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Deficiência na cabeça: convite para um debate com diferença

Disability in the head: an invitation to a debate with difference

Resumo

Este texto organiza-se como um convite para que se coloque deficiência na cabeça para fazer antropologia. Com base na bibliografia sobre marcadores sociais da diferença e interseccionalidade, o texto se divide em duas entradas. Na primeira delas, são apresentadas leituras a contrapelo de procedimentos basilares do trabalho com marcadores sociais da diferença na antropologia, que buscam dialogar com outros “aleijamentos” teórico-metodológicos que vêm sendo propostos como contribuições críticas dos estudos da deficiência. A partir da compreensão da deficiência como diferença, são apresentadas disputas acerca de formas e operações de classificação, com foco na produção brasileira. A segunda entrada, como uma pequena conclusão, consiste de um esquema de trabalho com a noção de diferença, ressaltando alguns de seus aspectos constitutivos.

Palavras-chave:
deficiência; marcadores sociais da diferença; interseccionalidade; diferença

Abstract

This text is organized as an invitation to put disability in the head in the making of anthropology. Based on the bibliography on social markers of difference and intersectionality, the text is divided in two entries. In the first one, I present counter readings of basic procedures of the work with social markers of difference in anthropology, dialoguing with other theoretical-methodological “crippings” that have been proposed in the field of Disability Studies. Based on the understanding of disability as a difference, disputes about classification forms and operations are presented, with a focus on the Brazilian production. The second entry, as a short conclusion, consists of a working scheme with the notion of difference, highlighting some of its constitutive aspects.

Keywords:
disability; social markers of difference; intersectionality; difference

Precisamos ocupar a Antropologia com a multiplicidade da deficiência e ocupar a multiplicidade da deficiência na Antropologia. Nada mais será como antes.

Adriana Dias (2020DIAS, A. Pensar a deficiência, algumas notas, e se me permitem um convite. In: ALLEBRANDT, D.; MEINERZ, N. E.; NASCIMENTO, P. G. (org.). Desigualdades e políticas da ciência. Florianópolis: Casa Verde, 2020. p. 163-200., p. 195)

Um texto sobre deficiência e antropologia, escrito no Brasil, pode muito bem vir por histórias de faltas, esquecimentos ou silêncios, não raro descritas via metáforas de cegueira ou surdez, por exemplo - não enxergar deficiência quando lá ela estava, não ouvir o que se estava dizendo. Também pode ser um texto sobre um campo em emergência, como sinaliza a chamada para este dossiê, bem como as ações em rede que vêm ganhando impulso desde os anos 2010 nas esferas de atuação e interlocução acadêmicas. Seria possível também compor-se um texto que investiga elipses e mostra que, lá onde se discutia, por exemplo, a centralidade da eugenia na constituição da nação, estava-se tratando de deficiência, que, quando se pesquisa gênero e erotismo, deficiência é um elemento-chave.

Este texto foi redigido como um convite. 1 1 Este artigo parte de alguns trechos de minha tese de doutorado, Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica (Lopes, 2020). A tese foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, orientada por Laura Moutinho e contou com os recursos de bolsa de doutorado Capes: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, e do Edital Pró-África CNPq: “A Vizinhança nas entrelinhas: alianças e conflitos, trocas (des)iguais e cooperação entre Moçambique e África do Sul” (projeto selecionado na Chamada MCTI/CNPq nº 46/2014), coordenado por Laura Moutinho. Agradeço especialmente a Thais Tiriba e Laís Miwa Higa pelas leituras finais deste texto.

A proposta é oferecer algumas pistas teórico-metodológicas para que se coloque deficiência na cabeça. Pensar com deficiência retorce provocativa e severamente nossos repertórios imaginativos, nossas suposições acerca do que pode e do que não pode um corpo, nossas compreensões sobre o que é ser sujeito, nossas linguagens sobre igualdade, diferença e hierarquia, nossos horizontes de desejo, nossos horizontes políticos, nossas compreensões de moralidade, nossas compreensões do que é bom, do que é íntegro, do que é completo, do que é humano, do que é compartilhado ou universal. Não se trata de imaginar deficiência em seu próprio corpo, caso não se tenha deficiência - embora esse seja um horizonte corporal inescapável para quem vive por muito tempo, venha por acidentes ou atrelado ao adoecimento, venha pelo envelhecimento. Também não se trata de “se colocar no lugar do outro”. Longe disso. “Sujeitos” e “lugares” são a mesma coisa numa perspectiva socioantropológica. Se “alguém” “se coloca” no “lugar” “do outro”, esse “alguém” já não é mais “o mesmo”, pois navegar por lugares sociais não é algo que façamos com o pensamento, mas com o corpo todo. Nesse convite para que se coloque deficiência na cabeça, a expressão “cabeça” é uma metonímia, não uma metáfora. Ela faz alusão ao corpo como sujeito e não metaforiza o intelecto. Trata-se, então, de um convite para tomar deficiência como uma questão sociológica fundamental, enquadrar deficiência como um problema central para a perspectiva antropológica, de estabelecer intencionalmente trocas com pessoas com deficiência. Espero, ao final das páginas que seguem, que deficiência comece a entrar na sua cabeça - se não estiver desde já. Para tanto, proponho um debate com diferença.

A noção de diferença, de certa forma aparentada da noção de alteridade, talvez seja uma peça-chave da perspectiva antropológica. Desde fins do século XX, uma miríade de termos vem contribuindo para que tenhamos categorias e conceitos para lidar com a compreensão de que a diferença, a hierarquia e a desigualdade sociais dão-se na constituição mútua e complexa entre sistemas classificatórios: marcadores sociais da diferença (Cancela; Moutinho; Simões, 2015CANCELA, C. D.; MOUTINHO, L.; SIMÕES, J. (org.). Raça, etnicidade, sexualidade e gênero: em perspectiva comparada. São Paulo: Terceiro Nome, 2015.; Henning, 2015HENNING, C. E. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações: revista de ciências sociais, Londrina, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015.; Hirano; Acuña; Machado, 2019HIRANO, L. F. K; ACUÑA, M.; MACHADO, B. F. (org.). Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções. Goiânia: Imprensa Universitária, 2019.; Moutinho, 2014MOUTINHO, L. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 201-248, 2014.; Saggese et al., 2018SAGGESE, G. et al. (org.). Marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome: Gamma, 2018.; Simões; França; Macedo, 2010SIMÕES, J. A.; FRANCA, I. L.; MACEDO, M. Jeitos de corpo: cor/raça, gênero, sexualidade e sociabilidade juvenil no centro de São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, p. 37-78, 2010.), interseccionalidades (Akotirene, 2018AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.; Biroli; Miguel, 2015BIROLI, F.; MIGUEL, L. F. Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na reprodução das desigualdades. Mediações: revista de ciências sociais, Londrina, v. 20, n. 2, p. 27-55, 2015.; Collins, 2017COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 6-17, jun. 2017.; Collins; Bilge, 2020COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020.; Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002., 2020CRENSHAW, K. Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas identitárias e violência contra mulheres de cor. Tradução: Paula Granato e Gregório Benevides, Revisão técnica: Allyne Andrade e Silva. In: MARTINS, A. C.; VERAS, E. (org.). Corpos em aliança: diálogos interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade. Curitiba: Appris, 2020. p. 23-98.; Moutinho, 2014MOUTINHO, L. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 201-248, 2014.; Piscitelli, 2008PISCITELLI, A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 2, p. 263-274, 2008.; Rios; Sotero, 2019RIOS, F.; SOTERO, E. Gênero em perspectiva interseccional. Plural, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 1-10, 2019.), categorias de articulação/associação de categorias (Hirano, 2019HIRANO, L. F. K. Marcadores sociais das diferenças: rastreando a construção de um conceito em relação à abordagem interseccional e a associação de categorias. In: HIRANO, L. F. K; ACUÑA, M.; MACHADO, B. F. (org.). Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções. Goiânia: Imprensa Universitária, 2019. p. 27-55.; McClintock, 2010McCLINTOCK, A. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.; Piscitelli, 2008PISCITELLI, A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 2, p. 263-274, 2008.), alquimias (Castro, 1992CASTRO, M. G. Alquimia de categorias sociais na produção dos sujeitos políticos. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 0, n. 0, p. 57-73, 1992.), consubstancialidades (Hirata, 2014HIRATA, H. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-74, nov. 2014.; Kergoat, 2010KERGOAT, D. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 86, p. 93-103, 2010.), agenciamentos (Puar, 2013PUAR, J. “Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa”: interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. Meritum, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p. 343-370, 2013.), caleidoscópios (Sardenberg, 2015SARDENBERG, C. Caleidoscópios de gênero: gênero e interseccionalidades na dinâmica das relações sociais. Mediações: revista de ciências sociais, Londrina, v. 20, n. 2, p. 56-96, 2015.) ou operadores de diferenças (Facchini, 2008FACCHINI, R. Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.).2 2 O elenco de referências aqui evidentemente não é exaustivo e apenas procura sinalizar alguns caminhos entrecruzados de interlocução. Dei preferência a trabalhos brasileiros ou em português e que oferecem mapeamentos ou contornos conceituais aos termos apresentados. Esses são alguns dos termos que ajudam a perceber, descrever e analisar a articulação constitutiva entre raça, gênero, classe e também sexualidade, idade, geração, nacionalidade, regionalidade, língua, etnia, religião e deficiência, entre outras formas de classificação social que, de modos múltiplos, operam diferenças e desigualdades em variados contextos sociais e de pesquisa. Aqui, mobilizo preferencialmente as noções de interseccionalidade e marcadores sociais da diferença.

Em 2018, Carla Akotirene publicou um livro sobre interseccionalidade, produto de uma oficina realizada com Kimberlé Crenshaw na University of Wisconsin para o Coletivo Angela Davis, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. A Crenshaw, uma jurista estadunidense e forte influência para o desenvolvimento dos estudos críticos raciais, é atribuída a autoria da noção de interseccionalidade nos contornos de um conceito, na virada da década de 1980 para 1990. A própria Crenshaw e muitas de suas interlocutoras, contudo, atribuem a autoria da interseccionalidade como ideia e experiência nos Estados Unidos às movimentações de mulheres negras, latinas e lésbicas desde os anos 1970 (consultar, por exemplo, Collins, 2017COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 6-17, jun. 2017.). Percorrendo a interseccionalidade em suas variadas dimensões, Akotirene (2018)AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018. a certa altura de sua escrita a descreve como uma sensibilidade analítica, afeita à intervenção e interpelação em regimes de saber e estruturas de poder, uma forma de prática.3 3 A esse respeito, consultar também as pesquisas de Flávia Rios e Regimeire Maciel (2017/2018), Flávia Rios, Olívia Perez e Arlene Ricoldi (2018) e de Stephanie Lima (2020).

A noção de marcadores sociais da diferença, que vem sendo discutida no Brasil em diversas frentes (Hirano, 2019HIRANO, L. F. K. Marcadores sociais das diferenças: rastreando a construção de um conceito em relação à abordagem interseccional e a associação de categorias. In: HIRANO, L. F. K; ACUÑA, M.; MACHADO, B. F. (org.). Marcadores sociais das diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções. Goiânia: Imprensa Universitária, 2019. p. 27-55.), contribui para a análise a partir da imagem da marca(ção) e da atenção que nos convoca aos sistemas de classificação que estruturam as relações sociais. Isso significa pensar que “[…] a diferença é constituída por meio de taxonomias e classificações que acentuam certos sentidos de diferença, ao ponto de tomá-los como corriqueiros, ‘dados’ ou ‘naturais’, enquanto outros são subestimados ou circunstancialmente esquecidos” (Almeida et al., 2018ALMEIDA, H. B. de et al. Numas, 10 anos: um exercício de memória coletiva. In: SAGGESE, G. et al. (org.). Marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome: Gamma, 2018. p. 9-30., p. 19). Meu ponto ao mobilizá-la diz respeito a notar que, na produção de diferença, as formas de opressão - ora nomeadas como racismos, sexismos, capacitismos - são articuladas às formas de classificação - como raça, gênero, deficiência.

Deficiência, então, é uma categoria incomodamente ausente de muitos debates sobre diferença. Quando aparece, em linhas gerais, ou está logo antes do famoso “etc.” ao fim de um elenco de formas de classificação, ou é porque a pesquisa dedica-se a campos da experiência social literalmente rotulados pela noção de deficiência. Nas páginas que se seguem, o convite registrado é a que possamos cultivar sensibilidades analíticas atentas à ubiquidade da deficiência na experiência social, a partir de algumas proposições teórico-metodológicas. O texto que segue divide-se em duas entradas. Na primeira delas, convido quem lê a colocar deficiência na cabeça como diferença e a exercitar sua sensibilidade analítica com a categoria. Na segunda entrada, como uma pequena conclusão, ofereço um esquema de trabalho com a noção de diferença, ressaltando alguns de seus aspectos que me parecem constitutivos.

Deficiência na diferença

Enquadrar a deficiência como uma diferença, ou num paradigma interseccional, ou como marcador social da diferença, é um esforço coletivo a que temos nos dedicado de modos variados na pesquisa com deficiência, em relação ao qual é fundamental a interlocução na produção e consolidação de certos eixos de análise. Neste texto, muitos desses trabalhos estão referenciados.

O trabalho com interseccionalidade e marcadores sociais da diferença estrutura-se a partir de práticas de articulação - ora desdobradas em termos de entrecruzamentos analíticos, ora em termos de coalisões políticas (Collins; Bilge, 2020COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020.). Para a pesquisa, isso significa um desafio importante: conhecer e dialogar com diferentes tradições disciplinares, produzidas na interlocução com distintos históricos de ativismos. O convite aqui registrado é para que qualifiquemos nossas sensibilidades analíticas e investigativas com deficiência, invistamos na leitura com deficiência, pois, ao que parece, essa é uma categoria bastante fundamental na estruturação de experiências sociais as mais diversas.

Não se trata, portanto, de traçar paralelos apressados entre raça, gênero, sexualidade e deficiência, mas assinalar que, no trabalho com diferença, estamos tratando de campos que se desenrolam com problemas de pesquisa e enquadramentos políticos simultaneamente conectados e distintos. O projeto de uma análise interseccional, ou da articulação de marcadores sociais da diferença, vem justamente da aproximação de campos políticos e de campos disciplinares. Esse é um desafio e uma orientação de análise.

Apresentam-se a seguir, então, duas leituras a contrapelo de procedimentos basilares do trabalho com marcadores sociais da diferença na antropologia, que buscam dialogar com outros aleijamentos teórico-metodológicos que vêm sendo propostos como contribuições críticas dos estudos da deficiência (Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia, 2020COMITÊ DEFICIÊNCIA E ACESSIBILIDADE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Contracartilha de acessibilidade: reconfigurando o corpo e a sociedade. Brasília: ABA: Anpocs: UERJ: Anis: Conatus: Naci, 2020.; Gavério, 2015GAVÉRIO, M. A. Medo de um planeta aleijado? - Notas para possíveis aleijamentos da sexualidade. Áskesis, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 103-117, 2015.; McRuer, 2021McRUER, R. Aleijando as políticas queer, ou os perigos do neoliberalismo. Tradução de Marco Antonio Gavério. Educação em Análise, Londrina, v. 6, n. 1, p. 105-119, 2021.; Mello, 2019MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.; Mello; Gavério, 2019MELLO, A. G.; GAVÉRIO, M. A. Facts of cripness to the Brazilian: dialogues with Avatar, the film. Anuário Antropológico, Brasília, v. 44, n. 1, p. 43-65, jun. 2019.). Essas duas leituras são oferecidas como recomendações (im)pertinentes ao trabalho com diferença.

Deficiência na atenção: o que há numa descrição?

A primeira recomendação parte da leitura a contrapelo do procedimento de, na pesquisa sobre diferença, voltar a atenção para “diferenças que fazem diferença” (Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.), ou “relações de relações” (Almeida et al., 2018ALMEIDA, H. B. de et al. Numas, 10 anos: um exercício de memória coletiva. In: SAGGESE, G. et al. (org.). Marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome: Gamma, 2018. p. 9-30.) tal como se apresentam nos campos de investigação. Empiricamente, esse procedimento significa o adensamento descritivo para que daí se notem quais são as categorias socialmente relevantes naqueles contextos, por eles produzidas ou que deles emergem. Tal empenho faz par com a perspectiva antropológica e o trabalho etnográfico (p. ex. Geertz, 1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.).

Em ambos os casos, entre os debates sob a insígnia dos marcadores sociais da diferença e da antropologia ou etnografia, uma questão fundamental parece ser: a que damos atenção, o que procuramos, o que perguntamos quando fazemos pesquisa? Ou seja, o que há numa descrição?

Diversas pesquisas antropológicas, inclusive aquelas sobre diferença, são realizadas em contextos nos quais não há nenhuma pessoa com deficiência aparente, ou há poucas. Dessa escassez, resulta que muitas vezes se tira a conclusão: deficiência nesse cenário não é uma “diferença que faz diferença”. O trabalho com marcadores sociais da diferença, contudo, oferece pistas para se questionar essa conclusão, particularmente ao destacar que gênero, raça e sexualidade podem ser operacionalizados em pesquisa não apenas como classificações êmicas, mas também ferramentas analíticas: um contexto no qual não há nenhuma mulher também é profunda e constitutivamente marcado por gênero, um contexto no qual só há pessoas brancas pauta-se fundamentalmente por lógicas raciais. Ou seja, marcadores dizem respeito tanto às posicionalidades marcadas por categorias de diferença quanto às posicionalidades hegemônicas que costumam se fazer de universais, não marcadas.

Similarmente, portanto, deficiência pode muito bem não parecer estar nos contextos de pesquisa com os quais nos engajamos, se não tivermos recursos analíticos, ou sensibilidades analíticas, para reconhecê-la. Recorro a um breve exercício imaginativo: pergunto, o que há na guerra? Na história da antropologia, conforme Keith Otterbein (2000)OTTERBEIN, K. A history of research on warfare in anthropology. American Anthropologist, [s. l.], v. 101, n. 4, p. 794-805, 2000., a temática da guerra construiu-se a partir de um par de oposições, entre a figura do “selvagem pacífico” e do “selvagem guerreiro” - entre uma abordagem evolucionista e uma abordagem relativista. O que estaria em jogo nesses primeiros trabalhos, que Otterbein localiza entre os anos 1920 e 1960, é justamente refletir sobre os impactos do colonialismo e da constituição de Estados nacionais, enquanto a Europa passava por duas grandes guerras. Na guerra há raça e nação.

Muitos trabalhos, a partir de uma perspectiva de gênero ou feminista, passam a pensar guerra segundo outros enquadramentos. Jacklyn Cock (1993COCK, J. The place of gender in a demilitarisation agenda. Agenda: empowering women for gender equity, [s. l.], n. 16, p. 49-55, 1993., p. 53, tradução minha) é uma das autoras que contribuem com essa reflexão, desde a África do Sul, colocando em evidência a profunda conexão cultural entre virilidade e militarismo: “O cerne do treinamento militar é inculcar agressividade e equipará-la a masculinidade.” Na guerra há gênero.

Em 1982, Henri-Jacques Stiker (1999)STIKER, H.-J. A history of disability. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1999. publica Corps infirmes et sociétés. Essais d’anthropologie historique - sugestivamente traduzido para o inglês em 1999 como A history of disability -, que traz como argumento que a Primeira Guerra Mundial opera uma quebra fundamental em relação ao que chamamos de deficiência, inaugurando um paradigma de reabilitação na compreensão da variação de formas e funções corporais. Na guerra há deficiência.4 4 Denise Pimenta (2019) demonstra as articulações entre gênero, deficiência e nação no contexto da guerra em Serra Leoa, e suas atualizações com a epidemia de ebola, apresentando uma etnografia particularmente eloquente em relação aos pontos aqui assinalados.

Ou seja, há aspectos pertinentes à análise do social que eventualmente não emergirão dos contextos de pesquisa, não porque lá não estejam, mas por causa dos enquadramentos disciplinares, teóricos, analíticos de nossas perspectivas: o modo como elaboramos nossos problemas de pesquisa, as fronteiras que definimos para aquilo que chamamos de “campo”, o que chamamos de “categorias êmicas” e o que chamamos de “categorias analíticas”. Quando gênero ou raça, por exemplo, deslizam entre categorias êmicas e analíticas, viram recursos interpretativos e políticos que permitem interpelar um “campo” no qual quem faz pesquisa também está situada ou situado (p. ex. Almeida, 2002ALMEIDA, H. B. de. Mulher em campo: reflexões sobre a experiência etnográfica. In: ALMEIDA, H. B. de et al. (org.). Gênero em matizes. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002. p. 49-80.; Figueiredo, 2015FIGUEIREDO, A. Carta de uma ex-mulata a Judith Butler. Periódicus, Salvador, v. 1, n. 3, p. 152-169, 2015.; Galicho, 2021GALICHO, B. Caminhos da diferença: corpo e cidade na circulação cotidiana das mulheres da periferia sul de São Paulo. 2021. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.; Gama, 2020GAMA, F. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. Anuário Antropológico, Brasília, v. 45, n. 2, p. 188-208, 2020.; Gilliam; Gilliam, 1995GILLIAM, A.; GILLIAM, O. Negociando a subjetividade da mulata no Brasil. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 525-543, 1995.; Higa, 2015HIGA, L. M. Umi Nu Kanata - do outro lado do mar: história e diferença na “comunidade okinawana brasileira”. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.; Mello, 2019MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.; Souza, 2014SOUZA, V. A. de. Os tambores das ‘yabás’: raça, sexualidade, gênero e cultura no Bloco Afro Ilú Obá De Min. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.).

Minha trajetória de pesquisa acerca da temática da deficiência, em muitos sentidos, produziu-se por essa tensão de categorias entre o “êmico” e o “analítico”. Em minha experiência de mestrado junto a uma empresa de lazer que organizava passeios aos finais de semana para “pessoas especiais” (Lopes, 2014LOPES, P. Negociando deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual”. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.), a deficiência, enquanto categoria empírica e analítica, era algo que vinha de meu repertório e não das interações “em campo” - usavam-se termos como “pessoas especiais”, “ter problema”. Ou melhor, a questão da deficiência vinha do repertório que pude construir com “outros interlocutores”: pesquisadoras e pesquisadores dos estudos da deficiência - a começar por Debora Diniz (2007)DINIZ, D. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007. e seu convite à reflexão em O que é deficiência. Isso me levou a reenquadrar o “campo”, incluir nele a interpelação à “teoria” e nele me posicionar como sujeito e como sujeito sem deficiência (Lopes, 2020LOPES, P. Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.).

Essa não é uma especificidade de minha trajetória, evidentemente. Anahí Guedes de Mello (2019)MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019., em sua tese Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue, retoma a história de uma autora clássica da antropologia, Ruth Benedict, refletindo sobre os sentidos de sua surdez em sua trajetória e produção. Nesse empreendimento, a autora destaca que revisitar o trabalho de uma referência antropológica clássica a partir da consideração de sua surdez representa uma interpelação à “forma como antropólogas e antropólogos concebem o método etnográfico, a partir do olhar e do ouvir como formas privilegiadas de produção etnográfica”, elaborando a noção de uma “reflexividade defiça” (Mello, 2019MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019., p. 53, 55, grifo da autora). Nesse empenho, Mello demonstra como a circunscrição e o engajamento fenomênico e analítico com o “campo” é profundamente articulado a quem é o sujeito que faz pesquisa.

Adriana Dias (2020)DIAS, A. Pensar a deficiência, algumas notas, e se me permitem um convite. In: ALLEBRANDT, D.; MEINERZ, N. E.; NASCIMENTO, P. G. (org.). Desigualdades e políticas da ciência. Florianópolis: Casa Verde, 2020. p. 163-200., em “Pensar a deficiência, algumas notas, e, se me permitem, um convite” discute as condições de acessibilidade não apenas das instituições de ensino e pesquisa, mas dos campos de pesquisa etnográfica, o que promove uma intervenção crítica acerca de como pensamos o que seja o espaço público, o espaço da pesquisa, o corpo de quem pesquisa:

Se há, verdadeiramente, espaço para ocupar a antropologia com estudantes com deficiência, eu, como mulher com deficiência, gostaria de comentar que a maior parte do trabalho de campo não é acessível. E isso deve ser discutido. Inclusive, a respeito de quem deve pagar por isso. A “formação clássica” exige pesquisa de campo antropológica - e deve exigir - envolvendo meses em um local a ser escolhido pela pesquisa - e a grande maioria desses lugares é absolutamente inacessível para aqueles com deficiência, ou mesmo para pessoas que necessitem de cuidados médicos frequentes. (Dias, 2020DIAS, A. Pensar a deficiência, algumas notas, e se me permitem um convite. In: ALLEBRANDT, D.; MEINERZ, N. E.; NASCIMENTO, P. G. (org.). Desigualdades e políticas da ciência. Florianópolis: Casa Verde, 2020. p. 163-200., p. 191-192).

Essas produções interpeladoras sinalizam que aquilo que se nota “em campo” não necessariamente vem do que o “campo” apresenta, ora nem do que a “teoria” nos faz procurar, mas também das posicionalidades sociais e corporalidades que encarnamos e do modo como abordamos tais relações.

Nessa frente, que toma deficiência como categoria analítica e de diferença, é raro que se mobilize, por exemplo, a imagem da deficiência como metáfora da falta (“este texto está deficiente”), não porque há um policiamento de linguagem, mas porque os sentidos pejorativos, vexatórios e subalternizantes da deficiência estão em disputa também subjetiva - se preferir, ontológica. Isso diz respeito a um imbricamento com a deficiência que é também autoral, ou melhor, significa enquadrar a posição deficiente como uma fonte afirmativa de autoria.

No debate sobre marcadores sociais da diferença e interseccionalidade, esse conjunto de questões estava presente na noção de perspectiva feminista ou feminist standpoint, que ganha variadas formulações por autoras do feminismo negro estadunidense (como Collins, 2019COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019. e Crenshaw, 2020CRENSHAW, K. Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas identitárias e violência contra mulheres de cor. Tradução: Paula Granato e Gregório Benevides, Revisão técnica: Allyne Andrade e Silva. In: MARTINS, A. C.; VERAS, E. (org.). Corpos em aliança: diálogos interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade. Curitiba: Appris, 2020. p. 23-98.) e brasileiro (como Bairros, 1995BAIRROS, L. Nossos feminismos revisitados. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 3, n. 2, p. 458-463, 1995.; Gonzalez, 2019GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 237-258.; mais recentemente, Ribeiro, 2017RIBEIRO, D. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento, 2017.), que sinalizam com força a diferença que faz quando sujeitos marcados por categorias de diferença assumem autorias. Esse de fato parece ser um problema bastante pertinente à produção feminista, antirracista, daquela que enfrenta o colonialismo e também da anticapacitista e defiça.

Na criação do campo de estudos da deficiência, tão fundamentalmente articulado aos movimentos sociais, a politização da autoria está igualmente presente. É justamente o surgimento de organizações por pessoas com deficiência, e não para pessoas com deficiência, que leva à substancialização do campo disciplinar (consultar, por exemplo, Diniz, 2007DINIZ, D. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007.; Gavério, 2017aGAVÉRIO, M. A. Estranha atração: a criação de categorias científicas para explicar os desejos pela deficiência. 2017. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2017a.). Cumpre notar, neste ponto, a importância analítica e política da contribuição de pessoas com deficiência para a pesquisa social: não só em função do lema internacional do movimento, elaborado pela militância sul-africana, “nada sobre nós sem nós”, ou “nada sobre a gente sem a gente”, mas também porque o engajamento de pessoas com deficiência na pesquisa com temas marcados ou não pela categoria contribui com o adensamento analítico acerca de variados processos sociais - inclusive, a deficiência pode se fazer notar onde sequer se a procurava.

A recomendação aqui, então, é tomar a contrapelo o procedimento de buscar “do campo” as categorias pertinentes à análise e incluir deficiência como categoria analítica potente e urgente para a pesquisa antropológica, inclusive na reflexão densa acerca de nossas ferramentas analíticas que produzem fronteiras (e porosidades) estratégicas entre os domínios do “campo” e da “teoria”.

Deficiência na analogia: um jogo de (des)encaixes?

A segunda leitura a contrapelo que sugiro a partir do trabalho com deficiência diz respeito à famosa metáfora de Anne McClintock (2010)McCLINTOCK, A. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 2010., que sumariza os fundamentos da análise interseccional: as categorias de diferença não se encaixam como peças do brinquedo Lego, como peças de encaixe - ou numa somatória de marcações. Concordo que não o fazem. As classificações concernentes a raça, gênero e classe, por exemplo, combinam-se de modos tão complexos que a interseccionalidade apresenta-se como um projeto, ou uma sensibilidade analítica, e não apenas um referencial de pesquisa pronto.

Contudo, se não há homologias, há analogias. Com deficiência na cabeça, um tema não raro ignorado, quando não menorizado, trancafiado ou hostilizado, eu diria: se não se trata de um jogo de encaixe, parece - e não só parece, mas manusear as peças traz contribuições importantes. Ou, melhor, a diferença não só é constitutivamente articulada, ela se produz por analogia. Pensamos com categorias de gênero ao abordar raça: “os negros”, “os brancos”. Pensamos com categorias de raça para expressar gênero: “as mulheres” são brancas até que se indique que não o são - “as mulheres negras”. “O homem” é universal e, enquanto tal, branco. Ou seja, a produção da diferença por categorias classificatórias é engendrada por paralelos comparativos que operam efeitos de elipse, reiteração, silenciamento, hipervisibilidade (ou, nos termos de Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002., superinclusão e subinclusão). Há que se atentar às potências e perigos dessa constituição complexa e mútua dos marcadores sociais da diferença.

Deficiência, como categoria analítica e política, também se funda pela analogia. Na emergência dos estudos sobre deficiência, a teoria feminista e a reflexão sobre gênero foram estruturantes para a elaboração, nos anos 1970 na Inglaterra, do famoso modelo social da deficiência, cujo fundamento era pensar que o sexo está para o gênero como a lesão ou o impedimento está para a deficiência. Esse foi um paradigma estratégico a partir do qual deficiência passou a ser sistematicamente reivindicada como um problema de ordem social e sociológica.5 5 Marco Antonio Gavério (2017a) percorre detalhadamente esse processo, inclusive no cotejamento entre diferentes “modelos” da deficiência, em especial entre Inglaterra e Estados Unidos. Na tradição sul-africana, por sua vez, a reflexão sobre raça, desigualdade e segregação foi igualmente basilar para a organização do ativismo relacionado a deficiência: as pessoas com deficiência na África do Sul só seriam livres se todas as pessoas da África do Sul fossem livres do sistema de segregação racial (Lopes, 2019bLOPES, P. Deficiência como categoria do Sul Global: primeiras aproximações com a África do Sul. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, e66923, 2019b., 2020LOPES, P. Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.) - além disso, a distribuição racialmente desigual da violência engendrava desigualdade na produção de deficiências. Desde os anos 2000, análises que abordam deficiência em termos de diferença e interseccionalidade proliferam entre as pesquisas sobre o tema.

Além das analogias e articulações políticas e interpretativas, há um substrato histórico que tanto ocasiona como justifica a articulação entre raça, gênero, deficiência e sexualidade.6 6 Seria possível construir uma argumentação de algum modo aparentada no que se refere a classe, idade e geração. Para isso, além das referências já citadas, assinalo trabalhos que oferecem enquadramentos analíticos para as noções de geração, idade e curso de vida (Debert, 2014; Debert; Simões; Henning, 2016; Simões, J. A., 2013) e classe (Bueno; Macedo, 2018; Zamboni, 2014). Embora cada uma dessas categorias conte com sua historicidade própria, elas se inscrevem na explicação naturalizada da desigualdade social por um processo histórico relativamente compartilhado entre os campos das “ciências do homem” desde o século XIX, eugenia, criminologia, antropometria, sexologia e outras vertentes disciplinares com severos efeitos sociais - do desenho das cidades ao controle de fronteiras nacionais, de políticas de segregação e encarceramento a políticas de esterilização.

Historicamente, os nomes aqui são muitos. Eugenia é um deles, dispositivo de sexualidade é outro, império ou colonialismo adicionam ainda outras conexões. O que chamamos contemporaneamente de raça, gênero, sexualidade e deficiência emerge de um mesmo processo histórico, no rescaldo do liberalismo e da crença na unidade da espécie humana e sua igualdade de jure como explicações naturalizadas das desigualdades de fato.

A respeito dessas elaborações eugenistas da diferença, Lennard Davis (2010DAVIS, L. Constructing normalcy. In: DAVIS, L. (ed.). The disability studies reader. 3rd. ed. New York: Routledge, 2010. p. 3-19., p. 10, tradução minha) evidencia a associação quase indiferenciada entre raça, classe e deficiência na figura da “debilidade mental”:

Um dos focos centrais da eugenia foi o que era amplamente chamado de “debilidade mental”. Esse termo incluía baixa inteligência, doença mental e até “pauperismo”, uma vez que baixa renda era equiparada a “relativa ineficiência”. Da mesma forma, certos grupos étnicos foram associados a debilidade mental e pauperismo.

O que a cena científica das diferenças do século XIX performa é a inscrição de desigualdades sociais na carne, na moral, na pele, no sexo, no intelecto, nos desejos, nas aptidões e potenciais das pessoas, organizando-as em termos estatísticos e intervenções variadas, fazendo “da própria natureza uma cúmplice no crime da desigualdade política” (Condorcet apudGould, 1991GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 5). Um argumento que atravessa muitos trabalhos sobre gênero, raça, sexualidade e deficiência é que as ciências racistas (Lobo, 2009LOBO, L. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.; Schwarcz, 1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.), sexistas (Laqueur, 2001LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.; Leite Jr., 2008LEITE JR., J. “Nossos corpos também mudam”: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.) e capacitistas (Block, 2020BLOCK, P. Esterilização e controle sexual. In: ALLEBRANDT, D.; MEINERZ, N. E.; NASCIMENTO, P. G. (org.). Desigualdades e políticas da ciência. Florianópolis: Casa Verde, 2020. p. 201-222.; Dias, 2013DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal a narrativa capacitista social. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DEFICIÊNCIA, 1., 2013, São Paulo. Anais […]. São Paulo: SEDPcD: Diversitas: USP Legal, 2013. Disponível em: Disponível em: https://docplayer.com.br/145111795-Por-uma-genealogia-do-capacitismo-da-eugenia-estatal-a-narrativa-capacitista-social.html . Acesso em: 20 out. 2021.
https://docplayer.com.br/145111795-Por-u...
, 2020DIAS, A. Pensar a deficiência, algumas notas, e se me permitem um convite. In: ALLEBRANDT, D.; MEINERZ, N. E.; NASCIMENTO, P. G. (org.). Desigualdades e políticas da ciência. Florianópolis: Casa Verde, 2020. p. 163-200.) da modernidade produziram narrativas naturalizantes que inscreveram no corpo das pessoas as diferenças sociais que elas viviam em função de estruturas de desigualdade. Ao longo do século XX, essa linguagem de diferença foi se transformando e aquelas categorias de subalternização foram sendo ressignificadas, organizando-se em termos de diferença positiva e identidade.

O ponto nesta segunda leitura a contrapelo do referencial dos marcadores sociais da diferença e interseccionalidade, então, é a recomendação de que, na pesquisa com diferença, atentemos aos perigos de falsas equivalências e homologias, mas também nos detenhamos no caráter fundamental da analogia.

Deficiência na classificação: nomes e fronteiras em disputa

Feitas essas contraleituras acerca do procedimento de “não ir a campo com uma lista de diferenças a serem investigadas” (talvez manter uma listinha básica ou cultivar uma sensibilidade analítica e descritiva em relação a deficiência) e de “não tomar marcadores sociais da diferença como peças de encaixe” (mas talvez exercitar o desencaixe), ofereço algumas indagações atentas aos repertórios de linguagem que mobilizamos ao nos referir à deficiência. Neste momento, o esforço objetiva, justamente, reunir recursos para contribuir à produção de inteligibilidade sociológica e investigativa, recorrendo a analogias entre formas de diferença.

Um ponto fundamental certamente é entender, afinal, a que nos referimos quando usamos a categoria deficiência. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU traz o seguinte texto em seu primeiro artigo:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (Brasil, 2007BRASIL. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos/Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2007.).7 7 A Convenção foi adotada pela ONU em 2006, assinada pelo Brasil em 2007 e deu base à Lei Brasileira de Inclusão, ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, editada em 2015.

A importância política e jurídica dessa definição, de franca inspiração sociológica, contudo, não esgota a potencialidade e complexidade da noção de deficiência como categoria vivida e disputada. Deficiência é, simultaneamente, uma categoria médica, jurídica, administrativa, censitária, cultural, identitária, subjetiva, pejorativa, afirmativa, analítica, enfim, relacional. Ela se relaciona às nossas formas e funções corporais, mas deficiência não se esgota em disposições físicas, motoras, sensoriais, intelectuais ou psíquicas. Ou seja, ter ou não ter deficiência não é uma classificação simples. Mas, se é uma classificação, um marcador social da diferença, como pensar deficiência em termos de sistema?8 8 Mobilizo aqui alguns argumentos que apresentei em outra oportunidade (Lopes, 2019a). A reflexão também se inspira na teoria crip (McRuer, 2021), ou teoria aleijada (Gavério, 2015; Mello, 2014).

Os termos gênero, raça e sexualidade, por exemplo, nomeiam sistemas de classificação que são povoados por categoriais múltiplas, hierarquizadas e eventualmente organizadas em termos binários ou polares. Usa-se o termo raça para fazer referência, entre outras coisas, a uma forma de classificação de diferenças que descreve, no Brasil, pessoas como brancas, negras, indígenas ou asiáticas, por exemplo. O termo gênero pode ser usado para nomear outro sistema classificatório, sexualidade, outro - em constitutiva articulação, também eventualmente compreendidos como “sistema sexo-gênero”, por exemplo. No Brasil, muitos trabalhos que se dedicaram a pensar a categoria “mulata” (Corrêa, 1996CORRÊA, M. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, Campinas, n. 6\7, p. 35-50, 1996.; Figueiredo, 2015FIGUEIREDO, A. Carta de uma ex-mulata a Judith Butler. Periódicus, Salvador, v. 1, n. 3, p. 152-169, 2015.; Gilliam; Gilliam, 1995GILLIAM, A.; GILLIAM, O. Negociando a subjetividade da mulata no Brasil. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 525-543, 1995.; Gonzalez, 2019GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 237-258.; Moutinho, 2004MOUTINHO, L. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Editora Unesp, 2004.) notam que é impossível explicá-la apenas a partir de um cruzamento entre gênero e raça: critérios que dizem respeito a erotismo e sexualidade, idade e geração, corporalidade e deficiência, classe e subordinação são igualmente constitutivos da figura histórica da “mulata” no país. Mesmo assim, a despeito da precariedade de tomarmos sistemas classificatórios em isolamento, sua análise e nomeação é produtiva - e a falta de nomeação no caso da deficiência é uma das questões percorridas neste texto.

Se temos sistemas classificatórios que nomeamos como raça, gênero e sexualidade, qual seria o termo análogo em termos de deficiência? Que nome teria o sistema classificatório no qual uma das posicionalidades é a de pessoa com deficiência? A pergunta tem muitas dimensões, mas de saída gostaria de oferecer uma resposta pela negativa: não é corpo ou corporalidade. Na analítica da diferença, tudo e nada podem estar no corpo. Quer dizer, raça é corpo, mas não só; gênero é corpo, mas não só; sexualidade é corpo, mas não só. Reduzir deficiência a corpo seria realizar uma operação semelhante à redução dessas outras categorias.

Argumentando pelo enquadramento da deficiência como categoria analítica (Lopes, 2019aLOPES, P. Deficiência como categoria analítica: trânsitos entre ser, estar e se tornar. Anuário Antropológico, Brasília, v. 44, n. 1, p. 67-91, 2019a.), defendi que deficiência poderia operar como termo de nomeação do sistema que diz respeito às variadas posicionalidades e experiências de formas e funções que nossos corpos assumem. Outro recurso fundamental é ao termo capacidade (Dias, 2013DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal a narrativa capacitista social. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DEFICIÊNCIA, 1., 2013, São Paulo. Anais […]. São Paulo: SEDPcD: Diversitas: USP Legal, 2013. Disponível em: Disponível em: https://docplayer.com.br/145111795-Por-uma-genealogia-do-capacitismo-da-eugenia-estatal-a-narrativa-capacitista-social.html . Acesso em: 20 out. 2021.
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; Gavério, 2017aGAVÉRIO, M. A. Estranha atração: a criação de categorias científicas para explicar os desejos pela deficiência. 2017. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2017a.; Mello, 2014MELLO, A. G.. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de experiências, observações e narrativas sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., 2016MELLO, A. G. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3265-3276, 2016.). Variações de capacidade localizam as pessoas como deficientes ou não. Aqui estamos diante de um jogo de múltiplas traduções e deslizamentos de sentido. Em inglês, disability é o equivalente a deficiência em português, em espanhol, discapacidad. Eventualmente, usa-se o termo diversidade funcional para nomear a deficiência em contextos falantes do espanhol (Ferreira; García-Santesmases Fernández, 2016FERREIRA, C. B. de C.; GARCÍA-SANTESMASES FERNÁNDEZ, A. Fantasmas y fantasías: controversias sobre la asistencia sexual para personas con diversidad funcional. Pedagogia i Treball Social: revista de ciències socials aplicades, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 3-34, 2016.). Meu ponto é salientar que capacidade (ora também funcionalidade) é no momento uma categoria pertinente para a nomeação do que possamos pensar em termos de um sistema classificatório de diferenças no qual uma das posicionalidades é a de pessoa com deficiência. A potência de capacidade está em outras associações de linguagem que adotamos em português, por exemplo, o termo capacitismo (Dias, 2013DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal a narrativa capacitista social. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DEFICIÊNCIA, 1., 2013, São Paulo. Anais […]. São Paulo: SEDPcD: Diversitas: USP Legal, 2013. Disponível em: Disponível em: https://docplayer.com.br/145111795-Por-uma-genealogia-do-capacitismo-da-eugenia-estatal-a-narrativa-capacitista-social.html . Acesso em: 20 out. 2021.
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; Mello, 2014MELLO, A. G.. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de experiências, observações e narrativas sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., 2016MELLO, A. G. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3265-3276, 2016.), ou a ideia de capacidade compulsória (Gavério, 2017aGAVÉRIO, M. A. Estranha atração: a criação de categorias científicas para explicar os desejos pela deficiência. 2017. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2017a.). De todo modo, sinalizo que, nessa chave, capacidade cola-se a posicionalidades não marcadas (pessoas sem deficiência), ao passo que deficiência se associa às posicionalidades marcadas. Talvez pudéssemos exercitar mais o cotejamento das expressões deficiência e capacidade como categorias de nomeação de um sistema classificatório.9 9 Neste ponto, reporto-me a (e concordo com) Anahí Guedes de Mello (2019, p. 141), que afirma que “a produção social da deficiência também é naturalizada pelos saberes dominantes, cujos significados atribuídos à deficiência estão organizados em um sistema de aparente oposição binária de presença e ausência (capacidade versus deficiência) que na verdade se revelam interdependentes”.

Seja qual for o caminho percorrido, enquadrar deficiência e capacidade em termos de marcadores sociais da diferença abre mais uma pergunta: se ter deficiência é ocupar o polo marcado de um sistema classificatório, qual é o termo que designa o polo não marcado? Convido quem lê a fazer o exercício de uma pausa para pensar intuitivamente, caso essa não seja uma reflexão já realizada: como chama quem não tem deficiência?

Muitas categorias são mobilizadas aqui. Seja em contextos especialistas, seja em interações corriqueiras, os termos que emergem fazem referência a um ideal de corporalidade universalista: o resultado de um ultrassom muitas vezes leva à descrição de um feto sem variações corporais imprevistas como “perfeito”; em outas situações, por oposição a “ter problema”, “ser diferente” ou “especial”, diz-se que alguém é “normal”; em contextos de maior nomeação da categoria deficiência usa-se ainda “sem deficiência”, “não deficiente” e “capaz”, ou, no limite, também “corponormativo” (Mello, 2016MELLO, A. G. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3265-3276, 2016.) e “morfonormalista” (Dias, 2020DIAS, A. Pensar a deficiência, algumas notas, e se me permitem um convite. In: ALLEBRANDT, D.; MEINERZ, N. E.; NASCIMENTO, P. G. (org.). Desigualdades e políticas da ciência. Florianópolis: Casa Verde, 2020. p. 163-200.).10 10 Acerca de classificações e terminologias atualmente defendidas, Romeu Sassaki produziu e atualizou uma de série glossários, especialmente voltados para jornalistas (p. ex. Sassaki, 2002). Marco Antonio Gavério (2017b) compõe uma fina análise acerca de suas variações em termos de temporalidades e sentidos em “Nada sobre nós sem nossos corpos! O local do corpo deficiente nos Disability Studies”.

As respostas a essas categorizações no Brasil são plurais, não há consensos totalmente estabilizados. A ausência de consensos, inclusive, é uma marca dos sistemas classificatórios de diferença, na medida em que eles são vividos contextualmente, historicamente. O que estabiliza seus termos são determinados enquadramentos: ativistas, culturais, institucionais, administrativos, acadêmicos. De todo modo, cumpre registrar como deficiência parece intuitivamente associar-se apenas àquelas pessoas marcadas pela categoria - embora a experiência do corpo no espaço e no tempo seja notavelmente engendrada por vulnerabilidade, precariedade, relacionalidade e interdependência, ou seja, distante dos ideais normativos ou normalistas de coesão, coerência, integridade, atemporalidade, invulnerabilidade.

Outra categoria do vocabulário aqui percorrido, essa sim mais consensual, é o termo que descreve discriminações, exclusões, desigualdades e violências voltadas a pessoas com deficiência: capacitismo (Dias, 2013DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal a narrativa capacitista social. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DEFICIÊNCIA, 1., 2013, São Paulo. Anais […]. São Paulo: SEDPcD: Diversitas: USP Legal, 2013. Disponível em: Disponível em: https://docplayer.com.br/145111795-Por-uma-genealogia-do-capacitismo-da-eugenia-estatal-a-narrativa-capacitista-social.html . Acesso em: 20 out. 2021.
https://docplayer.com.br/145111795-Por-u...
; Mello, 2014MELLO, A. G.. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de experiências, observações e narrativas sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., 2016MELLO, A. G. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3265-3276, 2016.). Trata-se de fenômeno análogo, mas não homólogo, do racismo, machismo, sexismo e lgbtfobias. Essas formas de nomear discriminações, exclusões, desigualdades e violências não operam do mesmo modo nem com os mesmos efeitos. A esse respeito, Anahí Guedes de Mello (2019MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019., p. 139) oferece uma síntese eloquente:

O capacitismo também é essa forma hierarquizada e naturalizada de conceber qualquer corpo humano como algo que deve funcionar, agir e se comportar de acordo com a biologia. Nesse sentido, outros grupos sociais também podem ser lidos como “menos capazes”: a mulher frente ao homem; o negro e o indígena frente ao branco; o gay e a lésbica em relação ao heterossexual; e a pessoa trans em relação à pessoa cis. Assim, o capacitismo vem sendo teoricamente interpretado de maneira ambivalente, ora como uma forma de discriminação, violência e opressão social contra pessoas com deficiência, ora uma normatividade corporal e comportamental baseada na premissa de uma funcionalidade total do indivíduo.

Um ponto que parece particularmente relevante no caso de se tomar deficiência como marcador social da diferença é a conjugação desse repertório com debates sobre saúde em sua dimensão médica - não à toa, a localização disciplinar de grupos de pesquisa e programas de pós-graduação em disability studies nos Estados Unidos e na África do Sul é, em geral, junto a institutos ou faculdades de saúde.

É fundamental notar que a própria constituição de deficiência como categoria sociológica ou de identificação baseia-se no afastamento ou na delimitação de fronteiras em relação ao campo da biomedicina e à preeminência da medicina e uma perspectiva individualista do fenômeno da deficiência. Uma pessoa com deficiência pode estar em estado de doença ou em estado de saúde. Embora haja variáveis que dizem respeito à vulnerabilidade e ao adoecimento, que se entrecruzam entre deficiência e também classe, raça, gênero, sexualidade, a condição de deficiente em si não tem relação causal necessária com o adoecimento. Similarmente, o processo de adoecimento pode levar um corpo a tornar-se deficiente, mas não é a doença que resulta na classificação de deficiência, e sim a experiência social do corpo-sujeito.

Esses apontamentos acerca das fronteiras entre doença e deficiência podem parecer impressionistas ou simplificar amplos campos de pesquisa e atuação, mas intentam enfatizar afastamentos diferenciais.11 11 A esse respeito, sinalizo a produtividade de pesquisas na interface ou nas fronteiras entre deficiência e doença que contribuem para um adensamento dessa questão, por vezes requalificando-a. Nessa chave, as noções de biossocialidade (Rabinow, 1999), cronicidade, longa duração ou “doenças compridas” (Fleischer, 2018) e nervos (Duarte, 1986) são particularmente importantes, bem como a atenção aos cruzamentos entre doenças raras e deficiência (Souza; Carniel, 2020), o caso da esclerose múltipla (Costa, 2019; Gama, 2020), dos transplantes (Marini, 2018), da poliomielite (Ferreira, 2018), da hanseníase (Maricato, 2019), do HIV e aids (Valle, 2002), da zika (Matos; Silva, 2020) e, mais recentemente, da covid-19 (Block et al., 2021). Eles não são fortuitos. Na história sociológica da construção das noções de raça, gênero, sexualidade e deficiência, o espectro da doença, da patologia, ou da biologia, e o arbítrio da medicina, foram constantemente escovados para fora desses sistemas de classificação - eventualmente de uma diferença em direção a outra. Se, no caso da discussão sobre raça e gênero houve um esforço por “desbiologizar” o entendimento do que hoje descrevemos como desigualdades sociais, no caso da sexualidade, da transexualidade e da deficiência, a palavra talvez seja “despatologizar” (consultar também Dias, 2020DIAS, A. Pensar a deficiência, algumas notas, e se me permitem um convite. In: ALLEBRANDT, D.; MEINERZ, N. E.; NASCIMENTO, P. G. (org.). Desigualdades e políticas da ciência. Florianópolis: Casa Verde, 2020. p. 163-200.).

Esses processos de desbiologização e despatologização podem ser descritos como uma “guerra de fronteiras”, na qual deficiência muitas vezes operou de forma residual. O caso do quociente de inteligência (QI) é um bom exemplo. Stephen Jay Gould (1991)GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. mostrou que a invenção da inteligência em termos de um artefato mensurável e escalar, no século XIX, retirou as noções de inteligência e genialidade do reino do social ou do sobrenatural para o campo - então em franca expansão - da natureza. Não só inteligência se inscreveu na suposta natureza do corpo, ela foi pareada a metáforas etárias, de modo que, como nota o autor, “a frase ‘São como as crianças’ deixou de ser uma simples metáfora da intolerância para se converter em uma proposição teórica segundo a qual as pessoas inferiores teriam permanecido literalmente estagnadas em um estágio ancestral dos grupos superiores” (Gould, 1991GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 115).

A análise de Gould (1991)GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991., apresentada no livro A falsa medida do homem, então, dedica-se a mostrar como aquilo que se passou a chamar de inteligência, ao contrário do que afirmavam seus elaboradores (médicos, homens), hierarquizava grupos raciais e de gênero em função de testes que, na realidade, mediam a aptidão cultural no mundo euro-estadunidense letrado. Ou seja, o argumento do autor é que as invenções sobre a desigualdade intelectual entre pessoas asiáticas, brancas ou negras, assim como entre mulheres e homens, não advinham de supostos atributos raciais ou de gênero (ou, ainda, de “sexo”), mas de dinâmicas sociais de desigualdade - a “inteligência”, ou melhor, o QI seria “a falsa medida do homem”, pois mensurava o desigual cultivo de competências culturais, marcado por linhas de raça e gênero, e atribuía as hierarquias desses resultados às disposições orgânicas das pessoas. No processo de crítica ao racismo científico e à hierarquização de inteligência entre mulheres e homens, contudo, resta alguém intelectualmente rebaixado ou rebaixada - e não é à toa que seguem sendo utilizados e renovados os testes de QI. Quer dizer, o projeto de afirmação da igualdade racial e de gênero também é articulado por meio da manutenção de desigualdades em termos de deficiência - no caso, deficiência intelectual.

Outro exemplo se refere ao processo de despatologização de identidades homossexuais, analisado em suas ambivalências por Peter Conrad (2007)CONRAD, P. The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2007.. O campo de estudos sobre sexualidade funda-se em larga medida por uma perspectiva construcionista social, o que quer dizer que não haveria nenhum determinante biológico ou natural nas convenções, práticas e identidades sexuais e de gênero, elas seriam eminentemente sociais. Mais que isso, enquadradas na chave dos direitos, as questões relativas a identidades sexuais e de gênero passaram crescentemente a serem reivindicadas em termos de autodeterminação, tensamente afastando-se das históricas associações com pecado, crime e doença. No campo da deficiência, dois casos aproximam-se de modo paradigmático desse debate: o da cultura surda e o da neurodiversidade. Por diferentes caminhos, foi se consolidando nacional e internacionalmente uma compreensão culturalista da surdez que a descreve especialmente em função da referência às línguas de sinais, em termos étnicos ou como minoria linguística. Nesse repertório, perspectivas que compreendem audição como sinônimo de saúde ou integridade corporal são afastadas no sentido de reivindicar surdez como uma qualidade que constrói comunidade e cultura (Silva, C., 2012SILVA, C. A. de A. Cultura surda: agentes religiosos e a construção de uma identidade. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.). Similarmente, no debate sobre autismo, as reivindicações “pró-cura” têm encontrado resistência no movimento da neurodiversidade. Trata-se de uma categoria política que também opera certa culturalização de diferenças, no caso, neurais (Ortega, 2009ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 67-77, 2009.). Entre esses três exemplos que se desenrolam em variados esforços por despatologização de condutas, atributos e formas de estar no mundo, também está presente uma sorte de “guerra de fronteiras”. Se, por exemplo, condutas homossexuais não são patológicas, quais são? Se surdez, autismo, homossexualidade ou transexualidade não devem ser “tratados” desde uma perspectiva de “cura”, o que deve?

As associações entre deficiência e doença ou desvio, mesmo com esses paralelos e afastamentos em relação a raça, sexualidade e gênero, aparentam ser mais resistentes a perspectivas sociológicas. Deficiência e doença são coisas diferentes, mas cuja articulação é persistente. Eva Kittay (2011)KITTAY, E. [Comentário em “Humans, disabilities, and the humanities?” de Michael Bérubé]. In: ON THE HUMAN. [S. l.: s. n], 28 Jan. 2011. Disponível em: Disponível em: https://nationalhumanitiescenter.org/on-the-human/2011/01/humans-disabilities-humanities/#comment-4536 . Acesso em: 1 out. 2019.
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oferece uma sensível reflexão a esse respeito:

Temos que começar reconhecendo que a maior parte das deficiências não é meramente uma variação humana (ainda que algumas possam ser), mas também constitui uma desvantagem. Esta desvantagem é resultado do impedimento [impairment] corporal em si. (Minha filha, que tem deficiência intelectual severa, certamente está em desvantagem quando se trata de sobreviver sozinha, devido a suas limitações intelectuais.) Ou esta desvantagem pode ser inteiramente ou majoritariamente consequência de atitudes sociais, estruturas construídas, e falhas em acolher a deficiência.

Mas é igualmente importante o fato de que experimentar uma desvantagem é possível, se não provável, em qualquer vida. Algumas de suas formas são sistemáticas, como o racismo ou o sexismo. Outras são relacionadas com más escolhas ou má sorte, com ambições ou amores fracassados, com um acidente sofrido em meio às atividades do cotidiano ou em caso de guerra. Uma desvantagem pode ser resultado da perda de alguém querido/querida - por meio de morte ou com o fim de um relacionamento. Pode ser uma consequência de um ato heroico ou um comportamento imprudente. Uma desvantagem pode se apresentar para nós, se sofremos de doença mental, doença física, ou vício em drogas. A deficiência não tem monopólio sobre a desvantagem.

Deficiência na interpretação: dinâmicas classificatórias

Até aqui percorri a discussão acerca de deficiência tomando-a como sistema classificatório. Antes de encerrar esta seção, gostaria de apresentar uma pontuação a respeito do modo como deficiência se encarna (ou não) enquanto categoria. Ou seja, registrar breves notas sobre classificações em operação.

As perguntas aqui vão na direção de inquirir: quem tem deficiência, quem não tem? Quem é pessoa com deficiência, quem não é, quem é deficiente, quem não? Essas são perguntas (im)pertinentes, que não têm resposta única. A princípio, “quem é deficiente” seria uma pessoa cega, ou surda, com deficiência física, ou deficiência intelectual, ou alguém que combina essas ou outras disposições. No entanto, nossas configurações corporais, em termos de forma e funcionalidade, são por definição plurais e insistem em escapar de contornos classificatórios. Igualmente, o ato de nomeação é um gesto de poder que se distribui de modo desigual entre instâncias mais públicas e mais privadas, podendo coincidir ou não entre aquilo em que nos reconhecemos ou como nos identificamos e o que nos é atribuído ou apontado - entre interpelação, reconhecimento e identificação (Simões; França; Macedo, 2010SIMÕES, J. A.; FRANCA, I. L.; MACEDO, M. Jeitos de corpo: cor/raça, gênero, sexualidade e sociabilidade juvenil no centro de São Paulo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, p. 37-78, 2010.).

No Brasil, temos diferentes técnicas, tecnologias e protocolos de aferição da deficiência, que transitam entre referenciais de ordem mais ou menos fisicalista ou relacional - referidos a diversos registros. Esses dispositivos em geral vinculam-se a processos de reivindicação e acesso a direitos, na interface com o Estado, e têm ganhado mais coerência e unidade desde a Lei Brasileira de Inclusão, de 2015 (Simões, J., 2019SIMÕES, J. Dos sujeitos de direitos, das políticas públicas e das gramáticas emocionais em situações de violência sexual contra mulheres com deficiência intelectual. 2019. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.) e a avaliação biopsicossocial (Barbosa; Pereira; Rodrigues, 2017BARBOSA, L.; PEREIRA, É. L.; RODRIGUES, D. da S. LC 142: desafios da avaliação da deficiência em um marco de justiça. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, [s. l.], v. 25, p. 909-915, 2017.; Pereira; Barbosa, 2016PEREIRA, É. L.; BARBOSA, L. Índice de Funcionalidade Brasileiro: percepções de profissionais e pessoas com deficiência no contexto da LC 142/2013. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3017-3026, 2016.; Santos, 2016SANTOS, W. Deficiência como restrição de participação social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3007-3015, 2016.). Essas práticas de nomeação pertinentes ao Estado, que variaram muito na história recente, produzem “pessoas com deficiência” enquanto sujeito de direitos, e são também ressignificadas, disputadas e contestadas pelas pessoas em seus cotidianos. Não necessariamente o termo deficiência é reivindicado em cenas interacionais, e categorias como “ter problema”, “ter dificuldade”, “ser especial” ou “ser diferente” são corriqueiramente acionadas (p. ex. Araújo, 2015ARAÚJO, Í. M. Osikirip: os “especiais” Karitiana e a noção de pessoa ameríndia. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.; Aydos, 2017AYDOS, V. “Não é só cumprir as cotas”: uma etnografia sobre cidadania, políticas públicas e autismo no mercado de trabalho. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.; Fietz, 2016FIETZ, H. M. Deficiência e práticas de cuidado: uma etnografia sobre “problemas de cabeça” em um bairro popular. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.; Lopes, 2014LOPES, P. Negociando deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual”. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.; Silva, E., 2021SILVA, E. S. da. “Todo mundo tem problema”: deficiência, diversidade e cuidado na comunidade quilombola de João Surá. 2021. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2021.; Simões, J., 2014SIMÕES, J. Assexuados, libidinosos ou um paradoxo sexual?: gênero e sexualidade em pessoas com deficiência intelectual. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.). As configurações corporais, institucionais, históricas, subjetivas e políticas que levam uma pessoa a ser marcada por deficiência são profundamente heterogêneas e podem inclusive ser contraditórias.

Nessa linha, importa sublinhar mais uma vez a simultaneidade do caráter êmico e analítico da noção de deficiência, entre diferentes operações e interpretações classificatórias. Isso representa desafios teórico-metodológicos importantes, na medida em que, na pesquisa, não se trata de aplicar taxonomias às experiências e diferenças sociais, mas procurar as articulações que lhes são constitutivas.

Mas há mais a dizer quando colocamos deficiência na cabeça. É possível conjugar deficiência como verbo e pensar em processos de transformação corporal, subjetiva, contextual, estrutural, enfim, processos do corpo no tempo e espaço (Lopes, 2019aLOPES, P. Deficiência como categoria analítica: trânsitos entre ser, estar e se tornar. Anuário Antropológico, Brasília, v. 44, n. 1, p. 67-91, 2019a., 2019bLOPES, P. Deficiência como categoria do Sul Global: primeiras aproximações com a África do Sul. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, e66923, 2019b.; Simões, J., 2019SIMÕES, J. Dos sujeitos de direitos, das políticas públicas e das gramáticas emocionais em situações de violência sexual contra mulheres com deficiência intelectual. 2019. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.). Deficiência, afinal, categoria historicamente tão atrelada à escassez de destinos, é fundamentalmente orientada ao futuro, nossos futuros pessoais e comuns (Fietz, 2020FIETZ, H. M. Construindo futuros, provocando o presente: cuidado familiar, moradias assistidas e temporalidades na gestão cotidiana da deficiência intelectual no Brasil. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.) - como anotado no início deste artigo, todas as pessoas que viverem por tempo suficiente viverão com deficiência. No momento em que este texto foi escrito, chegando ao segundo ano da pandemia da covid-19, o Brasil governado com base em uma política de múltiplos genocídios interseccionados, é importante que reiteremos que não há justiça possível sem pessoas com deficiência, sem que tenhamos deficiência em nossas cabeças, línguas, projetos, futuros.

O esforço desta seção foi por interpelar o referencial da interseccionalidade e dos marcadores a partir da deficiência enquanto categoria de diferença. Esse é um projeto que compartilho com colegas do campo de pesquisa com deficiência, em debates que têm povoado reuniões de antropologia e eventos afins, consolidando e expandindo uma agenda nacional. Nesse empenho politizado, engajado e reflexivo com que o campo vem se construindo, a afirmação de nossas diferentes posicionalidades e identidades como sujeitos é algo que, ao mesmo tempo que nos permite crítica e reflexivamente falar na primeira pessoa do plural (ou em diferentes primeiras pessoas do plural), não deixa de ser tema para diferenciações - que ocasionam encontros e desencontros, ressemantizam sensibilidades, instigam novos formatos de parcerias. Esse é um projeto em que tantas e tantos de nós nos envolvemos com nossos corpos todos, com suas variadas marcas de diferença, e deficiência nas cabeças.

Como fazer diferença?

A partir do percurso registrado até aqui, formulo um esquema de trabalho com diferença.12 12 Nesse caso, trata-se de uma síntese de diferentes interlocuções, particularmente no âmbito do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas/USP), junto ao grupo de pesquisadoras e pesquisadores com orientação de Laura Moutinho, e junto ao grupo Diferenças, Deficiências e Desigualdades - intersecções no campo da educação (FEUSP), coordenado por Shirley Silva. Trata-se de um conjunto de qualificadores para a noção de diferença que avalio pertinentes à pesquisa antropológica, que, embora se mantenha rente à noção de alteridade e seu espírito humanista, igualmente tem se dedicado a pensar as diferenças que nos marcam a todes reciprocamente. Embora redigidos de forma taxativa, esses qualificadores não pretendem ser exaustivos ou imunes à contestação. Ao contrário, como esquema de trabalho, o convite é a que eles sejam praticados e, portanto, revisados.

1. Diferença é social. Diferença é histórica, cultural, dinâmica, processual, espaçotemporal, convivial, relacional. Aqui os termos podem ser pensados conforme diálogos com tradições disciplinares, mas o ponto é que a análise da diferença não parte do que seja o “natural”, o “individual”, o “humano” ou o “biológico” em termos explicativos. Igualmente, importa notar que, ao qualificar a diferença como social, compreende-se que ela varia conforme contextos e está sujeita a transformações. Essa perspectiva é fundante da própria sociologia e antropologia social ou cultural. No gesto de se colocar deficiência na cabeça, temos aqui o desafio de reafirmar que não há nada pré-social na experiência da deficiência. Importa sempre lembrarmos que a divisão do corpo em órgãos com funções é uma invenção moderna e colonial, social, histórica, cultural.13 13 Como proposições-síntese, seria muito difícil elencar referências específicas. Anoto apenas inspirações que não foram apresentadas até esta altura do texto. No caso deste primeiro ponto, evoco uma ideia de Veena Das (2011, p. 15), que, lidando com um outro conjunto de questões, muito provocativamente escreve: “Podemos identificar o olho não como o órgão que vê, mas como o órgão que chora.”

2. Diferença é hierárquica. O trabalho com diferença costumeiramente se volta a questões que dizem respeito a discriminação, opressão, exclusão, subjugação, preterição, denegação, estereótipos, assimetria, hegemonia, enfim, vários enquadramentos da hierarquia e da desigualdade - relações de poder. É comum, no entanto, que se faça uma distinção entre diferença e desigualdade. Ao fazê-lo, corre-se o perigo de deixar de notar que a diferença é constitutivamente hierárquica, mesmo quando não redunde em relações de desigualdade mensurável. Nesse sentido, a noção de hierarquia como englobamento de Louis Dumont (1992)DUMONT, L. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1992. é particularmente útil: nos sistemas classificatórios de gênero, raça, sexualidade e mesmo classe, tomando-os estrategicamente como polares, há polos não marcados e polos marcados. Por exemplo, todo mundo é homem até que se nomeie como mulher. Lendo um texto, é raro que se suponha que sua autoria seja de uma pessoa com deficiência. Mesmo se levamos em conta variações não polares, há classificações de diferença que podem ser descritas como hegemônicas, normativas, paradigmáticas ou matriciais, que são simultaneamente referências e efeitos de outras classificações.14 14 Acerca dessas questões creio ser particularmente instigante a reflexão de Henrietta Moore (2000).

3. Diferença é articulada, ou interseccional. Diferença pode ser analiticamente descrita em termos de sistemas classificatórios distintos, mas eles são constitutivamente articulados, pois se referem a relações sociais vividas. As categorias de diferença encarnam-se simultaneamente e coextensivamente nos sujeitos e nas relações. Apesar disso, o processo de nomeação de diferenças, de categorização, opera-se pela delimitação de fronteiras, pela construção de identificações e alterizações. Nesse processo, como já sinalizado, um ato de nomeação pode produzir efeitos de elipse, reiteração, silenciamento, hipervisibilidade sobre outras formas de diferença. Identidade é uma categoria fundamental para a análise da diferença, e é fundamental notar que identidades são cambiantes e construídas, mas são o começo da conversa e não o fim.15 15 Aqui, a leitura de Avtar Brah (2006) é profundamente inspiradora.

4. Diferença é positiva. Diferença não é falta. Esse é um ponto muito importante para a antropologia, que dialoga com a noção de cultura. Ao descrever povos indígenas, por muito tempo a mirada colonial interpretava esses povos como “sem lei, nem fé, nem rei” (“selvagens”). Ou seja, povos da falta. A noção de cultura ajuda justamente a “positivar” o que se entendia por falta e a chamar de diferença: não se trata de ausência de lei, de fé ou de rei, mas de formas diferentes de se organizarem as regras sociais ou a noção de justiça, formas diferentes de se organizarem as crenças e explicações do mundo, diferentes sistemas políticos. O caso da deficiência também é carregado de desafios em relação a esse ponto, em função de nossas representações culturais que enquadram deficiência como limitação, articulando-a a um vocabulário vexatório e a metáforas capacitistas.16 16 No caso da noção de cultura, reporto-me a debates como aqueles oferecidos por Manuela Carneiro da Cunha (2009).

5. Diferença é contextual e sistêmica. Por um lado, diferença é indeterminada. Não é possível dizer “o que é” uma mulher, um homem, uma travesti, uma pessoa não binária, uma pessoa negra, branca, indígena, asiática. Não é possível dizer “o que é” uma pessoa com deficiência, ou uma pessoa sem deficiência. A diferença está em constante disputa, em constante dissenso - é o campo da política, da cultura, da ontologia - e é interlocutória, contextual, contrastiva. Por outro lado, diferença também é estrutural. Nossas experiências se comunicam, se cristalizam, se institucionalizam, se perpetuam, se reproduzem. Diferença também informa desigualdades estruturais. Estão em jogo, portanto, no trabalho com diferença, simultaneamente dimensões estruturais e agentivas. A diferença é contextual em sua manifestação, sistêmica em sua distribuição.17 17 Em relação a este ponto, sinalizo que ele se refere a questões persistentes no referencial da interseccionalidade, marcadores sociais da diferença ou consubstancialidade, cujas referências já foram apresentadas anteriormente.

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  • 1
    Este artigo parte de alguns trechos de minha tese de doutorado, Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica (Lopes, 2020LOPES, P. Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.). A tese foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, orientada por Laura Moutinho e contou com os recursos de bolsa de doutorado Capes: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, e do Edital Pró-África CNPq: “A Vizinhança nas entrelinhas: alianças e conflitos, trocas (des)iguais e cooperação entre Moçambique e África do Sul” (projeto selecionado na Chamada MCTI/CNPq nº 46/2014), coordenado por Laura Moutinho. Agradeço especialmente a Thais Tiriba e Laís Miwa Higa pelas leituras finais deste texto.
  • 2
    O elenco de referências aqui evidentemente não é exaustivo e apenas procura sinalizar alguns caminhos entrecruzados de interlocução. Dei preferência a trabalhos brasileiros ou em português e que oferecem mapeamentos ou contornos conceituais aos termos apresentados.
  • 3
    A esse respeito, consultar também as pesquisas de Flávia Rios e Regimeire Maciel (2017/2018)RIOS, F.; MACIEL, R. Feminismo negro em três tempos. Labrys: études féministes/estudos feministas, Paris, n. 31, juil. 2017/juin 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.labrys.net.br/labrys31/black/flavia.htm . Acesso em: 20 out. 2021.
    https://www.labrys.net.br/labrys31/black...
    , Flávia Rios, Olívia Perez e Arlene Ricoldi (2018)RIOS, F.; PEREZ, O.; RICOLDI, A. Interseccionalidade nas mobilizações do Brasil contemporâneo. Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, p. 36-51, 2018. e de Stephanie Lima (2020)LIMA, S. “A gente não é só negro!”: interseccionalidade, experiência e afetos na ação política de negros universitários. 2020. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020..
  • 4
    Denise Pimenta (2019)PIMENTA, D. O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa (A epidemia do ebola contada pelas mulheres, vivas e mortas). 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. demonstra as articulações entre gênero, deficiência e nação no contexto da guerra em Serra Leoa, e suas atualizações com a epidemia de ebola, apresentando uma etnografia particularmente eloquente em relação aos pontos aqui assinalados.
  • 5
    Marco Antonio Gavério (2017a)GAVÉRIO, M. A. Estranha atração: a criação de categorias científicas para explicar os desejos pela deficiência. 2017. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2017a. percorre detalhadamente esse processo, inclusive no cotejamento entre diferentes “modelos” da deficiência, em especial entre Inglaterra e Estados Unidos.
  • 6
    Seria possível construir uma argumentação de algum modo aparentada no que se refere a classe, idade e geração. Para isso, além das referências já citadas, assinalo trabalhos que oferecem enquadramentos analíticos para as noções de geração, idade e curso de vida (Debert, 2014DEBERT, G. Aging, gender and sexuality in Brazilian society. Anthropology and Aging Quarterly, [s. l.], n. 34, p. 238-245, 2014.; Debert; Simões; Henning, 2016DEBERT, G; SIMÕES, J. A.; HENNING, C. E. Entrelaçando gênero, sexualidade e curso da vida: apresentação e contextualização. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 3-12, 2016.; Simões, J. A., 2013SIMÕES, J. A. Male homosexuality and the life course: thinking about age and sexual identities. In: SIVORI, H. et al. (org.). Sexuality, culture and politics: a South American reader. Rio de Janeiro: CEPESC, 2013. p. 260-282.) e classe (Bueno; Macedo, 2018BUENO, M. E.; MACEDO, R. M. Tensionamentos e negociações de desigualdades: notas etnográficas sobre consumo, classe e gênero. In: SAGGESE, G. et al. (org.). Marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome: Gamma, 2018. p. 269-287.; Zamboni, 2014ZAMBONI, M. Herança, distinção e desejo: homossexualidades em camadas altas na cidade de São Paulo. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.).
  • 7
    A Convenção foi adotada pela ONU em 2006, assinada pelo Brasil em 2007 e deu base à Lei Brasileira de Inclusão, ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, editada em 2015.
  • 8
    Mobilizo aqui alguns argumentos que apresentei em outra oportunidade (Lopes, 2019aLOPES, P. Deficiência como categoria analítica: trânsitos entre ser, estar e se tornar. Anuário Antropológico, Brasília, v. 44, n. 1, p. 67-91, 2019a.). A reflexão também se inspira na teoria crip (McRuer, 2021McRUER, R. Aleijando as políticas queer, ou os perigos do neoliberalismo. Tradução de Marco Antonio Gavério. Educação em Análise, Londrina, v. 6, n. 1, p. 105-119, 2021.), ou teoria aleijada (Gavério, 2015GAVÉRIO, M. A. Medo de um planeta aleijado? - Notas para possíveis aleijamentos da sexualidade. Áskesis, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 103-117, 2015.; Mello, 2014MELLO, A. G.. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de experiências, observações e narrativas sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.).
  • 9
    Neste ponto, reporto-me a (e concordo com) Anahí Guedes de Mello (2019MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019., p. 141), que afirma que “a produção social da deficiência também é naturalizada pelos saberes dominantes, cujos significados atribuídos à deficiência estão organizados em um sistema de aparente oposição binária de presença e ausência (capacidade versus deficiência) que na verdade se revelam interdependentes”.
  • 10
    Acerca de classificações e terminologias atualmente defendidas, Romeu Sassaki produziu e atualizou uma de série glossários, especialmente voltados para jornalistas (p. ex. Sassaki, 2002SASSAKI, R. Terminologia sobre deficiência na era da inclusão. Revista Nacional de Reabilitação, São Paulo, ano 5, n. 24, p. 6-9, 2002.). Marco Antonio Gavério (2017b)GAVÉRIO, M. A. Nada sobre nós, sem nossos corpos! O local do corpo deficiente nos disability studies. Revista Argumentos, Montes Claros, v. 14, n. 1, p. 95-117, 2017b. compõe uma fina análise acerca de suas variações em termos de temporalidades e sentidos em “Nada sobre nós sem nossos corpos! O local do corpo deficiente nos Disability Studies”.
  • 11
    A esse respeito, sinalizo a produtividade de pesquisas na interface ou nas fronteiras entre deficiência e doença que contribuem para um adensamento dessa questão, por vezes requalificando-a. Nessa chave, as noções de biossocialidade (Rabinow, 1999RABINOW, P. Antropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.), cronicidade, longa duração ou “doenças compridas” (Fleischer, 2018FLEISHCER, S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar, 2018.) e nervos (Duarte, 1986DUARTE, L. F. D. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: CNPq, 1986.) são particularmente importantes, bem como a atenção aos cruzamentos entre doenças raras e deficiência (Souza; Carniel, 2020SOUZA, B. A.; CARNIEL, F. Quando o raro se torna comum: uma trajetória no mundo da adrenoleucodistrofia. Temáticas, Campinas, v. 28, n. 55, p. 271-300, 2020.), o caso da esclerose múltipla (Costa, 2019COSTA, K. S. da. Aonde eu coloco as minhas dores, doutor?: um olhar antropológico da esclerose múltipla. Porto Alegre: Editora FI, 2019.; Gama, 2020GAMA, F. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. Anuário Antropológico, Brasília, v. 45, n. 2, p. 188-208, 2020.), dos transplantes (Marini, 2018MARINI, M. Corpos biônicos e órgãos intercambiáveis: a produção de saberes e práticas sobre corações não-humanos. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.), da poliomielite (Ferreira, 2018FERREIRA, C. B. Of the government of care: bodies, disabilities, sexuality and poliomyelitis in Brazil. In: IUAES WORLD CONGRESS, 18., 2018, Florianópolis. Proceedings […]. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2018. p. 946-959.), da hanseníase (Maricato, 2019MARICATO, G. História sem fim: sobre dobras e políticas ontológicas de um “mundo sem hanseníase”. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.), do HIV e aids (Valle, 2002VALLE, C. G. Identidades, doença e organização social: um estudo das “Pessoas Vivendo com HIV e AIDS”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 17, p. 179-210, jun. 2002.), da zika (Matos; Silva, 2020MATOS, S. S.; SILVA, A. C. R. da. “Nada sobre nós sem nós”: associativismo, deficiência e pesquisa científica na Síndrome Congênita do Zika vírus. Ilha: revista de antropologia, Florianópolis, v. 22, n. 2, p. 132-167, 2020.) e, mais recentemente, da covid-19 (Block et al., 2021BLOCK, P. et al. (ed.). Special issue: Disability and COVID-19. Disability Studies Quarterly, [s. l.], v. 41, n. 3, 2021.).
  • 12
    Nesse caso, trata-se de uma síntese de diferentes interlocuções, particularmente no âmbito do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas/USP), junto ao grupo de pesquisadoras e pesquisadores com orientação de Laura Moutinho, e junto ao grupo Diferenças, Deficiências e Desigualdades - intersecções no campo da educação (FEUSP), coordenado por Shirley Silva.
  • 13
    Como proposições-síntese, seria muito difícil elencar referências específicas. Anoto apenas inspirações que não foram apresentadas até esta altura do texto. No caso deste primeiro ponto, evoco uma ideia de Veena Das (2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, p. 9-41, 2011., p. 15), que, lidando com um outro conjunto de questões, muito provocativamente escreve: “Podemos identificar o olho não como o órgão que vê, mas como o órgão que chora.”
  • 14
    Acerca dessas questões creio ser particularmente instigante a reflexão de Henrietta Moore (2000)MOORE, H. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência. Cadernos Pagu, Campinas, n. 14, p. 13-44, 2000..
  • 15
    Aqui, a leitura de Avtar Brah (2006)BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, 2006. é profundamente inspiradora.
  • 16
    No caso da noção de cultura, reporto-me a debates como aqueles oferecidos por Manuela Carneiro da Cunha (2009)CUNHA, M. C. da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009..
  • 17
    Em relação a este ponto, sinalizo que ele se refere a questões persistentes no referencial da interseccionalidade, marcadores sociais da diferença ou consubstancialidade, cujas referências já foram apresentadas anteriormente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2021
  • Aceito
    27 Jun 2022
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