yves. Chrétiens penseurs du social (1920-1940). Paris: CERF, 2002., p. 7, tradução nossa).

Antecipando-nos a possíveis mal-entendidos, é mister esclarecer aqui que não há qualquer incoerência em admitir uma matriz europeia remota na Teologia da Libertação ao tempo em que se reafirma sua originalidade. É igualmente importante pontuar que a gênese e consolidação da Teologia da Libertação (ou do movimento mais amplo do Cristianismo da Libertação) não se deu de maneira inconteste, haja vista a renhida (e, não raro, agressiva e violenta) oposição sofrida por muitos dos seus integrantes ou mesmo simpatizantes, sobremodo nas conjunturas repressivas, a exemplo da Ditadura Civil-Militar brasileira. Valendo-nos, pois, da cronologia proposta por Enrique Dussel, a década de 1930 vai demarcar a passagem da teologia tradicional-integrista para a teologia desenvolvimentista-reformista: “Os teólogos se formavam agora não só na Itália, senão que os mais progressistas iam agora à França, país da pastoral, de experiências catequéticas, litúrgicas, de espiritualidade, dos padres operários etc.” (DUSSEL, 1997DUSSEL, Enrique. Teologia da Libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 49). O que se segue é o resoluto avanço dos cristãos (sobretudo em seus setores mais jovens) rumo a uma nova relação entre fé e política, senda na qual a Revolução Cubana de 1959 exercerá um papel inegavelmente preponderante:

Muitos se separam então da Democracia Cristã e, seguindo o desenvolvimento do pensamento de Jacques Maritain, passam para o de Emmanuel Mounier, e deste para o compromisso revolucionário, não necessariamente para o marxismo - e quando assumem essa posição se inspiram numa linha de pensamento gramsciana, crítica, antidogmática (...). Teologicamente, entretanto, todos esses compromissos - incluindo a “teologia da revolução” - não podem ser considerados ainda como uma teologia “autóctone” da América Latina. Pertence mais definidamente à teologia europeia. (DUSSEL, 1997DUSSEL, Enrique. Teologia da Libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 53-54).

Mas como posicionar a Companhia de Jesus (sobretudo em suas hostes latino-americanas) nessas conexões francesas? É o que veremos a seguir.

De olhos abertos para a América Latina

É praticamente um truísmo na historiografia da Igreja Católica que as ordens religiosas ocupam a vanguarda do pensamento teológico e das práticas pastorais, seja por conta de sua maior autonomia ao interior da instituição eclesiástica (sobretudo quando comparado ao clero diocesano, mais vulnerável diante das hierarquias episcopais e pontifícia), seja pelo alto nível de formação intelectual e maior permeabilidade às correntes teóricas modernas (notadamente as ciências sociais). No caso particular da Companhia de Jesus, Gianni La Bella atesta, sobejamente, a centralidade dos autores franceses (especialmente Claude Mondésert, Henri de Lubac, Jean Daniélou, Léonce de Grandmaison e Pierre Teilhard de Chardin) na profunda revitalização vivenciada pela Ordem no período que vai “do Vaticano II ao Papa Francisco”:

Na terceira década do século XX, dentro desta Companhia, normalmente na defensiva e prisioneira de seu próprio retraimento e de sua ânsia de recristianizar a sociedade e o Estado (...), amadurecem tendências culturais e sensibilidades religiosas que se afastam desta atitude majoritária e se movem em busca de uma nova síntese criativa entre Evangelho e modernidade. Um grupo de religiosos pertencente à corrente mais perspicaz da Companhia de Jesus está na vanguarda da renovação da investigação teológica e no estudo das origens do Cristianismo. (...) Estes homens haviam assumido a difícil tarefa de “revitalizar as ciências sagradas”, permitindo que a Igreja se expressasse com frescura e de maneira inteligível para o homem contemporâneo. (...) [De fato], os jesuítas são a família religiosa que mais contribuiu para a renovação da inteligência crítica do catolicismo nos planos teológico, bíblico e ecumênico. (LA BELLA, 2019LA BELLA, Gianni. Los jesuitas: Del Vaticano II al papa Francisco. Bilbao: Mensajero, 2019., p. 48).

Em se tratando do catolicismo latino-americano contemporâneo, o protagonismo recai nos dominicanos, franciscanos, maryknolls, capuchinhos e jesuítas, além de algumas ordens femininas. Em seu trabalho de fôlego acerca da história da Companhia de Jesus na América Latina, Jeffrey Klaiber já havia vinculado explicitamente a influência do novo catolicismo social europeu, ao lado da própria espiritualidade inaciana, à inspiração “para que [os jesuítas latino-americanos] abraçassem a justiça social como uma parte fundamental e integral de sua missão” (KLAIBER, 2007KLAIBER, Jeffrey. Los jesuitas en América Latina, 1549-2000: 450 años de inculturación, defensa de los derechos humanos y testemonio profético. Lima: Universidad Antonio Ruiz de Montoya, 2007., p. 438). Para ele, o catolicismo militante e social que caracterizou a atuação da Ordem no continente nas primeiras décadas do século XX teve por respaldo sobremodo “as encíclicas sociais papais, especialmente o conceito de ‘democracia cristã’ proposta por Leão XIII, os escritos de Jacques Maritain e as ideias do dominicano francês Louis-Joseph Lebret sobre a economia humana” (KLAIBER, 2007KLAIBER, Jeffrey. Los jesuitas en América Latina, 1549-2000: 450 años de inculturación, defensa de los derechos humanos y testemonio profético. Lima: Universidad Antonio Ruiz de Montoya, 2007., p. 234). A propósito, na bela expressão do então Superior da Ordem, o jesuíta holandês Peter-Hans Kolvenbach, “foi a América Latina que abriu os olhos dos jesuítas ao amor preferencial pelos pobres e à verdadeira libertação integral do homem” (ESTUDIOS CENTRO-AMERICANOS, 1985ESTUDIOS Centro-Americanos. Para onde vai a Igreja? Cadernos do CEAS, n. 99, p. 51-58, 1985., p. 56).

Ora, a manifestação institucional mais concreta desse compromisso com a justiça social e a libertação dos pobres latino-americanos residiu justamente nos CIAS fundados pela Companhia de Jesus no continente a partir de 1950. De maneira quase paradigmática, é possível identificar nesses centros sociais todos aqueles elementos sugeridos por Michael Löwy para designar os setores sociais propulsores do Cristianismo da Libertação. Senão, vejamos: trata-se de organizações de assessoria vinculadas a uma ordem religiosa (no caso, a Sociedade de Jesus) cujos quadros se compunham majoritariamente de padres estrangeiros (no caso da América Latina, sobretudo espanhóis, italianos e franceses) e leigos especialistas (sociólogos e economistas em sua esmagadora maioria) e cuja atuação se deu basicamente junto aos movimentos laicos (juventude católica, sindicatos urbanos e rurais, comunidades eclesiais de base, associações de moradores etc.). Também aqui seria possível localizar influxos do ideário francês renovador? E quais vínculos poderíamos estabelecer entre tais organizações e a renovação vivenciada pela Companhia de Jesus desde a primeira metade do século passado?

Comecemos pela penetração do Catolicismo Social nas Américas, de modo peculiar entre os jesuítas dessa região. Desde o final do século XIX era patente a presença de alguns dos seus elementos fundamentais no cotidiano eclesiástico de muitos desses países, mormente no Cone Sul, a exemplo do “predomínio dos modelos francês, belga e alemão, o papel representado pelos imigrantes, a importância dos leigos” (MONREAL, 2009MONREAL, Susana. Catolicismo Social en el Cono Sur: genealogía de un ideario. In: BERRÍOS, Fernando; COSTADOAT, Jorge; GARCÍA, Diego (org.). Catolicismo Social Chileno: desarrollo, crisis y actualidad. Santiago: Centro Teológico Manuel Larraín; Universidad Alberto Hurtado, 2009. p. 21-45., p. 39, tradução nossa). A inspiração, é bom que se diga, remontava ao próprio ordenamento do clero, como revela o relato feito pelo jesuíta vasco-venezuelano Manuel Aguirre Elorriaga, de uma concorrida palestra proferida em janeiro de 1936 pelo padre Joseph Cardijn (já àquela época uma celebridade no mundo católico por ter criado a Juventude Operária Católica/JOC na década anterior) para mais de uma centena de estudantes do Colégio Pío Latino-Americano de Roma, o maior centro de formação de sacerdotes latino-americanos (não à toa administrado pela Companhia de Jesus...). Naquela ocasião, o que mais chamou a atenção do padre Manuel Aguirre foi o teor pragmático (além de anticomunista, obviamente) das recomendações do monsenhor Cardijn para a constituição de núcleos jocistas:

Há um duplo desafio na formação do primeiro núcleo. Primeiro, um a um. Depois, em grupo: que se imprima neles a ideia de que são muitos. Sentimento de comunidade. E, ao mesmo tempo, já devem estar conquistando: - Quem é seu melhor amigo? Onde ele vive? Você o encontra no campo de futebol? Fale de tudo isso. Mostre-lhe, conquiste-o. Se é comunista, melhor... No céu há uma especial alegria quando um grande pecador se converte. Será pior que Saulo? Quantos Paulos andam por aí nessas almas, às vezes cheias de ideal e quase misticismo, de Socialismo e Comunismo. Devemos ganhá-los. Depois se tornarão mais santos que nós. (AGUIRRE, 1938AGUIRRE, Manuel. Cardijn en el Colegio Pío Latino-Americano de Roma. SIC* , v. 1, n. 3, p. 69-70, 1938. , p. 69-70, tradução nossa).

Todavia, esse anticomunismo de origem haveria de ser atenuado com o passar do tempo e seria o próprio Cardijn quem o admitiria. Em 1949, ao regressar de uma de suas muitas viagens pelo continente latino-americano (às quais se tornariam cada vez mais frequentes na década seguinte),** ** Provavelmente, a primeira viagem de Cardijn à América Latina tenha se dado entre julho e setembro de 1946, quando ele circulou por nada menos do que sete países das “três Américas”: Estados Unidos, México, Costa Rica, Panamá, Peru, Chile e Argentina (Cf. CARDIJN, 1946). Já a primeira visita ao Brasil ocorreu em 1948 e coincidiu com a oficialização da JOC em termos nacionais. ele declarou ter ficado bastante impressionado não apenas com os “crassos contrastes” observados (de um lado, a extrema pobreza; de outro, o luxo extremo; em certas regiões, um avanço técnico restrito exclusivamente a uma reduzida classe superior; noutras, o inacreditável atraso nas condições de vida, higiene, educação e trabalho das grandes massas), como também condenou as soluções simplistas:

Não se deve esperar que o anticomunismo meramente negativo cultivado nos países sul-americanos seja capaz de resolver os problemas sociais. A medida de mais urgente necessidade para diminuir as injustiças e evitar uma revolução é dar uma sólida educação social a todas as camadas sociais, especialmente às classes altas. Porém, a grave escassez de clero impede a intensificação de tais iniciativas. A grande esperança para a América do Sul é, portanto, a formação de uma elite secular enérgica e lutadora. (EL CANÔNIGO CARDIJN..., 1949EL CANÔNIGO CARDIJN habla sobre la situación social en América del Sur. El Amigo del Clero, Lima, v. 58, n. 1492, p. 25, 1949., p. 25, tradução nossa).

Como dissemos, Cardijn se tornou uma presença constante na América Latina nos anos 1950. Somente em Cuba ele esteve pelo menos três vezes, o que indica a relevância do movimento da juventude operária católica caribenha no cenário internacional, muito por conta da atuação do pioneiro CIAS de Havana, fundado justamente no início daquela década (Cf. COSTA, 2017aCOSTA, Iraneidson Santos. O jesuíta Manuel Foyaca de la Concha e o Apostolado Social na América Latina: uma transição do Catolicismo Social ao Cristianismo de Libertação. Interações, v. 12, n. 22, p. 250-263, 2017a.). A primeira se deu em julho de 1951, quando o fundador da JOC Internacional presidiu as Jornadas de Oração e Estudo promovidas pela JOC Cubana no Colégio de Belén, o maior da ilha e pertencente à Companhia de Jesus.*** *** Ver: Notícias de la Vice-Província de Cuba, Havana, ano 10, n. 43, nov. 1951, p. 8. Archivo Histórico de la Compañia de Jesus en Cuba (AHSJC), Havana, Cuba. Na Figura 1 vemo-lo pronunciando uma palestra sobre questões sociais. Um ano e meio depois ele retornou para participar de um evento mais grandioso, o Primeiro Congresso Regional Centro-Americano e Caribenho da JOC, realizado nas dependências do mesmo Colégio de Belén em fevereiro de 1953 e que contou com as ilustres presenças do Núncio Apostólico dom Giuseppe Burzio e do arcebispo de San Cristóbal da La Habana (e primeiro cardeal nascido em Cuba) dom Manuel Arteaga y Betancourt (ver Figura 2). Por fim, entre setembro e outubro de 1959 - em plena vigência, portanto, do governo revolucionário -, os 20 membros do Comitê Executivo da JOC Internacional (procedentes de diversos países da África, América do Norte, América Latina, Ásia e Europa) se reuniram pela primeira vez fora da Europa, mais exatamente na Casa de Exercícios da Agrupación Católica Universitária (ACU) de Havana, outra instituição vinculada aos jesuítas cubanos. Uma vez mais, a figura de Cardijn galvanizou as atividades daquelas semanas.**** **** Ver: Notícias de la Vice-Província de las Antillas de la Compañia de Jesús, Havana, ano 10, n. 1, jan. 1960, p. 5. AHSJC, Havana, Cuba.

Figura 1:
Monsenhor Joseph Cardijn pronuncia uma palestra sobre questões sociais nas Jornadas de Oração e Estudo da JOC Cubana, em Havana em julho de 1951. Fonte: Ecos de Belén, Havana, ano 13, n. 3, set. 1951, p. 16. AHSJC, Havana, Cuba.

Figura 2:
Participantes do Primeiro Congresso Regional Centro-Americano e Caribenho da JOC, realizado em Havana em fevereiro de 1953. Na primeira fila, ao centro, o Núncio Apostólico dom Giuseppe Burzio; à sua esquerda, Monsenhor Joseph Cardijn. Fonte: Ecos de Belén, Havana, ano 15, n. 1, jan./mar. 1953. AHSJC, Havana, Cuba.

Outro grande luminar do pensamento católico renovador francês que tinha um apreço especial pelo continente latino-americano é Louis-Joseph Lebret, como já tivemos oportunidade de discorrer.***** ***** Apesar de Cardijn ser belga e da própria JOC ter sido criada em Bruxelas, em 1925, não há como separar sua trajetória da história do movimento no país vizinho, onde a JOC surgiu apenas dois anos depois e que chegou a ser a sua sede mundial quando da invasão nazista na Bélgica, em 1940. Ao definir em seu famoso Manifesto por uma civilização solidária a postura internacionalista de Economia e Humanismo, esse “movimento de renovação que impulsionava o catolicismo no terreno missionário, no qual os franceses tinham uma larga tradição” (BEIGEL, 2011BEIGEL, Fernanda. Misión Santiago: el mundo académico jesuita y los inicios de la cooperación internacional católica. Santiago: LOM, 2011., p. 34, tradução nossa), o padre dominicano francês frisava que

a missão essencial das potências polarizadoras seria assumir o encargo do Terceiro Mundo, não para explorá-lo ou seduzi-lo, mas para ajudá-lo a se construir na perspectiva de uma civilização solidária. O fato é, porém, que nenhum dos materialismos atuais está preparado para realizar satisfatoriamente essa tarefa (...) Os homens a quem incumbe essa missão são frequentemente vítimas das deformações capitalistas ou marxistas; não atingiram, ainda, a visão sintética dos problemas que têm a resolver, e a massa dos cidadãos não têm ainda suficiente espírito cívico. (...) Por maior que seja o desejo de caminhar depressa, só lentamente se passa de uma fase inferior de civilização para a fase superior. Não se trata apenas de liquidar a miséria, mas, sobretudo, de atingir uma fase de civilização organizada, fundada em autênticos valores. (LEBRET, 1963LEBRET, Louis-Joseph. Manifesto por uma civilização solidária. 4. ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1963., p. 47-49).

Até o momento percorremos as matrizes em seu aspecto primordialmente individual. Vejamos doravante as institucionais.

De olhos postos na Europa

Para acessar essa dimensão havemos de mergulhar na trajetória do mais importante centro social da Companhia de Jesus francesa da primeira metade do século XX: o Action Populaire. Seu surgimento, em janeiro de 1903, decorreu do empenho e perseverança de um pequeno grupo de jesuítas em aproximar a Igreja Católica do mundo do trabalho, afirmando o compromisso cristão na esfera social e promovendo o fortalecimento dos sindicatos operários independentes. Dentre esses precursores, impõe-se ressaltar os jesuítas sociais Henri-Joseph Leroy, seu fundador, e Gustave Desbuquois, seu diretor por mais de 40 anos. Concebida inicialmente no escolasticado jesuítico de Enghien, na Bélgica, Action Populaire terminou se instalando em Reims, no leste do país vizinho, devido à resistência da hierarquia católica do norte da França, árdua defensora de uma concepção corporativa de sociedade e, consequentemente, de uma estrutura sindical mista de patrões e trabalhadores. Gestada no delicado contexto do papado politicamente conservador de Pio X (1903-1914), do auge do movimento contrarrevolucionário integrista de Action Française e da hegemonia da ala monarquista da Companhia de Jesus francesa, não deve gerar estranheza que seu projeto tenha sido considerado “quase bolchevista” (Cf. LACOUTURE, 1993LACOUTURE, Jean. Os jesuítas. Volume II: O regresso. Lisboa: Estampa, 1993., p. 384). Transferida provisoriamente em 1919 para Paris em razão da instabilidade do pós-Guerra, três anos depois sua sede foi definitivamente fixada em Vanves, nos arredores da capital francesa.

Em virtude do propósito específico desse artigo, nossa análise se concentrará na relação de Action Populaire com a Igreja Católica latino-americana, averiguando de maneira minuciosa a participação dos jesuítas da primeira geração dos CIAS (1950-1980) nessas redes e testando a hipótese de que o centro social francês teria servido de modelo para a concepção dos seus símiles d’além mar. Duas ponderações metodológicas nos balizarão nesta investigação. A primeira diz respeito à necessidade de problematização permanente dessa possível “influência”, posto que

examinar com atenção essa conexão franco-brasileira não significa que se queira explicar a radicalização do catolicismo brasileiro do começo dos anos 1960 pela “influência” da Igreja francesa. Como destacava o eminente sociólogo da cultura Lucien Goldmann, a influência não explica nada. Pelo contrário, ela própria deve ser explicada por certas condições sociais e históricas que determinam uma escolha. (LÖWY, 2016LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação? São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016., p. 235).

Ademais, a própria noção de “modelo” deve ser mantida o tempo inteiro sob estrita vigilância. Como nos alerta Olivier Compagnon (2009COMPAGNON, Olivier. L’Euro-Amérique en question. Comment penser les échanges culturels entre l’Europe et l’Amérique Latine? Nuevo Mundo Mundos Nuevos, p. 1-12, 2009.), é preciso pôr em xeque o paradigma tradicional da historiografia das relações culturais entre a Europa e a América Latina de que “o vento sempre soprou de Leste para Oeste”, abordando os contatos euro-americanos sob a ótica de múltiplas trocas e transferências culturais, atentos não apenas para a produção como também para a circulação e recepção destas ideias, bem como para seus distintos usos, interpretações e apropriações:

Enquanto o paradigma da influência apreendeu as trocas culturais em termos sincrônicos, o de modelo reintroduziu a diacronia pela própria necessidade de decompor os diferentes tempos da recepção, permitindo considerar a difusão de um determinado produto cultural por um longo tempo, por ondas sucessivas e sem exclusividade. Assim, não haveria uma influência do filósofo Jacques Maritain na América do Sul mas uma sucessão de momentos, e de tantas leituras divergentes dessa mesma obra, a ponto de permitir repensar as clivagens que perpassam o catolicismo do outro lado do Atlântico. Ser “maritainiano” no Brasil na década de 1920 nunca excluiu a leitura simultânea de Chesterton; estar na Venezuela dos anos 1960 não era incompatível com visitas frequentes às obras de Emmanuel Mounier ou do padre Louis-Joseph Lebret. (COMPAGNON, 2009COMPAGNON, Olivier. L’Euro-Amérique en question. Comment penser les échanges culturels entre l’Europe et l’Amérique Latine? Nuevo Mundo Mundos Nuevos, p. 1-12, 2009., tradução nossa).

De modo, portanto, a compreender com precisão as condições sociais e históricas condicionantes de tais nexos, recorreremos a uma incipiente (ainda que densa) produção historiográfica sobre Action Populaire, os CIAS latino-americanos e as redes de cooperação católica e jesuítica. No caso do centro social francês, o ponto de partida é a obra clássica de Paul Droulers (1981DROULERS, Paul. Le père Desbuquois et l’Action Populaire, Tomo II: Dans la gestation d’un monde nouveau (1919-1946). Paris: Ouvrières; Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1981.), pela qual podemos conferir como seu itinerário se confundiu com o do próprio Catolicismo Social, visto que os jesuítas de Action Populaire (nomeadamente Jean Villain, Pierre Bigo, André Desqueyrat, Robert Bosc, Henri-Joseph Leroy, Jean-Yves Calvez e Jacques Perrin) contribuíram de maneira relevante para o amadurecimento e disseminação da Doutrina Social da Igreja (Cf. CALVEZ, 2006CALVEZ, Jean-Yves. Chrétiens penseurs du social: L’après-guerre (1945-​1967). Paris: CERF, 2006.), a princípio através dos famosos “folhetos amarelos”, logo depois por meio da publicação de artigos em Revue de l’Action Populaire, lançada em 1908, e em diversas outras revistas dos Instituto Católico de Paris, nos quais seus integrantes “discutiram filosoficamente o marxismo e analisaram especialmente as relações da Igreja com o mundo operário e os movimentos sociais cristãos” (BEIGEL, 2011BEIGEL, Fernanda. Misión Santiago: el mundo académico jesuita y los inicios de la cooperación internacional católica. Santiago: LOM, 2011., p. 33-34, tradução nossa). Sabemos também que Lebret visitava frequentemente Action Populaire, tendo estado presente inclusive nas grandes comemorações do primeiro cinquentenário do centro, adiadas para junho de 1953 por solicitação do arcebispo de Paris, Dom Maurice Feltin, antigo aluno do padre Gustave Desbuquois e que se encontrava em Roma no início daquele ano para o consistório que o criou cardeal (Cf. FOUILLOUX, 2004FOUILLOUX, Étienne. L’Action Populaire au temps de la reconstruction, 1946-1958. Chrétiens et sociétés, n. 11, p. 49-60, 2004.). René Remond faz questão de apontar o esforço desenvolvido pelo centro no sentido de

reverter o peso dos hábitos e quebrar a colusão da Igreja, uma potência espiritual, com as forças temporais da conservação. (...) As preocupações sociais foram sem dúvida decisivas, e, nesta viragem crucial para a Igreja francesa, o papel desempenhado por Action Populaire e seu diretor, Gustave Desbuquois, não deve ser negligenciado. (La Droite en France, 3. ed., Aubier, Paris, p. 311, 1968, apudDROULERS, 1981DROULERS, Paul. Le père Desbuquois et l’Action Populaire, Tomo II: Dans la gestation d’un monde nouveau (1919-1946). Paris: Ouvrières; Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1981., p. 405, nota 208, tradução nossa).

Pouco a pouco, Action Populaire foi se convertendo no paradigma social jesuítico, o que pode ser comprovado pela influência exercida na gestação dos principais centros europeus e norte-americanos da primeira metade do século XX, a exemplo dos seus congêneres da Espanha, Itália e Estados Unidos. Quando, em 1926, um grupo de jesuítas capitaneados por Sisínio Nevares e Joaquín Azpiazu criou Fomento Social, em Madri, convencidos da premência de uma organização de especialistas que consagrassem toda a sua energia ao estudo e difusão da Doutrina Social da Igreja em escala nacional, eles o fizeram “com os olhos postos, como fonte de inspiração, na Action Populaire dos jesuítas franceses”, em termos de estrutura e objetivos.****** ****** Revista de Fomento Social, Madri, v. VIII, 1953, p. 263, tradução nossa. Para um aprofundamento da conjuntura espanhola das primeiras décadas do século XX e do projeto de criação de Fomento Social, cf. GRANDA; CUESTA, 1991, pp. 401-430. Quanto ao Centro Studi Sociali, fundado pelo padre Giacomo Perico em 1946 na paróquia de San Fedele, no coração de Milão, “seus primeiros membros (...) também passaram [por Action Populaire]” (DROULERS, 1981DROULERS, Paul. Le père Desbuquois et l’Action Populaire, Tomo II: Dans la gestation d’un monde nouveau (1919-1946). Paris: Ouvrières; Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1981., p. 91, nota 184, tradução nossa). No caso da América do Norte, é inegável que a estadia do padre John La Farge em Action Populaire, em 1938, está na raiz do aparecimento em Nova York, no ano seguinte, do Institute of Social Order (ISO), “de maneira semelhante a Action Populaire, segundo os termos do Padre Geral [Wlodimir] Ledochowski, que obviamente queria a sua realização” (DROULERS, 1981DROULERS, Paul. Le père Desbuquois et l’Action Populaire, Tomo II: Dans la gestation d’un monde nouveau (1919-1946). Paris: Ouvrières; Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1981., p. 92, tradução nossa).

Volvendo os olhares para o outro lado do Atlântico, é possível entrever os vínculos de Action Populaire com o social-catolicismo latino-americano. Em dezembro de 1933 ocorreu em Roma o Primeiro Congresso de Ação Católica dos Estudantes Iberoamericanos, o qual contou com a participação de 38 delegados de sete países latino-americanos, e direito a uma audiência especial com o papa Pio XI (ver Figura 3). Promovido pela Confederação Ibero-Americana de Estudantes Católicos (CIDEC), o evento durou três semanas e teve lugar no Colégio Pio Latino-Americano, administrado pela Companhia de Jesus. A assessoria do encontro foi reservada a Action Populaire, cabendo a Gustave Desbuquois a realização da palestra magna sobre a questão social, provocando na jovem plateia arrebatados “aplausos e, sobretudo, uma estima e uma admiração que será demonstrada por visitas e correspondências até seus últimos dias de vida” (DROULERS, 1981DROULERS, Paul. Le père Desbuquois et l’Action Populaire, Tomo II: Dans la gestation d’un monde nouveau (1919-1946). Paris: Ouvrières; Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1981., p. 95, tradução nossa). Na ocasião, Desbuquois combateu em tom entusiasmado os diversos sistemas modernos, defensores do que chamou de “novos ídolos” (a raça, o Estado, a classe proletária), contra os quais antepôs

a doutrina justa e realista sobre a ordem social que quer e deve restaurar a juventude, baseada na doutrina cristã acerca da pessoa humana, de sua essência espiritual, seu valor absoluto, seu caráter social. Os meios para esta realização da ordem social cristã na realidade atual são os guias ou líderes, que devem ter uma vontade de reformas firme, culta e prudente, tradicional e progressiva, e uma forte vida interior. Estes guias devem ser proporcionados em grande parte pela juventude intelectual católica. (apudLA ÚLTIMA SEMANA…, 1934LA ÚLTIMA SEMANA del Congreso Iberoamericano de Estudiantes Católicos. Verdades, p. 5, 1934., p. 5, tradução nossa).

Entre a fina flor dessa “juventude intelectual católica” presente no Congresso, merecem destaque César Arrospide de la Flor, que seria presidente nacional da Ação Católica Peruana, Manuel Garretón Walker, então presidente nacional da Juventude Católica Chilena e futuro deputado federal (1937-1945), além de dois militantes democrata-cristãos que chegariam a nada menos do que à presidência de seus respectivos países: Eduardo Frei Montalva (Chile, 1964-1970) e Rafael Caldera Rodríguez (Venezuela, 1969-1974). Como prova do valor conferido ao referido encontro, o Geral da Companhia de Jesus, Ledochowski, concedeu uma audiência às delegações no dia 28 de dezembro de 1933, quando expressou “sua confiança no porvir religioso da América Ibérica, que é o único grande bloco de nações existente no mundo que conseguiu conservar a unidade religiosa” (apudLA ÚLTIMA SEMANA…, 1934LA ÚLTIMA SEMANA del Congreso Iberoamericano de Estudiantes Católicos. Verdades, p. 5, 1934., p. 5, tradução nossa). Segundo ele, o caminho a ser tomado pela Igreja ibero-americana (a expressão “latino-americana” ainda não era corrente no mundo católico) seria decisivo para o destino da Igreja Católica universal, daí porque dispensava um “especial interesse no cultivo dessa região e se regozija[va] imensamente ao conhecer o desenvolvimento de nossas reuniões” (apudLA ÚLTIMA SEMANA…, 1934LA ÚLTIMA SEMANA del Congreso Iberoamericano de Estudiantes Católicos. Verdades, p. 5, 1934., p. 5, tradução nossa).

Figura 3:
Participantes do Primeiro Congresso de Ação Católica dos Estudantes Iberoamericanos, ocorrido no Colégio Pio Latino-Americano, em Roma, em dezembro de 1933. Na segunda fileira, sentados nas cadeiras, Manuel Garretón Walker é o primeiro da esquerda para a direita, Gustave Desbuquois é o quarto e Eduardo Frei Montalva é o último. Na terceira fileira, em pé, César Arrospide de la Flor é o segundo da esquerda para a direita. Na quarta fileira, em pé, Rafael Caldera Rodríguez é o quinto da esquerda para a direita. Fonte: Verdades, Lima, ano 4, 10 fev. 1934, p. 1. AHSJC, Havana, Cuba.

No âmbito circunscrito da Sociedade de Jesus, a vinculação é ainda mais estreita. O primeiro encontro internacional dos jesuítas ligados à ação social que estava programado para ocorrer em Frankfurt na Páscoa de 1933, sob a organização dos padres Gustave Desbuquois e Osvald Nell-Breuning, outro eminente jesuíta social alemão, e que terminou sendo cancelado de última hora em virtude da tensa situação na Alemanha, tinha pelo menos quatro representantes da América Latina (a saber, da Argentina, Brasil, Colômbia e México). Mas essa relação vinha do início do século XX, mediante a permanência (por dias, semanas ou meses) de jesuítas latino-americanos nos inúmeros congressos, semanas sociais, cursos e estágios promovidos por Action Populaire. A lista é extensa: entre as décadas de 1920 e 1940, passaram por Vanves os mexicanos Alfredo Méndez Medina, Miguel Agustín Pro, Arnolfo Castro, Pascual Díaz Barreto, Ramón Martínez Silva, García Robles, Santiago Lopez e Arrieta Gallegos; os espanhóis Vicente Andrade Valderrama, Victor Iriarte e Francisco José Virtuoso Arrieta (destinados à Colômbia, Venezuela e Centro-América respectivamente); o equatoriano Pablo Muñoz Vega, futuro cardeal arcebispo de Quito; os brasileiros Antônio Monteiro da Cruz, Sors da Silveira e Pedro Belisário Velloso Rabello, além dos chilenos Jorge Fernández Pradel e Alberto Hurtado Cruchaga.

Pelo menos três deles requerem um comentário suplementar, a começar por Alfredo Medina, um dos arautos do sindicalismo operário mexicano. Após a conclusão da formação teológica em Lovaina, em 1911, Medina passou mais um ano na Bélgica, temporada na qual aproveitou para estudar Sociologia, frequentar diversas semanas sociais (na Alemanha, França, Holanda e Inglaterra) e participar dos seminários coordenados por Gustave Desbuquois. Outro jesuíta mexicano muito ativo junto à juventude da Ação Católica (e futuro mártir da Cristiada), Miguel Agustín Pro, também empregou o tempo da formação teológica (no seu caso, em Barcelona) para conhecer a experiência da JOC belga e fazer um curso em Action Populaire.

Por fim, a trajetória de Alberto Hurtado faz jus a um registro especial, sobretudo por conta de sua estadia na Europa de julho de 1947 a fevereiro de 1948, na medida em que a “emergência de um catolicismo dinâmico” por ele testemunhado haveria de alterar os rumos do apostolado social da Companhia de Jesus (Cf. KLAIBER, 2007KLAIBER, Jeffrey. Los jesuitas en América Latina, 1549-2000: 450 años de inculturación, defensa de los derechos humanos y testemonio profético. Lima: Universidad Antonio Ruiz de Montoya, 2007., p. 276, tradução nossa). Ao longo desses oito meses, ele compareceu a diversos congressos e semanas sociais, travou contato com os padres operários, a Liga de Camponeses Católicos, os sindicatos cristãos e a JOC, passou uma semana com Lebret e os demais integrantes de Economia e Humanismo (Desroches, Malley e Suavet) na sede da instituição, no mosteiro de La Tourette, nos subúrbios de Lyon, e outra em Action Populaire.

Alberto Hurtado manteve ainda encontros importantíssimos em Roma, visitando Jacques Maritain (então Embaixador da França no Vaticano), entrevistando-se nada menos do que três vezes com o Geral da Ordem, o belga Jean-Baptiste Janssens, e obtendo o privilégio de uma audiência particular com o papa Pio XII. O diálogo mais decisivo terminou sendo com o padre Janssens, que havia sido seu superior em Lovaina e que, doravante, o elegeria como um de seus mais influentes consultores, a ponto de pedir conselhos para a elaboração de um documento fundamental para os rumos do apostolado social jesuíta. O Geral lhe disse: “Quantos dias vai ficar em Roma? Por que não me sugere algumas ideias para uma carta que pretendo em breve escrever à Companhia de Jesus sobre estes temas?”.******* ******* Informe de la entrevista con el Padre General, Roma, 8 de outubro de 1947, apud HURTADO, 2005, p. 188, tradução nossa. Precisamente dois anos depois viria à luz a célebre Instrução sobre o Apostolado Social, verdadeira carta magna da Companhia de Jesus na questão social, e que incorporou muitas das recomendações feitas pelo jesuíta chileno (Cf. HURTADO, 2005HURTADO, Alberto. Cartas e Informes del Padre Alberto Hurtado. 3. ed. Santiago: Pontifícia Universidade Católica do Chile, 2005., p. 163-203, 341-343). Após participar dessa intensa maratona de eventos e conversações, Alberto Hurtado instalou-se de 17 de novembro de 1947 a 20 de janeiro de 1948 em Paris, na residência jesuíta da rua Monsieur, número 15,

para recolher-me por um tempo em meu quarto, pois as experiências acumuladas são demasiado numerosas e é preciso assentá-las, amadurecê-las, anotá-las. (...) Há que encerrar-se de tempos em tempos para pensar e repensar de maneira a poder fazer um bem mais profundo, mais intenso e mais extenso. (apudHURTADO, 2005HURTADO, Alberto. Cartas e Informes del Padre Alberto Hurtado. 3. ed. Santiago: Pontifícia Universidade Católica do Chile, 2005., p. 162, tradução nossa).

O tempo recolhido foi bastante profícuo, a julgar pelas obras por ele realizadas ao regressar ao Chile: reorientação da atuação de Hogar de Cristo e da Associação Sindical Chilena (ASICH), entidades por ele mesmo instituídas (em 1945 e 1947, respectivamente); constituição, junto com um grupo de universitários, de um centro de formação de trabalhadores cristãos; criação, em 1951, de Mensaje, uma das mais conceituadas revistas de crítica social do mundo católico. Seu projeto maior, porém, não pôde ser concretizado porque a morte o colheu em agosto do ano seguinte: “Fundar uma espécie de Action Populaire combinado com Économie et Humanisme” (HURTADO, 2005HURTADO, Alberto. Cartas e Informes del Padre Alberto Hurtado. 3. ed. Santiago: Pontifícia Universidade Católica do Chile, 2005., p. 192). De qualquer modo, as linhas mestras de seu pensamento social estavam bem delineadas, e devidamente assentadas no catolicismo social, sobretudo francês:

Quanto ao meu critério de julgar os problemas sociais, tenho a pretensão de pensar com toda simplicidade, que não é mau: tenho estado sempre de acordo com os meus superiores, e, em diálogo com especialistas como os padres [Jean] Villain [jesuíta, antigo diretor de Études], [Joaquín] Azpiazu [jesuíta espanhol, cofundador de Fomento Social], [Renê] d’Ouince [então diretor de Études], monsenhor [Luigi] Civardi [autor de diversas obras sobre a Ação Católica], o cônego [Joseph] Cardijn [criador da JOC], Georges Guérin [vigário de Clichy, fundador da JOC francesa], constatei que seus pontos de vista são os meus e que eles me têm animado a realizar uma ação social.******** ******** Idem, p. 179, tradução nossa. (apudHURTADO, 2005HURTADO, Alberto. Cartas e Informes del Padre Alberto Hurtado. 3. ed. Santiago: Pontifícia Universidade Católica do Chile, 2005., p. 179, tradução nossa).

Por conseguinte, não há exagero algum em afirmar que esse périplo de Alberto Hurtado assinala o início da transição entre o Catolicismo Social e o Cristianismo de Libertação no Chile e demais países do Cone Sul (Cf. BERRÍOS; COSTADOAT; GARCÍA, 2009BERRÍOS, Fernando; COSTADOAT, Jorge; GARCÍA, Diego (org.). Catolicismo Social Chileno: desarrollo, crisis y actualidad. Santiago: Centro Teológico Manuel Larraín; Universidad Alberto Hurtado, 2009.). Jean-Yves Calvez, ele próprio um antigo membro júnior de Action Populaire, chega a propor uma sinergia entre a reconstrução do centro social francês (1946-1958), a consolidação de Économie et Humanisme e o impulso do apostolado social da Companhia de Jesus:

Ao mesmo tempo que ocorria a reconstrução de Action Populaire - em vista de uma nova e muito intensa fase -, o padre Louis-Joseph Lebret fundava e desenvolvia, com vários de seus confrades dominicanos, Économie et Humanisme. Que riqueza - em suma - de reflexão e estudo profundo, poder-se-ia dizer, no catolicismo social francês daquela época! Tenho a sensação de que a mesma impressão de grandes escolhas em perspectiva, de graves problemas a advir por toda a parte, animou o padre Jean-Baptiste Janssens, Superior Geral dos Jesuítas, a, de um lado, escrever em 1947 uma importante carta sobre o Apostolado Social, e, de outro, enviar um “Visitador” com plenos poderes para recrutar um número considerável de jovens jesuítas latino-americanos com a finalidade de criar centros sociais nas várias Províncias, na prática nos vários países, deste continente, e destinando-os para estudar na Europa, muitas vezes na própria Action Populaire, tida como uma espécie de modelo. (CALVEZ, 2006CALVEZ, Jean-Yves. Chrétiens penseurs du social: L’après-guerre (1945-​1967). Paris: CERF, 2006., p. 186, tradução nossa).********* ********* Sobre o Visitador Social para a América Latina, o jesuíta cubano Manuel Foyaca de la Concha, cf. COSTA, 2017a.

Em todo caso, a conexão franco-latino-americana parece se manifestar de forma mais inconteste na figura de Pierre Bigo. Esse filho da antiga Picardia, no Norte da França, se ordenou padre em 1938 e três anos depois já estava incorporado à equipe de Action Populaire, “a primeira ‘opção pelos pobres’ da Companhia de Jesus no mundo”, segundo ele (BIGO, 1991BIGO, Pierre. Debate en la Iglesia: Teología de la Liberación. Santiago: Editorial Salesiana; ILADES, 1991., p. 8, tradução nossa). Procurando combinar a atuação social com a acadêmica, licenciou-se em Letras (Sorbonne) e em Ciências Políticas (Escola Livre de Ciências Políticas), doutorou-se em Direito Econômico (Escola Livre de Ciências Políticas) e lecionou no Instituto Católico de Paris, tudo isso enquanto trabalhava à noite como padre-operário na fábrica da Renault e nos grandes moinhos de Paris. Em sua tese, publicada em 1953 pela Presses Universitaires de France (PUF), ele revela que, antes de encontrar o marxismo “como padre, ao trabalhar numa fábrica, busquei-o na própria fonte, em O capital” (BIGO, 1966BIGO, Pierre. Marxismo e humanismo: introdução à obra econômica de Karl Marx. São Paulo: Herder, 1966., p. 7). No ano anterior, havia se tornado diretor de Action Populaire, cargo que ocupou até 1958, período no qual enfrentou uma agressiva campanha por parte da corrente fundamentalista, que o acusava de ser o responsável pela “penetração no catolicismo francês de um espírito de não-resistência ao comunismo” (FOUILLOUX, 2004FOUILLOUX, Étienne. L’Action Populaire au temps de la reconstruction, 1946-1958. Chrétiens et sociétés, n. 11, p. 49-60, 2004., p. 56).

Em 1960, depois de 25 anos de apostolado social na França, Pierre Bigo atravessou o oceano para se integrar à geração fundadora do Centro Social Roberto Bellarmino de Santiago (aquele que Alberto Hurtado pretendia criar, se mais tempo tivesse vivido...). Sua carreira em terras latino-americanas foi igualmente exitosa: primeiro diretor do Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento Econômico e Social (ILADES) de Santiago (1966-1969) e do Instituto de Doutrina e Estudo Social (IDES) de Bogotá (1968-1970), ambos concebidos tendo “como modelo o centro parisiense” (KLAIBER, 2007KLAIBER, Jeffrey. Los jesuitas en América Latina, 1549-2000: 450 años de inculturación, defensa de los derechos humanos y testemonio profético. Lima: Universidad Antonio Ruiz de Montoya, 2007., p. 316),********** ********** Em carta dirigida a Jean Lacouture em 16 de março de 1992, Pierre Bigo reafirma que Action Populaire teria servido de modelo para os centros sociais fundados pelos jesuítas na América Latina décadas mais tarde (cf. LACOUTURE, 1993, p. 385). Sobre sua atuação no ILADES, cf. FERNÁNDEZ, 2013. secretário executivo do Conselho Latino-Americano dos CIAS (CLACIAS) (1968-1972), fundador e diretor do departamento social do Instituto Teológico-Pastoral do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) em Medellín (1974-1978), e, por um semestre, membro do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES), importante centro social dos jesuítas brasileiros, sediado no Rio de Janeiro. Já então um reputado especialista em Doutrina Social da Igreja, foi perito nas conferências episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979), ministrou cursos em diversos países do continente (sobretudo Colômbia, Cuba, Honduras, México e Venezuela) e, depois de uma crise coronariana em 1984, dedicou-se à docência no Chile (no próprio ILADES, no juniorado e no Seminário Maior da Companhia de Jesus), até o seu falecimento, em abril de 1997, aos 91 anos, em Paris, para onde havia retornado em janeiro daquele ano.

Aos percursos individuais desses jesuítas d’aquém e d’além mar há que agregar a crescente percepção, por parte das diversas instituições jesuíticas, da dimensão global de sua missão. Desde a década de 1930, essa premência de internacionalização ficou cada vez mais evidente. Assim, quando Albert Le Roy, outro dos jesuítas de Action Populaire, iniciou seu longo mandato de duas décadas (1936-1955) como conselheiro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma de suas primeiras medidas consistiu em sair em viagem de reconhecimento pela América Latina, durante a qual constatou a urgência de uma ação social mais eficiente e de abrangência universal. De volta a Genebra, Le Roy escreveu, em fevereiro de 1938, um relatório circunstanciado ao padre Ledochowski, Superior da Companhia de Jesus, o qual, por sua vez, remeteu-o a Gustave Desbuquois para que este procedesse a um estudo do que “deveria ser feito imediatamente na medida das possibilidades locais” (DROULERS, 1981DROULERS, Paul. Le père Desbuquois et l’Action Populaire, Tomo II: Dans la gestation d’un monde nouveau (1919-1946). Paris: Ouvrières; Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1981., p. 95, nota 199, tradução nossa).

Até que ponto o informe do padre Le Roy está na raiz das preocupações sociais do seu sucessor, padre Jean-Baptiste Janssens, é matéria para uma investigação mais aprofundada. Sobre o que não resta dúvida é que, em novembro de 1955, Janssens nomeou um Visitador Social para a América Latina com a finalidade de percorrer o continente recrutando e enviando jovens jesuítas para uma sólida formação nas melhores universidades do mundo sob a condição de, em retornando a seus respectivos países, implantar centros de estudos e ação social. Também é fato que, atendendo a um pedido dos bispos da África Ocidental, uma equipe de jesuítas franceses fundou em 1962, em Abidjan, na Costa do Marfim, o Instituto Africano para o Desenvolvimento Econômico e Social/INADES (a familiaridade com o ILADES e o IBRADES não é nada casual), o primeiro centro social da África, e que, a partir dessa época, ficou cada vez mais explícita “na Revue de l’Action Populaire a preocupação da própria organização internacional” (CALVEZ, 2006CALVEZ, Jean-Yves. Chrétiens penseurs du social: L’après-guerre (1945-​1967). Paris: CERF, 2006., p. 204-205, tradução nossa).

Evidentemente, essa vaga internacionalista não se restringiu à Sociedade de Jesus, podendo ser observada em várias esferas da Igreja Católica, a principiar pelas instâncias colegiais do episcopado, cujo primeiro exemplar brotou, não à toa, na América Latina, com o surgimento, em 1955, do CELAM, ao qual se seguiram as conferências episcopais da África Oriental (AMECEA, 1961), África Ocidental (CERAO, 1963), África e Madagascar (SECAM, 1968), Pacífico (CEPAC, 1970), Europa (CCEE, 1971), Ásia (FABC, 1973) e Oceania (FCBCO, 1992). Outro destacado segmento eclesial no qual esta tendência reverberou com força consistiu nos organismos de cooperação católica, a exemplo da Obra de Cooperación Sacerdotal Hispanoamericana/OCSHA (Madri, 1949), do Collège pour l’Amérique Latine/COPAL (Lovaina, 1953), da Commission Épiscopale de Coopération Canada-Amérique Latine/CECAL (Ottawa, 1959), do Comitato Episcopale Italiano per l’America Latina/CEIAL (Roma, 1962), do Comité Épiscopal France-Amérique Latine/CEFAL (Paris, 1962) e do Serviço de Colaboração Apostólica Internacional/SCAI (Brasília, 1964). Como se vê, uma verdadeira rede de cooperação internacional.

Considerações finais

Ainda há muito que avançar por estas sendas de uma história transnacional do catolicismo. Os trabalhos já publicados ou em curso são promissores, tanto mais que resultam crescentemente do esforço de pesquisa e reflexão coletiva ancorada em redes institucionais de cooperação acadêmica. Os desafios são igualmente imensos, a começar pela vastidão e dispersão dos arquivos documentais. Gradativamente, no entanto, esse mosaico de conexões vai ganhando forma e conteúdo, tendo como aspecto fulcral a problematização contínua da lógica centro-periferia, assim como a abertura para fluxos de formação e informação múltiplos, diversicados e insuspeitos.

Por esse prisma, aliás, se encaminha nosso recente ensaio sobre o pensamento do jesuíta, antropólogo e historiador francês Michel de Certeau (Cf. COSTA, 2021bCOSTA, Iraneidson Santos. Volta ao Brasil em 30 dias e outras histórias jesuítas: justiça social, cultura e religiosidade popular na América Latina (1968-1974). Salvador: EDUFBA, 2021b.). Através do resgate dos seus constantes giros por cidades do Nordeste brasileiro (principalmente João Pessoa, Recife e Salvador) ao longo das décadas de 1970 e 1980 e do intenso diálogo com o Grupo de Religiosidade Popular formado por cerca de 15 padres, religiosos/as e leigos/as das arquidioceses nordestinas, sustentamos a hipótese de que este grupo se constituiu num dos círculos de interlocutores a partir do qual o jesuíta europeu elaborou sua importante obra histórica e antropológica. Remontando as conversas entre eles entabuladas no decorrer de diversas reuniões e seminários e o animado debate travado acerca de variados temas da cultura e da religiosidade populares, vemos paulatinamente aflorar alguns dos conceitos e noções mais centrais ao ideario certeauniano, a exemplo de “maneiras de fazer”, “táticas e estratégias cotidianas”, “opacidade da cultura popular”, “saber não sabido”, “astúcias dos homens ordinários”, “artes da simulação”, “microrresistências e “microliberdades”, entre outros, os quais haveriam de ser sintetizados nos escritos posteriores do historiador jesuíta, como A invenção do cotidiano, publicado originalmente em 1980. Sua refutação categórica dos preconceitos elitistas acerca da religião popular é bem indicativa do espírito desses encontros.

É bem verdade que tais encontros têm merecido registro nos estudos mais recentes acerca da vida e da obra de Michel de Certeau, mas não há dúvida de que nenhum deles elegeu como cerne do seu interesse as redes de contato, troca e solidariedade por ele tecidas com pessoas e organizações latino-americanas. E, em se tratando desse jesuíta savoiano, tal perspectiva nos parece crucial, na medida em que estamos diante não apenas de um caso de olhos posto na Europa e abertos para a América, mas também de um coração apaixonado pela América Latina e pelo Brasil.

Referências

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  • *
    Publicada em abril de 1957 pelo papa Pio XII, a Encíclica Fidei Donum lançou um apelo ao apostolado missionário de apoio às Igrejas do Terceiro Mundo, particularmente na África, mas também na América Latina, Ásia e Oceania. A partir de então, o termo Fidei Donum passou a designar os sacerdotes diocesanos (oriundos sobretudo da Bélgica, Canadá, Espanha, França e Itália) que exerceram seu ministério por um determinado tempo naquelas regiões mais necessitadas.
  • **
    Provavelmente, a primeira viagem de Cardijn à América Latina tenha se dado entre julho e setembro de 1946, quando ele circulou por nada menos do que sete países das “três Américas”: Estados Unidos, México, Costa Rica, Panamá, Peru, Chile e Argentina (Cf. CARDIJN, 1946CARDIJN, Joseph. Dans les trois Amériques. L’Ouvre des Tracts, Montreal, n. 330, 1946.). Já a primeira visita ao Brasil ocorreu em 1948 e coincidiu com a oficialização da JOC em termos nacionais.
  • ***
    Ver: Notícias de la Vice-Província de Cuba, Havana, ano 10, n. 43, nov. 1951, p. 8. Archivo Histórico de la Compañia de Jesus en Cuba (AHSJC), Havana, Cuba.
  • ****

    Ver: Notícias de la Vice-Província de las Antillas de la Compañia de Jesús, Havana, ano 10, n. 1, jan. 1960, p. 5. AHSJC, Havana, Cuba.
  • *****

    Apesar de Cardijn ser belga e da própria JOC ter sido criada em Bruxelas, em 1925, não há como separar sua trajetória da história do movimento no país vizinho, onde a JOC surgiu apenas dois anos depois e que chegou a ser a sua sede mundial quando da invasão nazista na Bélgica, em 1940.
  • ******

    Revista de Fomento Social, Madri, v. VIII, 1953, p. 263, tradução nossa. Para um aprofundamento da conjuntura espanhola das primeiras décadas do século XX e do projeto de criação de Fomento Social, cf. GRANDA; CUESTA, 1991GRANDA, Joaquín García; CUESTA, Florentino del Valle. Iglesia y sociedad en la España del siglo XX. El padre Sisínio Nevares y el Catolicismo Social. Tomo IV: 1926-1946. Valladolid: Fundación Benefico Docente; Instituto Nevares de Empresarios Agrarios, 1991., pp. 401-430.
  • *******

    Informe de la entrevista con el Padre General, Roma, 8 de outubro de 1947, apud HURTADO, 2005HURTADO, Alberto. Cartas e Informes del Padre Alberto Hurtado. 3. ed. Santiago: Pontifícia Universidade Católica do Chile, 2005., p. 188, tradução nossa.
  • ********

    Idem, p. 179, tradução nossa.
  • *********

    Sobre o Visitador Social para a América Latina, o jesuíta cubano Manuel Foyaca de la Concha, cf. COSTA, 2017aCOSTA, Iraneidson Santos. O jesuíta Manuel Foyaca de la Concha e o Apostolado Social na América Latina: uma transição do Catolicismo Social ao Cristianismo de Libertação. Interações, v. 12, n. 22, p. 250-263, 2017a..
  • **********

    Em carta dirigida a Jean Lacouture em 16 de março de 1992, Pierre Bigo reafirma que Action Populaire teria servido de modelo para os centros sociais fundados pelos jesuítas na América Latina décadas mais tarde (cf. LACOUTURE, 1993LACOUTURE, Jean. Os jesuítas. Volume II: O regresso. Lisboa: Estampa, 1993., p. 385). Sobre sua atuação no ILADES, cf. FERNÁNDEZ, 2013FERNÁNDEZ, Francisco. ILADES: testimonio de una historia, 1965-1998. Santiago: Universidad Alberto Hurtado, 2013..
  • Declaração de financiamento:

    A pesquisa que resultou neste artigo contou com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) através da concessão de um Auxílio para Missões de Trabalho no Exterior realizada em Cuba, em novembro de 2019, na alçada do Programa Institucional de Internacionalização (Capes-PrInt).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2022
  • Aceito
    27 Abr 2022
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