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Uma história viva para uma psiquiatria de carne e osso

A living history for a flesh-and-blood psychiatry

LIVROS & REDES

Uma história viva para uma psiquiatria de carne e osso

A living history for a flesh-and-blood psychiatry

Luis Ferla

Professor da Pós-graduação da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) Rua Girassol, 922/102a – Vila Madalena 05433-002 São Paulo – SP – Brasil luis.ferla@terra.com.br

Rafael Huertas é pesquisador do Instituto de História do Consejo Superior de Investigaciones Científicas, de Madri, e também diretor da publicação espanhola Frenia, dedicada à história da psiquiatria. Sua produção intelectual tem se dedicado à história da medicina em geral e da psiquiatria em particular, com títulos como: Locura y degeneración, publicado em 1987 e traduzido para o inglês em 1992; Del manicomio a la salud mental, de 1992; Clasificar y educar: historia natural y social de la deficiencia mental, de 1998; e Organizar y persuadir: estrategias profesionales y retóricas de legitimación de la medicina mental española (1875-1936), de 2002. É nessa condição de estudioso consistente do tema que Huertas se propôs traçar o percurso do pensamento psiquiátrico desde os primeiros tempos do alienismo até os dias atuais, mas concentrando-se basicamente no século XIX, o 'século da clínica'. O resultado é uma síntese valiosa tanto ao estudioso do assunto, como ao neófito interessado.

El siglo... está estruturado em quatro capítulos. A medicalização da loucura é o tema que abre o livro. O autor demonstra como o modelo anátomo-clínico avançou sobre o alienismo por meio das atividades e dos escritos de Pinel e de Esquirol, preparando o caminho para uma muito mais decisiva somatização da loucura a partir da segunda metade do século XIX, com a difusão das teses do degeneracionismo e da antropologia criminal, processo discutido no segundo capítulo. Em seguida, Huertas dá conta das reflexões teóricas que foram produzidas à margem do núcleo central do alienismo francês oitocentista, como a formulação dos conceitos de neurose e de histeria e o desenvolvimento do pensamento antinosográfico centro-europeu. O capítulo final trata dos 'dilemas terapêuticos' envolvidos com a enfermidade mental, historiando as principais estratégias de tratamento que o pensamento psiquiátrico formulou e procurou praticar. O autor analisa o 'tratamento moral', com ênfase na laborterapia, o niilismo terapêutico e a conseqüente difusão da higiene social, além do chamado non-restraint, revivescência de origem inglesa de certo hipocratismo expectante.

Desde o início e ao longo de todo esse percurso, o autor deixa clara sua opção por uma perspectiva que considera a ciência uma atividade social e histórica, e que portanto não corresponde à idéia de um corpo de conhecimentos cumulativos, linear e crescentemente aproximados a uma verdade objetiva e absoluta. Para Huertas, se isso já seria pertinente à atividade científica em geral, mais ainda o seria no caso da psiquiatria. Além de se tratar de uma ciência de "baixa tecnologia", portanto particularmente "influenciável por considerações políticas, sociais e econômicas", a psiquiatria é o resultado da atividade de uma "mente humana que avalia, julga e intervém sobre outra mente humana", o que torna sua epistemologia desde logo especialmente complexa.

Por isso, uma história da psiquiatria assim concebida não poderia ser excessivamente reverente e silenciosa. Das páginas de El siglo... transparece um universo vivo, ruidoso e necessariamente polêmico. Ali estão presentes as principais divergências que impregnaram toda a trajetória histórica da psiquiatria. Huertas identifica dois eixos teóricos e epistemológicos que teriam organizado os principais debates e as dissensões mais significativas: a consideração única ou múltipla da natureza do transtorno mental e a oposição psicologismo versus somaticismo, ainda que o autor insista em tomar o cuidado de não conferir a esses antagonismos um caráter absoluto e mutuamente impermeável.

No entanto, o condicionamento social e histórico da psiquiatria não se expressaria apenas na existência em si das inúmeras divergências teóricas e epistemológicas que essa ciência experimentou. Que houvesse tantos discursos e tantas práticas divergentes evidencia a inexistência de um conhecimento objetivo que pudesse ser gradativamente 'capturado' por uma metodologia segura e consensual. Mas, para o autor esses mesmos discursos e essas mesmas práticas estiveram sistematicamente 'contaminados' pelos processos políticos, econômicos e sociais que marcaram cada conjuntura. Por exemplo, a monomania de Esquirol seria o início da medicalização do 'delito antiburguês' por excelência, o ataque à propriedade privada que a Revolução Francesa terminava por sacralizar. Já os escritos de Tardieu, os primeiros preocupados com a 'inversão sexual', seriam uma resposta do puritanismo burguês do Segundo Império à relativa tolerância sexual da Monarquia de Julho. Por fim, Huertas demonstra como a histeria de Charcot refletia o anticlericalismo da Terceira República, ao afirmar o positivismo científico como a legítima estratégia para dar conta do que antes era considerado 'possessão demoníaca' e do que representavam à sua época as "curas milagrosas da Virgem de Lourdes".

Outra dimensão da análise do discurso psiquiátrico, e que mais uma vez demonstra a sua permeabilização pelas questões sociais de cada conjuntura, diz respeito aos interesses corporativos da categoria profissional correspondente. A própria busca de um reconhecimento da legitimidade científica de sua atividade fazia parte dessa estratégia, voltada ao alargamento das prerrogativas profissionais e do campo de atuação. Dessa forma, na primeira metade do século a medicalização da loucura permitiu aos alienistas reivindicar a jurisdição exclusiva sobre os considerados loucos que terminassem levados aos tribunais. O evento decisivo desse processo foi a absolvição de Pierre Rivière, em 1835, com o argumento de monomania conforme as teses de Esquirol. Já o pessimismo terapêutico derivado das teses degeneracionistas levou a psiquiatria a negligenciar os espaços asilares, cada vez mais aparentados a cárceres e a 'depósitos de loucos', e a se voltar crescentemente ao conjunto da sociedade, a partir do discurso prevencionista da educação, da eugenia e da higiene.

Huertas constrói seu texto apoiando-se sistematicamente na produção bibliográfica dos principais expoentes teóricos do pensamento psiquiátrico, ao mesmo tempo em que é capaz de cotejá-la com a prática concreta de vários deles. Além disso, está também presente no texto um debate consistente com a historiografia dedicada ao tema. Esses dois cuidados metodológicos convertem El siglo... num valioso guia para pesquisas pertinentes, ao fornecer a um só tempo um painel diligente do pensamento psiquiátrico e da crítica historiográfica a ele dedicada. É importante registrar, por fim, que o autor tem a sincera pretensão de atribuir a seu estudo em particular, e à história da psiquiatria em geral, uma finalidade mais abrangente, qual seja a de colaborar num esforço conjunto interdisciplinar que dê conta de fornecer à psiquiatria uma epistemologia renovada. Também nesse sentido Huertas considera a história da psiquiatria um campo de estudos vivo, dinâmico e polêmico. Em outras palavras, legitimamente pertencente ao nosso próprio tempo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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