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Carta ao editor

Letter to editor

CARTA AO EDITOR

Petrópolis, 9 de junho de 2010.

Caros colegas, amigos e amigos,

Três vivas ao número especial "Câncer no século XX: ciência, saúde e sociedade" (v. 17, suplemento 1, julho 2010), em História, Ciências, Saúde - Manguinhos, por certo um ponto alto na história das doenças da Casa de Oswaldo Cruz e em sua mais alta publicação científica. Mas se me permitem um desapontamento, por que a exposição, ou melhor, por que seu título tão absolutamente enganoso, no espírito do radicalismo antitabagista? No momento só há um lobby mais forte do que o das indústrias; é o lobby moral contra os novos leprosos do século XXI, puxado por um novo Consenso de Washington (ou de Genebra) sobre corpos e mentes, que Foucault jamais poderia prever.

Gostaria de fundamentar meus pontos de discordância. A religiosidade das comunidades norte-americanas desde sempre - mas sobretudo quando desaguou nas temperance societies de meados do século XIX, em Chicago e outras grandes cidades - voltou-se contra as práticas 'primitivas', em nome do racionalismo cristão/bíblico. Os índios - agora chamados respeitosamente de native Americans - sempre beberam, fumaram e dançaram ritualmente. Os batistas, particularmente os grandes filantropos como a família Rockefeller (já no fim do século XIX), pregavam contra tais práticas irracionais, sobretudo as duas primeiras. A temperança sexual seguiu-se logo após. Um pouquinho mais tarde, a Lei Seca de fins da década de 1920 proibiu a produção de destilados, tal como se quer agora com a Framework Convention, ou Convenção Quadro, sobre o tabaco, em todo o mundo 'bem civilizado'. Foi o início da operação e organização das máfias, como será no futuro mais um estímulo ao narcotráfico, no momento em que as indústrias, que nem sempre enganaram as pessoas, forem proibidas da produção de cigarros 'legais'. A renhida luta entre o fundamentalismo de costumes norte-americanos (e seus avessos, a pornografia e a exportação da sex business em todo o mundo) e a indústria de bebidas e do tabaco desenrolou-se nas várias décadas seguintes, com a vitória da cruzada fundamentalista contra o cigarro (e seu avesso, a consolidação da maior nação consumidora de drogas pesadas, como a cocaína e a heroína, em todo o mundo), fomentando o narcotráfico em toda a América Latina. Como a indústria de armas continua a todo vapor nos Estados Unidos, vemos aí mais uma batalha vencida... para o narcotráfico. Isso, para mim, é um capítulo da história da América, detalhado em copiosa literatura e aguardando agora mais um livro (sobre o tema do tabaco) de nosso confrade Diego Armus.

Mas por que o título (a meu ver nada historiográfico) Como a Indústria do Fumo Enganou as Pessoas, na verdade é, ele próprio, enganoso? Simplesmente porque mesmo a literatura científica, até a década de 1960 pelo menos, não havia desenvolvido modelos explicativos (isto é, estatísticos) convincentes ou robustos sobre os males do cigarro sobre as pessoas. Um texto fundamental que os historiadores de ciência precisam conhecer é o de B.W. Brown, Jr, "Statistics, scientific method, and smoking", publicado em muitos periódicos e coletâneas a partir de 1972, nos Estados Unidos.

Quando fui aluno da Harvard School of Public Health, em 1974/1975, havia espaços imensos para fumantes na escola, ainda que a idéia de separação entre fumantes e não fumantes já prevalecesse em algumas escolas de medicina e saúde pública naquela época. Aliás, durante o período eu fumava, embora tenha sido um light smoker durante décadas.

A grande defesa da indústria, como qualquer outra (a de alimentos industrializados ou a de pesticidas como o DDT, por exemplo), era a falta de estudos experimentais conclusivos. No caso do tabaco, havia diferenças pequenas entre os riscos para light smokers e non-smokers - para contrair câncer, por exemplo. Isso permitia à indústria defender seu produto, sem necessaria ou assumidamente 'enganar' a população. Uma ou duas décadas depois, estudos epidemiológicos sobre os fumantes leves simplesmente cederam espaço aos estudos sobre o chain-smoker (tão doente como o dependente de chocolates) e o 'fumo passivo'.

Já não há dúvidas, hoje em dia, de que cigarros fazem mal. Mas quantos cigarros? A idéia de que não há consumo 'seguro' é basicamente fundamentalista, porque em comparação aos numerosos estudos sobre heavy smokers há um número ínfimo de trabalhos sobre os light smokers. O conceito de 'fumo passivo' tem exageros brutais, como a comparação entre o nível de exposição de uma mulher ao fumo de seu marido, se ele fuma dentro de casa, e o que ocorre num bar ou restaurante bem ventilado, onde se dá a exposição 'em tempo parcial'. Esse conceito acaba de ser questionado, não por cientistas sociais intrometidos, mas sim por um epidemiólogo de renome, Geoffrey C. Kabat, em textos importantes. Na verdade, os epidemiólogos - inclusive alguns da minha casa, o IMS - estão a meu ver embebidos de pequenas doses do fundamentalismo criticado por Kabat.

A revista de Atenção Primária à Saúde (Revista de APS, Nates, UFJF) publicará um breve debate entre algumas de minhas idéias aqui expostas, com comentários críticos de dois epidemiólogos. A diferença acentuada entre suas críticas a meu texto mostrará que nós, que trilhamos os mundos erradios da história das doenças, não podemos aceitar transformar a historiografia em discurso médico - e a medicina social, em polícia médica - de controle dos espaços de sociabilidade. Em resumo, não é apenas a indústria que buscaria enganar as pessoas hoje em dia; em nome do 'conceito' de fumo passivo, a epidemiologia, os evangélicos e a mídia impõem o controle dos espaços sociais por leis antifumo, cujo alcance dramático e enganoso só os historiadores poderão aquilatar - tarde demais? - em dez ou vinte anos.

Mas nada disso é tão importante como os três vivas que dei ao número especial de História, Ciências, Saúde - Manguinhos, capitaneado por Luiz Antonio Teixeira, com sua conhecida mão de mestre.

Um grande e fraterno abraço aos colegas, amigas e amigos,

Luiz Antonio de Castro Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010
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