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T E S E S

Os limites do sagrado na nosologia hipocrática

Com o cientificismo, no século XIX, o Corpus hippocraticum (CH) sai da ciência para entrar na história. Os tratados que compõem hoje a coleção hipocrática deixaram de figurar como texto paradigmático para a medicina, para perfilar-se entre os documentos que retratam o nascimento da ciência.

A idéia de progresso, a mesma que, por necessidade, aboliu o CH da literatura científica, precisou granjear seus alicerces no heroísmo do cambaleio da humanidade criança. É precisamente na época em que o evolucionismo encontra o cientificismo que se severizou o estudo do passado. A procura pelas origens adquire uma nova dimensão. O comparativismo gerador da teoria do indo-europeu é um exemplo paroxístico dessa nova maneira de se pensar.

Enquanto Nietzsche cultuava o passado, especialmente pré-socrático, para revelar o quanto perdemos, figuras como Émile Littré interessavam-se pelo "berço do Ocidente" para mostrar o quanto evoluímos, e, decantavam as glórias da ciência e o valor do progresso.

É nesse contexto que o CH adquire, pela laboriosa pena do médico e filólogo Littré, o status de documento para a história da humanidade, e, muito especialmente, para a história da ciência. Ele procedeu, então, à edição de todo o CH; o que nos rendeu dez volumes, ainda hoje a versão mais completa desse extenso corpus. Além disso, o positivista francês legou-nos a primeira impressão da historiografia acerca do lugar do sagrado na ciência nascente. O tratado Da doença sagrada foi-lhe precioso para argumentar que desde os primórdios a ciência expurgou a esfera divina de seus domínios. Essa tese respaldava-o na célebre contenda que manteve com o antigo mentor, Augusto Comte acerca da fundação da "religião positivista".

Para Littré, se a ciência não houvesse abdicado do irracional apoio do sagrado, ela sequer teria nascido. Hipócrates, que é, para ele, não somente pai da medicina, mas também pai da ciência, passou a ornar a égide do positivismo littreano, que se voltava contra o misticismo de Comte.

A autorizada voz de Littré reverberava pela historiografia e pela mente dos helenistas. Seus ecos podem ser percebidos na escritura vigorosa de Jaeger e de outros autores, que faziam a erudição ladear-se pelo evolucionismo e por um indisfarçável etnocentrismo.

Enquanto a epistemologia vai se firmando como disciplina, a ciência se afasta da figura de Hipócrates. Francis Cornford, na aurora do século XX, redimensiona o lugar do CH na história do pensamento ocidental. Para o helenista inglês, o pensamento hipocrático é sobretudo empírico. Partindo do estudo da relação proposta pelo CH entre o geral e o particular, ele refere-se a algumas experiências relatadas na coleção, e atribui-lhes um caráter inovador e mesmo revolucionário. Não há o que contestar a esse respeito. Lá estão as experiências e os resultados, e, de fato, não há precedentes nesse setor. O tratado Ares, águas e lugares oferece-nos o célebre relato de uma experiência.

Restringir a perspectiva de estudo do CH a seu caráter empírico é negligenciar o que me parece ser a sua mais relevante característica, sobretudo dos tratados do século V. Refiro-me ao estudo, descrição e análise etiológicos. É a etiologia que permite a relação entre o geral e o particular no CH.

A Escola dos Annales permitiu o ingresso do CH nas veredas sinuosas da história da cultura. Assim, helenistas como Jacques Jouanna e, principalmente, Jackie Pigeaud abrem uma nova perspectiva nos estudos hipocráticos, viabilizando estudos mais contextualizadores, que considerem fatores até então inusitados, como, por exemplo, o aspecto moral.

A moralidade foi o ponto central da investigação que Pigeaud empreendeu acerca da relação entre a doença e o sagrado no CH, e, especialmente, no tratado Da doença sagrada. Este é bastante claro no que propõe acerca do sagrado: todas as doenças são sagradas na mesma medida, e uma doença não pode ser mais sagrada do que outra por nos parecer mais maravilhosa ou incurável. Por outro lado, todas as doenças se produzem por causa natural. Pigeaud percebe no tratado uma intenção de desculpabilizar os deuses e os homens, uma vez que a etiologia patológica não é nem humana nem divina. Eis uma via fecunda para reflexões que poderiam situar o homem de Hipócrates ao lado ora do homem solitário de Eurípides, ora do homem deinós de Sófocles.

Um outro viés desse mote hipocrático pareceu-me igualmente profícuo para a pesquisa: o lugar proposto para o sagrado e sua relação com a phýsis.

Littré esforçou-se para expurgar o sagrado da ciência. A historicização posterior do conceito de ciência e a desconstrução da imagem positivista da ciência grega deixou o sagrado fora da doença, agora trazida imaginariamente do "laboratório" ao cotidiano. Portanto, o estudo do sagrado na doença seria uma contribuição ao estudo do sagrado na vida grega do século V, e muito especialmente nos centros de irradiação cultural onde a medicina era cultuada.

Ao lado (ou apesar) do sagrado, duas forças atuam sobre o homem e sua saúde, o nómos e a phýsis. Familiares às idéias modernas de cultura e natureza, o nómos e a phýsis interagem com surpreendente facilidade. A phýsis molda o nómos, como em um povo pastoril, porque o solo que ocupa é mais propício ao pasto do que à agricultura; mas o nómos também tem o poder de interferir no curso da phýsis, como no episódio dos macrocéfalos, descrito no Ares, águas e lugares: as cabeças de um povo tornaram-se oblongas porque durante muito tempo os recém-nascidos recebiam ataduras que lhes alongavam os crânios, para que obtivessem vantagens, conforme a crença genérica daquele povo.

Uma vez que o conceito de nómos, conquanto abrangente, é fartamente ilustrado e essencialmente atrelado ao homem e às suas atividades, minha atenção voltou-se para o conceito de phýsis. A bibliografia sobre o assunto é admirável, mas interessava-me resolver um possível confronto de idéias entre a vulnerabilidade da phýsis diante do nómos (o que vale dizer: diante do homem), e a assertiva presente tanto no tratado Da doença sagrada, quanto no Ares, águas e lugares, segundo a qual os fenômenos climáticos, por exemplo, são divinos.

Depois de recusar a idéia de que o homem pode interferir – ainda que com a ajuda do longo tempo — naquilo que concerne aos deuses, tornou-se forçoso admitir que ou só é phýsis aquilo que o homem consegue modificar pelo nómos, o que tornaria, de fato, o homem a medida de todas as coisas; ou que o conceito de phýsis aplica-se, nesses tratados do CH, a tudo o que for modificável pelo nómos, enquanto os demais elementos da natureza estariam inseridos em uma categoria de "supra- phýsis"; ou, finalmente, que o termo phýsis abrange elementos suscetíveis e não suscetíveis à ação do nómos.

Minha reflexão parte da última dessas hipóteses.

Pude constatar que há dados suficientes nos tratados para se repensar o conceito de phýsis a partir de sua relação com o homem. A esfera divina relaciona-se diretamente com uma natureza inacessível, que o CH reluta em chamar de phýsis, procurando maior precisão vocabular. Chamei-a de phýsis, pelo uso que a cultura grega faz do termo, embora o CH evite esse uso. Evita-o, mas sem ser contraditório ao dizer que as doenças se produzem sempre katà phýsin, e ao explicar a importância do entorno para a saúde e para a produção de doenças.

O sagrado penetra na etiologia à medida que a possibilidade de intervenção do homem se afasta dela; o que não impede a convivência de etiologias de diferentes níveis da phýsis, como no caso da doença sagrada, onde encontramos vários fatores nosogênicos, alguns mais próximos dos deuses, outros mais próximos dos homens, mas todos kataV fuvsin.

Os níveis da phýsis diferem entre si pelas possibilidades de intervenção do homem, seja através do nómos, seja através da iatrikè tékhne. A tese dos níveis diferentes da phýsis provoca uma nova abordagem na relação entre natureza e cultura na Grécia do século V.

Henrique Fortuna Cairus

Tese de doutoramento, 1999

Faculdade de Letras Clássicas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

hcairus@ax.apc.org

Da indiferença do poder a uma vida diferente: tuberculose e Aids no Brasil

Esta tese é um estudo comparativo da tuberculose e da Aids no Brasil, respectivamente nas primeiras e nas últimas décadas do século XX. A comparação das repercussões da tuberculose e da Aids no corpo social brasileiro, bem como das estratégias científicas e institucionais para combatê-las, mostra-se profícua para a reflexão sobre a maneira como nossa sociedade se relaciona com doenças de grande impacto, cujas características principais são a transmissibilidade e a incurabilidade.

Cada momento histórico teria o seu grande medo, a sua peste. As características da tuberculose e, hoje, da Aids revestem-se de significados que permitem sua representação como ‘peste'. No discurso médico-científico – que, no caso da tuberculose, no início do século, foi o único capaz de apresentar propostas de algum controle das manifestações da doença; no caso da Aids, a partir de 1980, quedou-se perplexo, ludibriado pelas evoluções de uma doença que escapa a todas as tentativas de aprisionamento, embaraçado pelas teias do imaginário social, tão rico em perspectivas aterrorizantes quanto o vírus, em formas múltiplas de aparição.

Ambas as doenças produzem um cotidiano de convivência com a morte que resulta numa diversidade de significados para os indivíduos atingidos. O impacto da tuberculose foi intenso no século XIX e início do XX. Várias hipóteses tentam explicar sua importância na época: enfatiza-se o alto índice de mortalidade, o fato de se tratar de doença incurável, seu reconhecimento como contagiosa, bem como a manutenção, por longo período, de índices endêmicos.

Procurei dimensionar a magnitude da tuberculose na então capital federal, analisando-a na perspectiva da conceituação científica e, em seguida, acompanhando sua repercussão e as soluções engendradas nos campos médico-científico, político e social.

O mesmo caminho tomei em relação à Aids, que surgiu no início da década de 1980. O caráter brutal desse aparecimento e o aspecto misterioso e inexplicável da doença para o saber médico deixaram perplexos os meios científico e social. Rapidamente a Aids assumiu a dimensão de pandemia.

Refleti sobre os tipos de resposta dados pela sociedade e pelos indivíduos a essas doenças. Levo em conta três dimensões – a de suas manifestações no imaginário social, a do conhecimento científico e a das estra-tégias institucionais –, considerando que essas dimensões interpenetram-se, assumindo características ora de resultados, ora de geradoras das ações dos atores sociais na sua relação com as doenças.

Adoto posicionamentos da história social das doenças para a análise comparativa das relações da sociedade brasileira com a tuberculose e com a Aids, levando em conta as diferenças dessa sociedade nos períodos delimitados.

Nesse estudo comparado, optei por uma multiplicidade de fontes, considerando a diversidade de formas de percepção do fenômeno patológico segundo os locais e níveis de comprometimento com as moléstias.

Em relação à Aids, voltei-me para fontes já existentes e ocupei-me da construção de um acervo de história oral com depoimentos de indivíduos envolvidos com a questão, profissional ou pessoalmente. São depoimentos de médicos clínicos e gestores políticos, de profissionais que trabalham com a elaboração e divulgação de informações (a chamada mídia), de diretores de organizações não-governamentais, de doentes e seus familiares. Selecionei boletins, relatórios e folhetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e do Grupo pela Vida, anais de congressos, informes técnicos do Ministério da Saúde, decretos, artigos de publicações médicas e reportagens da imprensa geral, além de iconografia vária, depoimentos orais e textos autobiográficos.

Quanto à tuberculose, as fontes privilegiadas foram os relatórios anuais, estatutos e folhetos da Liga Brasileira contra a Tuberculose, assim como conferências públicas realizadas por médicos dessa liga; artigos de publicações especializadas em medicina, tais como Brasil-Médico, Arquivos de Higiene e Revista Médico-Cirúrgica; decretos, relatórios da Diretoria Geral de Saúde Pública, anais de congressos médicos, a mais variada iconografia, bem como depoimentos orais.

Dilene Raimundo do Nascimento

Tese de doutoramento em história, 1999

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz

Av. Brasil, 4036/4º andar

21040-360 Rio de Janeiro – RJ Brasil

dilenerai@usa.net

Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará

A chegada da epidemia de cólera ao Grão-Pará foi um processo avassalador, com profunda repercussão social, que despertou temor e pânico. Partindo da historiografia, discutem-se as principais abordagens sobre a cólera, as quais, como ferramentas de análise social, permitem compreender a crise imposta à sociedade paraense e, particularmente, à belenense, consumida durante dez meses pelo flagelo (mai.1855-fev.1856). A doença é considerada um fenômeno que ultrapassa os limites físicos e tem profundo alcance cultural, demonstrado pela incorporação da experiência das gentes do Grão-Pará que dela padeceram, cujas lembranças, ainda hoje, produzem medo. Para compreender as relações estabelecidas entre, de um lado, a organização social, administrativa e de saúde pública provincial e, de outro, as disputas políticas e acadêmicas travadas, em função da epidemia, na Belém de outrora, discutem-se, inicialmente, os eventos que cercaram a chegada da cólera na galera Deffensor, acompanhando e descrevendo a rota da epidemia da cidade do Porto até Belém. São também contextualizadas as ocorrências da doença na Europa e, particularmente, no norte de Portugal. Em seguida, apresenta-se a polêmica produzida pela chegada da epidemia em função das teorias médicas do contágio e da infecção que acorrentavam os profissionais médicos, em virtude de sua formação e das ligações estabelecidas com os poderes provinciais e imperiais. A polêmica permeou as medidas administrativas adotadas pelas autoridades sanitárias da Província do Grão-Pará e do Império do Brasil, bem como os tratamentos utilizados pelos diversos profissionais dedicados às artes de curar. Trazem-se à cena instruções, guias médicos e recomendações de toda ordem então utilizados no combate à epidemia. Esses documentos revelam a capacidade pedagógica, persuasiva e, por vezes, autoritária dos profissionais de saúde. A prática dos médicos da província desvenda a continuidade do projeto de elevar a alopatia à condição de medicina oficial, excluindo as demais práticas terapêuticas. Entretanto, as gentes do Grão-Pará não se renderam à tentativa dos médicos, reagiram à imposição utilizando a homeopatia e os sistemas tradicionais de ação para saúde. A reação aponta soluções nada ortodoxas, modeladas pelas circunstâncias e pela dor. Por último, discute-se a prevalência da cólera entre as gentes ‘de cores', considerando sua condição de vida e de trabalho no Grão-Pará. Chama-se atenção para as condicionantes sociais e culturais da doença, estatisticamente comprovados pelos registros de óbitos, sepultamento de coléricos e dados demográficos da Belém de outrora. Contrariando a tese de que os efeitos da cólera são de menor intensidade que os produzidos pelas febres e pela tuberculose, os dados da epidemia no Grão-Pará indicam uma forte repercussão social não tanto pelo número de mortos, mas sobretudo pela forma de morrer. Morrer de cólera fazia a diferença! O estudo demonstrou, também, que a cólera na Belém de outrora não foi acompanhada por motins e revoltas populares, como na Europa oitocentista. Embora a epidemia preocupasse as autoridades policiais da província, estas reforçaram os cuidados com os negros fugidos e amocambados/aquilombados, valendo-se do evento epidêmico para reprimir e resgatar os negros escravos. As expedições e os reforços policiais, apesar do medo despertado pelo pânico da epidemia, eram destinados à caça dos escravos. Os jornais e a correspondência oficial estão repletos de relatos da truculência policial contra os negros que buscavam a liberdade fugindo do cativeiro. Demonstra-se que, diferentemente das afirmações dos médicos oitocentistas, a cólera não se propagava indiscriminadamente. A epidemia atingiu preferencialmente os negros. Portanto, no período, as gentes ‘de cores' enfrentavam a epidemia e, ao mesmo tempo, combatiam as tropas legais, dificultando ainda mais seu cotidiano na pequenina Belém do Grão-Pará. Foram utilizadas, na tese, fontes primárias, especialmente a documentação depositada no Arquivo Público do Estado do Pará, no Arquivo Nacional, no Arquivo Geral da Marinha, no Arquivo Histórico-Diplomático/Ministério dos Negócios Estrangeiros, bem como nos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, em Portugal.

Jane Felipe Beltrão

Tese de doutoramento, 1999

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Av. Conselheiro Furtado, 3434, bloco A, ap. 203

66073-160 Belém – PA Brasil

Tels.: (91) 2296336/9843443 Fax: (91) 2112024

jane@ufpa.br

A loucura encarcerada: um estudo sobre a criação do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro (1896-1927)

Este trabalho procurou resgatar os debates travados no campo da saúde pública, principalmente na área da psiquiatria, sobre a necessidade de criação de uma instituição asilar e terapêutica com as características de um manicômio judiciário. Assim, a análise tratou da criação dessa instituição na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1921, procurando mostrar que os discursos tanto médico quanto jurídico, que emergiram no final do século XIX, se solidificaram no início do XX, apontando para essa saída inexorável, segundo psiquiatras e juristas da época.

A dissertação ficou dividida em duas partes. A primeira destaca o processo de construção da loucura como doença no discurso médico e suas ligações com a eugenia e purificação racial, já no século XX. Analiso a constituição do campo de saber e da prática em psiquiatria a partir da inclusão da cadeira de clínica psiquiátrica no ano de 1881, nos cursos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e o porquê de só naquele momento da história ter acontecido um concurso para nomear um professor da disciplina, apesar da existência do hospício no Brasil há cerca de trinta anos. A explicação reside numa reforma educacional promovida pelo governo imperial no ano de 1879, através da qual novas disciplinas que, até aquele momento não faziam parte dos currículos das faculdades de medicina, começaram a ser ministradas por vários professores.

No que se refere à eugenia e teorias de purificação racial e como estas eram pensadas pela elite intelectual, especialmente seu segmento médico do início do século XX, delineei como estes intelectuais pensaram a construção da nação brasileira a partir do viés da raça e da eugenia, localizando qual o lugar nesse discurso a ser preenchido pela loucura como doença e suas ligações com a teoria da degeneração racial, de Morel, e a noção de criminoso nato, de Lombroso. Além disso, chamo atenção para o contexto saúde-política e suas relações com a criação de várias ligas nesse momento, tais como a Liga Pró-Saneamento, a Liga Brasileira de Higiene Mental, a Liga de Combate à Tuberculose, a Sociedade Eugênica de São Paulo. Nestas ligas e associações observamos como a elite intelectual (médica, jurídica, educativa etc.) procurava pensar a transformação do Brasil em uma nação moderna. Nesse sentido, elegi Renato Kehl, membro de mais de uma destas ligas, e recuperei sua atuação profissional, analisando sua trajetória que foi bastante ativa entre as décadas de 1910 e 1920, principalmente.

Na segunda parte, centrei a análise em dois acontecimentos que muito contribuíram para a concretização do projeto de criação do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro e discorri sobre a trajetória profissional de seu primeiro diretor, o dr. Heitor Pereira Carrilho. O início dos discursos sobre o lugar ocupado pelo criminoso louco e louco criminoso nos escritos do dr. João Carlos Teixeira Brandão no século XIX, a partir do texto ‘Questões relativas à assistência médico-legal a alienados e aos alienados’, publicado em 1897, onde pela primeira vez, ao menos de modo oficial, a questão da convivência no mesmo espaço asilar dos loucos criminosos, criminosos loucos e loucos ‘comuns’ é debatida.

A partir da fuga de Custódio Alves Serrão, em maio de 1896, das dependências do Hospício Nacional de Alienados, um problema vem à tona: o que fazer com os pacientes que enlouquecem nas prisões e com os que cometem crimes e são inimputáveis devido a seu estado mental? Qual seria a melhor maneira de abrigá-los e tratá-los de modo a garantir a cura da doença e ao mesmo tempo sua regeneração social? Em 1903, a partir da promulgação da primeira lei de assistência aos alienados, o decreto 1132, se tem uma resposta: era preciso criar um manicômio judiciário e, enquanto este não fosse criado, deveria haver uma seção especial dentro do Hospício Nacional que os pudesse abrigar, sendo criada a Seção Lombroso. Em 1920, uma grande fuga de pacientes desta seção coloca novamente o assunto em discussão, ratificando a necessidade da criação do Manicômio Judiciário.

Finalizando o trabalho, percorri a trajetória profissional de Heitor Carrilho, desde seu início como alienista responsável pela Seção Lombroso no Hospício Nacional de Alienados em 1911, até os primeiros anos de funcionamento do Manicômio Judiciário que foi inaugurado em 1921, procurando chamar atenção para seu caráter excludente. Em 1927, uma nova mudança na legislação referente aos alienados, com o decreto 5148-A, reflete uma troca de designação que parece sutil, mas que, de fato, traduz a ampliação da dimensão do grau de periculosidade contida no termo "psicopata" que substitui "alienado" na ementa do novo decreto que regulamenta a assistência. Essa ampliação das fronteiras da anormalidade e periculosidade, representadas por uma mudança desta natureza, coloca em evidência seu comportamento anti-social. Além do fato de atentar contra a própria vida, ele pode colocar em risco o bem-estar social, numa sociedade que amplia cada vez mais as fronteiras do que pode ser descrito como anormalidade e patologia.

Laurinda Rosa Macial

Dissertação de mestrado em história social, 1999

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Casa de Oswaldo Cruz/Departamento

de Arquivo e Documentação

Av. Brasil, 4036/6o andar

21040-361 Rio de Janeiro – RJ Brasil

laurinda@fiocruz.br

laurindamaciel@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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