Acessibilidade / Reportar erro

Ações pioneiras do ensino de pediatria no Brasil: Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo (Moncorvo pai) e a Policlínica Geral do Rio de Janeiro, 1882-1901* * O artigo é adaptação de parte da minha tese de doutorado, A Pediatria na Bahia: o processo de especialização de um campo científico (1882-1937), defendida no Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, parceria entre a Universidade Federal da Bahia e a Universidade Estadual de Feira de Santana (Moreira, 2017).

Pioneering work in the teaching of pediatrics in Brazil: Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo and the General Polyclinic of Rio de Janeiro, 1882-1901

Resumo

O artigo analisa as atividades científicas de Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo desenvolvidas na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, fundada por ele. As ações profissionais e políticas desse médico foram fundamentais à implementação da pediatria, tanto no campo do estabelecimento de um espaço técnico de cura como na formação de uma cátedra especial de ensino da pediatria nas faculdades de medicina do Império, à época sediadas na Corte e em Salvador. O que se encontrará aqui é uma defesa de que a pediatria surgiu como desdobramento de um movimento pela implementação da medicina experimental, e não como uma questão social em torno do combate à mortalidade infantil, como comumente se encontra implícito na historiografia.

história da medicina; pediatria; instituição de pesquisa; Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo (1846-1901)

Abstract

The scientific activities of Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo at the General Polyclinic of Rio de Janeiro (Policlínica Geral do Rio de Janeiro), which he himself founded, are analyzed. His professional and political actions were fundamental for the introduction of pediatrics both in the establishment of a technical space for healing and in the formation of a specific discipline for the teaching of pediatrics at the faculties of medicine in the Empire, then based in the Court and in Salvador. Rather than arising in response to the social issue surrounding the fight against infant mortality, as is often implied in the historiography, pediatrics seems to have emerged from a movement for the implementation of experimental medicine.

history of medicine; pediatrics; research institute; Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo (1846- 1901)

Em todos os compêndios e memórias que fazem referência à história da pediatria no Brasil, considera-se Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo o “pai” da especialidade no país, e o documento escrito por ele “Rápida indicação dos motivos que justificam a criação nas Faculdades de Medicina Brasileiras de uma cadeira de Clínicas de Moléstias de Crianças” é tratado quase como uma certidão de nascimento da pediatria brasileira. Embora haja o reconhecimento histórico, a trajetória desse personagem ainda não foi alvo de estudos específicos. O processo de implementação da medicina de moléstias infantis, que, por sua vez, também se ressente de investigações mais aprofundadas, emerge sempre em discussões sobre a infância, notadamente sobre mortalidade infantil, mas pouco se sabe a respeito do seu percurso de especialização.

Numa historiografia que muito menciona e pouco esclarece, o estudo de Júnia Pereira (2008)PEREIRA, Júnia Sales. História, ciência e infância: narrativas profissionais no processo de singularização da pediatria como especialidade. Brasília: Capes; Belo Horizonte: Argumentum. 2008. tornou-se a principal referência sobre a história da pediatria no Brasil, embora apresente um recorte bem específico, que são as narrativas médicas na construção de singularização da pediatria. Essa obra, como não poderia deixar de ser, é a principal interlocutora nas análises aqui propostas. Sobre Moncorvo de Figueiredo, porém, dedica um espaço tímido, concentrando-se em apresentar o modo como ele concebe as doenças infantis e o papel do médico. A leitura que a autora faz de suas narrativas é a de que ele exaltava o médico como o que curava e media as mudanças sociais, colocava-se acima das práticas sociais das famílias pobres, ou seja, colocava o pediatra como o profissional mais autorizado a falar sobre o cuidado com a criança. E, ainda, propõe que as narrativas do pediatra eram uma construção de autoimagem de “médico pesquisador”, uma retórica de “autorreferenciação”.

Para além da construção de um discurso, caminho percorrido por Júnia Pereira, Moncorvo de Figueiredo será analisado neste artigo como fruto de um tempo em que a ciência se estabelecia no Brasil como profissão, delimitando fronteiras não somente em relação a outros conhecimentos, mas também internamente, por meio de especializações médicas e consequentes ampliações de áreas temáticas de investigação. Esse personagem histórico será aqui apresentado como “homem de ciência”, uma expressão utilizada por Dominichi Sá (2006SÁ, Dominichi Miranda. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas o Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006., p.18).

O “homem de ciência”, ou cientista, seria o “profissional da pesquisa aplicada”, um intelectual especializado em atividades científicas, que defendia a ciência como imagem da “civilização” e da “modernidade”. Entre os elementos dessa atividade, encontrava-se “a padronização conceitual, o emprego da evidência empírica e da prova, a importância da observação e do experimento, a adoção da técnica, do parcelamento das atividades profissionais e de uma pedagogia da disciplinarização do tempo do trabalho” (Sá, 2006SÁ, Dominichi Miranda. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas o Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006., p.18). O cientista, na proposta da autora, compunha um cenário mais amplo, de um “ideário científico”, repercussão do darwinismo, da microbiologia e da revolução tecnológica, que, por sua vez, introjetou a ciência nas expectativas de ações sociais e políticas. É esse viés analítico que norteará as questões aqui propostas.

No campo da ciência médica, o pensar/fazer a medicina a partir de um modelo experimental vinha ganhando força. De modo geral, o que se propunha era que a doença não fosse estudada somente a partir da observação do doente e das lesões decorrentes (método anatomoclínico), mas explicada à luz de métodos experimentais da física e da química, assim como dos estudos da fisiologia cujo destaque estaria no campo da forma e funções dos processos orgânicos (Ferreira, 1993FERREIRA, Luiz Otávio. Das doutrinas à experimentação: rumos e metamorfoses da medicina no século XIX. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n.10, p.43-52. 1993.).

Em decorrência, um novo espaço médico-didático emergiu em contraposição ao hospital: os dispensários. Como estabelecimentos de cura, os dispensários foram idealizados como meio de evitar os contágios a que os doentes estariam submetidos durante o internamento hospitalar e a insuficiência de leitos para atender todos os necessitados. O estabelecimento de dispensários deu forma a um modelo clínico inovador, a policlínica. Compartilhando o mesmo espaço, os atendimentos poderiam ser feitos por especialistas diferentes.

Moncorvo de Figueiredo pertencia a essa geração, a um grupo que Flávio Edler (1992)EDLER, Flavio C. As reformas do ensino médico e a profissionalização da medicina na corte do Rio de Janeiro: 1854-1884. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 1992. denominou elite médica, defensores da ideia de que quanto mais reduzido o campo de pesquisa, maior a probabilidade investigativa. E foram esses médicos que lutaram por uma ampla reforma que possibilitasse às faculdades de medicina no Brasil adotar um ensino prático, que pressupunha as especialidades das clínicas.

Como se verá ao longo deste artigo, as ações fundamentais ao processo de especialização da pediatria no Brasil vieram das atuações profissional e política de Moncorvo de Figueiredo no Rio de Janeiro. Assim, defende-se aqui a ideia de que a implantação da pediatria está atrelada ao contexto da medicina experimental, que ganhava corpo em fins do Oitocentos. Ao afirmar que a medicina infantil não surgiu pela infância, e sim pela experimentação científica, não se pretende negar a dimensão social da questão, mas relativizar a ideia de que o combate à mortalidade infantil foi o mote, conforme se generalizou e defende Júnia Pereira (2008)PEREIRA, Júnia Sales. História, ciência e infância: narrativas profissionais no processo de singularização da pediatria como especialidade. Brasília: Capes; Belo Horizonte: Argumentum. 2008., para quem a pediatria surgiu no processo de construção social da infância.

Para se chegar a essa conclusão, o percurso científico de Carlos Artur Moncorvo de Figueiredo foi investigado. Um levantamento entre 1874 e 1901 revelou inúmeras publicações, entre artigos em revistas especializadas (Revista Médica, O Progresso Médico, União Médica, Gazeta Médica da Bahia) e publicações avulsas, tanto de produções do próprio pediatra como sobre ele, seus documentos e pesquisas da Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Sendo um repertório considerável, fez-se necessário um recorte que atendesse ao objetivo deste estudo, que é associar o médico às ações pioneiras em prol de uma medicina para crianças, conectadas ao projeto de uma medicina experimental em curso. Assim, foram escolhidas as pesquisas que apontavam o momento em que ele começou a se concentrar em doenças tipicamente infantis, bem como aquelas desenvolvidas por ele e sua equipe na policlínica, cuja divulgação possibilitasse o acompanhamento do fazer científico, que geralmente percorre um longo caminho, e das questões epistemológicas subjacentes.

O cientista e a construção de espaços voltados para a medicina infantil

Moncorvo de Figueiredo doutorou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1871. Após defender sua tese, estagiou por dois anos na Europa, estudando a medicina nas principais capitais e mais detidamente a medicina para crianças. Em 1874, publicou “Do exercício e do ensino médico no Brasil”, onde fazia severas críticas ao ensino médico nacional e propunha reformas que passavam por criação de novas cadeiras, clínicas especiais e laboratórios, destacando as clínicas de parto e de crianças, esta citada como “problema vital”. Na mesma obra, enfatizava a necessidade de prestar mais atenção ao ensino das afecções próprias da infância, que exigiam um estudo apurado e particular, que, por sua vez, estava absolutamente subordinado à criação de um hospital voltado exclusivamente para as moléstias infantis (Moncorvo Filho, 1926MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio Janeiro: Departamento da Criança, Empresa Gráfica Editora. 1926., p.84-85).

Em 1874, a Revista Médica veiculou a seguinte notícia:

A OFTALMOLOGIA NO BRASIL. – Publicamos no n.7 desta Revista o princípio da conferência do Sr. Dr. Hilario de Gouvêa sobre anomalias de acomodação e refração, feita no seu curso de oculista; depois em vários outros números continuamo-lo.

Nessa ocasião fizemos preceder o belo estudo de S.S. de algumas considerações nossas, e lamentamos que facultativos ‘representantes de outras especialidades’ não tentassem conferências da mesma natureza, como procedem Drognat-Landré e o ilustrado Dr. Pires Ferreira. Hoje lamentamos ainda que, por exemplo, os Drs. Alfredo Guimarães, Werneck e Samico não façam um curso de ginecologia, o Dr. Silvino de Almeida de dermatologia, o Dr. Pedro Affonso de qualquer parte da cirurgia, o Dr. Marinho de moléstias de crianças, ‘o Dr. Moncorvo de moléstias do aparelho digestivo’, o Dr. Rocha Lima de patologia cardiopulmonar, o Dr. Assis Bueno de moléstias das vias genitourinárias, o Dr. Alfredo Rego sobre fisiologia e patologia do sistema nervoso, os Drs. Antenor e Fazenda sobre questões de higiene, e tantos outros inteligentes médicos que podiam concorrer de um modo efetivo e brilhante para a regeneração e reforma do ensino medico brasileiro (Noticiário, 30 jun. 1874, p.28; destaques meus).

Anteriormente à efetivação de um ensino médico oficial por clínicas especiais, o fazer da ciência médica apontava para uma racionalização, para a especialização das atividades e funções. O articulista é bastante claro ao relacionar a “regeneração” do ensino médico à especialização da medicina. Conclama os médicos a assumir-se como especialistas da área da qual estivessem mais próximos. Por meio da matéria, e de outras fontes, é possível inferir que o movimento pela particularização de áreas médicas nesse momento histórico partiu de uma discussão a respeito da prática e do método científicos, e não de questões isoladas sobre aspectos epistemológicos relativos a um ou outro ramo do saber médico. Nas instruções acima, Moncorvo de Figueiredo foi relacionado às moléstias do aparelho digestivo. De fato, nesse momento, o médico não tinha se voltado exclusivamente para o público infantil, e suas pesquisas direcionavam-se às moléstias gástricas (principalmente terapêutica), independente se em adultos ou crianças.

As primeiras pesquisas médicas em crianças desenvolvidas por Moncorvo de Figueiredo datam de 1875, cujo resultado foi divulgado na Revista Médica, em artigo intitulado “Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças” (Figueiredo, 1875FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças. Revista Médica, n.22, p.196-198. 1875.). O interesse pelo tema, conforme confessou, ocorreu após a mãe de uma criança em tratamento contra diarreia ter ministrado sal, em vez de uma fórmula deixada por ele (o que fez com que a diarreia melhorasse). A partir do incidente, o médico passou a fazer observações sobre o emprego do sal de Berthollet no tratamento de certas espécies de diarreia infantil, relatando que, àquela época, a ciência médica não se ocupava do tema, exceção feita à publicação do médico Bonfigli, cujo resultado da pesquisa ele mesmo só teria tido conhecimento após suas próprias descobertas da propriedade do sal na enfermidade em questão.1 1 Origem das pesquisas que resultaram no atual “soro caseiro” para tratamento de diarreias infantis. No artigo publicado, dialogava com trabalhos da medicina experimental.

Da confirmação do ensaio, animou-se a prosseguir nas experimentações. No mesmo ano, a hipótese da eficácia do cloreto de potássio no tratamento de diarreias já era “fato comprovado”, atestado por médicos de distintas especialidades que enviavam os resultados de suas observações clínicas a Moncorvo de Figueiredo, corroborando sua tese. O consenso terapêutico, porém, não resolvia a questão completamente, pois não se conheciam as propriedades do medicamento nem como ele atuava na mucosa intestinal. Ao longo de meses, o pediatra realizou experimentações laboratoriais em porcos-da-índia, assim como em salivas, fezes e urinas de pessoas adultas e crianças, com o objetivo de investigar a ação do sal de Berthollet no intestino e, ainda, demonstrar um fato contestado por autoridades científicas, que era a eliminação do cloreto de potássio pela mucosa intestinal. O caminhar das pesquisas ia sendo divulgado em periódicos, e, em 1877, reuniu as anotações desse percurso e publicou um volume com quarenta páginas, denominado Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças.

1ª experiência: às três horas e um quarto da tarde administramos pela boca a um porco-da-índia, regularmente desenvolvido e perfeito estado de saúde, uma solução de cloreto de potassa (15 gramas d’água para uma grama de sal). Deixamos repousar o animal durante meia hora e, depois de havê-lo eterizado completamente, praticamos-lhes a abertura do ventre (Figueiredo, 1877FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças. Rio de Janeiro: Tipografia Acadêmica. 1877., p.115).

O comportamento apresentado por Moncorvo de Figueiredo até aqui já fornece elementos para inseri-lo no perfil de “homem de ciência”: a centralidade da pesquisa experimental, que corroborou sua hipótese e justificou as insistentes referências à originalidade de suas incursões científicas. O local onde essas experiências eram feitas, porém, não fica claro em seus trabalhos. O que se sabe é que, entre 1874 e 1881, exercia suas atividades médicas em clínica particular e na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.

Além das pesquisas, esteve empenhado no fortalecimento de espaços de divulgação científica, este também um preceito da nova atitude do campo médico que estava se esboçando no Brasil. Entre 1876 e 1879 esteve na redação e na administração da revista O Progresso Médico,2 2 Na lista de periódicos médicos do Rio de Janeiro publicada pelo Brasil Médico em 1893 (Lista..., 1 abr. 1893), somente o nome de Domingos de Almeida Martins Costa consta como fundador e diretor da revista O Progresso Médico. Em uma correspondência enviada ao Brasil Médico em 13 de abril de 1891, Moncorvo de Figueiredo esclarecia que Martins Costa o convidara para fundar uma revista científica em setembro de 1876, que foi denominada O Progresso Médico, e ele aceitou, mas pediu que seu nome só constasse no conselho editorial quando o novo acordo sobre a capa da revista fosse executado. O ajuste foi realizado, e ambos concorreram para redação e administração da revista durante o primeiro e parte do segundo ano, quando Martins Costa se afastou. Moncorvo de Figueiredo seguiu com a revista até 1879, quando encerrou as atividades (Correspondência, 22 abr. 1891). cujo primeiro número foi publicado em novembro de 1876, com um artigo de Figueiredo (1876)FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças. O Progresso Médico, n.1, p.35-38. 1876.. A partir desse período, as revistas científicas foram aumentando em número e duração. Entendia-se que a pesquisa só teria valor quando publicada e em suportes “imparciais” e especializados.

Após as investigações sobre o uso do sal no combate à diarreia, Moncorvo de Figueiredo foi concentrando os estudos em crianças, mas sempre afinado com as questões da medicina experimental. A ausência de um espaço clínico para estudo e ensino das moléstias em crianças prendeu a atenção do médico no início da década de 1880. Em suas memórias, mencionou que sempre envidou esforços para criar ao menos um teatro de observação para o ensino da medicina infantil, mas não obteve êxito (Figueiredo, 1891FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Clínica das moléstias das crianças (1882-1891). Rio de Janeiro: [s.n.]. 1891.). Em 1881, enviou ao conselheiro visconde de Saboia, então diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, uma proposta para a criação e manutenção, às suas expensas, de uma “Policlínica Infantil”. Para ele,

único meio de se obter, nesta cidade, crianças para o ensino da especialidade na Faculdade de Medicina, atenta à pobreza dos casos interessantes que oferece o Hospital da Misericórdia, devido à dificuldade com que, neste país, consentem as mães, ainda as mais pobres, em recolher seus filhos ao hospital (Moncorvo Filho, 1926MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio Janeiro: Departamento da Criança, Empresa Gráfica Editora. 1926., p.89-90).

As policlínicas surgiram como espaço de cura – uma vez que para os hospitais se dirigiam as pessoas em adiantado estágio da enfermidade – e de ensino, pois conseguiam atrair maior diversidade de doentes. Já eram realidade na Europa desde a década anterior, e no Brasil começaram a ser requeridas como espaço ideal para o ensino das clínicas com Antônio Pacífico Pereira.3 3 O modelo das policlínicas estava disseminado na Europa, e Viena tornou-se referência. Em 1877, Pacífico Pereira (1877) publicou uma série de artigos na Gazeta Médica da Bahia em que propunha a criação, em Salvador, de uma policlínica nos moldes da de Viena, que acabara de visitar em viagem à Europa. O público desse atendimento médico era a população pobre. Os históricos das policlínicas apontam para um empreendimento caracteristicamente filantrópico, uma vez que partia de uma iniciativa privada e a implantação e a manutenção da instituição dependiam de doações. “Na Inglaterra, eles [os dispensários] se têm tornado a fonte de inesgotáveis benefícios, tanto para os pobres que os procuram como para o ensino” (Policlínica..., jan. 1882, p.5). Como se vê, a justificativa central da criação dos dispensários estava relacionada à diversidade de casos clínicos que poderiam oferecer ao ensino e à pesquisa.

Luiz Otávio Ferreira (2017)FERREIRA, Luiz Otávio. Filantropia médica e pobreza no Rio de Janeiro: o caso da Policlínica de Botafogo, 1900-1940. In: Korndörfer, Ana Paula et al. (Org.). História da assistência à saúde e à pobreza: olhares sobre suas instituições e seus atores. São Leopoldo: Oikos. 2017. fornece questões pertinentes às policlínicas no final do século XIX, mostrando que se tratava de um fenômeno do universo ocidental, cujos elementos característicos eram compartilhados na Europa e na América. Por definição, policlínica, instituição similar aos dispensários, era um espaço de atendimento à saúde cujo tratamento dispensava hospitalização; contudo, as policlínicas não surgiram se opondo ao modelo hospitalar, mas como um espaço adaptado a esse modelo. Os dispensários eram instituições urbanas, fundadas quase sempre por médicos, que ofereciam à população carente atendimentos em diversas especialidades. A característica mais marcante dos dispensários, para o autor, foi a vinculação entre a prestação de assistência à saúde e o processo de formação e profissionalização médica.

Dois médicos do Rio de Janeiro4 4 Loureiro Sampaio e João Pizarro Gabizo. visitaram policlínicas em Viena, e, quando um deles retornou ao país, em 1881, convenceu Moncorvo de Figueiredo a empreender o projeto na cidade do Rio de Janeiro. Esse reuniu em sua casa – na rua da Lapa, n.93 – um grupo de médicos e fundou, em 10 de dezembro do mesmo ano, a Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Por unanimidade, Moncorvo de Figueiredo foi eleito diretor da policlínica, ficando encarregado de tudo quanto dissesse respeito à fundação e à direção da instituição, assim como da tesouraria. Treze médicos compunham a equipe da instituição, tendo cada um o direito de escolher um assistente para realizar seus trabalhos, podendo ser um médico ou estudante de medicina nos últimos semestres do curso.5 5 Julio de Moura, Martins Costa, Teixeira Brandão, Rocha Lima, Moura Brazil, Francisco R. de S. Dantas, Carlos Ramos, Rodrigues dos Santos, Silva Araújo, Cypriano Bethamio, João Pizarro Gabizo, Pedro S. de Magalhães e Antonio Loureiro Sampaio, que estava em Viena (Ata..., 1 jan. 1882, p.7-9).

O dispensário infantil da policlínica agregava crianças enfermas em quantidade e qualidade importantes para o estudo científico, para onde convergiram médicos e estudantes interessados na medicina infantil. A partir dessa meteórica experiência, Moncorvo de Figueiredo encaminhou ao governo imperial, em 25 de fevereiro de 1882, uma solicitação para que fosse criada uma cadeira de clínica infantil nas faculdades de medicina do país. Na “Rápida indicação dos motivos que justificam a criação nas Faculdades de Medicina Brasileiras de uma cadeira de Clínicas de Moléstias de Crianças” (Moncorvo Filho, 1926MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio Janeiro: Departamento da Criança, Empresa Gráfica Editora. 1926., p.96-106), ressaltou a carência de espaços em condições satisfatórias para tratar as moléstias das crianças e ao mesmo tempo possibilitar o exercício da medicina infantil. Como solução ao problema, apresentou o modelo das policlínicas, bem-sucedidas na Europa, nos EUA e na Argentina, garantiu ele, como instituição adequada à cura das crianças e promoção de exame especializado de suas patologias e terapêuticas.

Como o objetivo do memorial era a criação de uma cátedra de clínica infantil, os argumentos utilizados pelo proponente referiam-se à “exagerada” frequência das doenças infantis, à grande letalidade delas decorrente e às particularidades que tais doenças ofereciam. Após descrever realidades de outros países, reforçou o pleito com a informação de que os estudos dos conhecimentos especiais exigidos pela clínica infantil, por se tratar de “uma nova semiologia, uma nova patologia, uma nova terapêutica”, conforme preconizado pelo inglês Charles West,6 6 Charles West foi um clínico inglês, autor do livro Lectures on the diseases of infancy and childhood, em que defendia a medicina infantil como “uma nova semiologia, nova patologia, nova terapêutica”. Resenhas dessa obra foram publicadas na Gazeta Médica da Bahia em 1868 (Preliminares..., 31 out. 1868, 15 nov. 1868), e nenhuma outra informação sobre a obra ou sobre o autor foi encontrada. Charles West e sua frase famosa foram citados inúmeras vezes por pediatras brasileiros no final do século XIX. Posteriormente, sua frase virou “domínio público”, e nas primeiras décadas do século XX muitos a empregavam como próprias. No relatório enviado ao ministério por Moncorvo de Figueiredo solicitando a cátedra de pediatria nas faculdades do Império, o autor inglês foi uma referência importante para a construção dos argumentos do pediatra carioca. andavam a passos largos por todo o Ocidente.

O teor do documento conduz à interpretação de que o surgimento da pediatria no país estava relacionado às condições da infância, sobretudo pobre. Certamente, esse argumento corroborou para que Júnia Pereira (2008)PEREIRA, Júnia Sales. História, ciência e infância: narrativas profissionais no processo de singularização da pediatria como especialidade. Brasília: Capes; Belo Horizonte: Argumentum. 2008. afirmasse que a especialização da pediatria entre nós estava relacionada ao combate à mortalidade infantil. Como discurso, sim, era necessário sensibilizar as autoridades imperiais, ainda mais que as crianças representavam o futuro da nação. Na prática, porém, não se encontra entre os artigos de Moncorvo de Figueiredo um olhar sobre seu objeto em que o corpo infantil tenha sido o centro das análises ou que a pediatria fosse tratada a partir do recomendado por Charles West.

Certamente, a fundação da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, “cujo âmbito recendia uma atmosfera de estudo e de experimentação clínica como jamais se vira [no Brasil]” (Moncorvo Filho, 1926MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio Janeiro: Departamento da Criança, Empresa Gráfica Editora. 1926., p.93), deu o respaldo necessário à promulgação da lei n.3.141, de 30 de outubro de 1882, que criou a clínica de moléstias médicas e cirúrgicas de crianças nas faculdades de medicina do Império. Determinou-se, no mesmo documento, que o provimento da cátedra de pediatria, assim como de todas as cátedras especiais, ocorresse mediante concurso.

Moncorvo de Figueiredo se recusou a passar por uma banca avaliativa, não ocupando, assim, a cátedra de pediatria da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, como era de esperar. Continuou, então, desenvolvendo suas atividades de ensino pediátrico independente das instalações da instituição oficial de ensino médico da capital do país.

Gisele Sanglard e Luiz Otávio Ferreira (jul.-dez. 2010) creditaram o não acolhimento de Moncorvo de Figueiredo na Faculdade de Medicina às ideias sobre o ensino médico que o pediatra vinha divulgando desde 1874, nas quais criticava os métodos de ensino, a vitaliciedade das cátedras e o vínculo entre a Faculdade de Medicina e o hospital da Santa Casa de Misericórdia para as aulas práticas. Outro aspecto, estritamente político, que pode alumiar a reflexão é o fato de o ministro Rodolpho Dantas, que tinha apoiado as causas defendidas pelo médico, não estar mais compondo o governo ministerial à época da implementação da cátedra em tela. Talvez, por afinidades políticas, Moncorvo de Figueiredo fosse associado a um perfil que não interessava naquele momento.

O estatuto da Policlínica Geral do Rio de Janeiro apresentou a instituição como uma associação humanitária, cujos fins seriam ofertar consultas e medicamentos gratuitamente à população pobre, sem distinção de idade, sexo e nacionalidade, em compatibilidade com os recursos financeiros disponíveis (Estatutos..., 1882ESTATUTOS... Estatutos da Policlínica Geral do Rio de Janeiro (Decreto n.8.587, de 17 de janeiro de 1882). União Médica, n.7, p.345-48, 1882.). Para cumprir a finalidade de instalações próprias, Moncorvo de Figueiredo solicitou auxílio do Ministério dos Negócios do Império e conseguiu parte dos cômodos do edifício da Secretaria de Instrução Pública, com os móveis neles existentes. A inauguração da policlínica aconteceu em 28 de junho de 1882 e contou com a presença do imperador, do conde D’Eu e de diversas personalidades públicas da Corte, assim como de médicos e estudantes da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

As primeiras instalações da instituição continham oito salas para atendimentos clínicos e cirúrgicos (moléstias infantis, oftalmologia, clínica interna, clínica geral, patologia intertropical, pneumocárdio patologia, moléstias do sistema nervoso, dermatologia, sifiligrafia e ginecologia, laringologia, otologia e rinologia), laboratório de análises químicas, gabinete de eletricidade, laboratório de medicina experimental, biotério e viveiro. A Diretoria, localizada na primeira sala, destacou em pintura uma personalidade política e uma científica: o conselheiro Rodolpho E. Souza Dantas, em clara gratidão pelo apoio dado à causa, e Luis Pasteur, um emblema da medicina experimental (Policlínica..., fev. 1882).

A longa descrição das instalações da policlínica remete a um ambiente bem equipado, precursor como espaço médico voltado para ensino e pesquisa. O laboratório de medicina experimental, apontado como o terceiro laboratório do gênero no país, possuía mesas com fixação para trabalhar com cães e rãs, para exames microscópicos e análises biológicas, assim como uma bancada de mármore para autópsias e outra para exames anatomopatológicos. Seus idealizadores apresentavam com orgulho sua obra:

[O gabinete de eletricidade possui] grande bateria elétrica, modelo Callaud-Trouvé, aperfeiçoado pelo Sr. Benjamin Gairaud, com 60 elementos grandes, contidos em uma bela peça de marcenaria, representando uma elegante chaminé, modelo Luiz XIII. Material elétrico de indução. Rica coleção de eletrodos, de variadas e multiplicadas formas, para as diferentes aplicações. Copiosa coleção de acessórios, para o emprego médico da eletricidade, especialmente galvanômetro, voltâmetro, reostato diferencial de Trouvé, isoladores para os membros superiores e inferiores, suporte para estes últimos. A bateria, bem como grande parte dos acessórios acima referidos, foram executados segundo modificações a ele impressas pelo Dr. Moncorvo. Todas as peças de marcenaria desta instalação elétrica são feitas, bem como todo o demais instrumental, nesta cidade, este pelo Sr. B. Gairaud e aquelas pelo Sr. Gros. É incontestavelmente a primeira instalação elétrica da América do Sul (Policlínica..., fev. 1882, p.49).

A policlínica também contou com uma revista científica chamada União Médica.7 7 Periódico científico de publicação mensal, a União Médica foi fundada e dirigida entre 1881 e 1891 por Moncorvo de Figueiredo, Silva Araújo, Júlio de Moura e Vieira de Melo (Lista..., 1 abr. 1893, p.168). Seus editores a justificaram com estas palavras:

‘Um movimento verdadeiramente científico se tem operado na classe médica brasileira durante estes últimos anos’ ... Grandes obras de alto valor têm sido ultimamente publicadas por alguns distintos professores e outros membros da nossa corporação. As teses inaugurais e de concurso deixaram de ser meras formalidades legais ... Apesar, porém, do que acabamos de expor, não são dados à luz tantos escritos quantos seriam para desejar, donde resulta que médicos eminentíssimos morrem sem deixar um atestado de seu grande merecimento ... Nestas condições, torna-se muito necessária a publicação de uma revista, que seja durável, em a qual fiquem arquivados os frutos das elucubrações daqueles que quiserem contribuir para o adiantamento da medicina nacional, e que a todo tempo seja um documento do que foi feito na época em que vivemos (Palavras..., jan. 1881, p.1-5; destaques meus).

O conselho editorial não reivindicava a vanguarda de um movimento científico, reconhecendo que a publicação que se inaugurava era um efeito inevitável de uma cultura em curso. Pretendia, assim como a Gazeta Médica da Bahia, ser um jornalismo médico sólido e antenado com as discussões médicas nacionais e internacionais. Na ótica de Moncorvo de Figueiredo, e dos outros redatores da revista, as pesquisas desenvolvidas pelos médicos só alcançariam o estatuto de ciência se fossem validadas pelos centros de pesquisas de referência, e, para isso, a publicação tornava-se imprescindível. Percebe-se também, na concepção inicial da revista, o fortalecimento da medicina especializada, observável por meio de seções definidas por clínicas. Havia uma meta de cada especialidade ter seu órgão próprio de divulgação. Em 1890, anunciou-se que, a partir do ano seguinte, a União Médica teria um conselho editorial para cada especialidade médica, uma experiência que talvez tenha comprometido a existência da própria revista.

Até o editorial de janeiro de 1886, as palavras do redator-chefe da revista tinham como foco a necessidade de divulgar e fortalecer as pesquisas nacionais, e esse ano em especial congratulava-se por ter contribuído para um cenário em que a ciência no Brasil possuía uma literatura própria. Em dezembro, a redação anunciou que, diante do desenvolvimento da medicina e da repercussão que a União Médica alcançara internacionalmente, pesquisadores estrangeiros começaram a solicitar espaço. Assim, a revista passou a publicar artigos de pesquisadores estrangeiros. De 1887 em diante, artigos em português e outros idiomas se misturavam nas seções da nova União Médica: Arquivo Internacional de Ciências Médicas. A manutenção do idioma original do artigo foi um princípio adotado pelo conselho editorial.

O idioma em que publicar as pesquisas era uma questão importante naquele momento. Quando a União Médica passou a veicular trabalhos estrangeiros, muitos médicos brasileiros enviavam suas investigações em francês, que era a língua internacional da ciência. Dos trabalhos publicados por Moncorvo de Figueiredo, por exemplo, uma pequena parte foi divulgada em português, e estava concentrada no início da carreira.8 8 Os estudos desenvolvidos da policlínica foram publicados em União Médica, Revue mensuelle des maladies de l’enfance (Paris), Revue générale de clinique et de thérapeutique (Paris), Union Médicale (Paris), Bulletin general de thérapeutique (Paris), Progrés Médical (Paris), Gazette Hebdomadaire (Paris), Bulletin et mémoires de la Société de Médecine Pratique (Paris), Archivo de enfermedades de los niños (Madrid), Revista de enfermedades de los niños (Barcelona), Annual of the universal medical sciences (Filadélfia), Bulletin de l’Académie de Médecine de Paris, Annales de la Policilinique de Paris, Annales de dermatologie et de syphiligraphie (Paris), La Pediatria (Nápoles), La médecine infantile (Paris). Além do idioma estrangeiro, abundavam notícias sobre as repercussões nacional e internacional dos trabalhos do pediatra. Júnia Pereira (2008)PEREIRA, Júnia Sales. História, ciência e infância: narrativas profissionais no processo de singularização da pediatria como especialidade. Brasília: Capes; Belo Horizonte: Argumentum. 2008. interpretou essa prática como um “apelo”, o uso da autoridade para legitimar seu lugar de cientista, e que isso o teria ajudado a transformar-se em referência nacional na especialidade. Sá (2006SÁ, Dominichi Miranda. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas o Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006., p.114), por sua vez, explica o fenômeno como um processo de “internacionalização dos cânones científicos”, cuja padronização da linguagem constituía um elemento importante na especialização da ciência.

Ao longo das décadas de 1880 e 1890, as pesquisas divulgadas por Moncorvo de Figueiredo, não só na revista fundada por ele, eram frutos das experimentações realizadas no curso de pediatria da Policlínica Geral do Rio de Janeiro.

O curso de pediatria da Policlínica Geral do Rio de Janeiro: ensino e pesquisa

O curso de clínica de moléstias da infância promovido por Moncorvo de Figueiredo na Policlínica Geral do Rio de Janeiro iniciou logo em 1882. Até 1886, o pediatra adotou o método que chamou de misto, que consistia em pequenas conferências e demonstrações práticas ao lado dos doentes, bem como, em dois semestres do ano, uma série de lições orais sobre uma ou mais questões referentes a patologia, clínica ou terapêutica pediátrica. Desse ano em diante, passou a utilizar o método “destinado ao verdadeiro ensino prático da clínica”, destinando-se ao estudo particular de cada caso, acompanhado das reflexões e considerações que as pesquisas na área sugeriam. Os assuntos ministrados transitavam, principalmente, entre estudos de moléstias gástricas, raquitismo, atrofias musculares diversas, malária, lepra e coqueluche. Além das causas das doenças, havia uma preocupação proporcional com a terapêutica (Figueiredo, 189-).

Ao lado da clínica infantil, Moncorvo de Figueiredo mantinha um laboratório provido dos recursos necessários às investigações experimentais da clínica e da terapêutica, utilizando nas demonstrações os exames químicos, as análises dos líquidos orgânicos e outros suportes científicos para o diagnóstico. Entre 1883 e 1893, foram 17 teses doutorais produzidas a partir de pesquisas no serviço infantil da policlínica. Um interno publicou oito artigos com material colhido no mesmo serviço entre 1892 e 1894. Entre 1882 e 1894 foram 8.375 crianças atendidas, 8.794 operações e aparelhos, 6.282 sessões de eletricidade (Figueiredo, 189-). A clínica infantil da Policlínica Geral do Rio de Janeiro possibilitou ao pediatra empreender uma trajetória científica de projeção internacional. De 1883 a 1901 foram mais de sessenta publicações em diferentes revistas científicas, nacionais e estrangeiras.

Dos temas das aulas, os estudos bacteriológicos e terapêuticos da coqueluche tiveram maior destaque. Moncorvo de Figueiredo dedicou mais de uma década às investigações, cujos resultados promoveram amplos debates. Relatou que a primeira vez que entrou em contato com a coqueluche foi em seu gabinete particular, no dia 31 de agosto de 1882. Desde então, a afecção começou a atingir um número crescente de crianças, com grande intensidade, e todos os casos apresentavam-se com “forte inspiração sibilante” da “expulsão de abundante quantidade de mucosidades esbranquiçadas e extremamente viscosas” (Figueiredo, 1883a, p.232). A partir de vinte casos, investigou a natureza parasitária da moléstia em questão, passando a examinar, com o auxílio do microscópio, os catarros de crianças afetadas de coqueluche, tanto no período catarral quanto no espasmódico, e não só das que se não achavam ainda sob a influência de qualquer medicação, como também das que estavam submetidas ao emprego da resorcina, achando-se mesmo algumas dessas muito próximas da cura.

Quando Moncorvo de Figueiredo iniciou suas primeiras pesquisas sobre o germe da coqueluche, os estudos de Burger de Bonn defendiam ser a coqueluche produzida por um parasita, descrito como um pequeno bastonete ou bacilo elipsoide e alongado, de dimensão variável, que, examinado por meio do aparelho Abbé, apresentou um estrangulamento central, dando-lhe uma forma análoga à de uma ampulheta. Bonn distinguiu o bacilo de outros germes comuns à saliva e que não tinha sido verificado em nenhum outro produto da expectoração. O que faltou na investigação de Bonn, palas palavras do próprio, foi a cultura do suposto germe da coqueluche e a realização de inoculações que viessem mostrar a evidência e a identidade do bacilo.

No primeiro trabalho que publicou sobre o assunto, Moncorvo de Figueiredo (1883b) relatou que, nos catarros colhidos de crianças acometidas por coqueluche logo após expectoração, descobriu, à simples inspeção, uma grande quantidade de pequenas massas amarelas, irregularmente redondas, do volume aproximado da cabeça de um alfinete, imersas nas mucosidades. Ao exame microscópico, sem adição de reativos ou corantes, encontrou células epiteliais pavimentosas, polídricas, irregulares e providas de um núcleo, glóbulos de pus, mais ou menos numerosos, globulinos e uma quantidade considerável de micrococci. O desenvolvimento das pesquisas com os micrococci lhe deu indícios da relação de causalidade entre a coqueluche e o germe desenvolvido sobre a mucosa da laringe.9 9 Apresentou essa etapa da pesquisa em comunicação no nono Congresso Internacional de Medicina, realizado em Washington, em 1887.

A narrativa dos artigos científicos publicados pelo pediatra segue um caminho comum. Júnia Pereira propôs o seguinte roteiro:

Primeiro procede-se comumente à descrição de polêmicas a respeito da origem de determinada doença e seu tratamento, fala-se então do doente, sobretudo de suas origens sociais e dos supostos hábitos alimentares e higiênicos de sua família, apresenta-se a terapêutica empregada ao mesmo tempo que se apresenta o diagnóstico, ressaltando-se no final a situação de cura e recuperação de um estado de normalidade, muitas vezes descrito pelo médico como um estado de felicidade da criança (Pereira, 2008PEREIRA, Júnia Sales. História, ciência e infância: narrativas profissionais no processo de singularização da pediatria como especialidade. Brasília: Capes; Belo Horizonte: Argumentum. 2008., p.77).

Para a análise aqui proposta, as comunicações científicas de Moncorvo de Figueiredo denunciavam, novamente, um “homem de ciência”: uma escrita objetiva, que anunciava o debate científico sobre o tema e o estágio atualizado das pesquisas, que assumia uma posição teórica, se apropriava do seu objeto e seguia rumo ao laboratório, onde encontraria as respostas às perguntas e hipóteses por ele mesmo formuladas. E, para completar, reivindicava insistentemente para si a novidade de uma verdade. Uma atividade intelectual cuja prática privilegiava um trabalho coletivo (Sá, 2006SÁ, Dominichi Miranda. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas o Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006.).

No início de 1886, em parceria com seu assistente Jayme Silvado e contando com técnicas mais avançadas de bacteriologia, Moncorvo de Figueiredo empreendeu novas investigações acerca do germe em questão.10 10 Jayme Silvado defendeu sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1887, a partir desses experimentos. Por essa ocasião, foram praticadas pelos dois experimentadores culturas e inoculações em cobaias, com resultados. Em 1890, possibilitado pela introdução de lentes duplas nos microscópicos, o professor verificou que os micrococci, sempre encontrados nos escarros das crianças com coqueluche, eram alongados, em forma de bastonete.11 11 Apresentou essa etapa em Comunicação ao Congresso Internacional de Terapêutica de Matéria Médica de Paris, em 1890. Novas culturas e inoculações vieram identificar esse agente microscópico. Para assegurar a inoculação do mal em cobaias, provocava-lhes previamente a irritação da laringe por meio de diversas substâncias.

Durante as pesquisas e experiências verificou ainda que os cães adultos, submetidos às mesmas provas, escapavam aos seus efeitos. Chegou mesmo a introduzir diretamente o micróbio na laringe após a laringotomia, e nem mesmo assim esses animais apresentaram sequer sintoma algum de coqueluche.

Uma importante conclusão se depreende das investigações experimentais do Dr. Moncorvo, isto é, que não se pode olvidar a condição particular do contágio do mal (Moncorvo Filho, 1897MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Microbiologia e terapêutica da coqueluche. Brasil Médico, n.45, p.395-398. 1897., p.397).

Esse experimento reforçaria uma hipótese que vinha sendo defendida por Moncorvo de Figueiredo e seu assistente desde 1886: a de que a integridade do epitélio da laringe constituiria um obstáculo à penetração do germe. Ou seja, a desproteção dessa mucosa abriria a porta ao parasita, o que explicaria a grande frequência de coqueluche no decurso de qualquer inflamação brônquica.

Em relação à terapêutica, com suas próprias observações clínicas, concluiu sobre o êxito da resorcina contra a coqueluche, cujo método consistia em embrocações na região periglótica com uma solução de resorcina a 10%. E, juntamente com seus assistentes, fez testes com outras substâncias antissépticas: asaprol, ácido cítrico ou limão e creolina.12 12 Seus assistentes eram Moncorvo Filho (publicou em 1883 o artigo sobre o ácido cítrico na coqueluche na revista Pesquisas Científicas) e Jayme Silvado (publicou em 1889 um artigo na União Médica sobre a eficácia da creolina na coqueluche). Carlos Arthur Moncorvo Filho era filho de Moncorvo de Figueiredo e graduou-se em 1897 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Durante a graduação, trabalhou com seu pai na Policlínica Geral do Rio de Janeiro e, com a morte desse, em 1901, tornou-se diretor da policlínica.

Após muitas investigações, publicou a seguinte conclusão:

  1. 1º que a coqueluche, cuja natureza fora até uma época muito recente, sujeita às mais diversas interpretações em relação à sua gênese, pode ser hoje, segundo as últimas pesquisas microscópicas, incluída na classe das moléstias parasitárias.

  2. 2º que a moléstia parece poder ser atribuída à presença de micrococcus que se multiplicam prodigiosamente na porção hiperglótica da laringe, infiltrando-lhe as células epiteliais que parecem ser a sede de predileção para seu desenvolvimento;

  3. 3º que a resorcina, aplicada diretamente sobre a mucosa laringeana, conseguiu, em todos os casos em que foi empregada, fazer decrescer rapidamente o número de quintas, abrandar-lhe a intensidade, e operar, finalmente, a cura, em breve espaço de tempo, sem o auxílio de nenhum outro agente medicamentoso (Figueiredo, 1883b, p.232).

Ainda em 1883, Aquino Fonseca, interno de um hospital em Niterói, enviou uma correspondência à União Médica, atestando a eficácia do emprego da resorcina no tratamento da coqueluche, lembrando que foi Moncorvo de Figueiredo o primeiro a usar essa terapêutica. Na oportunidade, destacou a expansão no país da medicina prática, influenciada pela doutrina parasitária, “levando-se em nossos dias no terreno da experimentação pela mão potente de Pasteur” (Nota sobre o tratamento..., 15 ago. 1883, p.368). Após as felicitações, explanou a utilização feita do método, registrando o sucesso obtido. Dois anos depois, o médico Pourchet apresentou um testemunho de utilização bem-sucedida do método terapêutico proposto por Moncorvo de Figueiredo no tratamento da coqueluche. O médico, lembrando-se da orientação do pediatra sobre a ação anestésica da coca e da cocaína sobre as mucosas, prescreveu a uma criança doente a resorcina, “cujo valor na coqueluche já não pode[ria] sofrer contestação” (Nota sobre um caso..., 15 fev. 1885, p.70), em uma infusão de folhas de coca sob a seguinte fórmula: infusão concentrada de folhas de coca (100 gramas) e resorcina quimicamente pura (1 grama), para aplicar com um pincel sobre o orifício glótico, seis a oito vezes, de duas em duas horas.

Durante a década de 1890, as investigações relativas a natureza, sede e tratamento da coqueluche continuaram. O debate internacional e o surgimento de novas técnicas bacteriológicas (aperfeiçoamento do microscópico, corantes, substâncias antissépticas, meios para culturas) impeliram novas pesquisas sobre o germe produtor da moléstia, convindo, para tanto, novos cultivos. Essa empreitada contou com a atuação de Moncorvo Filho. Sem a menor ideia preconcebida, confessou o assistente, “temo-las repetidamente executado”, as pesquisas, no Laboratório de Biologia do Ministério da Indústria, onde era assistente, e no Laboratório de Bacteriologia da Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Os doentes examinados foram cerca de cinquenta crianças do Serviço de Pediatria da policlínica (Moncorvo Filho, 1897, p.403).

Das primeiras incursões, Moncorvo Filho afirmou que, não atuando a substância que emergiu das culturas do germe sobre os glóbulos vermelhos, a coqueluche seria uma afecção localizada na região da laringe, sem alteração de sangue, não acarretando perturbações febris, cujas intercorrências seriam sempre a consequência de uma complicação sobrevinda no decurso da moléstia. Essas considerações, assim, estariam de acordo com a teoria vigente da natureza microbiana local da afecção.

Das nossas pesquisas bacteriológicas parece-nos poder concluir que o germe por nós capitulado de patogênico da coqueluche esteriliza-se completamente a 100º, podendo, não obstante, resistir ao frio de 10 ou 15 graus acima de zero. O seu optimum medeia entre 35 e 45º.

A 50º c resiste, parecendo só a 60º c deixar de proliferar.

Estas verificações estão ainda de acordo com o que se observa quanto à clínica e quanto à profilaxia (Moncorvo Filho, 1897MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Microbiologia e terapêutica da coqueluche. Brasil Médico, n.45, p.395-398. 1897., p.404).

No âmbito da terapêutica, estudou a ação de diferentes agentes sobre o micróbio da coqueluche: ácido bórico, benzonaftol, ácido fênico, permanganato de potássio, salicilato de sódio, sublimado corrosivo, ácido cítrico, quinina, antipirina, asaprol e resorcina. Na inoculação do micróbio da coqueluche procederam a estudos em gatos, cães, cobaias, ratos brancos, galinhas etc. Dessas experimentações in anima vili chegou-se à conclusão:

1º que os ratos brancos são de alguma sorte refratários à coqueluche.

2º que os cães adultos, como sucede com a espécie humana, dificilmente contraem-na, ao contrário do que parece suceder aos cães mais novos.

3º que os galináceos, conquanto exprimam a tosse com caracteres peculiares a de outros vertebrados superiores, não se mostram contudo refratários a cultura do germe na sua traqueoartéria.

4º que a coqueluche desenhou-se com os seus caracteres próprios nas pequenas cobaias inoculadas com as culturas puras do germe, quer extraído diretamente das crianças afetadas, quer da laringe de outras cobaias (Moncorvo Filho, 1897MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Microbiologia e terapêutica da coqueluche. Brasil Médico, n.45, p.395-398. 1897., p.413).

Moncorvo de Figueiredo comunicou os resultados dessa pesquisa em correspondência ao médico H. Gillet, em junho de 1892 (Figueiredo, jun. 1892). No mesmo mês, publicou em um jornal de ampla circulação da cidade do Rio de Janeiro, O Fígaro, um resumo das pesquisas, que, em seguida, foi publicado em forma de brochura. Ao longo de 1892, as pesquisas foram divulgadas tanto no Brasil como no exterior por meio de publicações e comunicações enviadas a várias sociedades médicas. O Buletin de Medicina, do Chile, os Anales del Circulo Medico Argentino, a Revista de Higiene Infantil (Buenos Aires), a Revista Medica, do Chile e a Chronica Medica de Peru publicaram o trabalho em espanhol. Os Analles de la Policlinique, de Paris, e a Sociedade Médica de Berlim também foram veículos de divulgação. Moncorvo Filho deu prosseguimento às investigações sobre a coqueluche, ao que tudo indica, até 1897 (Moncorvo Filho, 1897MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Microbiologia e terapêutica da coqueluche. Brasil Médico, n.45, p.395-398. 1897., p.414).

As experimentações o levaram a novas conclusões:

1º que as pesquisas de Ritter e Galtier [1896] não fizeram mais do que comprovar as que houvéramos anteriormente publicado.

2º que a coqueluche é evidentemente uma afecção local, cuja sede está bem verificado ser a laringe.

3º que o seu micróbio patogênico é um coccus, que apresenta mais geralmente a forma alongada, simulando um bastonete, grupando-se de modo diferente, ora sob a forma de diplococcus de cadeias retas ou curtas, ora em grupos ou coogleas, sendo quase sempre o seu habitat as células epiteliais, que dele se infiltram consideravelmente.

4º que esse germe é suscetível de culturas em vários meios; é no ágar-ágar sólido que melhor se cultiva. A sua inoculação em certos animais não produz a moléstia com os seus caracteres.

5º que a medicação tópica por meio de certos antissépticos é a única racional e aquela que tem fornecido à clínica as maiores vantagens. A resorcina, o ácido cítrico e o asaprol, como provamos, parecem ser até hoje os mais poderosos e ativos recursos contra a coqueluche.

6º que o ácido cítrico ou o próprio limão demonstrou ser não só excelente meio curativo, mas também profilático de vantagem inconcussa (Moncorvo Filho, 1897MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Microbiologia e terapêutica da coqueluche. Brasil Médico, n.45, p.395-398. 1897., p.415-416).

Após 1897, não foram encontradas informações a respeito das pesquisas sobre coqueluche. Talvez um desânimo tenha acometido os pediatras. Moncorvo Filho desabafou a respeito de um suposto descrédito que a ciência desenvolvida no Brasil sofria. Lamentava que, apesar das inúmeras demonstrações e ampla divulgação da natureza da coqueluche em meios científicos internacionais, pesquisadores ainda ignoravam o avanço feito por Moncorvo de Figueiredo e sua equipe da Policlínica Geral do Rio de Janeiro.

A minúcia dos relatos das pesquisas a respeito da coqueluche aqui explorada teve a intenção de dar a dimensão do que Moncorvo de Figueiredo conseguiu desenvolver em termos de trabalho científico na Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Estavam presentes nesse percurso a especialização, a linguagem científica, as pesquisas experimentais, a convicção de que do laboratório sairiam as verdades das hipóteses formuladas, a recomposição dos percursos de pesquisa, a preocupação insistente com a busca da originalidade. Afinal, como analisou Dominichi de Sá (2006SÁ, Dominichi Miranda. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas o Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006., p.135; destaques no original), “os ‘verdadeiros cientistas’ ... deveriam trabalhar coletivamente, entregando-se ao trabalho árduo, disciplinado, exclusivo e especialmente intrincado tal como era, a seu ver, a atividade científica”. Conduta, talvez, que garantiriam que tanto os atores como a instituição fossem eternizados em padrões para a ciência brasileira.

Considerações finais

A importância das ações de Moncorvo de Figueiredo para a pediatria deveu-se à sua atuação política em favor da criação da cátedra de pediatria nas faculdades de medicina e pela manutenção de um curso livre de clínica especial em medicina infantil responsável por formar importantes nomes da primeira geração de pediatras do Rio de Janeiro. Seus trabalhos, no entanto, devem ser analisados com cautela no que se refere à produção de conhecimento pertinente à construção do arcabouço epistemológico da especialidade pediátrica.

Certamente, a consolidação de uma especialidade médica não pode ser vista somente a partir de um componente. Moncorvo de Figueiredo foi fundamental ao demarcar um espaço de cura e de ensino diferenciado para a medicina infantil, mas o fez a partir de uma prática calcada nos pressupostos da experimentação científica. Questões que trouxessem à tona demarcadores da singularidade do corpo da criança não estavam explícitas em suas pesquisas.

Desde a década de 1860, pelo menos, Charles West, autor conhecido e citado por Moncorvo de Figueiredo em relatório mencionado anteriormente, defendia que a medicina da criança exigia nova semiologia e que as patologias e terapêuticas infantis deveriam ser tratadas de forma especial. Esses pressupostos estavam ancorados na ideia de que havia uma diferenciação anatômica e fisiológica entre criança e adulto e que, portanto, o organismo infantil reagia às doenças de forma diferenciada. Conforme demonstrado, o foco dos debates envolvendo as crianças observadas nos espaços de cura do pediatra carioca eram as causas e terapêuticas das doenças, cujas análises eram feitas em laboratórios, com ajuda de cobaias e microscópios. Os personagens principais dessa medicina eram os micróbios, e não as crianças.

A semiologia infantil, basilar na construção da pediatria, assinalava o quanto o corpo da criança era complexamente especial, pois ao mesmo tempo frágil e potencialmente em desenvolvimento. West (Preliminares..., 31 out. 1868, 15 nov. 1868), referência teórica em pediatria na segunda metade do século XIX, defendia a existência de uma espécie de conexão entre os órgãos no corpo da criança, de modo que os efeitos de uma enfermidade local poderia se estender a todo o sistema, dificultando a detecção da afecção original. E mais, na criança, as modificações que o corpo experimentava eram constantes e sucessivas, fazendo das moléstias um fenômeno dinâmico. Assim, a cura exigiria algo mais que acompanhar o progresso (ou causa) das doenças, tendo a terapêutica que se adaptar à fase de cada corpo.

Comparando a trajetória científica da pediatria de Moncorvo de Figueiredo aos pressupostos de West, parecia haver até uma incompatibilidade da clínica infantil com a “medicina experimental”. A pediatria precisaria de um corpo, que, mesmo mórbido por natureza, estava em constante desenvolvimento, vivo, portanto. Ao que tudo indica, as ideias de crescimento e desenvolvimento da criança, fundamentos desse campo do saber, não estavam no centro das atenções do pediatra.

Se não foi Moncorvo de Figueiredo a corroborar as bases epistemológicas para a singularização da medicina infantil no Brasil, foi um egresso do seu curso na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, Fernandes Figueira, que o fez. O primeiro trabalho de Figueira encontrado, artigo publicado n’O Brasil Médico em 1893, já apresentava uma abordagem fundamentada nos elementos da semiologia infantil. E assim seguiram-se outros, até a publicação do que se tornou o primeiro tratado de pediatria escrito por um brasileiro, a obra Éléments de séméiologie infantile, publicada em 1903.

De qualquer forma, é legítimo que o título de “Pai da Pediatria” seja conferido a Moncorvo de Figueiredo. Foi ele quem institucionalizou um espaço específico para atendimento às crianças e para aulas de medicina infantil, além de ter formulado um currículo de ensino para uma área que até então não existia. Ou seja, ele “fez escola”, não apenas literalmente, mas no sentido de criar a primeira geração de pediatras de formação no Brasil.

REFERÊNCIAS

  • ATA... Ata de criação da Policlínica Geral do Rio de Janeiro. União Médica, n.1, p.7-9. 1 jan. 1882.
  • CORRESPONDÊNCIA. Correspondência. Brasil Médico, n.15, p.194. 22 abr. 1891.
  • EDLER, Flavio C. As reformas do ensino médico e a profissionalização da medicina na corte do Rio de Janeiro: 1854-1884. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 1992.
  • ESTATUTOS... Estatutos da Policlínica Geral do Rio de Janeiro (Decreto n.8.587, de 17 de janeiro de 1882). União Médica, n.7, p.345-48, 1882.
  • FERREIRA, Luiz Otávio. Filantropia médica e pobreza no Rio de Janeiro: o caso da Policlínica de Botafogo, 1900-1940. In: Korndörfer, Ana Paula et al. (Org.). História da assistência à saúde e à pobreza: olhares sobre suas instituições e seus atores. São Leopoldo: Oikos. 2017.
  • FERREIRA, Luiz Otávio. Das doutrinas à experimentação: rumos e metamorfoses da medicina no século XIX. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n.10, p.43-52. 1993.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Clínica das moléstias das crianças Rio de Janeiro: [s.n.]. 189-.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Coqueluche, son microbe, son traitement par la résorgine (1) – correspondance. Analles de La Policlinique, Paris. jun. 1892.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Clínica das moléstias das crianças (1882-1891) Rio de Janeiro: [s.n.]. 1891.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Da coqueluche e seu tratamento pela resorcina. União Médica, n.3, p.109-118. 1883a.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. De la nature de la coqueluche et de son traitement par la résorcine Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Fils; Paris: O. Gerthier Editeur. 1883b.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças Rio de Janeiro: Tipografia Acadêmica. 1877.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças. O Progresso Médico, n.1, p.35-38. 1876.
  • FIGUEIREDO, Carlos A. Moncorvo de. Do emprego do clorato de potassa na diarreia das crianças. Revista Médica, n.22, p.196-198. 1875.
  • LISTA... Lista dos periódicos médicos do Rio de Janeiro. Brasil Médico, n.13, p.168. 1 abr. 1893.
  • MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Histórico da proteção à infância no Brasil: 1500-1922. Rio Janeiro: Departamento da Criança, Empresa Gráfica Editora. 1926.
  • MONCORVO FILHO, Arthur de Figueiredo. Microbiologia e terapêutica da coqueluche. Brasil Médico, n.45, p.395-398. 1897.
  • MOREIRA, Virna Cardoso. A pediatria na Bahia: o processo de especialização de um campo científico (1882-1937). Tese (Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, e Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana. 2017.
  • NOTA SOBRE O TRATAMENTO... Nota sobre o tratamento da coqueluche pelo emprego da resorcina, segundo o método do Sr. Professor Moncorvo. União Médica, n.8, p.368-371. 15 ago. 1883.
  • NOTA SOBRE UM CASO... Nota sobre um caso de coqueluche curada pelo emprego tópico da resorcina segundo o método do professor Moncorvo. União Médica, n.2, p.69-71. 15 fev. 1885.
  • NOTICIÁRIO... Noticiário. Revista Médica, n.2, p.28. 30 jun. 1874.
  • PALAVRAS... Palavras dos editores. União Médica, n.1, p.1-5. jan. 1881.
  • PEREIRA, Antônio Pacífico. Aos médicos deputados: reformas necessárias à legislação sanitária e ao ensino médico. Gazeta Médica da Bahia, n.1, p.1-6. 1877.
  • PEREIRA, Júnia Sales. História, ciência e infância: narrativas profissionais no processo de singularização da pediatria como especialidade. Brasília: Capes; Belo Horizonte: Argumentum. 2008.
  • POLICLÍNICA... Policlínica Geral do Rio de Janeiro. União Médica, n.2, p.49. fev. 1882.
  • POLICLÍNICA... Policlínica Geral do Rio de Janeiro. União Médica, n.1, p.5. jan. 1882.
  • PRELIMINARES... Preliminares ao estudo das moléstias das crianças (resenha do livro Lectures on the diseases of infancy and childhood, de West, Charles). Gazeta Médica da Bahia, n.55, p.78-80. 15 nov. 1868.
  • PRELIMINARES... Preliminares ao estudo das moléstias das crianças (resenha do livro Lectures on the diseases of infancy and childhood, de West, Charles). Gazeta Médica da Bahia, n.54, p.68-70. 31 out. 1868.
  • SÁ, Dominichi Miranda. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas o Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006.
  • SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Médicos e filantropos: a institucionalização do ensino da pediatria e da assistência à infância no Rio de Janeiro da Primeira República. Varia História, v.26, n.44, p.437-459. jul.-dez. 2010.

NOTAS

  • *
    O artigo é adaptação de parte da minha tese de doutorado, A Pediatria na Bahia: o processo de especialização de um campo científico (1882-1937), defendida no Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, parceria entre a Universidade Federal da Bahia e a Universidade Estadual de Feira de Santana (Moreira, 2017MOREIRA, Virna Cardoso. A pediatria na Bahia: o processo de especialização de um campo científico (1882-1937). Tese (Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, e Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana. 2017.).
  • 1
    Origem das pesquisas que resultaram no atual “soro caseiro” para tratamento de diarreias infantis.
  • 2
    Na lista de periódicos médicos do Rio de Janeiro publicada pelo Brasil Médico em 1893 (Lista..., 1 abr. 1893), somente o nome de Domingos de Almeida Martins Costa consta como fundador e diretor da revista O Progresso Médico. Em uma correspondência enviada ao Brasil Médico em 13 de abril de 1891, Moncorvo de Figueiredo esclarecia que Martins Costa o convidara para fundar uma revista científica em setembro de 1876, que foi denominada O Progresso Médico, e ele aceitou, mas pediu que seu nome só constasse no conselho editorial quando o novo acordo sobre a capa da revista fosse executado. O ajuste foi realizado, e ambos concorreram para redação e administração da revista durante o primeiro e parte do segundo ano, quando Martins Costa se afastou. Moncorvo de Figueiredo seguiu com a revista até 1879, quando encerrou as atividades (Correspondência, 22 abr. 1891).
  • 3
    O modelo das policlínicas estava disseminado na Europa, e Viena tornou-se referência. Em 1877, Pacífico Pereira (1877)PEREIRA, Antônio Pacífico. Aos médicos deputados: reformas necessárias à legislação sanitária e ao ensino médico. Gazeta Médica da Bahia, n.1, p.1-6. 1877. publicou uma série de artigos na Gazeta Médica da Bahia em que propunha a criação, em Salvador, de uma policlínica nos moldes da de Viena, que acabara de visitar em viagem à Europa.
  • 4
    Loureiro Sampaio e João Pizarro Gabizo.
  • 5
    Julio de Moura, Martins Costa, Teixeira Brandão, Rocha Lima, Moura Brazil, Francisco R. de S. Dantas, Carlos Ramos, Rodrigues dos Santos, Silva Araújo, Cypriano Bethamio, João Pizarro Gabizo, Pedro S. de Magalhães e Antonio Loureiro Sampaio, que estava em Viena (Ata..., 1 jan. 1882, p.7-9).
  • 6
    Charles West foi um clínico inglês, autor do livro Lectures on the diseases of infancy and childhood, em que defendia a medicina infantil como “uma nova semiologia, nova patologia, nova terapêutica”. Resenhas dessa obra foram publicadas na Gazeta Médica da Bahia em 1868 (Preliminares..., 31 out. 1868, 15 nov. 1868), e nenhuma outra informação sobre a obra ou sobre o autor foi encontrada. Charles West e sua frase famosa foram citados inúmeras vezes por pediatras brasileiros no final do século XIX. Posteriormente, sua frase virou “domínio público”, e nas primeiras décadas do século XX muitos a empregavam como próprias. No relatório enviado ao ministério por Moncorvo de Figueiredo solicitando a cátedra de pediatria nas faculdades do Império, o autor inglês foi uma referência importante para a construção dos argumentos do pediatra carioca.
  • 7
    Periódico científico de publicação mensal, a União Médica foi fundada e dirigida entre 1881 e 1891 por Moncorvo de Figueiredo, Silva Araújo, Júlio de Moura e Vieira de Melo (Lista..., 1 abr. 1893, p.168).
  • 8
    Os estudos desenvolvidos da policlínica foram publicados em União Médica, Revue mensuelle des maladies de l’enfance (Paris), Revue générale de clinique et de thérapeutique (Paris), Union Médicale (Paris), Bulletin general de thérapeutique (Paris), Progrés Médical (Paris), Gazette Hebdomadaire (Paris), Bulletin et mémoires de la Société de Médecine Pratique (Paris), Archivo de enfermedades de los niños (Madrid), Revista de enfermedades de los niños (Barcelona), Annual of the universal medical sciences (Filadélfia), Bulletin de l’Académie de Médecine de Paris, Annales de la Policilinique de Paris, Annales de dermatologie et de syphiligraphie (Paris), La Pediatria (Nápoles), La médecine infantile (Paris).
  • 9
    Apresentou essa etapa da pesquisa em comunicação no nono Congresso Internacional de Medicina, realizado em Washington, em 1887.
  • 10
    Jayme Silvado defendeu sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1887, a partir desses experimentos.
  • 11
    Apresentou essa etapa em Comunicação ao Congresso Internacional de Terapêutica de Matéria Médica de Paris, em 1890.
  • 12
    Seus assistentes eram Moncorvo Filho (publicou em 1883 o artigo sobre o ácido cítrico na coqueluche na revista Pesquisas Científicas) e Jayme Silvado (publicou em 1889 um artigo na União Médica sobre a eficácia da creolina na coqueluche). Carlos Arthur Moncorvo Filho era filho de Moncorvo de Figueiredo e graduou-se em 1897 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Durante a graduação, trabalhou com seu pai na Policlínica Geral do Rio de Janeiro e, com a morte desse, em 1901, tornou-se diretor da policlínica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    2 Dez 2018
  • Aceito
    27 Maio 2019
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br