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Percepções locais sobre transformações ambientais na região do Oiapoque: reflexões a partir da experiência de formação de pesquisadores indígenas

Local perceptions of environmental changes in the Oiapoque region: reflections from the experience of training indigenous researchers

Resumo

Este artigo discute a experiência de um curso de formação e pesquisa sobre conhecimentos indígenas associados aos ciclos ambientais sazonais e às percepções locais sobre alterações desses padrões, observadas nos últimos anos nas Terras Indígenas do Oiapoque, estado do Amapá, na Amazônia oriental. Ele se propõe a descrever e analisar as explicações indígenas para as transformações ambientais observadas, em diálogo com saberes científicos não indígenas que associam tais fenômenos a processos de mudanças climáticas em curso na escala global. A partir da atuação dos autores como pesquisadores, professores e orientadores dos pesquisadores indígenas nas atividades do curso, foi feito um exercício etnográfico com reflexões sobre a pesquisa, o processo de formação e alguns de seus resultados. Buscou-se promover o diálogo com outras pesquisas antropológicas que também abordam o tema das mudanças climáticas e os saberes tradicionais, assinalando algumas contribuições dos pesquisadores indígenas do Oiapoque nesse debate.

Palavras-chave:
pesquisadores indígenas; conhecimentos tradicionais; transformações ambientais; Amazônia

Abstract

This paper discusses the experience of a training and research course on indigenous knowledge associated with seasonal environmental cycles and local perceptions the changes in these patterns observed in recent years in the Indigenous Lands of Oiapoque, state of Amapá, in Eastern Amazonia. It analyzes the indigenous explanations for the observed environmental changes, in dialogue with non-indigenous scientific knowledge that associates these phenomena with ongoing processes of climate change on a global scale. Based on the authors’ experience as researchers and teachers guiding the indigenous people throughout the course activities, an ethnographic exercise was carried out with reflections on the research, the training process, and some of its results. We sought to promote dialogue with other anthropological research that also address the issue of climate change and traditional knowledge, pointing out some contributions of indigenous researchers from Oiapoque in this debate.

Keywords:
Indigenous researchers; traditional knowledge; environmental changes; Amazon

Considerações iniciais

Este artigo tem como escopo a experiência de pesquisadores indígenas que vivem em Terras Indígenas situadas no município de Oiapoque, estado do Amapá, em um curso de formação e de pesquisa para a sistematização de conhecimentos locais sobre algumas transformações ambientais que estão ocorrendo nessas terras nos últimos anos e que podem estar associadas aos fenômenos explicados pelos cientistas não indígenas como parte das mudanças climáticas de escala global.

O curso de formação e a pesquisa surgiram de uma demanda das lideranças indígenas das Terras Indígenas do Oiapoque para tentar qualificar e monitorar algumas transformações ambientais que estão ocorrendo nos diversos ambientes que compõem essas terras e que estão resultando em mudanças nos modos de vida dos habitantes das aldeias e comunidades. Os indígenas no Oiapoque relatam que há tempos vêm percebendo alterações no ciclo sazonal, nos ritmos diversos da natureza e no ciclo de chuvas, tal como está sendo observado nos territórios de muitos povos e comunidades tradicionais em vários biomas e regiões do globo.1 1 Utilizamos aqui o conceito de natureza com o intuito de propor um diálogo multidisciplinar. Salientamos, contudo, que é um conceito que vem sendo amplamente debatido na antropologia e apropriado pelos povos indígenas para exegeses para o público não indígena que envolvem seus conhecimentos sobre o ambiente e seres não humanos. Para maiores discussões sobre o conceito, ver Diegues (2001) e Descola (2016). Foram constatados também problemas relacionados às práticas agrícolas, como aparecimento de pragas nas roças, mudanças nos períodos de florescimento das plantas cultivadas e na fertilidade do solo, que são relacionados pelas pessoas dessas localidades às alterações ambientais elencadas acima. Tais problemas vêm preocupando as comunidades no seu dia a dia e vêm exigindo soluções para enfrentar essas alterações e mitigar seus efeitos.

Tendo como referência a nossa atuação como pesquisadores e, há alguns anos, como professores e orientadores das pesquisas e das atividades relativas à formação, faremos neste artigo um exercício etnográfico trazendo reflexões sobre como vem sendo realizada a atual pesquisa e o processo de formação.2 2 O grupo de professores e pesquisadores que escreveu esse artigo é composto por uma antropóloga, dois antropólogos e uma bióloga, fato que remete ao desafio de uma escrita multidisciplinar refletido diretamente no texto apresentado. O artigo também contou com a colaboração de uma das professoras da formação, Claudiane de Menezes Ramos. Também apresentaremos uma descrição e análise de dados e reflexões dos pesquisadores indígenas levantados até o momento.3 3 Para o ano de 2023, está prevista uma publicação em formato livro com os trabalhos realizados entre 2019 e o 1º semestre de 2022. Na publicação, os pesquisadores indígenas irão apresentar de modo mais detalhado o conjunto de dados referidos neste artigo. Ademais, buscaremos o diálogo do material produzido com algumas pesquisas antropológicas que aludem ao tema das mudanças climáticas e dos saberes tradicionais, permitindo assinalar algumas contribuições dos jovens pesquisadores indígenas do Oiapoque para esse tema e debate.

O curso de formação de pesquisadores indígenas é coordenado pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), desde 2019.4 4 O Iepé é uma entidade da sociedade civil sem fins lucrativos, criada em 2002, que tem como missão contribuir para o fortalecimento cultural, político e para o desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas na Amazônia oriental. O Iepé proporciona assessoria e capacitação técnica diversificada, entre as quais estão gestão de projetos, valorização e gestão de patrimônios culturais, fortalecimento político, associativismo e gestão territorial e ambiental. Sua atuação é pautada pelas demandas indígenas de formação, visando o fortalecimento de suas formas de gestão comunitária e coletiva, e buscando incidir para que os direitos dessas populações enquanto povos diferenciados sejam respeitados. De início, a equipe era composta por 20 pessoas e atualmente possui 40 pesquisadores dos quatro povos - Karipuna, Galibi Marworno, Galibi Kali’na e Palikur - que vivem em diferentes aldeias localizadas nas três Terras Indígenas demarcadas na região: TI Uaçá, TI Juminã e TI Galibi. Alguns dos pesquisadores também concluíram recentemente um curso específico e diferenciado de técnico em meio ambiente realizado pelo Iepé em parceria com o Instituto Federal do Amapá (Ifap), do qual nós também participamos como professores e assessores. A pesquisa que será abordada neste artigo é também parte da formação continuada desses técnicos em meio ambiente, que no decorrer do processo também incorporou outros pesquisadores e pesquisadoras de diferentes aldeias para compor a equipe.

Importância dos conhecimentos tradicionais nos debates sobre as mudanças climáticas

Existem vários motivos que fazem com que os regimes de conhecimento dos povos indígenas e das populações tradicionais tenham se notabilizado nos últimos anos no debate sobre as transformações ambientais e as mudanças climáticas globais. Destacamos três deles que serão importantes para as discussões e reflexões que estão sendo desenvolvidas no âmbito da presente proposta.

O primeiro é que eles são suporte a modos de vida que possuem um baixo impacto em termos de degradação ambiental e de manejo de recursos naturais. Da mesma forma, assinalam modos de relação com o ambiente que são mais igualitários e menos antropocêntricos do que os ocidentais, quando consideramos a posição dos humanos frente aos seres não humanos, aos entes inanimados e em relação às entidades sobrenaturais que atuam no cuidado com a natureza e com o ambiente. Nos últimos anos, as características e os pressupostos fundadores desses regimes de conhecimento vêm sendo reconhecidos em diferentes instâncias e por segmentos não indígenas diversos, sendo colocados como referências para a possibilidade de criação de estratégias de adaptação das sociedades urbanas e industriais diante das transformações ambientais em escala global.

Diante desse contexto, vimos emergir nos últimos anos obras de pensadores indígenas como as recentemente publicadas Ideias para adiar o fim do mundo (Krenak, 2019KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.) e A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (Kopenawa; Albert, 2019KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), que enfatizam nos modos de vida dos povos indígenas as formas não antropocêntricas e multicentradas de se relacionar com a “natureza” e que salientam os perigos que o modelo capitalista de exploração de recursos pode trazer ao planeta como um todo.

Por outro lado, no universo das ciências não indígenas, o papel dos humanos na crise ambiental contemporânea é um tema que também tem se destacado em várias áreas do conhecimento. Muitas investigações localizadas na antropologia ou que adotam a disciplina como ponte de diálogo têm enfatizado a necessidade de tratar a vida de forma descentrada do humano, como a obra Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins (Danowski e Viveiros de Castro, 2014DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir?: ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014.) e o planeta Terra como um “ente vivo”, recuperando conceito de Gaia de James Lovelock (Stengers, 2016STENGERS, I. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2016.). Esses autores e autoras, através da crítica aos projetos dominantes de natureza das sociedades urbanas e industriais, buscam refletir sobre possibilidades de lidar com a crise ambiental que perpassam pela criação de novas formas de inclusão da vida não humana, acompanhadas de mudanças éticas e morais nas políticas da natureza em escala global.

Entretanto, mesmo com esses notáveis avanços, entendemos que o debate sobre o papel dos conhecimentos tradicionais e locais que ocorre no âmbito das discussões sobre as mudanças climáticas ainda está permeado por uma visão generalista e de certa maneira estereotipada, que carece, portanto, de mais detalhamento, especialmente, sobre os saberes e práticas que orientam e dão sustentação à existência desses regimes de conhecimento e como de fato eles explicam e abordam o tema das transformações ambientais que estão acontecendo em seus territórios.

O segundo motivo é que os regimes de conhecimento locais e tradicionais orientam modos de vida que possuem uma conexão ampla e detalhista sobre as dinâmicas ambientais, enfatizada pelo princípio de interdependência fortemente arraigado nos saberes e práticas que envolvem as relações entre seres humanos, ambientes e seres não humanos. Esse tipo de conexão com o ambiente propiciou e propicia níveis de percepção e de reflexão muito refinadas sobre processos de mudanças e de transformações ambientais.

O terceiro é que os povos indígenas e populações tradicionais, por possuírem formas de conhecimento e de expressão fundamentalmente conectadas aos territórios e às dinâmicas ambientais, provavelmente farão parte do conjunto de coletivos humanos que serão os mais afetados com as mudanças climáticas globais, podendo em alguns casos serem forçados a se deslocarem de seus territórios em busca da sobrevivência, configurando aquilo que vem sendo denominado de “refugiados ambientais ou refugiados climáticos” (Burnett et al., 2021BURNETT, A. et al. Refugiados climáticos, aquecimento global, desertificação e migrações: reflexos globais e locais. Interseções: revista de estudos interdisciplinares, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 318-333, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/view/62484/39307 . Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
; El-Hinnawi, 1985EL-HINNAWI, E. Environmental refugees. Nairobi: United Nations Environmental Programme, 1985.). Nesse sentido, é importante ressaltar que em vários lugares do mundo já estão em andamento diferentes iniciativas que visam monitorar os ciclos sazonais e investigar as características das transformações ambientais que estão ocorrendo nos territórios de populações indígenas e tradicionais, as quais vêm subsidiando discussões sobre as mudanças climáticas no nível global.

Antropologia, ambiente e mudanças climáticas: alguns apontamentos

As atividades sociais, especialmente aquelas que envolvem estreitas relações com os regimes de sazonalidade nos diferentes ambientes e biomas do globo, sempre tiveram destaque na antropologia. Textos canônicos, como os de Marcel Mauss (2003)MAUSS, M. Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 425-503. e Evans-Pritchard (2005)EVANS-PRITCHARD, E. E. Os nuer. São Paulo: Perspectiva, 2005., já buscavam relatar e compreender as íntimas relações entre coletivos humanos/clima/tempo/sazonalidade. Temos também os debates introduzidos pelas obras de Claude Lévi-Strauss (1975LÉVI-STRAUSS, C. Totemismo hoje. Petrópolis: Vozes, 1975., 1989LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. 5. ed. Papirus: Campinas, 1989.) que possibilitaram às ciências humanas abordar as maneiras de conhecer, classificar e explicar o mundo dos povos indígenas de modo simétrico às ciências ocidentais.

Isso posteriormente ampliou e aprimorou as possibilidades de comparação entre os regimes de conhecimento indígenas e os saberes científicos no que se refere às relações entre os domínios da natureza e da cultura e sobre os temas e debates relacionados ao clima, como comenta Astrid Ulloa (2011ULLOA, A. (org.). Perspectivas culturales del clima. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Ciencias Humanas. Departamento de Geografía, 2011. (Biblioteca Abierta. Perspectivas Ambientales)., p. 35, tradução nossa):

Nos anos 60, as análises centraram-se nas descrições de catástrofes (chuvas, furacões, inundações, erupções vulcânicas e terremotos, entre outros), e nos perigos ambientais sobre as populações e condições climáticas vividas por várias culturas. Nos anos 80, as análises levaram a estudos sobre risco, vulnerabilidade, resiliência e adaptação; e sobre os efeitos dos processos culturais sobre o ambiente, centrando-se nos processos sociais para compreender as catástrofes. Do mesmo modo, desde os anos 90, várias tecnologias têm sido utilizadas para monitorar as catástrofes. Essas abordagens nas últimas três décadas têm sido combinadas com estudos que se concentram em processos cognitivos e classificações locais de fenômenos ambientais e climáticos, por exemplo, estudos de etnometeorologia, que analisam processos simbólicos e rituais relacionados com noções de clima e, hoje em dia, alterações climáticas.

O conjunto dos estudos inseridos nessas temáticas também ficou conhecido como “antropologia do clima”, cujas preocupações eram estudar as relações entre as práticas socioculturais e o clima (Rossbach de Olmos, 2014ROSSBACH DE OLMOS, L. El cambio climático y la antropología: perspectivas culturales sobre un problema ambiental global. In: CONGRESO DE ANTROPOLOGÍA, 13., 2014, Tarragona. Actas […]. Tarragona: Universitat Rovira i Virgili, 2014. p. 2981-2999. Disponível em: Disponível em: http://digital.publicacionsurv.cat/index.php/purv/catalog/view/123/107/253-1 . Acesso em: 31 jul. 2023.
http://digital.publicacionsurv.cat/index...
; Ulloa, 2011ULLOA, A. (org.). Perspectivas culturales del clima. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Ciencias Humanas. Departamento de Geografía, 2011. (Biblioteca Abierta. Perspectivas Ambientales).).

A partir dos anos 2000, com o avanço exponencial da crise ambiental que aflige o planeta, as preocupações científicas se voltaram para aquilo que se convencionou chamar de mudanças climáticas e seus efeitos globais. Inicialmente, os espaços de discussão foram ocupados por cientistas e especialistas das ciências naturais. As ciências sociais e humanas tardaram um pouco a adentrar nesses debates, o que ocorreu primeiramente a partir da sociologia e da geografia humana.

A antropologia com enfoque nas mudanças climáticas passa a ter espaço um pouco mais tardiamente (Cortés Vázquez; Martins; Mendes, 2020CORTÉS VÁZQUEZ, J.; MARTINS, H. M. dos S.; MENDES, P. Antropología y cambio climático: recorridos, temáticas y propuestas. Disparidades: revista de antropología, Madrid, v. 75, n. 2, e015, 2020.), trazendo outras possibilidades para o debate ao enfocar em perspectivas localizadas, a partir dos conhecimentos, narrativas, ontologias e cosmovisões de povos indígenas e tradicionais sobre as transformações ambientais que estão ocorrendo nos seus territórios. Do mesmo modo, alguns trabalhos têm se dedicado a sugerir pistas e evidências sobre como essas transformações podem estar associadas às mudanças climáticas de escala global. Os estudos antropológicos também colocam os conhecimentos indígenas e tradicionais em diálogo com as ciências do clima. Partindo do pressuposto de que a antropologia aporta outros sentidos, perspectivas e conhecimentos à discussão global das mudanças climáticas, passa-se a ter um conjunto de estudos antropológicos nessa área que irão diferenciar-se teoricamente, mas também encontrar pontos de convergência, com as pesquisas de outras áreas do conhecimento, conforme apontam Cortés Vázquez, Martins e Mendes (2020CORTÉS VÁZQUEZ, J.; MARTINS, H. M. dos S.; MENDES, P. Antropología y cambio climático: recorridos, temáticas y propuestas. Disparidades: revista de antropología, Madrid, v. 75, n. 2, e015, 2020., p. 3, grifo nosso, tradução nossa):

[…] podemos dizer que predominam três correntes teóricas distintas mas interligadas: a ecologia cultural (como diferentes culturas formam um elemento-chave na relação entre o homem e as alterações climáticas?); a fenomenologia cultural (que visões e interpretações diferentes das alterações climáticas existem e como é que elas diversificam e problematizam a compreensão hegemônica ocidental do clima?); e ecologia política (como as relações de poder desempenham um papel fundamental na produção das alterações climáticas, na configuração de diferentes vulnerabilidades, na distribuição desigual dos impactos e responsabilidades, e na configuração das respostas de mitigação e adaptação?). A essas três é acrescentada mais recentemente a virada ontológica (que outras alterações climáticas existem, não como explicações diversas de uma realidade objetiva e externa, mas como múltiplas ontologias que coexistem no pluriverso?).

Partindo dessas orientações teóricas dos estudos de antropologia sobre as mudanças climáticas, faremos algumas considerações iniciais sobre a pesquisa realizada pelos pesquisadores indígenas do Oiapoque. Desde sua concepção inicial, as pesquisas realizadas foram orientadas visando primeiramente buscar explicações locais sobre as percepções das transformações ambientais e como elas podem contribuir em uma discussão mais ampla no nível regional, nacional e, no limite, global. Nesse sentido, embora apresente diferenças significativas, a nossa abordagem da pesquisa se aproxima àquilo que Cortés Vázquez, Martins e Mendes (2020)CORTÉS VÁZQUEZ, J.; MARTINS, H. M. dos S.; MENDES, P. Antropología y cambio climático: recorridos, temáticas y propuestas. Disparidades: revista de antropología, Madrid, v. 75, n. 2, e015, 2020. propõem enquanto “fenomenologia cultural”, conforme grifado acima. Ou seja, buscar apresentar os entendimentos e interpretações indígenas das transformações climáticas e ambientais.

Ademais, é necessário que pontuemos outro posicionamento que temos enquanto orientadores dos pesquisadores indígenas. Sabemos que uma parte dos estudos de antropologia das mudanças climáticas possuem uma orientação multiculturalista. Ou seja, partem do pressuposto que considera que as mudanças climáticas existem enquanto realidade objetiva dada e que a partir disso são incorporadas uma multiplicidade de explicações e interpretações acerca desse fato. Contudo, ampliando a orientação da fenomenologia cultural, não buscamos que as pesquisas indígenas sejam mais uma explicação sobre mudanças climáticas, mas entendemos que ela deve ser um espaço no qual os pesquisadores indígenas possam colocar em evidência seus modos de conhecimento e que isso possibilite criar explicações próprias sobre as transformações ambientais que estão ocorrendo em seus territórios, bem como sobre o conjunto de fenômenos que são associados pelas outras áreas de conhecimento às mudanças climáticas globais.

Nesse sentido, para estabelecer um diálogo efetivo entre os conhecimentos locais e tradicionais e os conhecimentos científicos produzidos acerca do tema das pesquisas, é relevante considerarmos que é importante adotar como um pressuposto fundamental que esses modos de conhecer, embora possam possuir similaridades nas maneiras de explicar e no entendimento de certos fenômenos que são perceptíveis e retratados por todos os coletivos humanos, eles também são muito diferentes do conhecimento científico, em diversos aspectos.

Tendo em conta esse postulado, optamos por trabalhar, pelo menos em um primeiro momento, a pesquisa sobre as transformações ambientais nas Terras Indígenas do Oiapoque de modo separado das discussões e debates que norteiam as teorias científicas sobre as mudanças climáticas globais. Isso não significou, entretanto, que durante as etapas de formação os pesquisadores não tivessem contato com as teorias científicas das mudanças climáticas. Pelo contrário, elas foram objeto de estudo, sendo apresentadas e debatidas, buscando compreender as diferenças epistemológicas entre elas. Ademais, cabe destacar que os pesquisadores e pesquisadoras da equipe participaram e participam, dentro e fora das Terras Indígenas, de diversos trabalhos, reuniões e eventos nos quais essa temática tem sido abordada.

Assim, podemos considerar que o processo de formação não está dissociado da discussão ocidental sobre mudanças climáticas, mas as pesquisas indígenas foram focadas nas explicações locais a respeito das percepções das transformações ambientais nos seus territórios, a partir do conjunto de conhecimentos experienciados e corporizados na vida cotidiana. Entendemos que dessa forma poderemos evitar um contexto de desigualdade e de assimetria de poder-saber em que a contribuição dos conhecimentos tradicionais e locais se resuma à tradução ou à transferência de dados e de informações a serem agregadas no âmbito da epistemologia e das teorias produzidas pela ciência ocidental.

Entendemos também que para a discussão sobre as concepções e formulações dos conhecimentos tradicionais/locais em relação às transformações ambientais, é necessário delinear com alguma precisão os pressupostos que orientam as formas de aprender, de produzir e de transmitir saberes nesses regimes de conhecimento. Tais pressupostos são importantes de serem abordados, mesmo que de forma breve, para evitarmos formas estáticas e monolíticas de entendimento desses regimes de conhecimento.

Algo importante de salientar nesse sentido é que nas sociedades e culturas ocidentais de tradição escrita, os conhecimentos tradicionais muitas vezes são entendidos com o apoio de uma visão patrimonialista, ou seja, são concebidos como acervos de saberes fechados que foram elaborados ao longo de um largo tempo e que são transmitidos continuamente de geração em geração. Embora esse entendimento não esteja totalmente incorreto, é necessário ressaltar que ele carece de ser incrementado e mais bem delineado para que tenhamos uma compreensão mais próxima de como os regimes de conhecimento tradicionais e locais produzem e transmitem seus saberes sobre os ambientes e territórios.

Um ponto de destaque sobre a interação dos povos indígenas e tradicionais com o ambiente é que em seus regimes de conhecimento os saberes são produzidos e transmitidos a partir das experiências cotidianas originadas das relações diretas com os diferentes lugares, coletivos humanos e com os seres não humanos com os quais cada povo ou grupo interage em seus espectros de relações e em seus territórios. Com efeito, os conhecimentos tradicionais não são produzidos e transmitidos baseados em modelos conceituais fechados e nem configuram acervos de saberes estanques que são continuamente interpretados ou recebidos pelas pessoas membros de determinada cultura ou povo ao longo de suas vidas e de gerações. Mais do que isso, os conhecimentos tradicionais e locais são produzidos de modo concomitante às experiências diversas de cada pessoa ou dos coletivos, que ocorrem continuamente ao longo do tempo (Almeida, 2014ALMEIDA, M. W. B. Caipora e outros conflitos ontológicos. R@U: revista de antropologia social dos alunos do PPGAS-UFSCAR, São Carlos, n. 5, p. 7-28, 2014.; Almeida; Carneiro da Cunha, 2002ALMEIDA, M. W. B; CARNEIRO DA CUNHA, M. (org.). Enciclopédia da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.; Carneiro da Cunha, 2009CARNEIRO DA CUNHA, M. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. In: CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 301-310.; Harris, 1998HARRIS, M. The rhythm of life on the Amazonian Floodplain: seasonality and sociality in a riverine village. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 4, n. 1, p. 65-82, 1998.).

Desse modo, o papel dos mais velhos ou mais experientes, aqueles que são teoricamente os que têm maior conhecimento e sabedoria entre esses povos, não é propriamente transmitir “conteúdos” de saberes, mas orientar os modos de percepção e de atenção dos mais jovens em suas experiências no espectro de relações com o qual interagem na vida cotidiana. Nesse sentido, entendemos que a produção e transmissão dos conhecimentos e o processo de aprendizado nas comunidades indígenas ou tradicionais estão muito mais conectadas a processos de sensibilização e de uma “educação para a atenção”, como argumenta o antropólogo Tim Ingold (2010)INGOLD, T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, 2010., do que propriamente à transmissão de repertórios advindos de uma herança cultural que possui um acervo de saberes fechado. Assim, os conhecimentos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais dependem e são de certa maneira inseparáveis da ligação das pessoas com os territórios, com os lugares que habitam e frequentam, com os outros coletivos humanos e com seres não humanos com os quais se relacionam ao longo do tempo. É na relação direta com o ambiente e com os lugares que compõem os territórios tradicionais que os conhecimentos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais sobre a natureza e sobre a biodiversidade podem continuar a existir, e serem continuamente criados na medida que são postos a prova diante de novas experiências e desafios.

Povos indígenas do Oiapoque e a pesquisa sobre transformações ambientais

“Povos indígenas do Oiapoque” é uma forma de circunscrever uma diversidade de grupos indígenas que vivem, convivem e compartilham territórios nos rios Oiapoque, Uaçá, Urucawá e Curipi, na fronteira franco-brasileira, extremo norte do estado do Amapá. Apesar das especificidades socioculturais e linguísticas de cada um desses povos, há um conjunto de relações (de alianças, de parentesco, econômicas, políticas) que conferem uma coesão entre eles, principalmente no que se refere às relações com o Estado nacional e a reivindicação de seus direitos.

Os territórios indígenas da região costeira do Oiapoque são constituídos por ecossistemas diversificados com planícies aluviais, ilhas em campos sazonalmente inundáveis sob influência de marés oceânicas, manguezais, montanhas rochosas, manchas de Cerrado, vastas extensões de floresta de terra firme, que sofrem alterações sazonais que mudam radicalmente a paisagem. Essa dinâmica cíclica anual, fortemente marcada por chuvas e pelas mudanças nos níveis dos rios no sistema “seca-enchente-cheia-vazante” influencia a facilidade de acesso a áreas importantes para agricultura, caça e pesca e a disponibilidade de determinados recursos. É o conhecimento acumulado sobre essa dinâmica sazonal que orienta as estratégias que viabilizam as melhores formas de manejo dos recursos, repercutindo nos modos de vida das comunidades que habitam essa região.

Desde o início da pesquisa dos jovens indígenas, foram adotadas três formas de registro e de documentação. Primeiramente, os pesquisadores fizeram diários de campo, para anotar informações qualitativas a partir das observações e reflexões sobre o cotidiano nas aldeias e sua relação com as dinâmicas associadas ao tempo e a sazonalidade. Além dos diários, foram iniciadas observações quantitativas das chuvas e flutuações no nível dos rios, por serem as variáveis ambientais mais citadas pelos pesquisadores indígenas como impulsionadores importantes das dinâmicas ecológicas sazonais que influenciam as práticas sociais cotidianas. A terceira forma de registro foram conversas e consultas aos sábios das aldeias mediante entrevistas. As pesquisas estão sendo acompanhadas pelos professores/orientadores que também visitam e orientam os pesquisadores in loco.

No decorrer do ano de 2020 e parte de 2021, devido às interdições sanitárias impostas pela pandemia de Covid-19, os encontros de formação foram suspensos. No entanto, para que as pesquisas e demais atividades não ficassem prejudicadas, foram feitas orientações virtuais com os pesquisadores. Nesses momentos, os pesquisadores enviavam seus materiais, que eram lidos pelos orientadores, e então devolvidos com comentários orientando-os para a sequência dos trabalhos.

Na retomada dos encontros itinerantes nas aldeias, além da apresentação das pesquisas, houve um processo de reflexão sobre as dinâmicas das transformações ambientais que ocorreram no decorrer dos trabalhos e atividades. Os pesquisadores levantaram um conjunto amplo de marcadores que sinalizam as mudanças e transformações relacionadas aos ritmos diversos da natureza e do ciclo sazonal que ocorrem em diferentes escalas e margens de tempo. Como já evidenciado por outros trabalhos, especialmente da antropologia (Mesquita, 2012MESQUITA, E. “Ver de perto pra contar de certo”: as mudanças climáticas sob os olhares dos moradores da floresta do Alto do Juruá. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2012.; Oliveira, 2015OLIVEIRA, A. R. Quando canta o Mutum? Um indicador de análise das transformações climáticas segundo o conhecimento ecológico tradicional Wapichana/Roraima. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA, 5., 2015, Porto Alegre. Anais […]. Porto Alegre: [s. n.], 2015. Disponível em: Disponível em: https://ocs.ige.unicamp.br/ojs/react/article/view/1363/715 . Acesso em: 31 jul. 2023.
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; Segata et al., 2018SEGATA, J. et al. (org.). Populações tradicionais, ambientes e transformações. Natal: EDUFRN, 2018.), esses marcadores do tempo são fundamentais para as tomadas de decisão nas tarefas e atividades cotidianas, assim como para elaborar estratégias de adaptação para padrões de transformações que escapam daquilo que é classificado como rotineiro e previsível em diferentes escalas de tempo (dia, semana, mês, estações do ano) e de espaço (transformações ambientais de pequena ou grande escala que ocorrem em partes específicas ou amplas do território).

Para o propósito de apresentar os marcadores levantados na pesquisa, eles serão neste artigo divididos em dois grandes conjuntos. O primeiro conjunto é composto pelos marcadores que indicam mudanças em um curto período e duração de tempo e área geográfica, como por exemplo: chuvas, calor ao longo de um dia ou de uma semana, ou aqueles que indicam o amanhecer, entardecer ou o anoitecer no espaço do dia. O segundo é composto por aqueles que indicam transformações relacionadas ao ciclo sazonal e às mudanças de estação. Eles indicam transformações mais longas que abrangem grandes áreas espaciais que são muito importantes para as atividades e fatores da vida social que ocorrem no médio e longo prazo.

Os sinais e marcadores do tempo abrangem vários domínios e categorias de seres não humanos, seres inanimados e entes que compõem a cosmografia dos diferentes povos indígenas e as paisagens das Terras Indígenas do Oiapoque. Englobam o movimento das constelações, ciclo lunar e das marés, a quantidade e intensidade de chuvas; a cheia ou vazão de lagos e igarapés e dos campos alagados; a direção e intensidade dos ventos e a temperatura. Os marcadores não humanos do reino animal abarcam comportamentos de aves, peixes, anfíbios e insetos relacionados à reprodução, alimentação, ocorrência sazonal associada a certos habitats em períodos específicos do ano, além certos tipos de cantos e sons emitidos em determinadas épocas do calendário sazonal. Englobam também dinâmicas ecológicas das espécies vegetais desde troca de folhas, floração e frutificação, além de relações simbióticas com animais. Por tal importância, eles foram evidenciados desde o início da formação, tanto nas observações individuais dos pesquisadores em seus registros em forma de diário e quanto nas narrativas dos mais velhos obtidas nas entrevistas de pesquisa que foram gravadas em áudio e vídeo pelos pesquisadores.5 5 Os termos e categorias locais em língua indígena e/ou língua portuguesa relevantes para a pesquisa estão inscritos em itálico no artigo.

Como já observado em estudos de etnociências e em trabalhos de monitoramento ambiental envolvendo povos indígenas e populações tradicionais (Calbazar, 2016CALBAZAR, A. Ciclos anuais no Rio Tiquié: pesquisas colaborativas e manejo ambiental no noroeste amazônico. São Paulo: ISA; São Gabriel da Cachoeira: FOIRN, 2016.; Cardoso, 2018CARDOSO, J. Quando as andorinhas olioda em bando sobrevoam a água do rio no remanso, preveem a chuva no dia seguinte. Aru: revista de pesquisa intercultural da bacia do Rio Negro, Amazônia, São Paulo, n. 2, p. 118-133, 2018.; Lins, 2018LINS, J. As secas do Rio Negro, recentes e passadas. Aru: revista de pesquisa intercultural da bacia do Rio Negro, Amazônia, São Paulo, n. 2, p. 142-147, 2018.; Vale; Oliveira, 2014VALE, S. B.; OLIVEIRA, A. R. (org.). Amazad Pana’adinhan: percepções das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas - Região Serra da Lua/RR. Boa Vista: Conselho Indígena de Roraima, 2014.), se pode afirmar, sem dúvida, que esses marcadores desempenham entre os povos indígenas e populações tradicionais um papel fundamental para entender e, sobretudo, para caracterizar e qualificar as mudanças nos ritmos e nos ciclos das transformações do ambiente, inclusive dos elementos que os cientistas qualificam como associados ao clima (temperatura, precipitação das chuvas, velocidade do vento, etc.). Por essa razão, receberam especial enfoque no processo de pesquisa.

Abordagens dos conhecimentos tradicionais sobre transformações ambientais

Como já ressaltado, uma das questões-chave que circunscreve a proposta de pesquisa sobre as transformações ambientais nas Terras Indígenas do Oiapoque é saber em que medida exegeses dos conhecimentos locais e tradicionais podem dialogar com os saberes e teorias que explicam as transformações ambientais e mudanças climáticas de escala global. Pelo fato de estarem estritamente ligados ao campo da experiência, advinda das relações cotidianas com os diversos elementos que compõem os ambientes, os conhecimentos locais e tradicionais enfatizam de modo importante os aspectos sensíveis apreendidos pelo campo da percepção que atua no âmbito dessas relações. Quando seus detentores ou guardiões elaboram explicações sobre as transformações que estão ocorrendo em seus ambientes e territórios, na maior parte dos casos, eles se referem a processos e fenômenos que a partir do campo da percepção são compreendidos como atípicos ou, principalmente, que se diferem historicamente das transformações ambientais entendidas como previsíveis e correlatas aos padrões de sazonalidade estabelecidos. Do mesmo modo, como tais conhecimentos estão conectados às experiências subjetivas, as explicações sobre as transformações nos ambientes e territórios abarcam memórias que envolvem elementos e eventos diversos que não estão relacionados somente com fenômenos ou processos ligados ao “clima” ou ao “tempo”.

Tim Ingold e Terhi Kurttila (2018INGOLD, T.; KURTTILA, T. Percebendo o ambiente na Lapônia finlandesa. Campos, Curitiba, v. 19, n. 1, p. 169-182, 2018., p. 173), ao analisarem as maneiras como comunidades Sami da região da Lapônia, no norte da Noruega, percebem as mudanças em seus ambientes, fizeram considerações que destacam de modo claro esses pontos levantados:

O trabalho de campo realizado por um de nós (Kurttila) revelou como as experiências do tempo estão intimamente ligadas a histórias de vida individuais: memórias da infância, relatos sobre adversidades enfrentadas, façanhas da época da guerra e coisas assim. De fato, o material das entrevistas frequentemente revelava mais sobre processos de memória do que sobre episódios climáticos. Quase sempre, observações relativas ao tempo eram tecidas dentro de narrativas sobre o desempenho de tarefas específicas como o pastoreio de renas, a colheita de amoras ou a pescaria, ou sobre eventos dramáticos da vida como o nascimento, doenças ou ferimentos e a morte. Enquanto tais, eles faziam parte do processo contínuo de construção daqueles lugares familiares, junto com seus arredores, que as pessoas chamam de “lar”.

Algo importante mencionado pelos autores e que devemos tratar de modo claro antes de falarmos sobre uma abordagem intercultural das transformações ambientais em contextos indígenas é que os conhecimentos tradicionais e locais muitas vezes operam sobre dimensões e abarcam elementos diferentes dos conhecimentos científicos quando buscam explicar as mudanças no comportamento de elementos associados ao ambiente. No caso dos conhecimentos locais, como destacam os autores, a dimensão da percepção que se dá pela relação e experiência direta com os diversos elementos que compõem os ambientes e paisagens é fundamental para as formas pelas quais são apreendidas, entendidas e mensuradas as transformações ambientais. Nesse sentido, nessas formas de conhecer, as atividades práticas realizadas no âmbito das relações com o ambiente não estão separadas do próprio conhecimento e, portanto, não há propriamente uma diferença entre a experiência e o conhecimento em si gerado a partir dela, como argumentam os mesmos autores:

O povo Sami menos aplica seu conhecimento na prática que o conhece por meio de sua prática. Assim, o seu conhecimento tradicional relativo ao tempo, consistindo numa sensibilidade aos sinais críticos do ambiente e na compreensão intuitiva do que significam para a condução de suas tarefas práticas, não é de fato passado adiante - não, ao menos, no sentido que o paradigma modernista prevê. Ele é antes continuamente gerado e regenerado nos contextos de engajamento prático das pessoas com componentes significativos do ambiente. Mas este engajamento tem dois lados. Ele pode ser descrito, por um lado, enquanto “como fazemos as coisas aqui” e, por outro lado, enquanto “como nos sentimos fazendo as coisas aqui”. Uma descrição do primeiro tipo requer um relato das atividades práticas; uma descrição do segundo tipo requer uma descrição do tempo. Neste sentido, atividades práticas e tempo são dois lados da mesma moeda. (Ingold; Kurttila, 2018INGOLD, T.; KURTTILA, T. Percebendo o ambiente na Lapônia finlandesa. Campos, Curitiba, v. 19, n. 1, p. 169-182, 2018., p. 173).

Podemos perceber então que, enquanto o conhecimento tradicional opera para explicar e perceber as mudanças ambientais na dimensão que pode ser apreendida pelos sentidos humanos e abarca os fenômenos locais, principalmente aqueles relativos ao âmbito da sazonalidade, as ciências do clima enfatizam aspectos que não necessariamente podem ser apreendidos pela dimensão sensível e pela percepção e abarcam geralmente os fenômenos ligados ao campo abiótico. As ciências do clima também abordam uma dimensão espacial muito mais ampla que os territórios e ambientes de povos e comunidades tradicionais. Com efeito, isso significa que os modos de conhecer (tradicionais/locais e científico), embora possam ser em alguma medida complementares para a abordagem das transformações ambientais e mudanças climáticas, eles também tratam e enfatizam em seus modos explicativos aspectos, dimensões e escalas diferentes que estão no entorno do tema das transformações ambientais.

Ademais, a despeito da possibilidade de empreender esse diálogo de uma forma simétrica e complementar, levantada por Ingold e Kurttila e por outros autores, é necessário também ressaltar com o apoio de outros estudos das ciências humanas, da antropologia e da etnologia indígena, que os regimes de conhecimento tradicionais e locais também partem de pressupostos filosóficos e de concepções que orientam as formas de se relacionar e de conhecer dos povos indígenas e tradicionais com o ambiente que são diferentes daqueles que orientam o conhecimento científico. Com efeito, além da diferença de escala e da amplitude de fenômenos destacada por Ingold e Kurttila através, por exemplo, da diferença entre clima (climate) e tempo (weather), existem nas formas de entender e caracterizar as transformações ambientais outras diferenças que são igualmente importantes. Uma das que merece destaque, levantada por muitos trabalhos de etnologia desenvolvidos na Amazônia e outras localidades, é que as cosmologias ou filosofias dos povos indígenas e tradicionais assinalam que as outras formas de vida, seres inanimados e entes sobrenaturais atuam no mundo seguindo trajetórias próprias que não devem ser controladas e/ou submetidas de modo indevido e imprudente pelos humanos, sob possibilidade de reverberação de efeitos nocivos e adversos para ambos lados (Kopenawa; Albert, 2019KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.; Viveiros de Castro, 1996VIVEIROS DE CASTRO, E. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996.). Com efeito, como afirma Tsing (2019TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB: Mil Folhas, 2019., p. 94) de um modo que pode ser ampliado para outros contextos, embora ainda que sejam consideradas por várias razões formas de vida distintas da existência dos humanos, do ponto de vista desses povos, não seria possível considerar os seres não humanos e inanimados apenas como parte de um domínio homogeneizado, estático e objetificado que está plenamente a serviço dos humanos.

Alguns conjuntos dos indicadores ambientais levantados nas pesquisas

As pesquisas sobre como as dinâmicas ambientais e temporais são percebidas pelos povos indígenas do Oiapoque têm revelado até agora uma variedade ampla de sinais e marcadores que incluem desde referências astronômicas, meteorológicas, hidrológicas, ecológicas/comportamentais de classes muito diversas de animais até os aspectos dos ciclos de vida de árvores e palmeiras. Foram registrados até esse momento da pesquisa quase cem marcadores ambientais. Eles foram organizados para fins de apresentação em quatro conjuntos mais amplos (astronomia; hidrologia; meteorologia; e ecologia), não com o intuito de compartimentalizar informações que são em si conectadas, mas para ilustrar as escalas de amplitude, os detalhes de elementos e fenômenos naturais observados e como uma forma de apresentar os dados de acordo com as proximidades temáticas que existem entre eles.

Astronomia

O aparecimento em sucessão de constelações específicas no céu indica a chegada das chuvas ao longo da estação do inverno no norte do Amapá. Segundo os povos indígenas da região, são os seres celestes que ao surgirem no céu interferem com seu poder sobre o aparecimento e abundância dos peixes, na disponibilidade de recursos na natureza e na qualidade dos produtos das roças, como é o caso da constelação Lapusiê, para os povos Galibi Marworno e Karipuna. Segundo os pesquisadores Palikur, o ciclo sazonal é marcado pelo aparecimento de algumas constelações, de forma que cada uma nomina a chuva ao longo do período em que ela cai: Kayeb (Cobra-Grande de Duas Cabeças), em dezembro; Tavara (Martim-Pescador), em fevereiro; Uwakti (Homem na Casa), em março; irmãos Kusuvwi: Kusuvwi Eggutye (irmão Mais Velho) e Kusuvwi Isamwitye (irmão Mais Novo), em abril e maio; e Wayam (Jabuti), em julho e agosto.6 6 A associação das constelações/chuvas com os meses do ano é um exercício de tradução dos pesquisadores indígenas para realizar um diálogo entre conhecimentos, mas não condiz exatamente com a forma pela qual esses ciclos sazonais são concebidos nos regimes de conhecimento locais. Essa discussão sobre tradução é aprofundada mais adiante na seção “Dificuldades encontradas e desafios futuros da pesquisa sobre transformações ambientais”. Cada uma dessas constelações está associada a narrativas complexas da cosmologia Palikur (Green; Green 2010GREEN, L.; GREEN, D. The rain stars, the world’s river, the horizon and the Sun’s path: astronomy along the Rio Urukauá, Amapá, Brazil. Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, San Antonio, v. 8, n. 2, art. 3, 2010., 2016GREEN, L.; GREEN, D. As esculturas das estrelas das chuvas: astronomia no Rio Urucauá. In: VIDAL, L. B.; LEVINHO, J. C.; GRUPIONI, L. D. B. (org.). A presença do invisível: vida cotidiana e ritual entre os povos indígenas do Oiapoque. Rio de Janeiro: Iepé: Museu do Índio, 2016. p. 197-199.), e elas ordenam o calendário de atividades de subsistência, a agricultura e a coleta, ao longo da estação de chuva.

Hidrologia

A intensidade das chuvas obedece a um padrão cíclico anual ao qual se atrelam distintas atividades de subsistência. A chegada das chuvas desencadeia o enchimento gradual dos rios e influencia o alagamento dos campos inundáveis, cuja velocidade e escala de inundação resulta da interação de fatores como o momento no tempo em que iniciou, a intensidade e a frequência. Outro indicador muito presente nas pesquisas é o movimento das marés. Os territórios indígenas do Oiapoque estão próximos à costa oceânica, o que faz com que as marés influenciem diretamente a dinâmica dos rios, lagos e igarapés. As marés mudam diariamente, mas a amplitude pode variar entre estações do ano, com consequências ecológicas que podem repercutir, por exemplo, na disponibilidade sazonal de recursos pesqueiros.

Meteorologia

Relaciona-se à ocorrência de ventos fortes, associados à chuva e início do inverno. A intensidade do sol durante os meses de verão/seca é que ordena as atividades relacionadas à roça. A neblina sobre o rio também é um indicador meteorológico com previsões imediatas ou muito próximas de acontecer (dias).

Ecologia

Os indicadores biológicos abrangem aspectos associados a ciclos reprodutivos, aos comportamentos, deslocamentos sazonais locais e migrações regionais de uma vasta gama de organismos vivos que incluem formigas, cigarras, besouros, borboletas, caranguejo, caramujos, minhocas, sapos e seus cantos, tracajás, aves (vários grupos com seus cantos), mamíferos e plantas. Esses indicadores abrangem efeitos temporalmente próximos ou sazonais.

Marcadores importantes para o monitoramento das transformações ambientais

Os marcadores ambientais elencados pelos pesquisadores indígenas estão profundamente associados às principais mudanças que caracterizam a dinâmica das estações na Amazônia que alteram sazonalmente a paisagem: o regime de enchente, cheia, vazante e seca dos rios. Entre os marcadores ambientais pesquisados há diversos que se relacionam entre si e representam etapas de um continuum de causas e efeitos encadeados. Eles refletem as percepções locais sobre interações entre componentes bióticos e abióticos que caracterizam o funcionamento e dinâmica dos ecossistemas naturais que podem ser vislumbrados, por exemplo, pelas relações entre pluviosidade, o nível dos rios, a movimentação dos peixes e o aparecimento sazonal das aves migratórias nas diferentes estações do ano, como explicam os dados dos pesquisadores a respeito dessas interações:

O alagamento dos campos na nossa região é um sinal de que o inverno já chegou. Quando isso acontece, os peixes entram nos campos para desovar, os jacarés e os pássaros vão embora para mais longe e só voltam para os igarapés no início do verão. O cauauá é um pássaro que indica o começo do inverno. Na época da subida da piracema quando o campo vai se alagando e os peixes aproveitam e entram nos campos para desovar, esse pássaro aparece. Ele avisa que a água está subindo e os peixes se movimentando. Com o alagamento dos campos também fica mais fácil as pessoas se dirigirem para as suas roças, para poderem fazer suas atividades, apanhar inajá, tucumã, bacaba, ingá e outros tipos de frutas. No começo do inverno no mês de dezembro também aparecem muitos pássaros, como o marreco, os maguaris, garça e patos selvagens em bandos em busca de comida […] No verão, existem vários insetos, animais que indicam a chegada dessa estação. Antes do mês de junho o pássaro jaburu atravessa no fim do mês de maio para junho do oeste para o leste, que indica o início do verão. É um pássaro que não está presente na região o ano todo. A gente só está vendo eles atravessando e nem sabe de onde eles vêm e para onde que eles vão. A gente também escuta o tari-tari gritar, a cigana canta, é sinal que está chegando o verão. Para nós, a chegada do verão é o tempo de fazermos nossas roças. O tari-tari, segundo as pessoas mais velhas, quando grita, na verdade está cerrando, está derrubando a sua roça. O mamã kulã é um tipo de sapo que está avisando os peixes que as águas dos campos alagados estão secando. Ele está avisando os peixes para saírem em direção ao rio, para não ficarem nos campos que estarão secos. Então a água dos campos abaixa, os peixes, os pássaros e os jacarés começam a aparecer nos igarapés; os jacarés só andam em bandos para poderem pegar seus alimentos, os pássaros andam também em bandos, principalmente as garças, isso acontece todo o ano no verão. (Compilado dos registros dos cadernos de campo dos pesquisadores indígenas Evandinho Narciso, Aldeia Kumarumã; Nerio Forte Karipuna, Aldeia Taminã; Ronivaldo Severino, Aldeia Kunanã; e Sidelvan Monteiro, Aldeia Aruatu).

Na sequência, apresentamos mais dados das pesquisas realizadas que caracterizam alguns dos indicadores, suas inter-relações, além de já apontarem observações sobre a ocorrência de transformações ambientais significativas frente ao padrão conhecido. Essas transformações têm repercussões importantes no calendário de atividades de agricultura, coleta e caça, na reprodução dos peixes e na pesca colocando-os como indicadores importantes que podem (e devem) ser monitorados.

Há marcadores cujas previsões se repetem anualmente, mas podem sofrer alterações tanto dentro da variação de oscilações naturais quanto extrapolá-las como resultado de mudanças ambientais em maior escala, como é o caso da pluviosidade, o início da inundação, da drenagem dos campos alagáveis, dos níveis máximo e mínimo atingidos pela inundação e momento em que eles ocorrem no tempo. Conforme apontam as pesquisas, um indicador desse complexo movimento das águas é um caracol, conhecido na língua indígena kheoul como koklix:7 7 O kheoul é uma das línguas indígenas da região do Oiapoque, falada pelos povos Galibi Marworno e Karipuna. O povo Palikur Aruwwayene é falante do parikwaki e o povo Galibi Kali’na tem o português como sua primeira língua, havendo apenas a geração dos mais velhos falantes da língua desse povo, que é a língua kali’na. O kheoul também serve como língua franca entre os quatro povos.

Desde muito tempo, os povos indígenas vêm aprendendo com os seus ancestrais sobre o limite que vai chegar a água no inverno, através dos ovos do caracol koklix. Esse conhecimento vem de muito tempo atrás até os dias de hoje. Geralmente quando as pessoas iam para os seus trabalhos para roçar, caçar, pescar era necessário ter esse conhecimento sobre o nível das águas para chegar a certas localidades. O koklix ensinou muito através de seus ovos, como a maior parte da nossa região é de campos alagáveis, temos que aprender muito sobre as águas no inverno.

No inverno tem a phome ghõ djilo [primeira água] e a dejêm ghõ djilo [segunda água]. Sabendo disso, nunca ficávamos na dúvida. Pelos ovos do koklix as pessoas conseguem identificar e organizar o trabalho. Dá para saber quando vai ter a primeira água e depois a segunda água, caso os trabalhos ainda não tenham sido terminados.

Como o plantio da roça, que têm vários tipos de procedimento para serem feitos. Tem a capina da roça que usamos os ovos do koklix como indicador, pois esse trabalho não termina em um único dia. Pelos ovos do koklix sabemos quando vai ter água suficiente para chegar tranquilo no lugar da roça e facilitar o trabalho, se não terminar o trabalho na primeira água ele pode ser terminado na segunda água. O koklix coloca seus ovos na phome ghõ djilo [mês de janeiro] e na dejêm ghõ djilo no mês de maio. O koklix procura o tronco de qualquer árvore ou o tronco do aningal para colocar seus ovos. A altura do tronco onde ele põe seus ovos a água vai chegar bem nesse limite e nunca ultrapassa o lugar que ele colocou os ovos e assim as pessoas já sabem aonde vai chegar o limite da água. Segundo as pessoas mais velhas, o koklix é conhecido como a mãe, pois ele consegue medir a temperatura da água para poder colocar os seus ovos. (Registro do caderno de campo do pesquisador indígena Evandinho Narciso, Aldeia Kumarumã).

O pesquisador Fabson dos Santos, ao realizar sua pesquisa com seu avô, aponta como a desova do koklix tem indicado algumas transformações ambientais inesperadas relacionadas ao regime de chuvas:

Meu avô Hilário da Aldeia Curipi conta que quando o koklix botava os ovos em um tronco de uma árvore numa certa altura da água, então ia chover até chegar bem rente à ova do koklix, que é a medida certa ou o nível certo que a água vai chegar. Com o passar do tempo, algumas coisas sobre o koklix vieram mudando até os dias de hoje. Às vezes eles não acertam mais o limite da água. Isso prejudica ele mesmo, pois seus filhotes acabam não nascendo por causa da quantidade de água. Nós não sabemos o que está acontecendo, já que antigamente a chuva era normal, mês de inverno era só naquele mês, não chegava o verão. Mas ainda está chovendo como acontece nos dias de hoje e cada vez mais o inverno é mais forte e a água fica cada vez maior. (Registro do caderno de campo do pesquisador indígena Fabson dos Santos, Aldeia Curipi).

Os peixes também são importantes indicadores ambientais, muito em conta, por serem uma das principais fontes de alimento das comunidades. Alguns peixes como surubim, tucunaré, jeju, tamuatá, matupiri e piranha se destacam pelo momento das migrações sazonais entre campos alagados e rios e vice-versa e a antecipação da disponibilidade temporal de alimento, além da piracema para a reprodução. São eventos que os moradores das comunidades observam e antecipam naturalmente que podem ser incorporados no monitoramento, como observou o pesquisador Galibi Marworno Evandinho Narciso:

Todo mês de novembro pra dezembro, acontece a primeira chuva, depois do dia 2 de novembro, dia de finados. A água vai enchendo muito rápido e o rio começa a encher. E aí o surubim vai subindo o rio com a água que vai enchendo […] procura lugar que gosta para deixar seus ovos. Perto das praias de areia, perto das pedras, nas cachoeiras, cabeceiras de igarapés. E depois vai procurar lugar mais fundo pra morar […] quando o rio fica seco no verão ele volta pro rio e, quando chega o inverno, o surubim vai subindo o rio […] na subida do rio acontece a piracema, o surubim por onde passa larga seus ovos, igual o jabuti […]

É muito importante esse indicador da subida do surubim. Não é só surubim, mas, também, trairão, jiju, pirarucu e outros. É a forma da gente conseguir saber se está tendo peixe bem, todo ano, ou se está tendo pouco. (Registro do caderno de campo do pesquisador indígena Evandinho Narciso, Aldeia Kumarumã).

O pesquisador Galibi Marworno Sidelvan Monteiro anotou a ocorrência de irregularidade das chuvas do princípio do inverno com observações sobre os efeitos sobre as atividades cotidianas:

O início do inverno, antes que a chuva caia, os peixes são o indicador da chuva. Todos os peixes sabem que vai chover. As nuvens começam a se movimentar, os peixes começam a ter ovos, principalmente o peixe piranha.

No ano passado, 2020, a chuva não caiu no início do inverno, muitas pessoas esperavam a chuva, mas caiu bem pouco e o campo não foi alagado em janeiro ou fevereiro e deu muita dificuldade para as pessoas que têm roças mais distantes fazerem seus plantios. Os peixes começaram a ficar magros e pretos por causa da água parada. Muitos indicadores marcavam o sinal da chuva, mas o tempo enganou todos os indicadores. (Registro do caderno de campo do pesquisador indígena Sidelvan Monteiro, Aldeia Aruatu).

A regularidade no regime de chuvas e alagamento dos campos, bem como a seca e a migração dos peixes dos campos para os rios é a garantia da disponibilidade de alimento na época certa.

Outro importante indicador das transformações ambientais sazonais aprofundado pelos pesquisadores indígenas é a constelação Lapusiê. É um dos indicadores mais complexos revelados pela pesquisa. Lapusiê é vista e descrita de múltiplas formas, que fazem parte de um todo, que pertence à memória partilhada e coletiva desses povos: é constelação, movimento, renovação, gente, pajé, cobra, barco, fartura, generosidade, poder, influência, é comunicação entre seres humanos, não humanos e entre mundos. Na pesquisa com os sábios conhecedores, Mercias Narciso apresentou o seguinte entendimento sobre Lapusiê:

É por isso que quando o Lapusiê nasce e renova, vem com todos os peixes, ele espalha todo tipo de peixe no mundo inteiro, pássaros, animais, a sombra das criancinhas, de todos que fazem movimento, o Lapusiê mexe com todos. Ele também protege todos os tipos de coisas que existem no mundo. Olhe bem: ele joga uma grande quantidade de peixe, pássaros, muitas coisas ele solta para a gente, povo da floresta, se sustentar, sobreviver desses alimentos, é assim que ele é. O Lapusiê quando ele come um peixe, tipo um tucunaré, ele faz um moqueado com todo o bucho do tucunaré, bem moqueado, mas ele come só o filé do peixe, depois ele solta o tucunaré na água e pronto, se transformou em peixe de novo. Por isso, então, o Lapusiê tem muitos poderes, deram um poder para ele que permite, por exemplo, esse peixe não morrer. Nós não, quando comemos o peixe ele morre, não ressuscita. Por isso, quando a gente vê a pele do tucunaré ela é toda queimada, foi o Lapusiê que comeu e soltou ele vivo de novo na água, por isso ele parece assim meio queimado. (Registro do caderno de campo do pesquisador indígena Mercias Narciso, Aldeia Tukay).

Lapusiê marca, com sua influência, eventos importantes em mundos distintos que se articulam entre si e representam um conjunto de indicadores fortes de grandes mudanças que antecedem a passagem entre as estações. Por essa razão, além de um marcador, Lapusiê pode ser entendido como um conceito ou categoria explicativa local fundamental para movimento dos ciclos sazonais e sua relação com as mudanças ecossistêmicas e com a vida social dos povos indígenas do Oiapoque. Seu movimento é aquele que desencadeia todos os outros que compõem o ciclo sazonal, responsável por orientar as relações dos outros marcadores entre si e também pelo andamento das atividades cotidianas dos moradores das comunidades. Os movimentos das constelações para o povo Palikur mencionadas anteriormente parecem ter esse mesmo papel no que se refere a tais fenômenos e as relações a eles associadas.

Nesse sentido, cabe salientar que, embora as orientações de pesquisa tenham sido direcionadas até o momento para a caracterização detalhada dos marcadores, de suas inter-relações e das transformações ambientais a eles associadas, existem alguns conceitos e categorias que dão bases importantes às descrições produzidas pelos pesquisadores. O detalhamento analítico deles, sem dúvida, possibilitará nas etapas futuras da pesquisa a criação de formulações teóricas locais sobre os ciclos sazonais, suas relações com os conhecimentos e práticas relacionadas ao meio ambiente e a biodiversidade presentes entre os povos indígenas do Oiapoque. Ainda não temos muitas pistas sobre como essas categorias e conceitos locais estão articulados às transformações ambientais em andamento e as percepções dos moradores das aldeias e comunidades sobre elas. Esse também será um dos esforços e desafios futuros envolvidos na pesquisa.

Dificuldades encontradas e desafios futuros da pesquisa sobre transformações ambientais

Durante o processo de orientação das pesquisas nos deparamos com alguns desafios e dificuldades relacionados principalmente a três fatores. O primeiro diz respeito às diferenças epistemológicas entre os conhecimentos indígenas e ocidentais, o segundo está ligado à diferença geracional entre os pesquisadores e seus interlocutores de pesquisa e, por fim, o terceiro, ao processo de tradução e de sistematização para escrita dos dados obtidos nas pesquisas.

Primeiramente, por estarem os processos de produção e transmissão dos conhecimentos indígenas relacionados à experiência direta e corporificada, muitas vezes nos deparávamos com dificuldades para entrarmos em acordo sobre o que deveria ser ou não registrado. Isso acontecia, por exemplo, nas discussões que envolviam os eventos corriqueiros observados na vida cotidiana. Assim, quando conversávamos com os pesquisadores e indagávamos sobre algumas informações sobre tais eventos que nos pareciam ausentes nos registros, eles respondiam que eram informações inexpressivas (no sentido de triviais), que já eram de conhecimento de todos e que, por isso, não precisavam ser registradas. Eles se interessaram mais em registrar eventos que escapavam ao habitual e que lhes pareciam extraordinários ou incomuns, como grandes chuvas, ventanias ou algum comportamento anormal de alguma espécie vegetal ou animal. Com efeito, fomos ao longo do tempo debatendo e discutindo que tipos de informações eram relevantes constar nos registros escritos.

No que se refere à diferença geracional entre os pesquisadores indígenas e seus interlocutores de pesquisa, percebemos que isso influenciou principalmente o terceiro fator elencado, que foram os processos de tradução. Um aspecto importante a esse respeito é que uma boa parte dos pesquisadores são jovens e, embora haja diferenças entre eles, todos possuem um nível médio de escolarização e de fluência no português. Por outro lado, as pessoas que foram entrevistadas tiveram pouco contato ou experiências muito diferentes dos mais jovens em relação à escolarização. Assim, ao longo da pesquisa, pudemos observar que as formas de tradução para o registro das informações recolhidas nas entrevistas com as anciãs e os anciões foram impactadas por essa diferença, o que reverberou nas maneiras como os dados obtidos nas entrevistas foram sistematizados. Alguns pesquisadores e pesquisadoras apresentaram versões escritas das entrevistas, em língua materna. Outros pesquisadores se preocuparam em explicar na língua portuguesa, com o maior detalhe possível, as informações que foram obtidas em outras línguas. Um terceiro grupo, além disso, se atentou a descrever e analisar também os conceitos e categorias locais que eram relevantes para o conjunto de informações coletadas, o que acarretou posteriormente em diferenças significativas entre o dado coletado nas entrevistas e seu produto sistematizado na escrita.

Ainda no que se refere aos processos de tradução e as diferenças geracionais, a adoção de algumas categorias e/ou conceitos importantes para os não indígenas foi um fator significativo e que marcou as formas como os pesquisadores sistematizaram as informações recolhidas nas entrevistas. Uma das que foi adotada por vários pesquisadores em seus processos de sistematização foi a categoria e/ou conceito de “natureza”. Nesse caso, quando englobam, por exemplo, os seres não humanos, montanhas, rios, igarapés e florestas, com o uso da categoria “natureza”, eles não estão se referindo a um domínio separado da humanidade, tal como essa categoria ou conceito indica na maior parte das vezes no âmbito dos saberes não indígenas. Nas abordagens dos pesquisadores, a categoria se refere a um conjunto amplo e diversificado de entes e de formas de vida que nas cosmologias dos povos indígenas do Oiapoque possuem as mesmas qualidades e atributos da humanidade, como agência, capacidade de afeto, memória. Com efeito, ela foi utilizada muito mais para potencializar o diálogo com os não índios e para situar um público mais amplo e diversificado nos temas e assuntos tratados nas pesquisas do que para designar os significados que lhes são atribuídos nos contextos onde surgiu e é utilizada correntemente. Um tema importante que já vem sendo debatido com os pesquisadores é como contextualizar de modo cuidadoso o uso dessas categorias e colocá-las em relação simétrica com as categorias e conceitos advindos dos conhecimentos locais. A articulação entre essas categorias e conceitos provenientes de diferentes saberes de forma cuidadosa e devidamente contextualizada é um desafio necessário e importante para tornar o trabalho dos pesquisadores pertinente para os moradores das comunidades, para o diálogo com outros povos indígenas e com os segmentos não indígenas envolvidos no debate que cerceia a pesquisa.

Por conseguinte, retomando a discussão sobre a íntima relação entre conhecimentos indígenas e a experiência vivida, somada aos problemas e impasses inerentes aos processos de tradução e sistematização desses conhecimentos pela escrita, ressaltamos que essas questões foram e são fruto de reflexão e debate com os pesquisadores durante a formação. O uso das categorias locais, a tradução para a língua portuguesa, a adoção de outros conceitos e categorias pertencentes a outros tipos de saberes e a assimetria de poder existente entre saberes indígenas e ocidentais trazem desafios importantes. Mesmo sem ter uma resposta definitiva para lidar com eles, entendemos que eles nos ajudam a incrementar as discussões e aprimorar os processos de formação e pesquisa.

Considerações finais: fatores de influência das transformações ambientais nas Terras Indígenas do Oiapoque e a importância do monitoramento nas florestas tropicais amazônicas

Os dados das pesquisas obtidos até o momento evidenciaram que os povos indígenas no Oiapoque têm percebido mais instabilidade e imprevisibilidade nos padrões da sazonalidade conhecidos e retratados pelos mais velhos, o que tem incidido diretamente em aspectos da vida cotidiana.

Uma das alterações mais mencionadas no ciclo sazonal é a quantidade de chuvas, que tem sido menor do que o esperado no verão e está ocorrendo em intervalos inconstantes durante essa estação. Isso está acarretando impactos na principal atividade de subsistência dos moradores das comunidades, que é o plantio da roça de mandioca. Conforme os pesquisadores apontaram, o prolongamento das chuvas, ou até mesmo o início da estação chuvosa fora da época, fez nos últimos anos com que muitas famílias não pudessem abrir ou queimar as áreas florestais que dão vida, todos os anos, aos novos roçados e plantios, especialmente da mandioca, usada para a feitura da farinha. Como consequência, essas famílias ficaram sem roças plantadas, o que significa que poderão ficar até dois anos sem ter como fazer a farinha, que é o principal alimento consumido pelas comunidades. Esse é um relato concreto de como transformações ambientais fora do esperado estão acarretando impactos tanto na vida cotidiana, como nos regimes de conhecimento locais sobre o tempo e ambiente.

Ainda não sabemos se essas transformações irão perdurar ou se acentuar com o tempo. Os pesquisadores não definiram um único fator, nem um conjunto fechado de fatores, que explicam suas causas. Também é certo que as transformações ambientais que estão ocorrendo nas Terras Indígenas do Oiapoque não podem ser simplesmente associadas às mudanças no clima de escala global. Isso foi algo reforçado durante toda a formação. Da mesma forma, ainda não se pode dimensionar os impactos dessas transformações sobre as práticas e saberes dos povos indígenas do Oiapoque e nem quais tipos de atualizações irão acontecer nos regimes de conhecimento indígenas para lidar com elas e com os efeitos que irão acarretar.

Apesar das pesquisas estarem ainda em andamento, há indicações de alguns fatores que podem estar influenciando as transformações ambientais observadas no nível local. O primeiro deles está relacionado à dinâmica de relação dos habitantes das aldeias entre si, com os seres não humanos e com as paisagens que, por sua vez, interagem com as formas locais de uso e de ocupação do território em constante atualização. Mudanças nos modos de vida das comunidades, como as que estão relacionadas ao crescimento da população, ao aumento do consumo de itens industrializados, ao acúmulo de lixo, ao decréscimo das condições ambientais e ecológicas e à diminuição dos recursos naturais no entorno das áreas de ocupação mais antigas são elencados como fatores de grande influência nas transformações ambientais no nível local.

Outro fator significativo para as transformações ambientais das Terras Indígenas do Oiapoque são os empreendimentos e atividades dos não indígenas executadas com participação estatal, em muitos casos, no entorno e dentro dos limites das Terras Indígenas. Estes empreendimentos de ocupação e desenvolvimento da região têm resultado no crescimento da ocupação urbana do município do Oiapoque nos últimos anos, desencadeando o aumento do tráfego e de circulação de não indígenas nas regiões localizadas no entorno e dentro das TIs, principalmente no caso da TI Uaçá, atravessada por 60 quilômetros pela rodovia BR-156 em cujo trecho localizam-se 17 aldeias indígenas.

O terceiro e último fator elencado pelos pesquisadores está relacionado com o modo de vida dos não indígenas. Os indígenas possuem uma visão crítica do aspecto predatório dos não indígenas de segmentos urbanos e mais dependentes dos produtos industrializados. Nessa caracterização, se destaca o lixo, a poluição do ar e das águas, os grandes desmatamentos e degradação do ambiente e a exploração excessiva dos recursos naturais. Embora este último fator possa ser associado à discussão mais ampla das mudanças climáticas globais, ainda não está evidente como ele se relaciona com as transformações ambientais nas Terras Indígenas e é algo que será investigado ao longo da pesquisa.

Apesar de aparentemente independentes, existe entre esses fatores um elo que pode vir a ser um fio condutor para conectar os conhecimentos locais e os conhecimentos científicos e, também, as transformações ambientais locais e regionais aos debates científicos sobre as mudanças climáticas globais. Esse elo está relacionado à inserção dos povos indígenas no modo de vida dos não indígenas pelos processos coloniais que causaram e causam transformações profundas e que podem ser conectadas entre si tendo em vista as diferentes escalas (âmbito local, regional, nacional mundial). Pode-se observar, portanto, que os dois primeiros fatores citados estão conectados com o terceiro, e será necessário propiciar no desenrolar das atividades espaços de reflexão para que os estudantes/pesquisadores possam estabelecer conexões entre seus modos de conhecer e as teorias e debates científicos, que os possibilitem relacionar os diferentes fatores e elencar aqueles que são os mais importantes localmente na abordagem das transformações ambientais.

Nesse caso, o grande desafio é justamente entender e analisar os níveis de articulação entre os aspectos cosmológicos, os modos de organização social e política, as maneiras como foram experienciadas as histórias de contato com a sociedade envolvente e as formas como as comunidades estão se relacionando com a influência cada vez mais crescente dos universos culturais e sociais dos não indígenas.

Nesse sentido a pesquisa coletiva pode também contribuir para diminuir o déficit de estudos sobre o tema na região amazônica. A maior parte dos trabalhos produzidos até o momento sobre as transformações ambientais que podem estar associadas às mudanças climáticas foram desenvolvidos com populações indígenas e tradicionais nas regiões mais frias ou mais áridas do globo, onde os efeitos são mais visíveis (Leduc, 2007LEDUC, T. B. Sila dialogues on climate change: Inuit wisdom for a cross-cultural interdisciplinarity. Climatic Change, Berlin, v. 85, n. 3, p. 237-250, 2007., 2010LEDUC, T. B. Climate, culture, change: Inuit and Western dialogues with a warming North. Ottawa: University of Ottawa Press, 2010.; Prober; O’Connor; Walsh, 2011PROBER, S. M.; O’CONNOR, M. H.; WALSH, F. J. Australian Aboriginal peoples’ seasonal knowledge: a potential basis for shared understanding in environmental management. Ecology and Society, v. 16, n. 2, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/fad20822-c132-3480-80a8-11a2ec2efb07?seq=7 . Acesso em: 31 jul. 2023.
https://www.jstor.org/stable/fad20822-c1...
; Wenzel, 2009WENZEL, G. W. Canadian Inuit subsistence and ecological instability - if the climate changes, must the Inuit? Polar Research, Oslo, v. 28, n. 1, p. 89-99, 2009.; Williams, 2014WILLIAMS, M. Climate change in deserts. London: Cambridge University Press, 2014.). Nas regiões de florestas tropicais, os trabalhos sobre essas relações nos contextos e percepções indígenas e dos povos tradicionais ainda são incipientes, mas estão começando a ganhar volume com o tempo, especialmente no bioma amazônico (Bauer; De Jong; Ingram, 2022BAUER, T.; DE JONG, W.; INGRAM, V. Perception matters: an Indigenous perspective on climate change and its effects on forest-based livelihoods in the Amazon. Ecology and Society, [s. l.], v. 27, n. 1, 2022.; Fernández-Llamazares et al., 2017FERNÁNDEZ-LLAMAZARES, A. et al. An empirically tested overlap between indigenous and scientific knowledge of a changing climate in Bolivian Amazonia. Regional Environmental Change, [s. l.], v. 17, n. 6, p. 1673-1685, 2017. Disponível em: Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10113-017-1125-5 . Acesso em: 31 jul. 2023.
https://link.springer.com/article/10.100...
; Funatsu et al. 2019FUNATSU, B. M. et al. Perceptions of climate and climate change by Amazonian communities. Global Environmental Change, Amsterdam, n. 57, 101923, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0959378018309919 . Acesso em: 31 jul. 2023.
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; Lima; Fanzeres; Alcântara, 2018LIMA, A.; FANZERES, A.; ALCÂNTARA, L. Mudanças climáticas e a percepção indígena. Cuiabá: Operação Amazônia Nativa, 2018.; Vale; Oliveira, 2014VALE, S. B.; OLIVEIRA, A. R. (org.). Amazad Pana’adinhan: percepções das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas - Região Serra da Lua/RR. Boa Vista: Conselho Indígena de Roraima, 2014.).

Cabe ressaltar que nas últimas duas décadas muitos cientistas têm destacado, de modo inovador, o papel-chave do bioma amazônico e suas florestas na regulação do clima do Brasil e do planeta, tendo em vista os paradigmas que regem as ciências do clima. Nesse sentido as Terras Indígenas e o modo de viver de seus povos ampliam sua importância por representarem os menores índices de desmatamento na Amazônia quando comparado a terras privadas, mas que vem crescendo mais rapidamente nos últimos três anos (Mapbiomas, 2019MAPBIOMAS. [S. l.: s. n.], 2019. Disponível em: Disponível em: https://mapbiomas.org/ . Acesso em: 30 maio 2022.
https://mapbiomas.org/...
). Tendo a relevância das florestas salientada de forma crescente, muitos estudos e projetos envolvendo parcerias entre segmentos distintos têm buscado analisar quais os possíveis efeitos das mudanças climáticas sobre esse bioma. Ademais, há trabalhos de monitoramento em contextos envolvendo populações indígenas e tradicionais conjugando, nesses trabalhos, conhecimentos científicos e locais para entender e para trazer subsídios para a elaboração e implantação de estratégias de adaptação futuras.

Entendemos que as Terras Indígenas e os povos indígenas têm papel-chave na observação fina e qualificada das mudanças que vêm ocorrendo nos seus territórios, assim como na elaboração de estratégias criativas de adaptação, conforme já vêm fazendo desde o contato colonial. Além disso, demonstram modos de viver que dão mais ênfase nos princípios de interpendência e de equanimidade entre todas as formas de vida, o que se reflete na conservação dos territórios, oferecendo uma alternativa concreta ao modelo de desenvolvimento das sociedades capitalistas industrializadas que vêm levando ao colapso climático global.

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  • WILLIAMS, M. Climate change in deserts London: Cambridge University Press, 2014.
  • 1
    Utilizamos aqui o conceito de natureza com o intuito de propor um diálogo multidisciplinar. Salientamos, contudo, que é um conceito que vem sendo amplamente debatido na antropologia e apropriado pelos povos indígenas para exegeses para o público não indígena que envolvem seus conhecimentos sobre o ambiente e seres não humanos. Para maiores discussões sobre o conceito, ver Diegues (2001)DIEGUES, A. C. S. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2001. e Descola (2016)DESCOLA, P. Outras naturezas, outras culturas. São Paulo: Editora 34, 2016..
  • 3
    Para o ano de 2023, está prevista uma publicação em formato livro com os trabalhos realizados entre 2019 e o 1º semestre de 2022. Na publicação, os pesquisadores indígenas irão apresentar de modo mais detalhado o conjunto de dados referidos neste artigo.
  • 4
    O Iepé é uma entidade da sociedade civil sem fins lucrativos, criada em 2002, que tem como missão contribuir para o fortalecimento cultural, político e para o desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas na Amazônia oriental. O Iepé proporciona assessoria e capacitação técnica diversificada, entre as quais estão gestão de projetos, valorização e gestão de patrimônios culturais, fortalecimento político, associativismo e gestão territorial e ambiental. Sua atuação é pautada pelas demandas indígenas de formação, visando o fortalecimento de suas formas de gestão comunitária e coletiva, e buscando incidir para que os direitos dessas populações enquanto povos diferenciados sejam respeitados.
  • 5
    Os termos e categorias locais em língua indígena e/ou língua portuguesa relevantes para a pesquisa estão inscritos em itálico no artigo.
  • 6
    A associação das constelações/chuvas com os meses do ano é um exercício de tradução dos pesquisadores indígenas para realizar um diálogo entre conhecimentos, mas não condiz exatamente com a forma pela qual esses ciclos sazonais são concebidos nos regimes de conhecimento locais. Essa discussão sobre tradução é aprofundada mais adiante na seção “Dificuldades encontradas e desafios futuros da pesquisa sobre transformações ambientais”.
  • 7
    O kheoul é uma das línguas indígenas da região do Oiapoque, falada pelos povos Galibi Marworno e Karipuna. O povo Palikur Aruwwayene é falante do parikwaki e o povo Galibi Kali’na tem o português como sua primeira língua, havendo apenas a geração dos mais velhos falantes da língua desse povo, que é a língua kali’na. O kheoul também serve como língua franca entre os quatro povos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2022
  • Aceito
    26 Fev 2023
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