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Epidemias e animais não humanos: uma abordagem histórica e antropológica

Epidemics and nonhuman animals: a historical and anthropological approach

LYNTERIS, Christos. Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors. Palgrave Macmillan, 2019. 247.

Em 2020, o historiador e ambientalista Donald Worster publicou texto sobre a pandemia (covid-19) que irrompera no final do ano anterior e que continua devastando o mundo. Em seu texto, Worster (2020) chamava a atenção para o silêncio deixado nas cidades pelo afastamento da população dos possíveis caminhos capazes de cruzar com o tão temido coronavírus SARS-Cov-2, e que estava a se propagar de continente a continente, alcançando novas vítimas. Agora, a causa do silêncio não mais seria o pesticida DDT, como alertado por Rachel Carson em 1962 em seu livro Silent spring, mas um inimigo silencioso, não humano, que chegava desequilibrando a ordem social mundial. Como em outros surtos epidêmicos e pandêmicos, são os animais silvestres e seus patógenos apontados como os grandes vilões da história, e, assim como ocorreu com o Sars ou Ebola, a falta de certeza científica sobre o verdadeiro reservatório é compensada por representações sistemáticas e generalizadas de poucos animais selecionados; no caso, os morcegos, como “bandidos” epidemiológicos (Lynteris, 2019LYNTERIS, Christos (ed). Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors. [S.l.]: Palgrave Macmillan, 2019.).

É na busca pela elucidação do enquadramento dos animais não humanos como vilões epidêmicos que o médico e antropólogo Christos Lynteris organizou e editou o livro Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors. Parte da série Medicine and Biomedical Sciences in Modern History fundada pelo historiador John Pickstone e reeditada por Carsten Timmermann e Michael Worboys, da Universidade de Manchester, Grã-Bretanha, o livro é composto por nove capítulos que contam com a contribuição de historiadores e antropólogos europeus e brasileiros, com discussões sobre animais hospedeiros e vetores não humanos de doenças. Identificados ao longo dos dos séculos como os vilões responsáveis pelos surtos epidêmicos com grande impacto na sociedade, os ratos envolvidos na transmissão e manutenção do bacilo da peste em Suffolk, Inglaterra, os cães na transmissão da raiva, a marmota siberiana como reservatório do bacilo da peste e insetos dípteros – os mosquitos –, identificados e temidos como os grandes responsáveis por doenças como ebola, zika, dengue, febre amarela, malária, entre outras, são os temas apresentados no livro. As representações visuais como ferramenta para o entendimento científico dos reservatórios e vetores das doenças infecciosas também ganham destaque nos capítulos escritos por Sayer, Lynteris e Meerwijk. Esses trabalhos evidenciam como a representação visual desempenhou um papel fundamental na percepção dos agentes infecciosos causadores de epidemias com os estudos sobre ratos, marmotas e mosquitos. Muitas vezes a identificação de um protagonista epidêmico não humano como o rato, exemplificado no trabalho de Sayer, leva ao abandono pela busca de outras espécies possivelmente envolvidas na propagação da doença e também a ignorar a complexidade ecológica existente na persistência, transmissão e circulação de patógenos entre diferentes espécies em qualquer ecossistema.

A descoberta dos animais vetores de doenças no século XIX levou a olhar esses animais como flagelos do mundo natural e do bem-estar humano. Identificar e combater os vetores e parasitas visando a sua eliminação e à erradicação das doenças por eles transmitidas mobilizaram esforços globais ao longo do século XX, sem sucesso, e, com o surgimento de novas zoonoses epidêmicas no século XXI, o enquadramento dos animais não humanos como vilões epidêmicos foi consolidado.

Na realidade, porém, são os humanos, por meio de seus hábitos culturais e de comportamento, que estão no centro de quase todos os surtos e epidemias que afetam a sua própria espécie, e não os animais não humanos, como apontado por Laurie Garrett (1999)GARRETT, Laurie. Amplification. In: DeSalle, Rob (ed.). Epidemic! The world of infectious disease. New York: The American Museum of Natural History; The New Press, 1999. p.193-196. no final do século XX. Nos estudos sobre as diferentes zoonoses fica evidente que são os humanos os impulsionadores de eventos de transbordamento (spillover) que levam um vírus a passar de uma população animal não humana para as pessoas. Os animais não humanos são os hospedeiros naturais e originais desses vírus, sem que estes os afetem ou causem enfermidade. O entendimento dos animais não humanos como os grandes causadores de doenças continua levando a ações de cunho militarizado, utilizadas desde o século XX e ensejam desejos, lutas e debates políticos muito diferentes. Muitas vezes a representação de um inimigo global favorece ações governamentais de poder e dominação como mostrado nos trabalhos sobre zika, dengue e febre amarela.

Como apontado por Lynteris, enquadrar animais específicos como vilões epidêmicos é ideológica e biopoliticamente indispensável, mesmo quando a culpa do “vilão” em questão carece de evidência científica conclusiva. As análises trazidas pelos autores nos capítulos que compõem o livro reforçam o sentido de que, apesar das estratégias e dos esforços atuais das ações de saúde pública em utilizar o conceito de “saúde única” (one health) – que une o cuidado humano, animal e do meio ambiente, de forma conjunta – para a garantia do bem-estar das populações, a imagem e a vida social de animais não humanos como vilões epidêmicos é uma parte constitutiva da epidemiologia moderna e da saúde pública como aparatos de gestão estatal e capitalista (Lynteris, 2019LYNTERIS, Christos (ed). Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors. [S.l.]: Palgrave Macmillan, 2019.).

Esse não é um livro simplesmente sobre histórias de eventos epidêmicos envolvendo vetores e reservatórios de doenças. Ele é inovador em sua abordagem dos não humanos como atores em suas narrativas. Todos os artigos trazem novos e importantes olhares para a compreensão de como os animais não humanos foram, e ainda são, importantes atores e vítimas da cultura humana, socialmente construídos, pensados, testados e utilizados em ações de saúde pública que abarcavam interesses políticos, coloniais, econômicos e de dominação e poder. Como nos lembra Donald Worster (2020)WORSTER, Donald. Outra primavera silenciosa. In: Sá, Dominichi M. de et al. (ed.). Diário da pandemia: o olhar dos historiadores. São Paulo: Hucitec, 2020. p.78-90., “assumir a responsabilidade por nosso papel na criação de epidemias exige a absolvição de agentes não humanos”. Estudos multiespécies e sobre o Antropoceno têm trazido novas perspectivas no entendimento do papel e da interação do homem com a biosfera. Os olhares sobre os não humanos abrem novas perspectiva de entendimento e releituras sobre o entrelaçamento da espécie humana com os demais componentes da rede da vida. Essa é uma obra de interesse multidisciplinar tanto para historiadores ambientais, da medicina e das ciências, da saúde global, como para antropólogos e epidemiologistas.

REFERÊNCIAS

  • GARRETT, Laurie. Amplification. In: DeSalle, Rob (ed.). Epidemic! The world of infectious disease New York: The American Museum of Natural History; The New Press, 1999. p.193-196.
  • LYNTERIS, Christos (ed). Framing animals as epidemic villains: histories of non-human disease vectors [S.l.]: Palgrave Macmillan, 2019.
  • WORSTER, Donald. Outra primavera silenciosa. In: Sá, Dominichi M. de et al. (ed.). Diário da pandemia: o olhar dos historiadores São Paulo: Hucitec, 2020. p.78-90.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021
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