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UM CRIME CONTRA A HUMANIDADE: colonização, genocídio e gênero em “A mulher de pés descalços”, de Scholastique Mukasonga

A Crime Against Humanity: colonization, genocide and gender in “The woman with bare feet”, by Scholastique Mukasonga

Resumo:

Passados 25 anos do genocídio em Ruanda, no qual mais de 800 mil pessoas foram mortas, ainda persistem feridas abertas e conteúdos que precisam ser trabalhados para se seguir adiante. Na interface dos desafios da reconciliação e do dever de memória, Scholastique Mukasonga nos presenteia com uma obra aberta, capaz de possibilitar leituras sensíveis e plurais acerca desta última grande tragédia do século XX, cujas raízes remontam ao Neocolonialismo. Neste artigo analisamos a obra A mulher de pés descalços, da ruandense Scholastique Mukasonga (2017), buscando evidenciar o sentido da narrativa, o dever de memória sugerido pelo texto, a violência de gênero e a escrevivência (EVARISTO, 2005EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre (vivência) de dupla face. Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005.) como estratégia política de consolidação de lugares de fala de mulheres negras. A mulher de pés descalços é uma narrativa arrebatadora, tecida na interface da história e da memória, que lança luzes para o sofrimento individual e familiar da própria autora/narradora e a partir dele, opera com ampliação de escalas para favorecer o entendimento da dor vivenciada pela sociedade ruandesa, em especial pelos tutsis, com o exílio iniciado em 1963 e o genocídio de 1994. Conclui-se que o genocídio de 1994 é um crime contra a humanidade não só por sua proporção e por ter atingido a homens e mulheres, mas porque desfigurou e desumanizou em grande escala o elemento feminino representado pela mulher-mãe.

Palavras-chave:
A mulher de pés descalços; Scholastique Mukasonga; Literatura; História

Abstract:

After 25 years of Ruanda’s Genocide, event in which more than 800 thousand people were killed, it’s not easy to forget, then, somethings need to be thought to go straight. Between reconciliation and memory, Scholastique Mukasonga writes an open masterpiece, the book could be read in different ways, we can take different looks to the tragedy. In this paper, we analyse A mulher de pés descalços (2017) in a way to discuss the narrative, gender violence and the “escrevivência” (EVARISTO, 2005EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre (vivência) de dupla face. Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005.) like a political strategy to offer voice to black woman. A mulher de pés descalços links history and memory, links the individual suffering and the familiar suffering reaching the collective suffering, main the tutsis suffering in virtue of the exhile since 1963 until the genocide in 1994. We understand that genocide is a crime against humanity not only in virtue of this proportion, but because defaced and dehumanized the feminine elements, considering the women and the maternity.

Keywords:
A mulher de pés descalços; Scholastique Mukasonga; Literature; History

Este trabalho tem por escopo contribuir para o conhecimento da obra A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017.), bem como promover reflexão sobre algumas das questões que ela suscita, dentre as quais, relações de gênero no contexto do exílio do grupo étnico tutsi e as relacionadas à narrativa autobiográfica.

Alinhadas à concepção que entende a narrativa como aspecto central da constituição da subjetividade, consideramos a obra em resenha como trabalho de tecitura de sentidos, empreendido entre a biografia e a história, entre a percepção individual e as heranças genealógicas e coletivas. Trabalho realizado pela autora com fragmentos de sua própria história de vida e da história de seu país para dar sentido às experiências traumáticas que marcaram a vida familiar da escritora e a vida social de seu país de origem. Trata-se, desta forma, de texto híbrido, aberto e político.

Consideramos, ainda, que a narrativa não se limita ao enunciado, “mas é também enunciação, portanto uma modalidade de discurso, tendo em vista que o que é narrado é sempre a vida e esta, como tal, não forma por si mesma uma totalidade de sentido, mas totaliza-se pela narração” (CONTI, 2010CONTI, L. de. Abordagem narrativa em psicologia: articulações entre transmissão genealógica e narração da experiência de si. In: SOUZA, Elizeu Clementino; GALLEGO, Rita de Cássia. Espaços, tempos e gerações: perspectivas (auto) biográficas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010., p. 59). Por conseguinte, a abordagem narrativa da experiência de si implica reconhecer seu caráter relativista, negociado e contextual.

Scholastique Mukasonga é uma escritora ruandesa sobrevivente ao genocídio ocorrido em 1994 em seu país. De sua família, apenas ela e o irmão sobreviveram, por conta do exílio, na França, que só se tornou possível porque conseguiram chegar a pé ao país vizinho, Burundi. No entanto, desde a década de 1963, a autora e sua família, tutsi, vinham sofrendo ataques dos hutus, motivo pelo qual foram forçados a sair de Abutaré, cidade em que viviam, em virtude da deportação para Bugesera, região considerada desértica, miserável e hostil.

Vale destacar que o nome da autora é composto por um nome de origem francesa - um nome dado pelo colonizador a fim de que pudesse ser batizada e professasse a fé católica -, e um nome africano, dado pela família quando de seu nascimento. O nome da escritora já sinaliza alguns dos temas que serão explorados em seus romances, o trânsito, a dualidade, o viver entre duas realidades diferentes e, trazendo ainda mais camadas de significado ao cenário, as disputas entre os ruandeses divididos entre tutsis e hutus.

Suas narrativas, dentre elas A mulher de pés descalços (2017), contam uma parte desta história, indo desde as já mencionadas disputas entre hutus e tutsis, passando pelas complexidades do processo de colonização e abordando de maneira sensível e, ao mesmo tempo, precisa, a condição da mulher naquele ambiente.

Seu primeiro livro foi Baratas, publicado em 2006 a partir de anotações feitas pela autora ao retornar a Ruanda, tempos depois do exílio na França e quando nada mais havia de seu ou de sua família no país de origem. Para a autora, escrever era uma espécie de dever de memória, de tributo.

Em Nossa Senhora do Nilo (2012), a autora narra o cotidiano em uma escola para meninas em Ruanda, como a que ela mesma frequentou. A mulher de pés descalços, obra que será explorada neste artigo, tem a figura forte e predominante de Stefania, narrada por sua filha, numa espécie de homenagem que é memória e também vivência.

Scholastique Mukasonga ficou mais conhecida no Brasil após sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty (2017). Os três livros mencionados acima foram traduzidos para a língua portuguesa e apenas os dois últimos, em francês Ce que murmurent lês collines e Coeur tambour publicados, assim como os outros, pela Gallimard, ainda não têm tradução para a língua portuguesa.

A autora ainda não foi estudada no Brasil, motivo pelo qual este artigo, cujo objetivo consiste em explorar o romance A mulher de pés descalços (2008) sob a perspectiva da escrevivência e, considerando os caracteres históricos que cercam a narrativa, reveste-se de importância, ao trazer para a discussão obra ainda pouco explorada nos estudos históricos e literários em nosso país.

O dever de memória e os usos do passado

Em A mulher de pés descalços, a escrita é uma forma de elaboração do luto. É a morte da mãe, e o não atendimento de seu desejo derradeiro: o de ter o corpo coberto após a morte, que inaugura a narrativa:

Não cobri o corpo da minha mãe com o seu pano. Não havia ninguém lá para cobri-lo. Os assassinos puderam ficar um bom tempo diante do cadáver mutilado por facões. As hienas e os cachorros, embriagados de sangue humano, alimentaram-se com a carne dela. Os pobres restos de minha mãe se perderam na pestilência da vala comum do genocídio [...] (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 6-7).

Na narrativa de Mukasonga, o medo mais profundo de Stefania, sua mãe, não é o da morte iminente, que ocupa seus dias e lhe torna inventora de mil estratégias de sobrevivência, mas o medo da exposição pública de seu corpo sem vida, ao que se relacionam pudores e crenças complexas.

Na ausência da filha para realizar o último desejo da mãe, na ausência de um corpo para velar, sobram apenas palavras para apaziguar o espírito inquieto da filha, que ora dialoga com o leitor, ora dialoga com a figura da mãe ausente, em um monólogo de confissão:

Mãezinha, eu não estava lá para cobrir o seu corpo, e tenho apenas palavras - palavras de uma língua que você não entendia - para realizar aquilo que você me pediu. E estou sozinha com minhas pobres palavras e com minhas frases, na página do caderno, tecendo e retecendo a mortalha do seu corpo ausente (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 7).

Desse modo, as palavras, articuladas em frases, constituem uma narrativa que é dever de memória, tanto no sentido de homenagem aos mortos familiares, de culto e recordação, como em sentido político, de inscrição pública da violência sofrida pelas vítimas do genocídio com vistas à positivação dos direitos e lutas do presente.

Em algumas entrevistas concedidas por Scholastique Mukasonga, a escritora revela que, como sobrevivente do genocídio (a família a poupa da violência, enviando-a, junto com seu irmão, para a França, onde reside até hoje), sente como uma espécie de dever narrar esta história, manter viva a memória dos tutsis que, além de dizimados, tiveram sua história praticamente apagada pelos hutus.

A ideia de contar esta história, de construir um panorama, fica evidente na sequência dos títulos dos capítulos, que assim se apresenta: “Salvar os filhos”, “As lágrimas da lua”, “A casa de Stefania”, “O sorgo”, “Medicina”, “O pão”, “A beleza e os casamentos”, “O casamento de Antoine”, “O país das histórias”, “Histórias de Mulheres”. A partir deste conjunto de temas, vamos conhecendo a realidade dos tutsis que viviam então em Nyamata, um local desértico e no qual a vida era cercada de dificuldades e, ao mesmo tempo, de solidariedade.

Ao pensar as “histórias de mulheres” trazidas por Mukasonga em seu romance, pensamos, com Conceição Evaristo (2005EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre (vivência) de dupla face. Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005.), que os textos femininos negros portam tanto uma face estética quanto uma face que espelha aspectos das lutas travadas por essas mulheres. Na literatura de Mukasonga, com toda sua história, com todas as vivências, com tantas histórias de mulheres que se entrecruzam e dialogam com a figura dominante de Stefania, notamos sinais da escrevivência destacada por Evaristo e consistente numa ideia de escrita como mecanismo de emancipação, de espaço para a voz negra.

Poderíamos pensar o texto de Mukasonga como autoficcional a partir de Robin (1995ROBIN, R. Le sujet de l’écriture. Trans: Hiver, 1995.) e Doubrovsky (1977DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.), no entanto, entendemos que ali há mais do que uma narrativa em que o eu que escreve e o eu que pensa a escrita se fundem. Na narrativa construída em A mulher de pés descalços temos uma espécie de manifesto, construído de forma sensível, de alguém que viveu experiências traumáticas, mas, além disso, de alguém que deseja contá-las, que intenta registrá-las. Temos aí alguém que chama para si o dever de falar (SPIVAK, 2010SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.).

Para Evaristo (2005EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre (vivência) de dupla face. Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005.), “escreviver” consiste em tomar o lugar da escrita como direito, atravessar o silêncio imposto e, a partir disso, fazer da atividade ficcional um espaço de resistência. Para Mukasonga, a partir de suas entrevistas, nos parece que mais do que um direito, contar esta história se apresenta como um dever: “Enquanto sobrevivente, eu tinha por missão testemunhar meus mortos” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017.) .

O dever de memória é entendido como um dever ético dos sobreviventes, um dever que busca a reparação individual e familiar e, dialeticamente, a redefinição e a ampliação dos princípios da cidadania e do republicanismo, mediante a inclusão de novas versões da memória e da história no debate público. Nele se conjugam lutas por identidade, reconhecimento e reparação (HEYMANN, 2007HEYMANN, L. Q. O devoir de mémoire na França contemporânea: entre memória, história, legislação e direitos. In: GOMES, Angela de Castro (coord.). Direitos e cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2007, pp. 15-43.; JELIN, 2002JELIN, E. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI, 2002.).

Essa dimensão política do dever de memória vem se consolidando a partir de 1970, período em que houve uma ressignificação do discurso memorial. Se até então predominavam lugares de memória que exaltavam o soldado desconhecido, o herói anônimo, a resistência, agora quem pede passagem é a memória da vítima (HEYMANN, 2007HEYMANN, L. Q. O devoir de mémoire na França contemporânea: entre memória, história, legislação e direitos. In: GOMES, Angela de Castro (coord.). Direitos e cidadania: memória, política e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2007, pp. 15-43.). Dar lugar a essa memória é reivindicado como condição de efetivação da justiça. Nesse contexto, multiplicam-se e renovam-se os usos do passado e a cultura da memória, vertida em narrativas biográficas nos mais diversos suportes (SARLO, 2007SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.).

Entendemos essa pluralidade de narrativas, forjada no dever de memória, como a expressão de direito social subjetivo que visa a dar sentido e publicidade a experiências de dor. Nelas se constata a tríplice mimesis de Ricoeur (1994RICOEUR, P. Tempo e narrativa, v. I. Campinas: Papirus, 1994.), ou seja: o tempo prefigurado, o tempo configurado e o refigurado. Observa-se, portanto, um percurso que parte do mundo da vida, das experiências anteriores à narrativa, que passa pela configuração do enredo - a elaboração narrativa e lógica até chegar ao receptor, que irá operar a narrativa na interface do dito/escrito e das suas próprias experiências.

Os usos do passado feitos pela narradora parecem ter por objetivo positivar a cultura tutsi, legitimá-la.

As fontes desse passado são a tradição oral de seu povo e a cultura material por ele desenvolvida. O acesso à primeira é feito por meio da genealogia, das narrativas familiares, e do convívio com as mulheres em Bugesera - conversas no quintal, na lavoura, no percurso da casa ao riacho. A mãe é quem primeiramente performatiza as histórias de seu povo aos filhos, descreve o tempo e o espaço deixados para trás em função do exílio, como podemos notar no excerto: “Mamãe começa sempre cantando uma música triste, uma música de pastores que, segundo dizia, ela cantava quando era criança e cuidava de um rebanho perto do rio Rukarara. Era a história de um pobre pastor que tinha perdido o rebanho” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 118).

A cultura material, por sua vez, é transposta mediante árduos esforços para o novo espaço, no intuito de dar sentido ao caos do novo ambiente, qualificado como desértico, longínquo, sem cidade, sem comércio e altamente vigiado - uma espécie de campo de concentração sem cercas visíveis. Mukasonga é artífice dessa cultura material, ao auxiliar a família nas atividades cotidianas. Um dos exemplos mais sensíveis da produção de cultura na obra analisada é a construção do inzu de Stefania:

Seguindo as instruções de Stefania, que assumiu o papel de mestre de obras, Antoine escolheu as varas flexíveis que serviriam de armadura para a palha; dia após dia juntou, juntou uma boa quantidade de mato, cana, papiros. Depois, quando tinha o suficiente, desenhou no chão o grande círculo do inzu, fincou com distância regular as varas e ligou os pedaços de bambu entrelaçados na parede circular (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 36).

No caso específico da narrativa de Mukasonga (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017.), entendemos se tratar de uma memória exemplar, em que o drama familiar é generalizado, tornando-se drama coletivo, tornando-se história, sem prejuízo de sua singularidade. Analogia e generalização operam a transposição do individual ao coletivo, tornando-o exemplo. Com essa operação, “o passado se transforma em princípio de ação para o presente” (TODOROV, 2000TODOROV, T. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000., p. 31), torna-se, portanto, instrumento de luta por justiça ao grupo étnico aviltado.

Do exílio

O primeiro contato com A mulher de pés descalços, o folhear das primeiras páginas do romance nos coloca em contato com a seguinte epígrafe: “Para todas as mulheres que se reconhecerão na coragem e na esperança obstinada de Stefania”, o que já organiza as expectativas do leitor em torno da relação da escritora com sua mãe.

O cenário narrado é o de uma Ruanda entrecortada por conflitos étnicos entre hutus e tutsis (minoria à qual pertence a família da autora), que resultaram no exílio de milhares de tutsis na década de 1960, culminando com o genocídio de cerca de um milhão de pessoas no ano de 1994, a maioria tutsi.

Tutsi e hutu são etnias inventadas pelos belgas, quando iniciaram a colonização de Ruanda no contexto da Primeira Guerra Mundial. Ambos os termos se referiam ao lugar social ocupado na vida econômica de Ruanda: o termo tutsi era utilizado para indicar proprietários de rebanho, e o termo hutu para indicar camponeses que trabalhavam a agricultura, frequentemente sem a posse da terra. Se um hutu adquirisse um rebanho tornar-se-ia tutsi e, inversamente, se um tutsi perdesse seu rebanho, tornar-se-ia hutu.

Não havia, antes do neocolonialismo, ódio étnico e diferenciação física ou racial entre as duas categorias, sendo estes produtos da violência colonial, estratégias de divisão e dominação social. Em 1933, a diferenciação étnica foi institucionalizada: foram confeccionadas carteiras de identidade que identificam as etnias recém inventadas, e progressivamente, os tutsis se aproximaram dos colonizadores, ocupando cargos públicos e cooperando com o governo colonial. Os hutus, por sua vez, alijados dos espaços de tomada de decisão, passaram a cultivar sentimentos de ódio e vingança contra os tutsis, responsabilizando-os pelas diversas formas de exploração engendradas pelo governo colonial.

Desse modo, tanto o exílio quanto o genocídio dos tutsis têm como raiz o imperialismo belga, que se serviu do racismo para mais bem obter vantagens.

A narrativa remonta ao ano de 1963 e vai revelando o medo e a atitude permanentemente alerta dos tutsis perseguidos pelos hutus; o modo como hutus invadem suas casas e ameaçam sua segurança e seu parcos bens não passa despercebido ao leitor. Stefania, figura central da narrativa, é a mulher que cuida da família, criando estratégias, esconderijos, treinando os filhos para se salvarem numa situação de ataque: “Todos os dias, ela dava um jeito de trapacear o destino implacável a que, por sermos tutsis, estávamos condenados” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 20).

Dos tutsis é retirado tudo, seu lugar, sua casa e, até mesmo, seus costumes. Exemplo disso, na narrativa, é a questão da moradia, Stefania não consegue se acostumar com o novo e precário jeito de morar que interfere nas práticas de sua família: “Moramos do lado de fora, repetia ela sem parar, como podemos comer com estranhos olhando para dentro de nossas bocas?” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 30).

Assim, o recato, a intimidade, o esconder-se dos olhares dos vizinhos não eram permitidos aos exilados que, como demonstra a narrativa, no início ainda tinham esperança de voltar para o que chamavam de Ruanda, a “sua Ruanda”, no entanto, aos poucos, vão se desfazendo das ilusões: “eles nunca cruzariam de volta o rio Nyabarongo, nunca veriam outra vez as colinas de onde foram arrancados. Eles tinham sido condenados ao desterro eterno, nesse país de desgraça e exílio que Bugesera sempre representara na história de Ruanda” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 30).

Bugesera, o local para o qual foram enviados os desterrados, representava, no imaginário dos habitantes daquele país, uma espécie de fim do mundo, para onde eram enviados os vilões, as moças desonradas e as mulheres infiéis, de modo que nunca mais encontrassem o caminho de volta. Não se trata de um espaço de expiação de pecados, noção genuinamente cristã que só passou a fazer parte do imaginário dos ruandeses com a chegada do colonizador, mas de espaço de apartação social, com vistas a afastar do convívio social os elementos que poderiam causar instabilidade na ordem estabelecida. Desse modo, quando os tutsis são expulsos de seu território tradicional e deslocados para essa terra remota, vigiada e ameaçada diuturnamente por soldados hutus, fica claro que uma outra ordem foi estabelecida em Ruanda: a ordem hutu, que atribui aos tutsis a responsabilidade pela dominação colonial sofrida.

Toda a família sabia que a chance real de sobrevivência consistia em atravessar a fronteira para o Burundi, no entanto, os pais da narradora nunca imaginaram para si a condição de exilados no país vizinho, apenas vislumbravam tal possibilidade para seus filhos, ou para alguns deles, pelo menos.

Um outro momento em que fica evidente a questão do esconder-se dos olhares outros como importante para aquele grupo é na realização de uma festividade denominada umuganura, a qual é descrita como uma festa familiar: “Era celebrada na intimidade de cada inzu” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 46), a isso é atribuído o fato de os missionários não terem interferido em tal prática, cristianizando-a, na concepção da narradora: “[...] o sorgo exercia sua resistência” (p. 46).

Ainda por ocasião da umuganura ficam evidentes os contrastes como consequência da colonização, a dualidade entre a religião de origem, a que sempre conheceram, as práticas familiares para eles e o que fora trazido pelos missionários católicos. Na narrativa: “Quando as partes estavam divididas, Stefania pronunciava de novo os mantras e nós deveríamos repeti-los em coro, naquela noite eles substituíam a benção que o padre nos ensinara a recitar antes de cada refeição” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 48).

Entre o mantra e a benção temos a complexidade da intervenção colonial naquelas vidas. O que fica? O que se impõe? Sutilezas do processo também se evidenciam quando a narradora descreve a atitude de Alexis e André, os que iam para a escola, os “civilizados” que, mesmo que discretamente, zombavam das liturgias da mãe.

O próprio termo utilizado pelos tutsis para referir-se aos que frequentaram espaços de educação formal é revelador dessas condições e contradições: “civilizados”. O que é ser civilizado? Naquele grupo, quem era considerado civilizado? Os que foram à escola em contato com as práticas e verdades do colonizador, no que retomamos Césaire (2010CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010.), para quem, sob a proteção de uma atitude denominada pelo teórico como “pedantismo cristão”, foram criadas equações falsas que associam o cristianismo ao civilizado e o paganismo à selvageria, processo que fica evidente na celebração da umuganura pelos ruandeses e nas diferentes sensações que provocavam, bem como na alcunha de abapagani aplicada aos pagãos e todos os sentidos ali implícitos.

Os abapaganis - pagãos - acabavam sendo considerados “atrasados” que tinham ficado às margens do irreversível progresso. As missões, com suas grandes igrejas, suas construções em tijolo vermelho e a luz que, sem precisar de fogo, brilhava até tarde da noite, eram como um pedaço do país dos brancos que tinha caído do céu perto de nossas casas. E só o batismo possibilitava o acesso a ele (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 136-7).

No capítulo intitulado Medicina, temos a seguinte indagação por parte da narradora: “Será que Muberejiki foi curada graças à violência do muriro ou ao poder terapêutico do Ryangombe? Eu não saberia dizer.” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 63). A figura de Ryangombe se reveste da dualidade, dos paradoxos e das complexidades do estar entre duas realidades diferentes, as pessoas seguiam chamando a divindade Ryangombe para auxiliar nos problemas cotidianos, ainda que os padres destacassem que ele era o próprio demônio.

Ela agradeceu a Virgem Maria e também a Ryamgombe, o mestre dos Espíritos. Apesar de boa cristã, mamãe dizia que não se podia rejeitar ninguém, e menos ainda o deus dos ancestrais: ‘É preciso capinar todo o sorgo, repetia ela, pois nunca sabemos qual vai dar primeiro’. Como ela não sabia se fora uma dádiva de Maria ou de Ryamgombe, era melhor se conciliar com os dois” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 108).

As identidades flutuantes figuram como marca de um povo de quem são arrancadas as crenças e verdades e implantadas outras em seu lugar. Dadas as complexidades e sutilezas do processo, não é possível simplesmente substituir um conjunto de crenças por outro, motivo pelo qual eles subsistem em formas renovadas e em espaços privados.

Ao lado de Ryangombe, um velho conhecido, vem uma série de costumes que eles praticavam sem saber exatamente o porquê de estarem celebrando, como fica evidente em: “Ninguém tinha ideia de quem era esse tal Santo Nicolau [...]” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 80), um exemplo das imposições dos missionários, da igreja católica, da colonização.

Vale dizer que os costumes não são ameaçados e modificados apenas pela religião. As condições geográficas, econômicas e sociais também atuam modificando as práticas antigas daquele grupo, a exemplo dos rituais de casamento, descritos no seguinte fragmento:

Em Ruanda, um casamento só é válido quando se oferta uma vaca. Mas em Nyamata, as famílias desterradas não tinham mais vacas. Em 1959, os hutus tinham queimado os terrenos cercados dessas famílias com as suas vacas que foram queimadas nos estábulos. Tivemos que nos resignar, com um pouco de vergonha e muita tristeza, a sempre dar ou aceitar um cesto de feijão, de sorgo, e algumas notas economizadas com dificuldade (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 113-4).

Aqui se destacam dois elementos, o primeiro deles a já mencionada mudança de alguns costumes em virtude da nova realidade experimentada pelo grupo e o outro consistente na violência gratuita, na ambição de destruir tudo simplesmente pelo fato de pertencer aos tutsis.

Relações de gênero

A mulher, no texto de Mukasonga (2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017.), não é ente universal e abstrato, categoria social pintada com as cores do Ocidente, mas elemento específico e plural, com visões de mundo e demandas genuínas. Não é mulher que luta pela redução da dupla jornada de trabalho, pelo compartilhamento das responsabilidades domésticas com os homens, que luta pela legalização do aborto ou por reservas culturais.

Trata-se, isto sim, de sujeito histórico plasmado em outros referentes culturais, cuja principal reivindicação, no contexto narrado, é o direito de continuar viva. Portanto, não nos propomos aqui a discutir sobre os possíveis véus do patriarcado sobre aquela sociedade ou sobre o caráter opressivo de sua estruturação social. Optamos por contemplar sua alteridade sem buscar enquadramentos nos parâmetros contemporâneos do feminismo.

Primeiramente, destacamos que, no contexto narrado, é aceita a existência de trabalhos próprios às mulheres e de trabalhos próprios aos homens:

Muitas vezes minha mãe interrompia uma das inúmeras tarefas cotidianas de uma mulher (varrer o pátio, descascar legumes, catar feijão e sorgo, remexer a terra, desenterrar batata-doce, descascar bananas antes de cozinhá-las...) e chamava nós três, filhas mais novas que ainda morávamos em casa (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 5).

Papai estava sempre ocupado resolvendo os problemas da comunidade exilada e não encorajava o projeto. Além do mais, ele adotara algumas das novidades trazidas pelos brancos. Se, por um lado, permanecera fiel ao pano imaculado que era uma marca da dignidade dos homens sábios (eu nunca vi papai usando calça), por outro, ele era um entusiasta das novas casas retangulares [...] (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 35).

Assim como há trabalhos específicos a homens e mulheres, também há espaços próprios a cada um dos gêneros. O excerto acima sugere a participação masculina no espaço público, para a resolução dos problemas comunitários, o que é confirmado adiante:

As reuniões do ikigo constituíam o verdadeiro parlamento das mulheres. Os homens, por sua vez, cuidavam da justiça e dos negócios de fora da comunidade; meu pai fazia parte do grupo de sábios, homens que resolviam os litígios, desfaziam as querelas; eram eles que conduziam, quando possível, as negociações difíceis com o líder da comunidade, o prefeito, os agrônomos, os missionários... (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 135).

As mulheres, por seu turno, “eram responsáveis pela educação, saúde, economia e assuntos matrimoniais... Cada uma tinha o direito de falar, pelo tempo que quisesse, sem ninguém interromper” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 135). Em face do exposto, depreende-se que a mulher também ocupa o espaço público, tratando, todavia, das questões de abrangência local. As questões externas são encaminhadas pelos homens. Destaca-se ainda que, as atividades desempenhadas pelas mulheres não são secundárias, mas de grande importância para a vida social do grupo

Neste universo de mulheres, a personagem Merciana tem destaque, por ser uma mulher que sabia ler e escrever, “civilizada” de acordo com a expressão empregada no local e chefe de sua família. Tal condição atrai a atenção dos hutus para Merciana, que pelo fato de saber escrever poderia ser uma espiã, fazer denúncias, comunicar-se e, por isso, é executada em público e nua.

Lentamente, os dois militares pegaram as espingardas. Eles não miravam o coração, repetia minha mãe, e sim nos seios, somente nos seios. Eles queriam dizer a nós, mulheres tutsis: ‘Não deem vida a mais ninguém, pois, na verdade, se colocarem mais alguém no mundo, vocês vão acabar trazendo a morte. Vocês não são mais portadoras de vida, são portadoras de morte’ (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 22).

A dinâmica entre portar vida e portar morte e a condição do feminino neste diálogo permeia todo o romance. Os hutus desejavam exterminar os tutsis, fazer com que desaparecessem. Neste cenário, a figura da mulher como aquela que dá vida a novos membros de um grupo, era elemento de desconforto, que deveria ser combatido, como fica evidente na história de Merciana e na leitura que Stefania faz do ocorrido.

Em outro momento da narrativa, Mukasonga (2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 136) retoma o tema e faz uma espécie de tributo às mulheres e mães tutsis de Ruanda:

Stefania, Marie-Therése, Gaudenciana, Theodosia, Anasthasia, Speciosa, Leôncia, Pétronille, Priscilla e várias outras eram as Mães boas, as Mães amorosas, as que alimentavam, protegiam, aconselhavam, consolavam, as guardiãs da vida, que foram mortas por assassinos que quiseram, com isso, erradicar a própria origem da vida.

O sacrifício de mulheres é sacrifício da vida em si e da vida em potencial, e foi utilizado por soldados hutus como “solução final” para fazer cessar o conflito entre hutus e tutsis: o extermínio do grupo oposto. Qual a maneira mais eficaz de pôr fim à vida que não à de pôr fim à vida de mulheres?

Além da morte de mulheres, outra prática entendida pelos hutus como “revolucionária”, era o estupro. Tomar tudo que era dos tutsis implicava também tomar à força os corpos das mulheres. Some-se a isso que, como relatado no romance, a maioria dos estupradores portava o vírus HIV, o que tem consequências terríveis para a vida daquelas mulheres, vidas que, como propõe Judith Butler (2015BUTLER, J. Quadros da Guerra - quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), podem ser pensadas como vidas precárias, vidas não passíveis de luto, mero objeto naquele conflito.

Deleuze e Guattari (2003DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka - para uma literatura menor. Lisboa: Assírio Alvim, 2003.), ao pensarem uma literatura menor, apontam uma ligação imediata do individual com o político e, nisso, pensamos a narrativa de Mukasonga, uma vez que, a partir do contar da história de sua relação com a mãe, desta figura de uma força singular que era a mãe, temos a história de muitas mulheres ruandesas e, exemplo disso fica evidente no capítulo intitulado Histórias de Mulheres, no qual vislumbramos o papel ativo das mulheres naquela sociedade no que tocava à educação, saúde, economia e assuntos matrimoniais; como era a relação das mulheres com o sexo naquele ambiente, a importância da maternidade entre o grupo, os estupros - tema que é retomado ao final para pensar o genocídio ocorrido em 1994.

As mulheres ruandesas são conhecidas dos turistas como artesãs que produzem cestos com os caules de sorgo seco, cestos que vão ficando cada vez menores e são entregues um dentro do outro num hábil trabalho de trançar a fibra. No entanto, a narradora destaca que não é só isso que fazem, aquelas mulheres constroem bercinhos com a mesma fibra para acomodarem seus filhos enquanto realizam o árduo trabalho agrícola, que compreende desde o preparo do solo, o plantio, o cuidado da plantação, até a colheita, o preparo dos alimentos para o consumo e o comércio. Desse modo, o artesanato e a agricultura tradicionais são atividades econômicas e culturais as mais expressivas da resistência das mulheres ruandesas, pois possibilitam a nutrição familiar, o pequeno excedente que permite a compra de produtos da cidade e, além disso, enquanto entrelaçam a fibra do sorgo para o feitio dos artesanatos, trama-se a vida, compartilham-se a história, os saberes e experiências, mantendo viva a arte de narrar (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, W. O Narrador - magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, vol. 1, 1987, p. 197-221 (Col. Obras Escolhidas).).

Ainda com relação à habilidade de trançar evidenciada no romance, e desta vez relacionada às crianças, destaca-se que após a colheita do sorgo, o campo ficava à disposição das brincadeiras infantis e um dos objetos que as crianças gostavam de reproduzir a partir dos caules secos eram os óculos dos padres, objeto até então nunca visto por eles e que se acreditava que: “[...] com os óculos, eles liam os pensamentos e perseguiam até o fundo de nossas almas os pecados que tentávamos esconder” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 55). O episódio nos remete à concepção de zona de contato pensada por Mary Louise Pratt (1999PRATT, M. L. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999.) com sua dinâmica de conflitos e também de silenciamentos.

Vale destacar que, após o genocídio, cerca de 70% da população masculina foi dizimada, o que fez com que as mulheres assumissem ainda mais responsabilidades naquela sociedade. Por conseguinte, Ruanda é reconhecida atualmente pela representatividade feminina ali evidente.

A primeira Carta Constitucional da República de Ruanda foi elaborada por colonizadores belgas, com participação mínima da população ruandesa, sendo de perfil semi-outorgado. Apesar de prever um sistema político multipartidário e garantias aos direitos humanos, a onda de violência hutu a suplantou, tornando-a letra morta em diversos aspectos. Somente em 2003, com a nova constituição, Ruanda pode aperfeiçoar o desenvolvimento dos direitos humanos, sendo fundamental para isso a previsão legal da igualdade de gênero no acesso à educação, à terra, à economia e à política. O sistema de cotas na política, que exige o mínimo de 30% de mulheres nos cargos tornou Ruanda o país com maior representatividade feminina no parlamento, superando antigas democracias, como os Estados Unidos da América. A igualdade de gênero prevista na Carta Magna ruandense implica não só na valorização dos recursos humanos disponíveis (em Ruanda, as mulheres são a maioria da população), mas em equalização de injustiças e compensação histórica pela violência sofrida pelas mulheres por ocasião do genocídio de 1994 e pela violência estrutural àquela sociedade. Cabe enfatizar, todavia, que tais benefícios legais não foram concessões, mas conquistas dessas mesmas mulheres, que desde muito aprenderam a lutar por espaços próprios e a desenvolver uma solidariedade orgânica entre si.

A maneira como essas mulheres se organizavam e ocupavam em conjunto os espaços é ponto de destaque no romance e aparece em diferentes momentos, como em: “Cada uma tinha direito de falar, sem ninguém interromper. Não havia maioria, não havia minoria. As decisões eram tomadas quando todos consentiam” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 126). Assim, nos temas que ficavam a cargo das mulheres, as decisões eram tomadas pelo grupo, sendo respeitados os turnos de fala e sendo necessário que todas concordassem. O consenso era a expressão máxima desse tipo de relação que, no contexto narrado, dispensava a noção ocidental de democracia.

O papel da mulher, ainda que com características diferentes, sempre esteve definido naquela sociedade; havia assuntos que eram exclusivos do grupo de mulheres e isso fica marcado em diversas partes da narrativa, a exemplo de: “Não havia homens, o ubanyano não lhes dizia respeito” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 68). O ubanyano consiste na apresentação de uma criança à comunidade e consta de rituais próprios realizados pelas mulheres e pelas outras crianças. É um ritual de acolhimento dos novos membros da comunidade.

Em outro momento da narrativa: “As mulheres se encontram lá, conversam assando espigas de milho. Elas não permitem que os homens entrem, pois eles não têm nada a fazer ali” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 87). Esses encontros de mulheres ocorriam no quintal, um local que era considerado delas e onde conversavam, catavam piolhos das filhas, recebiam as vizinhas e amigas, conversavam sobre casamentos e Stefania cumpria um papel importante naquela comunidade, que era o de agenciar os casamentos.

Assim é que: “A questão individual, ampliada no microscópio, torna-se muito mais necessária, indispensável, porque uma outra história se agita no seu interior” (DELEUZE; GUATTARI, 2003DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka - para uma literatura menor. Lisboa: Assírio Alvim, 2003., p. 39). Mukasonga se narra e também narra todas as outras mulheres ruandesas e suas lutas, seus medos, a violação de seus corpos, a dura tarefa de proteger os filhos em um ambiente tão hostil e o compartilhar de toda essa aridez com as vizinhas, com as outras mulheres, ao fumar um cachimbo juntas, ato que a narradora deseja repetir, mas que lhe parece sem sentido sem a presença das outras, sem o grupo de mulheres.

Scholastique Mukasonga são muitas, no que recorremos à ideia de agenciamentos coletivos de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 2003DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka - para uma literatura menor. Lisboa: Assírio Alvim, 2003.), uma vez que a narradora e ao mesmo tempo autora traz em sua narrativa a vida e a memória de todas as mulheres que sofreram a violência da colonização em seus hábitos, costumes e crenças; a violência do conflito entre hutus e tutsis na violação de seus corpos, a contaminação com vírus; e a força vinda dos laços de união e solidariedade das mulheres ruandesas: “A Ruanda de hoje é o país das mães-coragem” (MUKASONGA, 2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017., p. 154).

Considerações finais

Mais de 800 mil pessoas, a maioria da etnia tutsi foi exterminada durante os cem dias de conflito que configuraram o genocídio de Ruanda, em 1994. A violência sistemática das milícias hutus contra os tutsis e outros opositores políticos do governo de Juvenal Habyarimana deixou marcas indeléveis na sociedade ruandense, marcas essas que polarizam posições e desafiam a integração nacional.

De um lado, há a política do atual governo, que é pautada no princípio da reconciliação nacional. Em seu âmbito operou-se a abolição do uso do termo “etnia” e o julgamento de mais de dois milhões de pessoas acusadas de terem participado do genocídio. Elas foram julgadas em tribunais locais e no tribunal internacional da ONU, instalado na Tanzânia para apuração dos crimes conexos ao genocídio. De outro lado, há a dor dos sobreviventes, que vivenciaram o horror daqueles dias e perderam seus entes queridos das formas mais abomináveis possíveis. A dor dos que viram como o estupro, a escravidão sexual, a mutilação e a morte podem ser tratadas como coisas banais quando a vida é a do outro. A esses, é preciso encontrar meios de reparação. É o que nos parece ser o objetivo da escrita de Mukasonga (2017MUKASONGA, S. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017.) na obra analisada.

Tecido entre a história e a memória, A mulher de pés descalços tem perfil autobiográfico, e apresenta-se como memória exemplar, ultrapassando o puramente biográfico ou autoficcional na medida em que transcende a experiência particular rumo à problematização pública do drama familiar vivenciado pela escritora e narradora. Esta, contudo, é apenas uma das definições cabíveis, pois se trata de texto aberto, passível de múltiplas interpretações.

A narrativa é o recurso utilizado por Scholastique Mukasonga para organizar de modo verossímil o fluxo violento das experiências históricas que marcaram sua vida familiar, seu grupo étnico, seu país. É a forma por ela encontrada para elaborar o luto, cobrir, simbolicamente, o corpo da mãe e homenagear os demais tutsis exterminados pela política racial legitimada pelo estado ruandês nos anos 1990.

A obra como toda experiência humana, se inscreve em uma temporalidade que transpassa várias gerações (BENJAMIN, 1983BENJAMIN, W. O Narrador - magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, vol. 1, 1987, p. 197-221 (Col. Obras Escolhidas).), assim, a autora catalisa muitos eus e articula fontes variadas para prefigurar, configurar e refigurar o tempo vivido.

Nuanças de gênero são simbolizadas no texto de modo a evidenciar as inter-seccionalidades da violência. Se a violência é, a princípio étnica, ser mulher tutsi significa sofrer duplamente, exponencialmente. Significa ser, primeiramente, alvo de discursos de ódio que lhes atravessam sem fazer sentido, passando por gradações que perfazem a violação do corpo e da alma, a desconfiguração da identidade, a interdição da função social feminina mais importante da cultura rural ruandense: a de ser mãe boa, a violação de todos os direitos elementares e por fim, a morte despudorada (sem adeus, sem mortalha, sem sepultura). A extrema exposição do corpo feminino aos olhares públicos.

De maneira sensível e sutil, A mulher de pés descalços desfaz a teia das violências sofridas pelo povo de Ruanda desde 1890, quando se tornou colônia da Alemanha Oriental, passando pelo neocolonialismo belga, pela unificação com o Burundi, em 1916, no contexto da Primeira Grande Guerra, o exílio, na década de 1960 até o genocídio de 1994. Seu eixo, todavia, não é a história política, mas a experiência de seu grupo familiar, apreendida por meio de suas vivências, que são retrabalhadas com informações da tradição oral e da cultura material da qual é tributária, configurando sua escrevivência (EVARISTO, 2005EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre (vivência) de dupla face. Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005.).

A narrativa em comento exercita um dever de memória e testemunha o caráter cruel do ódio racial e dos jogos de poder na Ruanda contemporânea, posicionando-se como instrumento de ação para o presente.

Referências

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  • TODOROV, T. Los abusos de la memoria Barcelona: Paidós, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2019
  • Aceito
    29 Set 2019
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