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CARTA DOS EDITORES

Em fevereiro deste ano completaram-se 100 anos da morte de Oswaldo Cruz, fundador do complexo institucional que hoje leva seu nome e considerado o principal vulto da ciência e da medicina brasileiras. Não passou despercebida dos veículos de comunicação a ironia de a efeméride coincidir com a ameaça de retorno da febre amarela, a mesma que Oswaldo Cruz controlou em 1907 na cidade do Rio de Janeiro, onde tinha lugar cativo.

Ainda que atualmente detectada no Brasil apenas na forma silvestre, tornou-se enorme o risco de a epidemia se estabelecer nas grandes cidades, risco real diante da proximidade dos sítios de ocorrência e da presença abundante do vetor no ciclo urbano, o Aedes aegypti. Pelo envolvimento do mosquito na transmissão de outras três doenças – dengue, zika e chikungunya –, instalar-se-ia verdadeiro drama sanitário, uma vez estabelecida a febre amarela urbana. Em meio a muitas controvérsias, improvisações e limitações na estratégia de controle vetorial, o poder público procurou prevenir esse cenário impulsionando a distribuição de vacinas, recurso profilático disponível ao arsenal da medicina somente depois de 1937.

Diante do impasse político que vive o Brasil, de um Estado cujas atribuições se insiste em abreviar em função do avanço do consenso neoliberal, lembrou-se da campanha enérgica e moderna de Oswaldo Cruz, que teria propiciado a “derrota” do mosquito. Perdura até os dias de hoje a retórica de tom militarista que opõe um inimigo – o mosquito – à sociedade, escamoteando-se as complexas dinâmicas que favorecem a reemergência de velhos desafios e a persistência daqueles que ainda não foram enfrentados com a mesma intensidade.

Não cabe aqui aprofundar as similitudes e os distanciamentos entre a campanha sanitária de Oswaldo Cruz e os esforços atuais. Por ora, podemos sublinhar que a convicção nos métodos adotados naquela época e a clareza de diretrizes contrastam com as dissonâncias que hoje em dia envolvem meios de comunicação e agências de saúde nacionais e internacionais, como a Organização Mundial de Saúde, de modo a não haver concordância, por exemplo, acerca do número certo de indivíduos afetados.

No tocante ao outro saldo da atuação de Oswaldo Cruz – a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) –, é oportuno lembrar as motivações que levaram o sanitarista a criar a instituição. Ele projetou um centro dinâmico destinado a inovações constantes, capaz de solucionar os problemas da saúde pública, mas também de dilatar as fronteiras do conhecimento por meio da pesquisa científica. Contratou jovens pesquisadores com condições privilegiadas de trabalho, montou uma avançada infraestrutura de pesquisa e produção e assegurou a autonomia da instituição pela oferta de serviços ao Estado e, em menor medida, ao setor privado. Com muitas idas e vindas, foi dessa forma que sobreviveu às intermitências da política, como as intervenções do Estado varguista e o “massacre” perpetrado durante a ditadura civil-militar.

Não há um percurso retilíneo que nos liga diretamente à figura de Oswaldo Cruz. É matéria da memória criar um passado pacificado; genealogias que naturalizam o trajeto que desagua no presente. À história, cumpre problematizar esse passado, apontar as turbulências, fissuras e contradições, de modo a evidenciar que valores, projetos e ideais são conquistas que devem ser permanentemente reatualizadas, e não um legado que se mantém por si só. Nesse sentido, cabe refletir sobre o lugar do projeto de autonomia institucional idealizado por Oswaldo Cruz na concepção de Estado e de país desse alvorecer de século. Cumpre ainda ponderar sobre o papel do setor público no incentivo a pesquisa científica, inovação e formação de novos quadros, bem como na salvaguarda de um sistema de saúde universal, robusto e irrestrito, cuja defesa se tornou uma das marcas desta organização complexa e multifacetada que hoje é a Fiocruz.

Há 23 anos, o então editor desta revista, Sergio Goes de Paula, advertia no primeiro número que o fato de trazer “Manguinhos” em seu título lembrava o caráter situado do conhecimento produzido no local onde se encontra até hoje a sede da Fiocruz. Sergio Goes de Paula igualmente enunciou o ideal de, a partir deste local particular, “dialogar com pesquisadores do Brasil e de todas as partes, em torno de questões que, ao longo do tempo, são relevantes para a compreensão da realidade atual; afinal, que outra importância pode ter a história?” Nessa perspectiva, as questões suscitadas pelo centenário de morte de Oswaldo Cruz revestem-se de caráter universal; ganham amplitude em um mundo hoje convulsionado por conflitos bélicos, por consequentes migrações de grandes contingentes populacionais, pela ofensiva neoliberal e do capital financeiro, e pelo refluxo de doutrinas antidemocráticas e de extrema-direita. Dentro da retórica conservadora, xenófoba e sexista não tem faltado ataques à ciência, como os feitos pelo presidente norte-americano Donald Trump. Eles deflagraram em 22 de abril deste ano atos em favor do conhecimento científico. As “Marchas pela Ciência” ocorridas em diversos países, incluindo o Brasil, defenderam o papel das ciências no debate sobre mudanças climáticas e desenvolvimento sustentável.

Há 100 anos, em um mundo não menos turbulento, envolto em uma guerra de proporções até então inauditas, Oswaldo Cruz falecia na calma Petrópolis. Seus “discípulos” lutavam por maior abrangência dos serviços de saúde, enquanto na longínqua Rússia czarista ensaiavam-se os primeiros passos da revolução que, para Eric Hobsbawm, seria tão relevante para o “breve século XX” quanto a Revolução Francesa foi para o XIX. Meses depois, teve lugar no Brasil a primeira greve geral instilada por segmentos de inspiração anarquista. Um Estado conduzido pelos operários? Ou uma ordem sem a existência do Estado? Muitos foram os questionamentos e diversas foram as respostas. De qualquer maneira, aqueles atores históricos agiram pulsados pela esperança de um futuro mais próspero. Um século depois, por onde andará essa velha conhecida? Onde estarão os projetos de futuro capazes de substituir as estruturas que parecem ruir perante nossos olhos? Os questionamentos permanecem muitos, já as respostas...

Pelas páginas da revista que o leitor tem em mãos, e por meio de outras instâncias de produção historiográfica, esperamos que encontrem no passado não uma narrativa cristalizada de grandes vultos, eventos e “marcos”, mas um repositório de questionamentos, projetos e ideais.

André Felipe Cândido da Silva, editor científico
Marcos Cueto, editor científico

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017
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