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Estegomiias em conserva e micróbios de vinha-d'alhos: o Brasil triunfa em Berlim

Preserved Stegomyia and vinegared microbes: Brazil's triumph in Berlin

Resumos

O artigo investiga as circunstâncias que levaram o Brasil a alcançar o primeiro prêmio na XIV Exposição de Higiene e Demografia, em Berlim, em 1907. A partir da inédita correspondência trocada entre Henrique da Rocha Lima e Oswaldo Cruz às vésperas da exposição, é possível observar as agruras do empreendimento à brasileira, onde aquilo que se parecia a uma cuidadosa estratégia revela-se como um turbilhão de acontecimentos, no qual a sorte da participação brasileira dependeu de situações pouco ou nada delineadas por planejamento meticuloso e previdente. A correspondência revela ainda que, se assumidas as narrativas glorificadoras de méritos pessoais, a vitória em Berlim foi muito mais de Rocha Lima que de Oswaldo Cruz. À luz de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, outra questão abordada diz respeito ao embate entre os mundos ibérico e anglo-saxônico na construção e no reconhecimento da vitória brasileira.

Oswaldo Cruz; Henrique da Rocha Lima; Manguinhos; ciência e tecnologia; Terceiro Mundo; história e sociologia da ciência


This article investigates the circumstances leading to Brazil being awarded the first prize at the XIV International Conference on Demography and Hygiene, held in Berlin in 1907. An examination of the unpublished correspondence between Henrique da Rocha Lima and Oswaldo Cruz prior to the conference/exhibition reveals the peculiarities of a Brazilian-style event, where the outcome seems to be determined by haphazard incidents rather than by meticulously planned strategies. Their letters can also be read as a narrative celebrating individual qualities, as they attribute the victory in Berlin much more to Rocha Lima's than Oswaldo Cruz's personal merits. In the light of Raízes do Brasil, a classic by Sérgio Buarque de Holanda, this article also addresses the issue regarding the dispute between the Iberian and Anglo-Saxon worlds over the Brazilian victory.

Oswaldo Cruz; Henrique da Rocha Lima; Manguinhos; science and technology studies and the Third World; history and sociology of science


Estegomiias em conserva e micróbios de vinha-d'alhos: o Brasil triunfa em Berlim

Preserved Stegomyia and vinegared microbes: Brazil's triumph in Berlin

Henrique Luiz Cukierman

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Rua Capistrano de Abreu, 28 apt. 103

22271-000 Rio de Janeiro — RJ Brasil

hcukier@stanford.edu

CUKIERMAN, H. L.: 'Estegomiias em conserva e micróbios de vinha-d'alhos: o Brasil triunfa em Berlim'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VII(3): 569-585, nov. 2000-fev. 2001.

O artigo investiga as circunstâncias que levaram o Brasil a alcançar o primeiro prêmio na XIV Exposição de Higiene e Demografia, em Berlim, em 1907. A partir da inédita correspondência trocada entre Henrique da Rocha Lima e Oswaldo Cruz às vésperas da exposição, é possível observar as agruras do empreendimento à brasileira, onde aquilo que se parecia a uma cuidadosa estratégia revela-se como um turbilhão de acontecimentos, no qual a sorte da participação brasileira dependeu de situações pouco ou nada delineadas por planejamento meticuloso e previdente. A correspondência revela ainda que, se assumidas as narrativas glorificadoras de méritos pessoais, a vitória em Berlim foi muito mais de Rocha Lima que de Oswaldo Cruz. À luz de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, outra questão abordada diz respeito ao embate entre os mundos ibérico e anglo-saxônico na construção e no reconhecimento da vitória brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Oswaldo Cruz, Henrique da Rocha Lima, Manguinhos, ciência e tecnologia, Terceiro Mundo, história e sociologia da ciência.

CUKIERMAN, H. L.: 'Preserved Stegomyia and vinegared microbes: Brazil's triumph in Berlin'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VII(3): 569-585, Nov. 2000-Feb. 2001.

This article investigates the circumstances leading to Brazil being awarded the first prize at the XIV International Conference on Demography and Hygiene, held in Berlin in 1907. An examination of the unpublished correspondence between Henrique da Rocha Lima and Oswaldo Cruz prior to the conference/exhibition reveals the peculiarities of a Brazilian-style event, where the outcome seems to be determined by haphazard incidents rather than by meticulously planned strategies. Their letters can also be read as a narrative celebrating individual qualities, as they attribute the victory in Berlin much more to Rocha Lima's than Oswaldo Cruz's personal merits. In the light of Raízes do Brasil, a classic by Sérgio Buarque de Holanda, this article also addresses the issue regarding the dispute between the Iberian and Anglo-Saxon worlds over the Brazilian victory.

KEYWORDS: Oswaldo Cruz, Henrique da Rocha Lima, Manguinhos, science and technology studies and the Third World, history and sociology of science.

11 "Dir-se-ia que o nosso público sofre de ceticismo do mérito brasileiro, hesita em acreditar nele; e só quando um atestado de valor traz a estampilha do Velho Mundo, é que nos curvamos à verdade" (apud Guerra, 1940, pp. 383-4). Oswaldo Cruz retornava à pátria como semideus e Sales Guerra, em sua biografia, transformaria a premiação em marco referencial: "Data de 1907, do Congresso de Higiene e Demografia de Berlim, a emancipação científica do Brasil, sua reputação de país onde se cultiva ciência autóctone." Assim, estabelecia-se uma cronologia distinguida por duas fases: a de antes e a de depois do prestigiado prêmio, cabendo-lhe a condição de prova cabal do reconhecimento da existência de uma ciência brasileira, ainda que ela nada houvesse descoberto ou inventado. Afinal, o que veio a ser a exposição e como se deu, de fato, a participação brasileira para que fizesse jus à medalha de ouro oferecida pela imperatriz Alexandra da Alemanha? Como fez o Brasil não só para chegar ao topo do pódio como, ainda por cima, alcançá-lo em meio à concorrência com mais 123 expositores, oriundos, na sua quase totalidade, dos países 'civilizados' nos quais pontificava a vanguarda da ciência? Mal se inicia a análise daquela vitória em Berlim e, mais uma vez, já se está diante da perturbadora dificuldade relacionada ao reconheci-mento do mérito brasileiro, além de outra questão, que lhe decorre de certa forma, sobre a existência de uma ciência nativa. Novamente, irrompia a cena brasileira o 'ser ou não ser' de um país que volta e meia perguntava-se, entre envergonhado e esperançoso, se aqui seria ou não o fim do mundo. Para respondê-lo, como se fosse impossível fazê-lo por conta própria, dependia-se de uma aprovação de fora. Sérgio Buarque de Holanda (1966, p. 166, grifos no original) apontou este tipo de dependência quando, ao se referir à propaganda veiculada durante a aurora republicana sobre as vantagens do novo regime, observou que Mais especificamente, de 23 de setembro de 1907 a 12 de outubro de 1907.

22 ) Manguinhos, 'Clayton' refere-se ao aparelho do mesmo nome, capaz de produzir gás sulfuroso e, portanto, utilizado em procedimentos de desinfecção tanto em terra como no mar, especialmente no combate aos estegomiias, graças às propriedades inseticidas do gás.

33 ) a coleção anatomopatológica da peste e febre amarela". A descrição do que deveria ser apresentado sobre a febre amarela reiterava a persistência de Rocha Lima quanto à qualidade visual do material: Nesta carta, Rocha Lima faz alusão a outra carta na qual teria escrito a respeito de Manguinhos: "Sobre Manguinhos já escrevi em outra carta, umas idéias que tenho. Espero(?) mais tarde para não alongar demasiado esta interminável carta" — mas, todavia, não logrei localizá-la.

44 Em todo caso sempre fica qualquer coisa de desagradável e amargoso em tudo isto e o meu desejo é que aí no Rio achem tudo isso desnecessário. "Age direito e não tema ninguém."

55Outra leitura pertinente diz respeito à psicologia do meio científico, alegada pelo próprio cientista, corroborando, mais uma vez, a inadequação da idéia sacralizada a respeito do homem de ciência que o caracteriza como 'sacerdote da objetividade'. O rico inventário de brigas e dissensões ocorridas ao longo da história de Manguinhos evidencia uma comunidade cozida em um caldeirão fervente de vaidades, e quase sempre pouquíssimo afeita à sobriedade estereotipada do ambiente 'asséptico' e 'objetivo' da ciência. Ainda outra leitura poderia destacar o senso estratégico de Rocha Lima em perceber uma oportunidade que logo se esvaziaria, a exata oportunidade da possível equivalência entre os interesses da ciência de vanguarda e a agenda de trabalho da ciência local, alinhavando ambas as redes, a nacional e a internacional, no mesmo e urgente combate às pestes tropicais. Assim, a participação em Berlim serviria para consolidar uma aliança crucial tanto para europeus, necessitados da representação local qualificada de suas práticas científicas, como para brasileiros, para quem o apoio internacional poderia prover finalmente uma base sólida e autônoma de atuação no próprio país, reservando-lhes o devido quinhão de poder e estabilidade, o que, diga-se de passagem, veio mais tarde se mostrar acertado. Por fim, uma leitura mais atenta poderá detetar em meio a angústias psicológicas o difícil esforço de demarcar fronteiras entre o público e o privado, manifesto a partir das dúvidas a respeito dos limites entre o 'bem' de Manguinhos e o 'bem' do próprio cientista. Embora tal esforço demarcatório resulte infrutífero, ainda que amparado pela proverbial sabedoria germânica, tem a relevá-lo a manifestação de hesitações e perplexidades que denotam baixo nível de cinismo no diálogo íntimo entre homens públicos, se tomados os dias de hoje como referência. Mergulhados em um aparato de Estado invadido por interesses particularistas, porém construído para disfarçá-los sob a retórica benemerente do interesse público, aqueles cientistas buscavam estabelecer alguma forma de decoro, tentando resgatar para o serviço público a idéia da impessoalidade tão cara às burocracias estatais do mundo 'civilizado'. Ainda que cercados pela mixórdia brasileira nos negócios públicos, tentavam renegociar fronteiras entre o altruísmo do bem público e a mesquinhez das vontades individuais, pautados por um senso ético um tanto difusamente estatuído pelo provérbio — agir direito e não temer a ninguém — , insinuado como lema de rigorosa obediência a padrões éticos e morais, embora não explicitados, com clareza, quais seriam, afinal, os referenciais a que tratavam de se submeter. Ao final da carta, Rocha Lima retomaria o combate ao sentimento profundamente arraigado nos jeitos e costumes brasileiros de que nenhum esforço valia a pena, usualmente enunciado em um 'para quê?', ou ainda pela aceitação tácita contida em um 'deixa ficar...', entre tantas outras formulações congêneres originárias do forte impulso adaptativo herdado do colonizador português. Esta disposição adaptativa assim como a resistência ao empenho denodado e perseverante havia as observado Sérgio Buarque de Holanda (1987, p. 76) ao comentar a semântica da palavra desleixo: "Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra 'desleixo' — palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como 'saudade' e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que 'não vale a pena...'" Sob o ponto de vista de Rocha Lima, a participação em Berlim era uma questão de vida ou morte para Manguinhos e, portanto, não havia como 'empurrar com a barriga' oportunidade tão preciosa: "Julgo de toda conveniência uma resolução definitiva sobre o assunto, insisto especialmente no fato do Governo ou Manguinhos ou a Saúde, fornecer os meios necessários, evitando as expressões bem conhecidas entre nós 'vamos ver o que se pode fazer' ou 'há de se arranjar'. Neste caso ou tudo ou nada." É sintomático o fato de Rocha Lima dirigir-se indistintamente a três níveis da cúpula governamental — o alto escalão do núcleo de governo, o alto escalão da DGSP e o alto escalão de Manguinhos —, retomando assim o tema da ubiqüidade de Oswaldo Cruz, a figura comum às três instâncias públicas. O cientista do 'aqui-dentro' do laboratório apelava ao cientista do 'lá-fora' da política para que procedesse aos arranjos necessários a fazer com que o dinheiro, a exemplo do que já vinha ocorrendo com a construção do palácio mourisco, fosse devidamente manipulado através dos escaninhos do orçamento público até alcançar o destino apropriado. Diante da habitual desídia de coloração lusitana, Rocha Lima açulava a ambição da grei manguinhense com obstinado espírito de empreendedor anglo-saxão: ou tudo ou nada! Não se pense que o embate entre mundos, o ibérico de um lado e o anglo-saxônio de outro, seja assunto imposto a fórceps pela presente análise. Vale lembrar que continuo seguindo homens de ciência em ação, e que assim fazendo-o, segundo as palavras de Bruno Latour (1987, p. 202), "as pessoas mapeiam para nós e para si mesmas as cadeias de associações que constroem sua sociologia". É justamente da sociologia de cientistas em ação que surgem considerações bastante significativas a respeito da (in)capacidade brasileira de disputar com os 'países civilizados' a disciplina e o rigor da ciência, ou, dito de outra forma, é de sua construção de mundo que surge a sugestão de uma linha divisória entre a descendência ibérica e a anglo-saxônia. Nas homenagens da imprensa pela premiação em Berlim, Sales Guerra (1940, pp. 383-4) recolheu uma série de trechos que bem representam um mundo apartado, porém, segundo ele, em reconstrução graças à acolhida generosa e hospitaleira reservada à ciência em seu desembarque no Brasil: A questão dos tipos ideais encontra sua principal referência na obra de Max Weber (apud Mills e Gerth, 1990).

66 a decidir o que é preciso fazer, sendo muitas coisas dependentes de tempo. O secretário da exposição disse que se admirava de ainda nada ter sido encomendado ao carpinteiro da exposição, que é quem faz as mesas e paredes de madeira, de acordo com as instruções distribuídas. ... Não acha que seria melhor passarmos uns três dias aqui juntos de modo a ficar tudo perfeitamente combinado, saber as dimensões dos objetos de modo que as mesas e suportes tenham as dimensões apropriadas, as molduras que se precisa encomendar, impressos, letreiros etc.? ... temo que à última hora não nos aprontem os letreiros etc., e prejudiquemos assim o nosso sucesso que parece muito provável. O Hoffmann disse-me que o Rubner gostou muito do nosso projeto de exposição. O Dürck gostou imensamente dos mosquitos e pediu-me para mais tarde deixar fotografar (grifos do autor). Luiz de Morais, arquiteto das primeiras instalações de Manguinhos, do seu castelo, da residência particular de Oswaldo Cruz, enfim, o parceiro de Oswaldo Cruz para a construção de prédios destinados à saúde pública, como, por exemplo, o atual Hospital Rocha Maia projetado em 1904 para ser o Desinfectório Central.

77 Arriscaria propor que os cientistas de Manguinhos souberam tirar partido de falsas polaridades — sou bonito (natureza), sou folclórico (cultura) mas não sou inteligente (ciência) — para criar um vasto mercado para a ciência manguinhense, especialmente o próprio mercado nacional. Na linha de 'o trópico é coisa nossa', apresentaram 'produtos' genui-namente tropicais, de mosquitos a madeiras, capitalizando para a ciência manguinhense a homologação de sua qualidade e assegurando-lhe internamente não somente a intensificação da demanda por seus produtos e serviços 'científicos', como sua própria institucionalização, reclamada pelos cientistas como uma providência não só da maior urgência como da maior obviedade: "Diante disso, finalmente, seria impossível que a instituição laureada no estrangeiro continuasse em nossa pátria a mesma vida precária, sem estabilidade, sem garantias, quase sem existência legal" (Dias, 1918, p.18). Ainda a respeito dos armários de peroba, conta Sales Guerra (op. cit, pp. 371, 372) que "viram-se alguns (visitantes) esfregando a ponta do lenço umedecida nas malhas pretas que mosqueavam a madeira, persuadidos de que fossem pintadas, como eram as das outras seções: armários de pinho, pintados de preto, com frisos brancos ou amarelos".

88 Finalmente, outro tema relacionado à exposição é o retorno do herói. Sob o manto da consagração, escondia-se um homem alquebrado, relutante em retornar a sua pátria. As cartas inéditas a sua esposa, bem como as cartas já bastante conhecidas enviadas a seus compadres, dão conta de sinais inquietantes de depressão. Segundo seu amigo João Pedroso em carta a Sales Guerra, a chegada ao Rio de Janeiro, saudada já no porto por um batalhão de pequenas embarcações, parecia a Oswaldo Cruz uma tarefa penosa a cumprir, a tal ponto que o missivista concluía a carta com estes significativos dizeres: "O nosso herói não dá para protagonista de apoteoses" (Guerra, 1940, p. 421). A construção do mito tratou de dispersar a inconfidência, celebrando em seu lugar o triunfo, apenas o triunfo, nada mais que o triunfo: Em 13 de dezembro de 1907, era criado o Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos em substituição ao 'velho' Instituto Soroterápico Federal. O decreto 1.812 que o criava tratou de formalizar sua desvinculação da saúde pública ao estabelecer que o 'novo' instituto — de certa forma, parte da 'novidade' relacionava-se à legitimação daquilo que o 'velho' já vinha realizando —, seria subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Mais ainda, destinou ao 'novo' instituto a atribuição do "estudo das moléstias infectuosas e parasitárias do homem, dos animais e das plantas", explicitando a atividade de pesquisa como uma de suas prerrogativas básicas bem como indicando sua latitude renovada, posto que expandida na direção dos reinos vegetal e animal. Outro importante saldo do prêmio em Berlim foi a celebração, na formalidade da lei, da verba (600:000$) para a construção do castelo mourisco. Aparecia o dinheiro destinado à construção do castelo, que se consagrou na forma da lei como o lar da ciência autóctone.

"não careceu o ilustre cientista nem de um séquito de moços galantes ...

nem de bota-fora brilhante. ...

Conduzia S. Excia. apenas,

para falar do Brasil e do seu adiantamento,

o resultado de seu estudo e alguns estegomiias em conserva e micróbios

de vinha-d'alhos" (apud Guerra, 1940, p. 387).

O Rio de Janeiro, ansioso e engalanado, aguardava a volta do outrora polemíssimo, ora festejadíssimo diretor da Saúde Pública, cuja chegada ao Cais Pharoux, a bordo do Amazon, estava prevista para a tarde de 10 de fevereiro de 1908. Unânime, a imprensa convocava a população da Capital Federal para recebê-lo em êxtase patriótico, consagrando-o como legítimo herói nacional graças à conquista — a 'sua' conquista — do primeiro prêmio na XIV Exposição de Higiene e Demografia, realizada em Berlim de setembro a outubro de 1907:

na realidade, porém, foi ainda um incitamento negador o que animou os propagandistas: o Brasil devia entrar em novo rumo, porque 'se envergonhava' de si mesmo, de sua realidade biológica. Aqueles que pugnaram por uma vida nova repre-sentavam, talvez, ainda mais do que seus antecessores, a idéia de que o país não pode crescer pelas suas próprias forças naturais: deve formar-se de fora para dentro, deve merecer a aprovação dos outros.

No caso dos nossos cientistas, não era pouca bobagem a estampilha do Velho Mundo, que premiava a 'ciência autóctone' por sua competência, mas também por sua generosidade e hospitalidade para com a ciência internacional.

A inserção da comunidade de higienistas brasileiros em sua correspondente internacional vinha sendo trabalhada desde os primórdios de Manguinhos. Destacam-se nesta trajetória rumo à aprovação internacional desde os cuidados obsessivos com os rigores da técnica, vividos no interior do laboratório já nos seus primeiros tempos, ao zelo extremado na realização da campanha contra a febre amarela, na qual não somente se ofereceu à cidade a ciência como também foi oferecida à ciência a própria cidade, com o beneplácito das comissões francesa e alemã que por aqui estiveram para corroborar os esforços nativos de saneamento da Pestópolis tropical. Mais ainda, os principais centros europeus eram freqüentemente abastecidos de material relacionado às moléstias tropicais enviados por Manguinhos, de forma que, às vistas da ciência de vanguarda do além-mar, o Brasil tinha lhe prestado grandes serviços, e serviços de alta qualidade até porque os cientistas locais vinham sendo treinados por eles mesmos, os cientistas do primeiro time, a começar pelo próprio chefe Oswaldo Cruz, em cuja formação reluzia uma permanência no Instituto Pasteur, suficiente para garantir as conexões necessárias na obtenção do importante endosso daquele instituto à produção de Manguinhos e às ações da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP). Nesse sentido, o treinamento no estrangeiro era peça básica na construção de familiaridades com a comunidade internacional, mais uma vez destacando-se a figura de Henrique da Rocha Lima, que, se havia sido importante para os primeiros tempos do laboratório graças ao seu treinamento alemão, seria o grande articulador da vitória brasileira em Berlim a partir de sua segunda estada naquele país, iniciada no segundo semestre de 1906. É ele a quem iremos seguir nos próximos parágrafos, e é de sua pena epistolar, revelada por um maço de cartas inéditas que localizei nos arquivos da Casa de Oswaldo Cruz (COC), que será possível vislumbrar com mais nitidez os meandros da consagração internacional em Berlim.

Rocha Lima viajou para uma temporada em Munique, a fim de trabalhar com Hermann Dürck, renomado docente de anatomia patológica da Universidade de Iena e prosector do Instituto Patológico anexo ao Hospital de Munique, e é de lá que Rocha Lima escreveria a Oswaldo Cruz, ao longo de 1906 e 1907, as várias cartas que analisaremos a seguir. Uma delas, escrita em 19 de dezembro de 1906, mostra bem a familiarização de Manguinhos, sua produção e sua gente, com o seleto ambiente da ciência internacional:

... Na semana passada o Dürck fez uma conferência, muito concorrida, sobre moléstias tropicais, expondo um dos meus preparados de febre amarela, e fazendo passar de mão em mão um casal de stegomya, que o Neiva mandou. Gostei disto por causa das etiquetas da seção entomológica de Manguinhos, que eram lidas pacientemente por quase todos.

A preocupação maior consistia em conferir visibilidade internacional ao trabalho de Manguinhos, uma visibilidade que nesta carta é creditada à legibilidade de sua produção por obra e graça de etiquetas bem preparadas. A qualidade do material gráfico era ponto de honra para ambicionar a tão sonhada acolhida na rede internacional da ciência, cujos materiais dados à circulação, segundo Rocha Lima, primavam pelo esmero visual:

...e lhe envio uns folhetinhos do Instituto Pasteur e do Instituto de Berna. De uma coisa análoga e não daqueles péssimos álbuns sem o menor esclarecimento, com uns títulos em português que ninguém entende, de um folheto assim, em duas edições, uma francesa e outra alemã, com boas fotografias, é que nós precisamos. Uma descrição semelhante a do seu relatório, mas feita para entendidos, com plantas por exemplo da enfermaria mostrando os esgotos separados, e os demais requintes de perfeição ali (no Instituto de Manguinhos) introduzidos. Isto causa boa impressão aqui. Um livrinho assim poder-se-ia distribuir abundantemente, ao passo que os álbuns só poderei dar a quem tenho uma certa intimidade, pois para que querem os demais uma série de más fotografias cuja significação não poderão compreender pelo título em português? (carta de 7.9.1906).

Dar publicidade ao trabalho da ciência autóctone, esta era a questão crucial, a qual Rocha Lima tratava amiúde em suas cartas como 'fazer reclame de Manguinhos': "Eu, que até então me tinha acanhado e só a algumas pessoas mostrado os nossos álbuns, aproveitei a ocasião e fiz um bom reclame" (carta de 23.10.1906).

Tive assim ocasião de travar relações com todos e mostrar que não somos macacos, tomando sempre parte nas discussões e fazendo sempre objeções, que felizmente sempre aceitas deram-me duas espécies de satisfação, uma íntima, vendo que com os nossos estudos não estamos atrasados, outra menos modesta, de fazer reclame de Manguinhos desde as pequenas questões de técnica até as altas questões de imunidade (carta de 7.11.1906).

Rocha Lima procurava arquitetar algo como o 'lançamento internacional' de Manguinhos, fazendo daquele cientista o principal publicista da ciência autóctone.

Na aurora do século XX, Rocha Lima parecia compreender à perfeição as palavras escritas quase um século mais tarde por Michel Callon (1989, p. 22): "As duas propriedades que caracterizam o fato científico — a capacidade de resistir à crítica e a faculdade de interessar outros atores (colegas, usuários) — não lhe pertencem de fato: elas lhe são atribuídas pelas redes negociadas e mobilizadas para construí-lo e para fornecer-lhe um espaço de circulação." Compreendia, portanto, que fazer ciência implicava não só produzi-la mas também fazê-la circular. Por conta deste último desafio, o de fazer a ciência manguinhense correr de mão em mão pelos principais centros científicos da Europa, que o nosso 'publicista-mor' não deixou passar em branco a oportunidade de uma viagem aos principais institutos de Berlim, na eminente companhia de Dürck, para assuntar a respeito da XIV Exposição de Higiene e Demografia. A esse respeito, escreveria em 7 de novembro de 1906:

De novo se referiu o Ficker à inauguração da seção da peste lamentando que eu tenha que voltar para Munique. Indagando do Congresso de Higiene, ele ficou entusiasmado e insiste sempre que eu o encontro na conveniência da tal exposição, quer até que eu faça um vortrag sobre a questão do carbúnculo sintomático. Espontânea e imediatamente escreveu ao secretário da exposição para que convidasse a Diretoria de Saúde e o nosso instituto. Sei que poucos foram os convites feitos o que dá mais valor aos nossos. Também se ofereceu o Ficker para me apresentar ao redator do Central Glatts Bakt para que eu faça os referate dos trabalhos brasileiros.

Evidente que para usufruir de tamanha oportunidade, ajudava-o aquilo a que já me referi, a saber, a familiaridade pessoal com cientistas de renome, obtida a partir do treinamento em suas instituições de origem. Neste caso, graças às suas passagens pelos centros alemães de pesquisa, Rocha Lima representava em Manguinhos a vertente germânica da ciência internacional.

Contudo, o que mais impressiona são suas questões e proposições relativas à participação brasileira, esboçadas em linhas gerais em carta de 7 de novembro de 1906, deixando transparecer sua extraordinária e multifária antevisão do que acabou se concretizando, quase um ano depois, por ocasião da inauguração da exposição. Sua visão de estrategista, aliada à sua capacidade de articulação, mais uma vez evidenciam a potência de sua contribuição para a construção de Manguinhos, àquele momento na iminência de se consagrar no circuito ultrafechado dos bambambãs europeus.

O próximo passo corresponde à investigação, por partes e com algum vagar, do referido esboço geral de Rocha Lima, a começar pela sintética problematização inicial: "Passemos agora a uma questão delicada e que me tem incomodado ... por isso peço resolva o mais rapidamente sobre o assunto. Trata-se da célebre Exposição de Higiene. Isto divide-se em três partes: 1) se há vantagem em tomarmos parte na exposição; 2) o que devemos fazer; 3) considerações psicológicas." O primeiro quesito é respondido imediata e concisamente: "Acredito que só há vantagem ... se, tomando a coisa a sério, apresentarmo-nos em condições de rivalizar com os outros países. Para ficar como um qualquer modesto país atrasado, é inútil gastar tempo e dinheiro. Temos elementos para sucesso? Acho que sim, pelo que aqui tenho observado." Assim, sem perder tempo, Rocha Lima foi direto ao cerne da questão, de maneira curta e grossa: se era para participar, que fosse para ganhar, recusando, portanto, qualquer tipo de folclorização e de autocomplacência. Mesmo porque, segundo sua avaliação, havia chances de sucesso, e é através da exploração destas chances que procura responder em seguida ao segundo quesito — o que devemos fazer —, começando, evidentemente, pelo básico, ou seja, os recursos para investir na participação brasileira bem como a seleção adequada do que mostrar:

Não basta porém que tenhamos, como temos, o essencial. É preciso e indispensável que ao que temos demos uma forma apresentável e de acordo com o fim a que se destina. Para isto é preciso antes de tudo 'dinheiro', para transporte, instalações, confecção de modelos, figuras etc. Segundo, é preciso saber escolher o que convém apresentar, e sobre isto posso dar conselhos, que são o resultado da observação que nesse sentido tenho feito.

Isto posto, passou ao rascunho do mapa da participação brasileira, usufruindo as informações garimpadas através de sua proximidade com os mandachuvas da exposição: "antes de tudo, devo dizer que o secretário da exposição disse-me que não desejam muita coisa, muita figurinha etc. mas sim coisas novas e expostas resumidamente". Propôs, então, as três coisas que deveriam interessar a todos, "e que podemos apresentar sem receio: 1) serviço de febre amarela (Clayton incl.),

lembro em primeiro lugar estatísticas sob a forma de colunas ou curvas bem visíveis (tudo em ponto grande, 50cm x 50cm), também duas plantas do Rio com as cruzes marcando os casos, uma no último ano antes do serviço, outra do ano corrente. Os dizeres em alemão, letras grandes; ... Acho que todos estes quadros devem ficar ao redor de uma mesa tendo no centro o modelo de uma casa cortada ao meio em que se veja um serviço de expurgo, com todos os detalhes, desde os calafetos até as frigideiras. ... Ao lado desta casa convém ter uma boa e grande fotografia de um expurgo, escolhendo-se um caso bem demonstrativo, como em uma casa pequena envolvida em panos etc. Modelos dos tambores e dos quartos de isolamento no hospital, assim como no isolamento em domicílio. Uma boa fotografia e desenho explicativo do serviço do Clayton em terra e no mar. Tudo com o número de vezes que se fez o serviço."

A seguir, torna a insistir na confecção de folhetos "Convinha que fosse escrito um folheto, semelhante ao que lembrei para Manguinhos, descrevendo a organização e os resultados dos serviços de higiene no Rio. Acho que não pode aparecer melhor ocasião de chamar a atenção para o Brasil, de um modo honroso para nós". Finalmente, recomenda a exibição caprichada do protagonista da febre amarela, o mosquito, a quem deveria caber a distinção de "uns bons desenhos em ponto grande do stegomya, larva, ninfa, ovos — outros mosquitos do Brasil. Exemplares montados, se possível vivos." A exibição triunfal do inimigo subjugado pela ciência autóctone serviria não somente à celebração da campanha vitoriosa da febre amarela, trabalho efetivo da DGSP, como também à sanção da teoria culicídea por parte da ciência internacional ali reunida. O Rio de Janeiro era a prova irrefutável da teoria culicídea, e a DGSP, na condição de comandante-em-chefe do saneamento da Pestópolis tropical, tinha condições efetivas de se consagrar internacionalmente.

A terceira coisa a ser mostrada, a coleção anatomopatológica da peste e da febre amarela, a depender da apreciação de Rocha Lima, poderia ser outra vedete da seção brasileira: "é mais um elemento para chamar a atenção para nós; porque, como sabe, todos aqui se interessam muito por anatomia patológica, e depois a febre amarela é completamente desconhecida, e de peste a melhor coleção, que é a do Dürck, é muito inferior à nossa. O Instituto do Uhlenhut vai expor os órgãos de animais tuberculosos, os mesmos que já andaram por outras exposições." Frente ao déjà vu da tuberculose, a 'vantagem comparativa' das pestes tropicais era imensa e, coisa extraordinária, estava bem ao alcance das mãos, pois, afinal, a Pestópolis era 'coisa nossa', como o eram os cientistas que se ocupavam em recolher e analisar as vísceras dos cadáveres empilhados pela febre amarela e pela peste na Capital Federal. Rocha Lima sabia muito bem que seria irresistível aos maiorais da ciência a sedução e o encanto da fartura de peças anatomopatológicas que ainda não constavam nos arquivos dos principais centros científicos europeus.

Agora, as considerações psicológicas, peça de raro teor confessional, espécie de acerto de contas de sentido ético surpreendente:

Estas precisam ser feitas por mim antes que alguém julgue ter feito uma grande descoberta. Eu conheço bem a psicologia do nosso meio. Será mesmo por patriotismo, desejo de aproveitar uma boa ocasião de salientar o Brasil e Manguinhos, convicção de que estas questões agora ainda na atualidade breve perderão o interesse, que me interesso e procuro interessá-lo nesta questão? Ou um sentimento egoísta é a mola que impulsiona esse interesse? Não será, porque devido às relações e outras facilidades que aqui tenho, e daí a evidente conveniência de, por causa da exposição, demorar-me eu mais tempo aqui do que pretendia, não será por isso que afeto tanto patriotismo? Estou neste caso como o senhor, com a organização de Manguinhos. Mesmo a opinião do Ficker é suspeita, porque pode ser o desejo que ele tem da minha companhia, as boas relações de amizade etc., que o levem a se interessar pelo nosso comparecimento. Enfim, mais uma vez procurando seguir o seu exemplo, digo: 'thue recht und scheue niemand'.
Neste ponto, a análise epistolar comporta algumas leituras 'exegéticas', a começar pela constatação de que a pessoalidade não era exclusividade do brasileiro cordial. Também ao cidadão alemão poderia ocorrer algum nível de transbordamento de "um fundo emotivo extremamente rico" (Holanda, 1996, pp. 147, 44-5), compondo, pelo seu desejo de companhia e boas relações de amizade, o esboço germânico de uma figura cordial, como que a alertar sobre os riscos de esquemas analíticos rigidamente dualistas, riscos aliás não ignorados por Sérgio Buarque de Holanda quando enfatiza que tipos em estado puro não "possuem existência real fora do mundo das idéias".

somos um povo forte, que sabe executar o que quer, e que está hoje absolutamente livre do relaxamento moral que o deprimia! ... País latino, de imaginação mais que ardente — e podemos mesmo dizer escaldada — o Brasil se acostumou a contar sempre e principalmente, entre as suas maiores glórias, os triunfos oratórios. ... Ao passo que o trabalho do dr. Oswaldo Cruz é a conquista positiva, sem exageros de fantasia, a conquista real e pura da vitória científica.

Artur Neiva, em discurso dirigido a seus colegas argentinos, também reafirmaria a existência da separação entre mundos, porém, otimista como era o costume daquele momento, aproveitaria a ocasião para estender o raio de alcance do desembarque da ciência a toda América do Sul: "só aquele que não assistiu ao esforço extraordinário que fomos capazes de desenvolver naqueles meses em que nos ocupamos dos preparativos para a exposição universal de higiene em Berlim, poderá ser pessimista quanto ao espírito de organização e empresa que possui o americano do sul". Somos latinos, americanos do sul, brasileiros, e, apesar destes condicionantes — ou seriam vergonhas? —, temos uma inequívoca vocação para a ciência, segundo queriam orgulhosamente afirmar nossos cientistas.

Ou tudo ou nada!, rosnava ameaçador o cão anglo-saxônio ao vislumbrar no horizonte a caravana luso-ibérica que se aproximava. Todavia, as próximas cartas de Rocha Lima compõem um repertório de angústias e tensões que bem revelam as agruras do empreendimento à brasileira, deixando à mostra o simulacro de organização que a exaltação do sucesso, aproveitando o ensejo de ter sido elaborada a posteriori da premiação, tratou de vender como a redenção da brasilidade. Sigamos a exposição enquanto era preparada, e vejamos com quantos paus se fez a canoa que atravessou o Atlântico para, em uma espetacular inversão, fazer nossos cientistas desembarcarem em solo europeu.

A lenta agonia de Rocha Lima anunciava-se pelas primeiras apreensões manifestas em sua carta a Oswaldo Cruz, de 2 de fevereiro de 1907:

...pensei que a resposta oficial já tivesse chegado a Berlim, visto das cartas que neste sentido lhe escrevi. Insisti, de acordo com as palavras do convite, em que mandasse dizer o espaço necessário para nós, pois não sei o que pretende expor, nem tenho autorização para fazer qualquer comunicação oficial. O mais que me foi possível fazer foi escrever uma carta particular ao dr. Hoffmann dizendo que era muito provável que comparecêssemos, e que me mandasse dizer até quando devia chegar a resposta oficial, para em caso de urgência telegrafar; a resposta demorou e quando aqui chegou calculei que, à vista das minhas cartas, a tal sua resposta já estaria em caminho e não valia portanto a pena telegrafar. A vista de sua carta sou obrigado a passar um telegrama pedindo que com urgência responda oficialmente e diga o espaço que precisa.

O tom se tornaria ainda mais grave e sombrio na carta enviada um mês depois, em 7 de março:

Aqui cheguei ontem e fui imediatamente procurá-lo (o dr. Hoffmann) tendo, como era de se esperar, a notícia de que a comissão luta com falta de espaço devido às numerosas adesões e pedidos que tem recebido, de modo que teríamos que nos contentar com três metros de parede na qual cabe (?) uma mesa de um metro de largura. Insisti muito em obter pelo menos cinco metros e ele disse-me que talvez fosse possível, mas que era indispensável fazer uma comunicação por escrito descrevendo cada objeto ou quadro a expor com as dimensões de cada um. Imagine em que apuros estou eu metido, sem ter recebido uma só instrução sua, sem ter a menor idéia do que é possível fazer quanto a quadros, fotografias ou estatística. Lamento que nada me tenha escrito sobre o assunto. ... Todos os outros convidados para a exposição já responderam, com todos os detalhes; por isso obtiveram mais e melhores lugares do que nós. Há porém já quase seis meses que lhe escrevi sobre o assunto ... . Peço-lhe encarecidamente que, sobre o que devemos fazer, escreva decisivamente, sem pouco mais ou menos, fotografia por fotografia, quadro por quadro, objeto por objeto, de modo que ainda em tempo possa corrigir ou modificar o que agora, às pressas e sem base, sou obrigado a comunicar (grifos do autor).

Faltavam somente seis meses para a inauguração da exposição, e a participação brasileira estava longe de ser definida. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, apenas o voluntarismo de um cientista à beira de um ataque de nervos. Portanto, a única chance da ciência brasileira seria a de 'pegar no tranco'. O que parecia uma estratégia bem montada revela-se um turbilhão de acontecimentos, no qual a sorte da participação brasileira dependia, ao contrário do que a mitificação pós-prêmio quis fazer crer, de situações pouco ou nada delineadas por um planejamento racional feito à base de metas e cronogramas bem assentados.

Entretanto, é bom permanecer alerta quanto à tentação de inculpar uma suposta esculhambação brasileira pelas dificuldades em fazer valer uma ação responsável e coordenada, somente possível mediante a estrita obediência a um esquema predeterminado por uma visão previdente e estruturadora, a saber, por uma visão 'civilizada' de mundo. Há mais do que apenas Brasil nesta questão, pois, de fato, faz parte dos chamados mecanismos de atribuição de mérito, desenvolvidos, diga-se de passagem, por uma certa história 'civilizada', imputar aos gênios da ciência uma racionalidade triunfante, fazendo crer na existência de estratagemas desenhados com o máximo rigor, os quais seriam responsáveis, em última instância, por consagrá-los como campeões da modernidade científica. Entretanto, a produção do conhecimento científico, em vez de se submeter placidamente a uma racionalidade controladora, mostra-se instável e caótica, compondo um cenário onde cada ator tenta sumariar o que estão fazendo todos os demais, assim buscando conferir algum sentido ao caos. Evidentemente que se coloca a necessidade de uma direção global, a qual, embora idealizada a princípio como parte de um projeto predefinido, constitui-se primeiramente como um espaço de negociação. É justamente a atuação sumariante dos atores e a negociação de uma direção global que constituem aquilo que Bruno Latour (1988, p. 259) conceitua como estratégia, dissociando-a dos significados voltados ao culto de uma suposta previdência de gente precavida e moderna.

Rocha Lima logo tratou de adaptar seu 'tudo ou nada' às condições brasileiras, e assim, não sem uma boa dose de cordialidade, baixou a guarda para se ajustar de forma mais eficiente à caravana luso-ibérica que, mesmo aos trancos e barrancos, prosseguia sua marcha rumo a Berlim. Uma atitude mais 'moderada' é o que se observa em sua carta a Oswaldo Cruz, datada de 10 de maio, de tom bem mais conciliador:

Sei perfeitamente que a culpa da demora não é sua mas compreende que tendo chegado a Berlim e vendo com que antecedência e minuciosidade os institutos europeus haviam comunicado o seu comparecimento, e tendo de resolver sem saber com o que poderia contar, e, devido às grandes distâncias, temendo um atraso que nos causasse um completo insucesso, procurei vivamente exprimir a necessidade de agir com urgência. Fui infeliz no estilo, desculpe a rudeza das expressões.

Rocha Lima parecia ter se convencido de que, por conta de uma espécie de destino fatal, antecedência e minuciosidade não tinham lugar na vida brasileira, de sorte que, uma vez selado seu armistício com essa maneira de ser carente daqueles valores referenciais europeus, prosseguiu com suas propostas a respeito dos próximos passos necessários à montagem da exposição, conforme escreveu em 22 de agosto e, portanto, já às vésperas de sua inauguração:

na minha opinião, havia grande conveniência de quanto antes nos reunirmos aqui, vindo também o Morais,

O modo encontrado para instaurar a urgência foi colocá-la em uma voz estrangeira, deslocando sua óbvia censura para uma fonte mais autorizada, a dos cientistas alemães, representantes máximos da Europa civilizada. O artifício dá bem a dimensão do pânico do pobre Rocha Lima, vendo a hora chegar sem que peças básicas tivessem sido providenciadas, ainda mais quando, em sua avaliação, as chances brasileiras eram consideráveis, conforme sua intimidade com os senhores da exposição permitia-lhe entrever. Em tempo, Rubner, que havia sido professor de Rocha Lima, era nada mais nada menos que o presidente do júri da exposição.

Todavia, contrariando as angústias e expectativas de Rocha Lima, Oswaldo Cruz estava a caminho, e, em 27 de agosto, escreveu já de Berlim a sua esposa, dona Miloca, dando conta de possibilidades bem mais sombrias quanto à participação brasileira, reforçadas ainda pelas cartas de final de agosto e início de setembro: "Hoje empreguei todo o dia a tratar da exposição. ... O tempo está muito escasso e tenho receio de um insucesso" (carta de 27.8.1907). "Vou me familiarizando com a língua e creio que, se outro lucro não me trouxer a viagem, ao menos este terei" (carta de 1.9.1907) O otimismo de um e o pessimismo de outro dão bem a medida da ausência daquela idéia de estratégia enquanto plano bem urdido destinado a sintonizar e a coordenar todos os esforços numa direção previamente determinada. Não que não houvesse o plano, nem que não houvesse uma meta a alcançar, mas apenas que sua consecução se deu, conforme as cartas bem o revelam, de maneira muito mais ziguezagueante e contraditória do que se poderia imaginar a princípio. E que, se assumidas as narrativas glorificadoras de méritos pessoais, a vitória em Berlim, analisada ao longo de sua construção, foi muito mais a vitória pessoal de Rocha Lima que a de Oswaldo Cruz. Quem confirma isso é o próprio Oswaldo Cruz, quando, em carta de 25 de outubro de 1907, escreveria a João Pedroso sobre a vitória em Berlim que

foi tudo muito simples: o Rocha Lima, com as excelentes relações que tem aqui, obteve-nos os melhores lugares e fez uma propaganda lenta pela palavra ... . O terreno estava amanhado ... assim foi ganha a batalha, cujos louros competem ao Rocha Lima e Vasconcelos, sobretudo, em parte ao Morais. E eu, em tudo isso, representei o papel de 'medalhão', colhendo os frutos sazonados e saborosos da sementeira feita por aqueles cujos nomes foram esquecidos (Fraga,1972, pp. 132-3).

Finalmente, chegara o grande dia:

O congresso foi aberto ontem. Tem sido uma verdadeira amolação de festas. Nossa exposição tem causado um verdadeiro sucesso. Todos dizem que julgavam que no Brasil nunca se poderia trabalhar do modo por que o fazemos. O Rubner e o Ficker, professores de higiene, fizeram as melhores referências a nós e trataram-me com as maiores distinções" (carta de Oswaldo Cruz a Miloca, 24.9.1907).

Se até aqui preocupei-me em narrar as marchas e contramarchas de seus preparativos, cabe agora perguntar em que consistiu, no final das contas, a tal participação brasileira na exposição, passando ao exame da mesma, o que farei a seguir de forma extremamente sucinta, apenas tocando em assuntos que ainda terão de ser melhor desenvolvidos em futuras análises.

Talvez o que de mais importante ainda reste por ser esmiuçado quanto à participação brasileira é que, embora capitalizada como a vitória da ciência autóctone, o abre-alas levado ao pavilhão berlinense da modernidade não era formado pela alta ciência da grei manguinhense, mas sim pela vitoriosa campanha de uma burocracia pública a qual, apesar da rusticidade dos longínquos e 'incivilizados' trópicos, soube domar o império mortífero da febre amarela e seus súditos culicídeos. Para melhor entendê-lo, basta constatar em que seções o Brasil se fez presente: a de Bacteriologia Geral, Doenças Contagiosas e Vacinação Preservativa, a de Construção de Hospitais e Desinfecção e a de Estatística de Higiene, das Doenças e da Mortalidade, sendo que estas duas últimas eram diretamente vinculadas ao trabalho 'tecnológico' da DGSP, de sorte que é na seção de Bacteriologia que a ciência de Manguinhos foi 'contrabandeada' para o interior da exposição. Como Rocha Lima já havia previsto, o show manguinhense ficaria especialmente por conta de suas peças de anatomia patológica, de sorte que, ao que tudo indica, a participação brasileira em Berlim era mais um daqueles formidáveis espetáculos da dupla Manguinhos-Saúde Pública, no qual o laboratório aparecia como coadjuvante em um palco ocupado pelo 'vedetismo' da instituição governamental de saúde pública.

A descrição de Sales Guerra (1940, pp. 371, 370) ajuda a visualizar a participação brasileira, onde a meticulosidade de Oswaldo Cruz não teria sequer descuidado de "fazer propaganda de nossas madeiras mais preciosas. Os armários e outros móveis da seção brasileira, encimados das armas nacionais, foram talhados em peroba, das espécies mais vistosas que excitavam a curiosidade dos visitantes." A seção brasileira destacava-se pela "variedade e originalidade dos objetos expostos ... todos eles peculiares aos climas tropicais. ... os congressistas contemplavam pela primeira vez peças anatomopatológicas de moléstias desconhecidas de muitos, insetos hematófagos, preparações microscópicas, a representação de ciclos evolutivos completos de protozoários que conheciam apenas de leitura ... idos de um país sem reputação científica, que não julgavam capaz de tais primores."

Afinal, a quem caberiam tais primores? Quem seria a estrela fulgurante da seção pátria: a dadivosa natureza do país, rica em desconhecidos insetos, micróbios e madeiras preciosas, ou sua reputação científica? A peculiaridade dos trópicos ou a ciência autóctone? A estratégia brasileira para a exposição trafegava habilmente pela via folclórica da curiosidade, chegando mesmo a reforçá-la através de outdoor daquele que seria um dos nossos grandes patrocinadores: "desenhado em ponto grande e colorido ... a imagem trinta vezes aumentada do stegomya ... assim como o ovo, a larva e a pupa do mesmo mosquito, com igual aumento".

Uma onda de enorme orgulho e satisfação percorre os centros intelectuais brasileiros ... Distante da pátria estremecida, ouvindo as palavras e as exclamações que festejam e exaltam o nome do Brasil; recebendo as insígnias e os símbolos que recordarão eternamente os frutos de uma inspiração que a fortuna abençoara, Oswaldo Cruz revê aquele recanto de praia, entre marnéis, no cimo de uma ondulada eminência, que a constância dos seus esforços e a fé dos seus compa-nheiros e discípulos transformava no mais belo dos monumentos erguidos à inteligência nacional (Serpa, 1937, p. 233).

FONTES MANUSCRITAS

Oswaldo Cruz Fundo I, Rio de Janeiro, COC/Fiocruz. Oswaldo Cruz Fundo II, Rio de Janeiro, COC/Fiocruz.

FONTES IMPRESSAS

Arquivos

Biblioteca Nacional.

Instituto de Manguinhos, Arquivo Institucional e Biblioteca, COC/Fiocruz.

Recebido para publicação em maio de 2000.

Aprovado para publicação em agosto de 2000.

  • Callon, Michel (org.) 1989 La science et sés réseaux. Paris, La Découverte.
  • Dias, Ezequiel 1918 O Instituto Oswaldo Cruz resumo histórico (1899-1918). Rio de Janeiro, Manguinhos.
  • Fraga, Clementino 1972 Vida e obra de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, José Olympio.
  • Guerra, E. Salles 1940 Oswaldo Cruz Rio de Janeiro, Vecchi, p. 387.
  • Holanda, Sérgio Buarque de 1996, 1987 Raízes do Brasil 26Ş ed. e 19Ş ed., Rio de Janeiro, José Olympio.
  • Latour, Bruno 1988 The Pasteurization of France. Massachusetts, Harvard University Press.
  • Latour, Bruno 1987 Science in action. Massachusetts, Harvard University Press.
  • Mills, C. Wright e Gerth, Hans H. 1990 From Max Weber: essays in sociology. Nova York, Oxford University Press, pp. 59f, 294, 323f.
  • Serpa, Phocion 1937 A vida gloriosa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, s.e.
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    "Dir-se-ia que o nosso público sofre de ceticismo do mérito brasileiro, hesita em acreditar nele; e só quando um atestado de valor traz a estampilha do Velho Mundo, é que nos curvamos à verdade" (
    apud Guerra, 1940, pp. 383-4). Oswaldo Cruz retornava à pátria como semideus e Sales Guerra, em sua biografia, transformaria a premiação em marco referencial: "Data de 1907, do Congresso de Higiene e Demografia de Berlim, a emancipação científica do Brasil, sua reputação de país onde se cultiva ciência autóctone." Assim, estabelecia-se uma cronologia distinguida por duas fases: a de antes e a de depois do prestigiado prêmio, cabendo-lhe a condição de prova cabal do reconhecimento da existência de uma ciência brasileira, ainda que ela nada houvesse descoberto ou inventado. Afinal, o que veio a ser a exposição e como se deu, de fato, a participação brasileira para que fizesse jus à medalha de ouro oferecida pela imperatriz Alexandra da Alemanha? Como fez o Brasil não só para chegar ao topo do pódio como, ainda por cima, alcançá-lo em meio à concorrência com mais 123 expositores, oriundos, na sua quase totalidade, dos países 'civilizados' nos quais pontificava a vanguarda da ciência?
    Mal se inicia a análise daquela vitória em Berlim e, mais uma vez, já se está diante da perturbadora dificuldade relacionada ao reconheci-mento do mérito brasileiro, além de outra questão, que lhe decorre de certa forma, sobre a existência de uma ciência nativa. Novamente, irrompia a cena brasileira o 'ser ou não ser' de um país que volta e meia perguntava-se, entre envergonhado e esperançoso, se aqui seria ou não o fim do mundo. Para respondê-lo, como se fosse impossível fazê-lo por conta própria, dependia-se de uma aprovação de fora. Sérgio Buarque de Holanda (1966, p. 166, grifos no original) apontou este tipo de dependência quando, ao se referir à propaganda veiculada durante a aurora republicana sobre as vantagens do novo regime, observou que
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    ) Manguinhos,
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    ) a coleção anatomopatológica da peste e febre amarela".
    A descrição do que deveria ser apresentado sobre a febre amarela reiterava a persistência de Rocha Lima quanto à qualidade visual do material:
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    Em todo caso sempre fica qualquer coisa de desagradável e amargoso em tudo isto e o meu desejo é que aí no Rio achem tudo isso desnecessário.
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    Outra leitura pertinente diz respeito à psicologia do meio científico, alegada pelo próprio cientista, corroborando, mais uma vez, a inadequação da idéia sacralizada a respeito do homem de ciência que o caracteriza como 'sacerdote da objetividade'. O rico inventário de brigas e dissensões ocorridas ao longo da história de Manguinhos evidencia uma comunidade cozida em um caldeirão fervente de vaidades, e quase sempre pouquíssimo afeita à sobriedade estereotipada do ambiente 'asséptico' e 'objetivo' da ciência. Ainda outra leitura poderia destacar o senso estratégico de Rocha Lima em perceber uma oportunidade que logo se esvaziaria, a exata oportunidade da possível equivalência entre os interesses da ciência de vanguarda e a agenda de trabalho da ciência local, alinhavando ambas as redes, a nacional e a internacional, no mesmo e urgente combate às pestes tropicais. Assim, a participação em Berlim serviria para consolidar uma aliança crucial tanto para europeus, necessitados da representação local qualificada de suas práticas científicas, como para brasileiros, para quem o apoio internacional poderia prover finalmente uma base sólida e autônoma de atuação no próprio país, reservando-lhes o devido quinhão de poder e estabilidade, o que, diga-se de passagem, veio mais tarde se mostrar acertado.
    Por fim, uma leitura mais atenta poderá detetar em meio a angústias psicológicas o difícil esforço de demarcar fronteiras entre o público e o privado, manifesto a partir das dúvidas a respeito dos limites entre o 'bem' de Manguinhos e o 'bem' do próprio cientista. Embora tal esforço demarcatório resulte infrutífero, ainda que amparado pela proverbial sabedoria germânica, tem a relevá-lo a manifestação de hesitações e perplexidades que denotam baixo nível de cinismo no diálogo íntimo entre homens públicos, se tomados os dias de hoje como referência. Mergulhados em um aparato de Estado invadido por interesses particularistas, porém construído para disfarçá-los sob a retórica benemerente do interesse público, aqueles cientistas buscavam estabelecer alguma forma de decoro, tentando resgatar para o serviço público a idéia da impessoalidade tão cara às burocracias estatais do mundo 'civilizado'. Ainda que cercados pela mixórdia brasileira nos negócios públicos, tentavam renegociar fronteiras entre o altruísmo do bem público e a mesquinhez das vontades individuais, pautados por um senso ético um tanto difusamente estatuído pelo provérbio — agir direito e não temer a ninguém — , insinuado como lema de rigorosa obediência a padrões éticos e morais, embora não explicitados, com clareza, quais seriam, afinal, os referenciais a que tratavam de se submeter.
    Ao final da carta, Rocha Lima retomaria o combate ao sentimento profundamente arraigado nos jeitos e costumes brasileiros de que nenhum esforço valia a pena, usualmente enunciado em um 'para quê?', ou ainda pela aceitação tácita contida em um 'deixa ficar...', entre tantas outras formulações congêneres originárias do forte impulso adaptativo herdado do colonizador português. Esta disposição adaptativa assim como a resistência ao empenho denodado e perseverante havia as observado Sérgio Buarque de Holanda (1987, p. 76) ao comentar a semântica da palavra desleixo: "Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra 'desleixo' — palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como 'saudade' e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que 'não vale a pena...'" Sob o ponto de vista de Rocha Lima, a participação em Berlim era uma questão de vida ou morte para Manguinhos e, portanto, não havia como 'empurrar com a barriga' oportunidade tão preciosa: "Julgo de toda conveniência uma resolução definitiva sobre o assunto, insisto especialmente no fato do Governo ou Manguinhos ou a Saúde, fornecer os meios necessários, evitando as expressões bem conhecidas entre nós 'vamos ver o que se pode fazer' ou 'há de se arranjar'. Neste caso ou tudo ou nada." É sintomático o fato de Rocha Lima dirigir-se indistintamente a três níveis da cúpula governamental — o alto escalão do núcleo de governo, o alto escalão da DGSP e o alto escalão de Manguinhos —, retomando assim o tema da ubiqüidade de Oswaldo Cruz, a figura comum às três instâncias públicas. O cientista do 'aqui-dentro' do laboratório apelava ao cientista do 'lá-fora' da política para que procedesse aos arranjos necessários a fazer com que o dinheiro, a exemplo do que já vinha ocorrendo com a construção do palácio mourisco, fosse devidamente manipulado através dos escaninhos do orçamento público até alcançar o destino apropriado. Diante da habitual desídia de coloração lusitana, Rocha Lima açulava a ambição da grei manguinhense com obstinado espírito de empreendedor anglo-saxão: ou tudo ou nada!
    Não se pense que o embate entre mundos, o ibérico de um lado e o anglo-saxônio de outro, seja assunto imposto a fórceps pela presente análise. Vale lembrar que continuo seguindo homens de ciência em ação, e que assim fazendo-o, segundo as palavras de Bruno Latour (1987, p. 202), "as pessoas mapeiam para nós e para si mesmas as cadeias de associações que constroem sua sociologia". É justamente da sociologia de cientistas em ação que surgem considerações bastante significativas a respeito da (in)capacidade brasileira de disputar com os 'países civilizados' a disciplina e o rigor da ciência, ou, dito de outra forma, é de sua construção de mundo que surge a sugestão de uma linha divisória entre a descendência ibérica e a anglo-saxônia. Nas homenagens da imprensa pela premiação em Berlim, Sales Guerra (1940, pp. 383-4) recolheu uma série de trechos que bem representam um mundo apartado, porém, segundo ele, em reconstrução graças à acolhida generosa e hospitaleira reservada à ciência em seu desembarque no Brasil:
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    a decidir o que é preciso fazer, sendo muitas coisas dependentes de tempo.
    O secretário da exposição disse que se admirava de ainda nada ter sido encomendado ao carpinteiro da exposição, que é quem faz as mesas e paredes de madeira, de acordo com as instruções distribuídas. ... Não acha que seria melhor passarmos uns três dias aqui juntos de modo a ficar tudo perfeitamente combinado, saber as dimensões dos objetos de modo que as mesas e suportes tenham as dimensões apropriadas, as molduras que se precisa encomendar, impressos, letreiros etc.? ... temo que à última hora não nos aprontem os letreiros etc., e prejudiquemos assim
    o nosso sucesso que parece muito provável. O Hoffmann disse-me que o Rubner gostou muito do nosso projeto de exposição. O Dürck gostou imensamente dos mosquitos e pediu-me para mais tarde deixar fotografar (grifos do autor).
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    Arriscaria propor que os cientistas de Manguinhos souberam tirar partido de falsas polaridades — sou bonito (natureza), sou folclórico (cultura) mas não sou inteligente (ciência) — para criar um vasto mercado para a ciência manguinhense, especialmente o próprio mercado nacional. Na linha de 'o trópico é coisa nossa', apresentaram 'produtos' genui-namente tropicais, de mosquitos a madeiras, capitalizando para a ciência manguinhense a homologação de sua qualidade e assegurando-lhe internamente não somente a intensificação da demanda por seus produtos e serviços 'científicos', como sua própria institucionalização, reclamada pelos cientistas como uma providência não só da maior urgência como da maior obviedade: "Diante disso, finalmente, seria impossível que a instituição laureada no estrangeiro continuasse em nossa pátria a mesma vida precária, sem estabilidade, sem garantias, quase sem existência legal" (Dias, 1918, p.18).
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    Finalmente, outro tema relacionado à exposição é o retorno do herói. Sob o manto da consagração, escondia-se um homem alquebrado, relutante em retornar a sua pátria. As cartas inéditas a sua esposa, bem como as cartas já bastante conhecidas enviadas a seus compadres, dão conta de sinais inquietantes de depressão. Segundo seu amigo João Pedroso em carta a Sales Guerra, a chegada ao Rio de Janeiro, saudada já no porto por um batalhão de pequenas embarcações, parecia a Oswaldo Cruz uma tarefa penosa a cumprir, a tal ponto que o missivista concluía a carta com estes significativos dizeres: "O nosso herói não dá para protagonista de apoteoses" (Guerra, 1940, p. 421). A construção do mito tratou de dispersar a inconfidência, celebrando em seu lugar o triunfo, apenas o triunfo, nada mais que o triunfo:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Fev 2001

    Histórico

    • Aceito
      Ago 2000
    • Recebido
      Maio 2000
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