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Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo), em sermões de pregadores brasileiros do século XVII

Food, words, and health (of soul and body) in sermons by seventeenth-century preachers in Brazil

Resumos

Este artigo analisa alguns sermões pregados entre os séculos XVII e XVIII no Brasil, baseados em metáforas alimentares. O uso das metáforas, recorrente nos sermões do período colonial, fundamenta-se em dois alicerces: 1) na teoria aristotélica do conhecimento, em que o sensorial ocupa um papel prioritário, como porta de acesso para a compreensão das idéias mais abstratas e para a mobilização dos afetos e da vontade visando à modificação do comportamento dos ouvintes; 2) na doutrina platônica sobre a importância das imagens para conservar a memória das idéias. A oratória sagrada do período desperta interesse para a história cultural, uma vez que os sermões constituíram-se numa importantíssima fonte de transmissão de doutrinas e de modelagem dos comportamentos numa sociedade em que a oralidade era a principal forma de difusão dos conhecimentos.

história da psicologia; história das idéias psicológicas no Brasil; pregação e psicologia


The article analyzes a number of sermons employing food metaphors, preached in Brazil during the seventeenth and eighteenth centuries. The use of metaphors drawn from listeners' daily lives was common in sermons during the colonial period, underpinned by two theoretical considerations: 1) the Aristotelian theory of knowledge, where the senses play a primary role as an access way to comprehension of more abstract ideas and as a means for urging listeners to change their behavior patterns by affecting their emotions and their wills; 2) the Platonic doctrine, where images are important in preserving our memory of ideas. The sacred oratory of the colonial period is of major interest to cultural history, since these sermons served as an invaluable way of transmitting doctrine and of shaping behavior in a society where orality was the chief method for spreading knowledge.

history of psychology; history of psychological ideas in Brazil; preaching and psychology


ANÁLISE

Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo), em sermões de pregadores brasileiros do século XVII

Food, words, and health (of soul and body) in sermons by seventeenth-century preachers in Brazil

Marina Massimi

Professora do Departamento de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras USP/Ribeirão Preto Rua Sete de Setembro, 799 ap. 91 14010-180 Ribeirão Preto – SP – Brasil mmassimi3@yahoo.com

RESUMO

Este artigo analisa alguns sermões pregados entre os séculos XVII e XVIII no Brasil, baseados em metáforas alimentares. O uso das metáforas, recorrente nos sermões do período colonial, fundamenta-se em dois alicerces: 1) na teoria aristotélica do conhecimento, em que o sensorial ocupa um papel prioritário, como porta de acesso para a compreensão das idéias mais abstratas e para a mobilização dos afetos e da vontade visando à modificação do comportamento dos ouvintes; 2) na doutrina platônica sobre a importância das imagens para conservar a memória das idéias. A oratória sagrada do período desperta interesse para a história cultural, uma vez que os sermões constituíram-se numa importantíssima fonte de transmissão de doutrinas e de modelagem dos comportamentos numa sociedade em que a oralidade era a principal forma de difusão dos conhecimentos.

Palavras-chave: história da psicologia; história das idéias psicológicas no Brasil; pregação e psicologia.

ABSTRACT

The article analyzes a number of sermons employing food metaphors, preached in Brazil during the seventeenth and eighteenth centuries. The use of metaphors drawn from listeners' daily lives was common in sermons during the colonial period, underpinned by two theoretical considerations: 1) the Aristotelian theory of knowledge, where the senses play a primary role as an access way to comprehension of more abstract ideas and as a means for urging listeners to change their behavior patterns by affecting their emotions and their wills; 2) the Platonic doctrine, where images are important in preserving our memory of ideas. The sacred oratory of the colonial period is of major interest to cultural history, since these sermons served as an invaluable way of transmitting doctrine and of shaping behavior in a society where orality was the chief method for spreading knowledge.

Keywords: history of psychology; history of psychological ideas in Brazil; preaching and psychology.

O estudo da oratória sagrada no Brasil do período colonial é um campo heurístico de grande interesse para a história dos saberes, pois os sermões constituíram-se numa importantíssima fonte de transmissão cultural e de modelagem da mentalidade e dos comportamentos numa sociedade em que a oralidade era a principal forma de difusão dos conhecimentos. No que diz respeito aos conhecimentos antropológicos, esse tipo de documentação apresenta duas razões de interesse: a presença de idéias referentes ao conhecimento do homem e de seu psiquismo e o estudo das modalidades próprias de construção do sermão baseadas na interseção entre a arte retórica e as psicologias filosóficas aristotélico-tomista e platônica.

Nesta perspectiva, deve entender-se o uso freqüente das metáforas próprias da vida cotidiana dos ouvintes, recorrente nos sermões do período colonial. Esse recurso fundamenta-se em dois alicerces teóricos: por um lado, na teoria aristotélica do conhecimento, em que o sensorial ocupa um papel prioritário, como porta de acesso para a compreensão das idéias mais abstratas e para a mobilização dos afetos e da vontade visando à modificação do comportamento dos ouvintes; por outro, na doutrina platônica acerca da importância das imagens para conservar a memória das idéias.

Neste trabalho, escolhemos analisar alguns sermões pregados ao longo dos séculos XVII e XVIII no Brasil e baseados em metáforas alimentares.

A alimentação e suas funções na tradição cultural do Ocidente

A função religiosa da alimentação remonta ao terceiro milênio antes de Cristo: na Mesopotâmia, o ofício da homenagem aos deuses comporta a oferenda alimentar, sendo oferecidas às divindades carnes de vacas e carneiros, pão, leite, cerveja e vinho (Flandrin & Montanari, 1996). Existiam dois tipos de tradições de banquetes sagrados: os banquetes nos quais os deuses festejavam e conviviam entre eles, e aqueles em que a refeição contava com comensais divinos e humanos:

Os dois aspectos essenciais do banquete na Mesopotâmia são mesmo a reunião de um grupo que celebra sua solidariedade e a realização de um cerimonial já muito elaborado. Reunindo os deuses, a corte real e os particulares. Os comensais, sentados no chão ou em cadeiras, são geralmente separados em grupos distintos, o que revela a hierarquia onipresente, e a comida e a bebida circulam entre eles, originando uma troca de cortesias ... Para quem o organiza, o banquete é uma maneira de manifestar riqueza e fausto. (Ibidem, p. 66)

Já no contexto do judaísmo, o Salmo 62 proclama: "A minha alma será saciada como em grande banquete de festa". Inúmeras são as referências ao banquete sagrado entre Deus e o seu povo: entre elas destaca-se o misterioso convívio de Mambré.

A função social do banquete é especialmente evidenciada no mundo grego e romano, sendo o convívio considerado um importante elemento de distinção entre o homem civilizado, o bárbaro e os animais:

O homem civilizado come não somente (e menos) por fome, para satisfazer uma necessidade elementar do corpo, mas também (e sobretudo) para transformar esta ocasião em um ato de sociabilidade, em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação: nós não nos sentamos à mesa para comer – lemos em Plutarco – mas para comer juntos. Segundo certa etimologia, o termo cena deriva da idéia de 'comer em comum' ... O convivium é a própria imagem da vida em comum (cum vivere). (Flandrin & Montanari, 1996, p. 108)

O Banquete de Platão é, nesse sentido, expressivo desta função social e cultural do convívio à mesa, pois neste âmbito discutem-se as questões mais importantes da existência humana, sendo a paixão pela verdade, pela beleza, pela justiça e pelo amor o fator que mais une os homens e que mais os alimenta.

A função fisiológica da alimentação e sua importância para a saúde do corpo e do espírito são frisadas desde os primórdios da história da medicina. O gosto do alimento também é importante, pois, conforme ensina Hipócrates, "alimento e bebida, de qualidade um pouco inferior, mas mais saborosos, devem ser preferidos aos alimentos de qualidade melhor, mas menos saborosos" (1994, p. 26). Segundo Galeno, qualquer alimento poderia ser utilizado como remédio também, se ministrado na devida proporção (Schipperges, 1999).

A importância da alimentação é evidenciada ao longo da prática médica medieval. Alberto Magno escreve um importante tratado, De nutrimento et nutribili, onde enfatiza que a questão mais importante no que diz respeito à alimentação é a qualidade do alimento, e que é necessário conhecer profundamente o processo alimentar (opera nutritionis), em todos os seus efeitos. Conforme Schipperges (1999),

o comer e o beber tinham um papel extremamente importante já nas grandes culturas da antigüidade, por contribuir não apenas ao equilíbrio biológico mas também ao desenvolvimento da vida social. A arte culinária, que no mundo árabe era objeto de um gênero literário específico, era considerada uma área da medicina teorética. Grandes médicos, como Rhazes e Al-Tabarí, propunham receitas de cozinha ... Além disso, o significado dos hábitos alimentares devia ser interpretado totalmente na perspectiva religiosa. O alimento era considerado uma coisa sagrada, conforme as sagradas escrituras. (p. 233-4, tradução nossa)

No Regimen Sanitatis da escola médica de Salerno (846 d.C.), a dieta alimentar é recomendada como um recurso terapêutico importante: "Si tibi deficiant medici, medici tibi fiant haec tria, mens aleta, requies, moderata dieta" (Harington, 1959, p. 22). Recomenda-se a moderação no comer, respeitando os diversos horários do dia: "Ex magna coena sthomacho fit maxima poena. Ut sis mocte brevis, sit tibi coena brevis" (ibidem, p. 24). Surgem recomendações relacionadas a alimentos específicos, por exemplo, no que diz respeito às carnes: "Persica, pome, pyra, lac, caseus, et caro salsa, et caro cervina, leporina, caprina, bovina, haec melancholica sunt, infirmis inimica" (1959, p. 25). Algumas regras referem-se ao pão e à carne:

Panis non calidus, nec sit nimis inveteratus, sed fermentatus, oculatus sit, bene coctus, modice salitus, frugibus validis sic electus. Non comedas crustam, choleram quia gignit adustam. Panis salsatus, fermentatus, bene coctus, purus sit sanus, quia non ita sibi tibi vanus. Est caro porcina sine vino pejor ovina: si tribuis vina, tunc est cibus et medicina. Ilia porcorum bona sunt mala sunt reliquorum ... Sunt nutritivae multum carnes vituliane. Sunt bona gallina, et capo, turtur, sturna, columba, quiscula, vel merula, phasianus, orthygometra, perdix, frigellus, orix, tremulus, amarellus. (Ibidem, p. 33-5)

Ao longo de toda a história cultural e social do Ocidente cristão (Sarti, 1999), o gesto do banquete, ao mesmo tempo em que expressa a solidariedade entre os homens, por ser sinal de confiança, de fraternidade, de compartilhamento, evidencia também as diferenças sociais, uma vez que as principais relações sociais exteriorizam-se à mesa. Assim, por exemplo, na tradição européia, o banquete assumiu valor de agregação e também possuía "um elemento sagrado, em virtude da oração pronunciada antes de comer" (ibidem, p. 178, tradução nossa). Comer juntos significava então celebrar a unidade, seja entre os homens, seja em relação a Deus. Muito enraizada na cultura popular da Idade Moderna é a associação entre o comer juntos e o pertencer a uma mesma família. Porém, evidencia-se o papel da mesa como lugar onde se marcam as diferenças sociais em algumas regiões do norte da Europa, onde os homens assentam-se à mesa para comer, ao passo que as mulheres e as crianças comem de pé ou no estábulo, ou num canto da cozinha junto ao fogo.

Nessa perspectiva, ao longo da Idade Moderna o comportamento alimentar passa a ser regido por normas sociais bem definidas, e difunde-se ampla literatura a isto dedicada: Erasmo de Roterdã, por exemplo, em A civilidade pueril (1979), dedica o capítulo quarto às refeições. Exemplificam o enfoque do texto estes ditames acerca da maneira de comer carne: "Depois de ter cortado a carne, no prato, em pequenos pedaços, estes devem ser mastigados com uma bucha de pão, antes de serem engolidos. Não se trata só de um caso de bom tom, é também excelente para a saúde" (ibidem, p. 93).

Nesse novo contexto, a significação sagrada do gesto de comer e da comida reduz-se à origem histórica de uma regra, reafirmada aqui apenas em termos do comportamento sugerido: "Os antigos, nas suas refeições, serviam-se religiosamente do pão, como se se tratasse de uma coisa santa – e daí que vem o costume de o beijarmos, se por acaso ele cair no chão" (Erasmo, 1978, p. 89).

Todavia, na pregação e na literatura espiritual da Idade Moderna o sentido sagrado do alimento e do gesto de alimentar-se é reafirmado e preservado, assumindo também a importante função teológica de proclamar a importância do Sacramento da Eucaristia, importância esta que vinha sendo reduzida e questionada pelas teologias protestantes. Adentraremos o universo da oratória sagrada para compreendermos o dinamismo de permanência, ressignificação e transmissão dessa metáfora no contexto da cultura luso-brasileira.

Origens do emprego das metáforas alimentares na pregação

Possivelmente, a origem do uso da metáfora do banquete em contextos relacionados ao uso da palavra, como a oratória e a pregação, está no fato de que na língua estão localizadas as duas funções naturais do gosto e da palavra, assinalado por Aristóteles (De Anima: II, 8, 420b, 16-18). Este afirma que a natureza utiliza-se do gosto e da fala, sendo o gosto mais necessário e pertencente a uma grande quantidade de espécies animais, ao passo que a fala consiste na expressão dos próprios pensamentos visando ao bem-estar. A interpretação deste trecho, dada por Casagrande e Vecchio (1995), evidencia a importância do pressuposto fisiológico:

O discurso acerca da língua, mesmo o discurso ético, não parte antes de mais nada da autoridade da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja, mas afunda suas raízes num pressuposto fisiológico. É impossível fixar os fundamentos de uma ética da palavra, a prescindir das noções de anatomia e de fisiologia que as obras de Aristóteles disponibilizam. (Ibidem, p. 146, tradução nossa)

Essa concepção é retomada pela tradição e ética teológica medieval: segundo o tratado De Lingua, de autor franciscano do século XIII, encontrado em Oxford, provavelmente uma obra destinada aos pregadores, a língua teria dupla função, por ser um órgão de cruzamento entre corpo e alma. Ao corpo serve para a ingestão de comida, à alma serve para manifestar no exterior a racionalidade. Segundo o texto, a existência desse órgão derrota toda concepção dualista do homem e reafirma sua unidade, pois coloca-se como mediação entre a exterioridade (a ingestão da comida) e a interioridade (a expressão do mundo interior pela palavra). O autor frisa, também, o critério econômico da natureza, a qual estabelece um único órgão para realizar duas funções, conformando-se assim ao ideal de pobreza franciscana que inspirara os pensadores pertencentes a essa Ordem religiosa, em Oxford. A simplicidade e a pobreza da natureza justificam também o preceito moral da sobriedade, no que diz respeito tanto à comida como ao uso da palavra. Uma parte do tratado é dedicada à predicação, numa perspectiva tríplice:

Do ponto de vista de Deus, fonte direta desta palavra e único depositário da graça; do ponto de vista de quem escuta, a quem a oração assegura a graça de saber escutar, compreender e guardar a palavra de Deus; do ponto de vista do pregador, que em virtude desta mesma graça, torna-se porta-voz da palavra divina. (Casagrande & Vecchio, 1995, p. 164-5, tradução nossa)

Santo Agostinho, na Doutrina cristã (lib. 4, cap. 3), estabelecendo uma analogia entre o conhecer e o alimentar-se, afirma: "Como há uma certa semelhança entre os que se alimentam e os que aprendem, para evitar o fastio de muitos é preciso temperar os alimentos, sem os quais não se pode viver" (1991, p. 238).

No âmbito da pregação, tal analogia entre alimentação e conhecimento é retomada, no século XI, por um sermão de Bernardo de Claraval (1090-1153), o sermão 36 dedicado ao tema do conhecimento e da ignorância. Ao referir-se à necessidade da ordem e da prudência na prática do conhecimento, Bernardo compara o processo de conhecer ao de ingerir alimentos:

Acaso não dizem os médicos do corpo que faz parte da medicina precisamente determinar a ordem dos alimentos: qual deve ser ingerido antes, qual depois e o modo de os ingerir? Ora, mesmo sendo bons os alimentos que Deus criou, tu os tornas nocivos se não observas o modo e a ordem de ingeri-los. Aplica, pois, aos saberes, o que dissemos dos alimentos ... É como se numa comparação disséssemos: tomar alimento e não digeri-lo faz mal. Um alimento indigesto, mal cozinhado, produz maus humores e, em vez de nutrir o corpo, corrompe-o, assim também pode dar-se o caso de o estômago da alma, que é a memória, ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram por ser elaborados pelo aparelho digestivo da alma (no caso, os atos e os costumes). E acaso um tal saber indigesto não deve ser considerado pecado, tal como um alimento que se transforma em humores maus e nocivos? E os maus humores do corpo não equivalem aos maus costumes da alma? E não virá a sofrer de inchaços e cólicas de consciência quem conhece o bem e não o pratica? (em Lauand, 1998, p. 267-8)

O tema do convite ao banquete simbolizando o chamado à Igreja, à comunhão dos Santos, presente já no Evangelho (Lucas 14: 15-24), é variamente utilizado pelos pregadores também na literatura agiográfica. O pregador Taddeo Dini, por exemplo, atuante em Florença no século XIII, referindo-se a Francisco de Assis e à radicalidade de sua opção, lembra a parábola evangélica do convite à coena magna, utilizada também pelo Papa Gregório IX na Bula de canonização do mesmo santo (ao referir-se à prontidão da resposta de Francisco diante do chamado de Deus). Segundo Dini, o banquete simboliza a própria Ordem dos Menores (Del Corno, 1989).

Bolzoni (2002), ao referir-se à pregação popular do italiano Bernardino de Sena (1380-1444), afirma que uma das características desta é o empenho em tornar os conteúdos doutrinários próximos à vida quotidiana do povo – o que dá marca inconfundível de clareza e força comunicativa aos seus sermões. Entre outros, Bernardino utiliza inúmeras vezes metáforas referentes ao mundo da comida, da cozinha e das necessidades fisiológicas, mesmo em contextos cuja natureza teológica e moral duplica o efeito do rebaixamento. Metáforas desta natureza são freqüentes nos sermões e são destinadas a atingir sobretudo a experiência do público feminino. Em alguns sermões dedicados à oração, Bernardino retoma a imagem tradicional do 'comer' a palavra sagrada. Em sermão de 1424 afirma:

La parola che tu dici, che tu t'ingegni di ragumarla, masticarla, saporarla bene, che l'assapori e che si dica a parola a parola, como el briaco che se mangia el vino a poco a poco, assaporandolo ... In ogni parola, quando dirai Pater, evvi tutto Iddio e in ogni parola é Cristo Gesú ... Assaporala bene e consideravvi dentro tutta la vita di Gesú ... Se lo mastichi bene, ti saperá di ogni suavitá di sapore, ma se lo ingoi non ti saperá di nulla, e non arai piacere niuno. (em Bolzoni, 2002, p. 206)

Metáforas alimentares nos Sermões de Antônio Vieira

Na pregação realizada no Brasil no século XVII, o emprego de metáforas alimentares é freqüente. Recursos desse tipo são utilizados, por exemplo, por Antônio Vieira em vários contextos e com diversas significações.

No primeiro dos quinze sermões dedicados a Xavier Dormindo, escritos na ocasião da canonização de Xavier e nunca pregados, Vieira estabelece uma analogia entre a imagem bíblica de Benjamim (Gênesis 25: 28), filho de Jacó e irmão de José, e a atividade missionária de Xavier:

Estando pois José à mesa com seus irmãos no Egito, diz a História Sagrada, que ele por sua própria pessoa lhes fazia e repartia os pratos; mas com tanta diferença que sendo as porções de todos os outros irmãos iguais, a de Benjamim era avantajada e maior. (Vieira, 1993, p. 53)

Vieira compara a mesa à seara, o prato ao campo, o comer ao converter os gentios. Apóia esta metáfora em Atos 10: 10: Pedro, ao ficar com fome, pede comida e tem a visão de uma toalha e de um prato composto por iguarias de todo gênero de carnes animais: feras, aves e serpentes, vivos, e que deveriam ser matados para serem comidos, sendo esses animais proibidos pela Lei. No mesmo instante, chegam os enviados do capitão romano Cornélio, pagão; este pede que Pedro vá à sua casa para batizá-lo:

Os animais terrestres significavam os gentios mais bárbaros, as aves os mais entendidos, as serpentes os mais inimigos. Mas porque lhos põe Deus na mesa e o convida com eles em um prato e lhe manda que os coma, quando quer que os converta? Por isso mesmo; e agora se verá a sabedoria do sabor, e a propriedade da semelhança. Pergunto: como pode um animal naturalmente converter-se em homem? Não há dúvida, que comendo-o o mesmo homem. E por quê? Porque sendo comido pelo homem, a substância do animal, por bruta e feia que seja, se converte na substância humana, e em tal substância humana, qual for o homem que o comer. (Ibidem, p. 57)

Da mesma forma, os pagãos, "comidos, e incorporados em Pedro, começavam a ser o que era Pedro, isto é cristãos". Para Vieira, essa experiência encarna-se na figura de "S. Francisco Xavier; o qual era tão faminto, tão insaciável, tão comedor de almas, como se viu depois que Deus o pôs à mesa. Em dez anos que Xavier cultivou a Ásia, converteu um milhão e duzentas mil almas" (ibidem, p. 58).

No Sermão de Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento exposto (no sábado da infra "Octavam Corporis Christi" e na hora em que todas as tardes se reza o Rosário na Igreja do Colégio da Companhia de Jesus do Maranhão), pregado no ano de 1654, ao povo maranhense – devendo haver no meio dos ouvintes possivelmente uma parte de descendentes de índios de tradição antropófaga –, Vieira destrinça todas as possíveis significações espirituais do ato de alimentar-se e de seus efeitos fisiológicos.

Inicialmente o sermão fundamenta o uso da metáfora alimentar numa outra analogia, a do corpo, retirada do livro bíblico do Cântico dos Cânticos, e afirma que a Igreja católica, corpo místico de Cristo, pode ser considerada como um corpo vivo:

E discorrendo particularmente por todos os membros e partes de que se compõe, com louvor da formosura, e declaração do ofício de cada um, chega finalmente àquela oficina universal, onde se recebe o alimento, e convertido em sangue se reparte por todo o corpo. (Ibidem, p. 31)

Vieira retoma a comparação bíblica entre o ventre da Igreja e o monte de trigo, cercado por rosas. E afirma que o trigo no ventre da Igreja "é o Diviníssimo Sacramento do Altar, do qual ela sobrenaturalmente se alimenta, como de pão de vida: e por meio do qual comunica os espíritos vitais e os reparte a todos os membros de seu corpo, que são os Fiéis Católicos" (p. 32). A partir disso, Vieira estabelece uma relação entre o Sacramento da Eucaristia e a prática religiosa do Rosário: o objetivo do sermão é propriamente a demonstração desta relação profunda, e, para alcançá-lo, Vieira recorre mais uma vez às metáforas alimentares.

Com efeito, ele parte da observação que dentre todas as almas que recebem o sacramento, nem todas aproveitam bem do pasto divino. O motivo seria a "falta de digestão" (p. 33), de modo que "comemos a Cristo no Sacramento, mas não o digerimos" (ibidem).

Porém, Cristo disse dEle mesmo, encarnado no sacramento eucarístico, que seria "verdadeira comida", e o motivo disto é

Não só porque foi instituído para alimento de nossas Almas, senão também porque no modo de as alimentar tem as mesmas propriedade do mantimento corporal. E o mantimento corporal que se come, e não se digere, por mais substancial e esquisito que seja, não faz nutrição, nem se converte em substância. Lá diz o aforismo vulgar da Medicina: Non quod ingeritur; sed quod digeritur: que o que alimenta, nutre, aumenta, e dá força e vigor ao vivente, não é o comer que ele toma na boca, e recebe dentro de si, senão o que digere. (p. 34)

De fato, em quem recebe a Eucaristia de modo digno, tornam-se visíveis os sinais da assimilação a Cristo, mas ao observarmos nossa experiência, notamos que "em muitos de nós, depois de comungarmos uma e muitas vezes, se não vêem os mesmos efeitos, senão outros tão diversos e totalmente contrários" (ibidem). A razão, segundo ele, é que "comemos o Sacramento de Cristo, mas não o digerimos". Em razão dessa falha, "nossas Almas" se tornam "tão macilentas e desmedradas", "sem aquela nutrição e aumento de espírito" prometidos pela Sagrada Escritura, que define o Sacramento Eucarístico como o sumo Bem.

Neste ponto, a Divina e Providencial Medicina – na figura de Maria, Mãe de Deus – vem socorrer os desmandos humanos, os quais inutilizam e negligenciam seus recursos, proporcionando-lhes outro "divino remédio" para regularizar a distribuição do mantimento da "República da Igreja". Com efeito, Maria proporciona, através da devoção do Rosário, um "remédio tão fácil e eficaz para a inteira e perfeita digestão" do mistério eucarístico (ibidem, p. 36). Praticando-se a devoção do Rosário juntamente ao recebimento da Eucaristia, aquele "mesmo Cristo que no Sacramento se come, no Rosário se digere" (p. 36). Se o Sacramento "é indigesto" por conter nele mesmo todos os mistérios da redenção do homem, o Rosário esmiúça cada um deles, assim como o processo da digestão quebra o alimento nos seus componentes permitindo assim sua assimilação pelo organismo, consentindo na "maior harmonia de toda a fábrica" (p. 37). Pois os quinze mistérios do Rosário permitem considerar distintamente os vários aspectos da vida, morte e ressurreição de Cristo, todos indistintamente encerrados no sacramento eucarístico.

Vieira fundamenta sua doutrina, acerca da eficácia do Rosário no "metabolismo espiritual", em autores como Ambrósio e Alão de Lille, e afirma que assim como o ato de comer e de digerir não depende apenas do tipo de alimento, mas também do estado fisiológico do organismo que o recebe, do mesmo modo a alimentação e a digestão do alimento espiritual dependem da atuação das "potências interiores do homem, que são os instrumentos da nutrição" (p. 42). Para que o sacramento eucarístico seja assimilado pela alma, é preciso então que atuem todas as potências da alma para digeri-lo, e isto de faz através do Rosário. A partir dessa premissa, Vieira desenvolve uma descrição pormenorizada, baseada em conhecimentos médicos clássicos do processo fisiológico da nutrição, estabelecendo uma correspondência pontual com o processo de assimilação espiritual realizado pelas potências do psiquismo humano. Vale a pena acompanhar esse percurso pelas palavras do próprio Vieira:

Aristóteles e Galeno, descrevendo a fábrica da nutrição, para a qual formou a natureza várias oficinas e instrumentos, reduzem toda a operação deles a três potências principais, uma que recebendo retém, outra que alterando assemelha, outra que unindo converte. E tudo isto obra o Rosário pôr meio das três potências de nossa Alma nos mistérios da vida, morte, paixão de Cristo, de que ele se compõe, e não só em todos, senão em cada um.

Com a potência da memória recebe e retém o mistério por meio da apreensão. Com a potência do entendimento alerta-o e assemelha-o a si (ou a si a ele) por meio da meditação. E com a potência da vontade converteu e uniu em si mesma por meio da imitação. (Ibidem, p. 42)

A seguir, Vieira detalha o processo em pormenores no que diz respeito a cada potência. A memória é definida por ele como o "estômago da alma", pois nela "se faz a primeira decocção deste soberano manjar", retirando esta analogia de Platão, Agostinho e são Pedro Damião (monge e teólogo medieval): "O estômago da Alma é a memória; porque assim como no estômago do corpo se recebe e retém o comer corporal, e ali se faz a primeira decocção, assim esta potência é a primeira que há de receber e recolher dentro em si o Divino Sacramento" (ibidem, p. 43).

Citando ainda o pregador Bernardino da Sena (Sermão n. 55, tomo 2), Vieira define o efeito da memória como a capacidade de "levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam conosco" (ibidem, p. 43). Desse modo, a memória torna possível a presentificação do 'ausente', torna possível uma modalidade de presença que não é mais física e sim espiritual. Por exemplo,

Lembrai-vos do amigo ausente que está em Portugal, e ao mesmo tempo vós estais lá com ele, e ele está cá convosco, porque lá nos levou a memória, e cá o tendes no pensamento. O mesmo faz a memória no Divino Sacramento, e em todos seus mistérios ... De sorte que estando nós em Cristo, e Cristo em nós por memória, em todos os mistérios de sua Encarnação, Vida, Morte e Ressurreição, estamos presentes com ele. Se vos lembrais do mistério da Encarnação, estais com Cristo em Nazaré: se do mistério da Visitação, estais com Cristo nas montanhas de Judéia: se do mistério do Nascimento, estais com Cristo no Presépio de Belém: se do mistério da Apresentação, estais com Cristo no Templo de Jerusalém: se do mistério do mesmo Senhor Menino perdido e achado, estais com Cristo outra vez no mesmo Templo. (Ibidem, p. 44)

Vieira continua o percurso revisitando um por um, os diversos mistérios do Rosário e colocando-os como os lugares da memória onde se torna possível que o fiel esteja com Cristo. Esse pregador apóia a consideração da segunda potência da alma, o entendimento, na doutrina de Dioniso o Areopagita, e afirma que esta, por sua vez, "olha para (os mistérios) com grande consideração, meditando-os" e, por meio desta "vista considerada e atenta se assemelha ao que vê" e isto seria o "efeito da Segunda decocção" (ibidem, p. 44). Segundo ele, "da vista (espiritual) com que o entendimento na comunhão medita os mistérios" da vida de Cristo, "nasce a semelhança", ou seja, aquela "alteração da Alma" pela qual esta "mudando-se em outra", "retrata em si" tais mistérios e "se assemelha a eles" (p. 44). Desse modo acontece um processo inverso ao da Encarnação: se nesta, Deus se faz semelhante aos homens, pela prática do Rosário, os homens se fazem semelhantes a Ele. Esta assimilação acontece por meio da "visão beatífica e vista clara de Deus" proporcionada pelo entendimento ao aplicar-se na meditação dos mistérios do Rosário. Nos parágrafos seguintes, Vieira, através do uso repetido dos termos ver e vista, enfatiza o papel da visão espiritual como o meio pelo qual pode-se estar presente diante de Cristo e comover-se por Ele.

A terceira e última operação que completa o processo da digestão espiritual do manjar divino é realizada pela potência da vontade, "na qual se aperfeiçoa e consuma a nutrição, unindo-se ao que comunga e medita, ao mesmo Cristo comido e meditado, e incorporando-se nele" (ibidem, p. 46). Mais uma vez apoiando-se na pregação de Bernardino, Vieira insiste no termo "incorporação" (ibidem, p. 47), para definir a ação da vontade. Com efeito, a meditação do entendimento suscita o afeto amoroso na vontade: trata-se de "um calor sobrenatural" (análogo ao calor natural que no organismo permite a digestão), o qual faz que "quanto mais (o fiel) se assemelha pelo entendimento a Cristo, tanto mais se incorpora pela vontade com Ele" (ibidem). Vieira acompanha aqui Bernardo de Claraval, o qual utilizara esta metáfora, ao descrever sua experiência pessoal, num sermão (Sermão Sexto sobre o Cântico dos Cânticos): "Todas as vezes que chego ao Santíssimo Sacramento, ali me mudo, ali me assemelho, ali me transformo ... por digestão, por concocção, por união, que são as três operações com que se aperfeiçoa a nutrição da Alma, como a do corpo" (ibidem, p. 47).

O dinamismo das referidas potências pode ser facilitado pelo que Vieira, apoiando-se na fisiologia da digestão de alguns animais (por exemplo, o boi), chama de ruminação:

como estes, depois de comer, tornam a remoer muito devagar o que comeram, assim nós, depois de comungar, havemos de meditar e considerar com muita atenção, de quem é aquele Corpo e Sangue e quais são os mistérios de nossa redenção, que com ele e por ele foram obrados. (Ibidem, p. 48)

Desse modo, o Rosário corresponderia a essa atividade de ruminação, a ser praticada "antes de comungar, e depois de comungar, e sempre e todos os dias" (p. 49). Ou seja, o poder do sacramento não se limita apenas a alguns momentos devotos, mas pretende investir a vida inteira em todos os seus pormenores, uma vez que o homem se empenha para receber o Divino Manjar, de modo a poder incorporá-lo.

O sermão, portanto, adquire grande significação no que diz respeito à história do uso de metáforas alimentares com função antropológica, por articular uma conexão profunda entre as três dimensões do corporal, do psíquico e do espiritual.

A Merenda Eucarística de Lourenço Craveiro

O sermão "Merenda Eucharistica e Sermão que Pregou o Padre Lourenço Craveiro da Companhia de Jesus, da Provincia do Brazil, no Collegio da Bahia, no terceyro dia das Quarenta Horas á tarde em 16 de fevereiro de 1665" tem como tema o trecho de Êxodo, 16: "Vespere, comedetis carnes". Baseia-se na afirmação de que na história bíblica, o maná de manhã e as carnes à tarde são interpretados como sinais proféticos do sacramento eucarístico, no qual o pão é só aparência e a carne substância.

E supposto que o Verbo Divino na tarde do dia do mundo deu sua carne a merendar aos homens, fundamentos temos também para dizer, que esta tarde nos quer dar de merendar, para isto nos chama, e nos convida quando sacramentado naquelle excelso trono, para que gostando nós desta carne, ou destas carnes do Divino sacramento, nos esqueçamos das carnes e golodices do Egypto, com que estes dias nos enfeitiça o mundo. (1665, p. 2-3)

Se a pregação é um banquete, a função do pregador corresponde à do vocator, nome do oficial que na antiguidade chamava os convidados para os banquetes. Craveiro passa depois a ilustrar melhor o tema do sermão, baseado na metáfora da carne, mostrando seu caráter diferenciado para cada gosto individual, assim como a presença sacramental é para todo tipo de homem:

Chamase este Senhor em as Divinas Letras methaforicamente Galinha, Codorniz, Perdiz, Vitella, Cordeyro, Cabrito, Cervo, Veado e Aguia. Em methafora destas carnes nos offerece hoje sua carne sacramentada, para que cada hum lance mão da iguaria, que mais gosta e dezeja. (Ibidem, p. 3)

A função do sermão é, então, aquela de orientar os que se acham "embaraçados sem saber, qual haveis de dezejar". Por isto, anuncia o pregador "eu vos hirey repartindo os pratos, que deveis appetecer" (ibidem).

Na cultura ocidental daquela época, tipos diferentes de comida destinavam-se a níveis sociais diferentes e também a diferentes tipos de compleição e de clima, motivo pelo qual não é irrelevante o fato de que no sermão de Craveiro compareçam sete qualidades diferentes de carne combinadas com diversos tipos de temperos: apesar de o pregador frisar o valor nutritivo específico de cada uma, elas são todas consideradas equivalentes em termos espirituais por assumirem o mesmo valor analógico com o sacramento eucarístico.

No mundo hierarquizado da primeira Idade Moderna, a própria comida era expressiva dessa estrutura ordenada. Assim, cada planta e cada animal eram associados a um dos quatro elementos constitutivos do universo (veja-se a doutrina hipocrática) e classificados segundo seu grau de nobreza. Os gêneros alimentares mais próximos da terra eram considerados inferiores e destinados às classes sociais mais pobres, ao passo que os mais elevados na direção do céu eram considerados superiores e destinados aos grupos sociais mais elevados. Os voláteis, por exemplo, eram considerados comida adequada para príncipes e reis. Ao mesmo tempo em que se acreditava que cada um deveria consumir o alimento adequado à sua natureza, pensava-se também que os alimentos consumidos contribuíssem para moldar as características atribuídas a cada grupo social. De modo que os nobres consumiam mais perdizes e carnes delicadas, e acreditava-se que isso conferia inteligência e sensibilidade mais elásticas em comparação com os que comiam porco e vitelo.

Essas crenças autorizam Craveiro a fornecer um conjunto de receitas referentes a cada um dos tipos de carnes assinalados, receitas culinárias por um lado e espirituais por outro, já que funcionam nos dois registros; além do mais, receitas diferenciadas, pois supõem diferentes tipos de consumidores.

A qual auditório seria destinado o sermão? Considerando que na pregação o uso da metáfora era propositadamente escolhido conforme o auditório, podemos propor a questão acerca de quem estaria interessado em ter indicações quanto ao preparo da comida. No que diz respeito ao ofício de preparar os alimentos, no século XVII, homens e mulheres poderiam interessar-se. De fato, junto às classes médias e baixas, a tarefa de cozinheira cabia à mulher, sendo o ofício de cozinheiro junto às famílias nobres tarefa reservada especialmente ao sexo masculino e de alto nível social (Sarti, 1999). Com efeito, as mulheres eram consideradas pouco aptas por serem excessivamente pródigas e em alguns casos ladras. Além do mais, sempre haveria o perigo de a cozinheira ser bruxa! Uma vez que da competência e da confiabilidade do cozinheiro dependia a vida do patrão, pois os casos de envenenamento eram freqüentes, seria melhor tomar todos os cuidados para afastar os possíveis perigos advindos dos alimentos. A própria honra da casa dependia do banquete, um local privilegiado de encenação da riqueza e do poder, meios pelos quais os poderosos representavam sua posição de vértice e a consolidavam. Sendo assim, o tema da comida e das receitas destinava-se a suscitar amplo interesse dos ouvintes.

O primeiro prato sugerido destina-se aos enfermos: trata-se da carne de galinha, tradicionalmente destinada aos doentes por sugestão de famosos médicos, entre os quais Galeno:

A carne da galinha (diz Galeno) he carne temperada de bom gosto, de melhor nutrição, e como salutifera, gera sempre bons humores, e he a melhor que pode haver para os enfermos comerem: por esta razão será este prato para os enfermos, a quem havemos de acodir primeyro como mais necessitados. Está hum enfermo na cama com grande febre, e fastio, mandalhe o Medico, que não coma senão galinha. Para febre de nossas almas não ha melhor galinha, que esta carne sagrada. (Ibidem, p. 4)

Craveiro passa a definir o que se entende por febre espiritual, a saber, a avareza, a ambição, a ira, a luxúria. Para completar o conselho culinário, é preciso dar sugestões acerca do modo de preparo do alimento: assim, torna-se importante o recurso a alguns temperos apropriados. Convém aqui lembrar que, na Idade Moderna, temperos e plantas aromáticas eram utilizados para melhorar o prazer do paladar: tratava-se de alho, cebola, manjericão, hortelã, salsa, sálvia, alecrim, erva doce e anis, entre outros. No caso específico da carne de galinha, o pregador recomenda o uso do açafrão e do coentro. Craveiro estabelece aqui uma analogia entre os temperos naturais e os temperos espirituais (mortificação, paciência e esquecimento do mundo). O autor garante um pronto efeito terapêutico já comprovado pela tradição e que os ouvintes, por sua vez, poderão "achar por experiência".

O segundo prato sugerido é o de codorniz e perdiz, alimento este apropriado para os convalescentes. Novamente, Craveiro recorre à arte médica para mostrar a eficácia desse tipo de alimentação nos cuidados próprios para a recuperação dos convalescentes:

Levanta-se hum enfermo de huma grave doença tão fraco, debilitado, e falto de suas forças, que não se pode ter em pé, nem dar huma só pastada, e como já não tem febre, o Medico lhe aconselha, que coma perdiz, e codorniz, para restaurar suas forças. (Ibidem)

De modo análogo, o doente espiritual aproxima-se do divino alimento eucarístico tendo a necessidade de recobrar as forças perdidas. A confirmação dessa receita é dada mais uma vez pela experiência. Quanto aos temperos apropriados, são sugeridos azeite, vinagre, sal e pimenta. O significado metafórico deles é assim especificado pelo pregador: "O azeite he a misericordia, isto significa a Sagrada Escriptura, o vinagre he o que derão a beber a Christo em sua cruz. O sal, significa a paz, e amizade ... E a pimenta por calida, signifique o amor" (ibidem, p. 10).

O terceiro prato proposto para a Merenda Espiritual é à base de carnes de cordeiro e de cabrito, sendo destinado aos mimosos, por serem carnes tenras e nutritivas, boas para comer assadas. Os mimosos espirituais são os pecadores arrependidos que choram seus pecados. Craveiro insiste na receita para cozinhar essas carnes. O fato de que o melhor é prepará-las assadas no fogo, é metáfora do fato de que o fogo do amor é necessário para seus consumidores apreciarem o manjar. Os temperos mais indicados para acompanhar o prato são as alfaces amargas: estas simbolizam a penitência que deve acompanhar o arrependimento pelos pecados. Para fundamentar a importância do sabor amargo, Craveiro retoma o Cântico dos Cânticos (capítulo 5), onde se retrata a Esposa Santa, a qual come a mirra e o favo. No livro, explica-se o motivo de a mirra amarga melhorar o sabor doce do favo.

O quarto prato servido na merenda é o de vitela, para os sãos. Os sãos – na linguagem da Medicina Espiritual – são os santos, ou seja, aqueles que ao assumir Jesus no sacramento da eucaristia, incorporam-se profundamente a Ele. O tempero apropriado para a carne de vitela é a mostarda, que na linguagem metafórica significa a fé.

O quinto prato, de carnes de cervo e veado, é destinado aos esforçados, ou seja, aos dotados de estômago robusto. No que diz respeito à vida espiritual, são aqueles cujo "estômago da alma" é valente, por serem temperados nas virtudes. Essa comida aumenta a força física e espiritual dos consumidores, de modo que comendo o "Divino Cervo", ou seja, o sacramento eucarístico, adquire-se a capacidade de pular dos vícios para as virtudes. O melhor tempero sugerido para acompanhar esse prato é preparado utilizando os pés desses animais, cozidos de modo a fazer uma salsa, cujo significado metafórico é a obediência.

Por fim, o sexto prato á a carne de águia, destinada aos entendidos, ou seja, os que são agudos na vista e no entendimento para penetrar os mistérios da fé. O alimento da carne de águia não é indicado para o consumo: "nesta regalada merenda", "o comer carne de Águia não está em uzo ao humano, está em uzo ao Divino". Com efeito, no Salmo 102 Deus é definido como águia. A águia, pela sua vista muito aguda, pode olhar para o sol sem que seus raios a ofendam. Ela simboliza, pois, o Divino Sacramento, que renova cada dia os cristãos. Todavia, a vista e o entendimento da fé não se fundamentam antes de mais nada nos discursos do raciocínio, e sim nos afetos devotos: "as Águias mais entendidas, que penetrão, e descobrem os segredos da Aguia sacramentada, não são as que a olhos abertos se empregão em discursos presumidos, senão as que a olhos fechados se resolvem em affectos fervorosos" (ibidem, p.23).

Com efeito, no divino conhecimento, o amor precede a razão. Craveiro fundamenta essa concepção de conhecimento afetivo em vários exemplos tirados da história sagrada: "Primeyro se gosta, o que se ama, e depois se vê o que se gosta: Gustate et videte" (ibidem, p. 22).

Finalizando a descrição das iguarias da merenda, Craveiro põe a questão das bebidas e das sobremesas mais adequadas para acompanhá-la. A resposta é que a Divina Iguaria contém em si tudo o que é desejável, de modo que a carne sagrada é também pão, vinho, água, fruta e doce que sacia a fome e a sede espiritual do homem. Por fim, a esse banquete – em que "vos offerece hoje este senhor de sua carne divina" – todos são convidados.

A necessidade de um conhecimento prévio do temperamento psicológico e das tendências espirituais de cada um dos convidados à Merenda, e a descrição dos efeitos da comida nos três planos do somático, do psicológico e do espiritual, remetem a conhecimentos tradicionais da Medicina do Corpo e a da Medicina da Alma que, desde Hipócrates e Galeno, associam a alimentação à compleição corporal e ao temperamento psicológico (Harington, 1959; Schipperges, 1988; Hipócrates, 1994).

O fato de que no Banquete eucarístico o sagrado se faz carne – de modo que a carne torna-se sinal do Mistério presente – possibilita a interpretação em sentido metafórico das iguarias do banquete material, de modo que o alimento assume o significado de "práticas espirituais". Desse modo, práticas que remetem a um universo material de comportamentos tornam-se disponíveis para outros sentidos e efeitos de natureza espiritual.

Conclusão

Vimos como o ato de alimentar-se e seus efeitos fisiológicos adquirem significações espirituais e psicológicas complexas no belíssimo sermão de Vieira, pregado no Maranhão. E a própria comida oferece oportunidade para os jogos metafóricos, sendo todas as receitas adequadas para a preparação de diversos tipos de carnes analogias do divino manjar eucarístico, objeto do sermão Merenda Eucharistica pregado em Salvador, pelo jesuíta Lourenço Craveiro. Conforme documentamos, esse recurso deriva de uma longa tradição que se origina no mundo clássico e medieval, mas, sem dúvida, como já se observou, foi readaptado às exigências próprias do contexto brasileiro – sendo essa acomodação exigida pelas normas próprias da oratória sacra pós-tridentina. Além do mais, a escolha dessa metáfora é especialmente recomendada no âmbito da ênfase dada pelo Concílio de Trento ao valor do Sacramento eucarístico como ponto central do catolicismo da época, graças à analogia do banquete com a Ceia sagrada em que Cristo instituiu o sacramento da Eucaristia. Por fim, a analogia entre o ato de comer e o ato de discorrer e de pregar, a qual, como vimos, remonta à tradição medieval, é enfatizada na época dada a importância da pregação como meio de transmissão de idéias religiosas e culturais, proporcionando portanto a palavra do pregador a alimentação espiritual para as almas necessitadas.

Se esses fatores ofereceram, na época, uma legitimação ulterior ao uso das metáforas alimentares para significar vivências psicológicas e espirituais, cabe evidenciar que tal utilização apoiava-se também no duplo significado que a nutrição assumiu desde as origens do mundo humano, ao ser entendida seja como satisfação de necessidades vitais, de natureza biológica, seja como satisfação de exigências peculiarmente humanas (de natureza psicológica, social e religiosa). Ser acolhido e alimentado é uma exigência elementar do ser humano, desde seu nascimento. Tanto no alimento material como no espiritual, o ser pessoal do homem afirma-se no convite recebido para participar de um banquete, e realiza-se conforme as modalidades pelas quais responde a esse convite.

Recebido para publicação em outubro de 2004.

Aceito para publicação em março de 2005.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006

Histórico

  • Aceito
    Mar 2005
  • Recebido
    Out 2004
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