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Agência e subjetivação na gestão de pessoas com deficiência: a inclusão no mercado de trabalho de um jovem diagnosticado com autismo* * Agradeço imensamente a Tomás e sua família por me permitirem compartilhar suas histórias e às instituições e organizações que autorizaram a minha pesquisa de campo. Sou grata também às contribuições de Ademar Leão, Patrice Schuch, Clarice Rios, Tiago Lemões, Marcos Andrade Neves e dos colegas do grupo de estudos em “Antropologia, Políticas Públicas e Deficiência”: Helena Fietz, Leonardo Pedrete, Liziane Goncalves, Mário Poglia e Roberta Grudzinski. Agradeço aos pareceristas da revista pelas sugestões e críticas ao texto, as quais serão também de grande valia para o desenvolvimento do trabalho. Esta pesquisa conta com o financiamento do CNPq.

Agency and subjectivation in the management of people with disabilities: The inclusion of a young adult diagnosed with autism in the labour market

Resumo

A partir da implementação do Projeto Piloto de Incentivo à Aprendizagem de Pessoas com Deficiência do Rio Grande do Sul, uma rede de atores passa a promover a inclusão destas pessoas no mercado de trabalho por meio da Lei de Cotas 8213/91. Neste contexto, as experiências de pessoas com autismo trouxeram à tona discussões teóricas e práticas sobre a condição desse diagnóstico ser caracterizado como deficiência, assim como sobre as formas de gestão dessas pessoas no cotidiano laboral. Tomás é um dos jovens que acompanhei durante sua participação no Projeto. Através da etnografia do seu “caso” podemos refletir sobre os efeitos das políticas de inclusão nas práticas de gestão e nos processos de subjetivação das pessoas com deficiência, bem como lançar luz sobre as possibilidades de agência dessas pessoas frente à construção simbólica e prática de cidadania e “sensibilidades sociais” no Brasil.

Palavras-chave
autismo; políticas públicas; subjetividade; trabalho

Abstract

After the Pilot Project of Empowering People with Disabilities for Work in Rio Grande do Sul was implemented, a network of actors started to promote the inclusion of people with disabilities into the workplace through the Affirmative Law 8213/91. In this context, the experiences of people with autism brought to light theoretical and practical discussions on both the condition of this diagnosis as being characterized as a disability, and the ways of managing these people in the everyday life of labour. Thomas is one of the young men whose participation in the Project I followed. Through the ethnography of his ‘case’ it´s possible to reflect on the effects of inclusion policies in management practices and subjectification processes of people with disabilities, as well as shed light on the agency opportunities for those people across the symbolic and practical construction of citizenship and ‘social sensibilities’ in Brazil.

Keywords
autism; public policies; subjectivity; work

O “caso” de Tomás: inspirações teóricas e metodológicas

Conheci Tomás1 1 Todos os nomes próprios empregados neste texto são fictícios. em outubro de 2013, no final do primeiro ano de minha pesquisa de doutorado, quando acompanhava um curso de aprendizado para inclusão social de pessoas com deficiência intelectual e psicossocial no mercado de trabalho. O curso fazia parte do Projeto Piloto de Incentivo à Aprendizagem no Rio Grande do Sul,2 2 Esse projeto é coordenado pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Estado (SRTE/RS) e envolve uma ampla rede de parceiros. Sobre as leis e decretos de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, ver: Costa (2013). cujo objetivo era capacitar pessoas para ocuparem as cotas previstas pela lei nº 8.213/1991 (Brasil, 19914 BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 28 set. 2015.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
)3 3 A lei determina que empresas com mais de cem funcionários devem destinar de 2% a 5% das vagas do quadro de empregados a pessoas portadoras de deficiência. e possibilitar que a sua inclusão ocorresse mediante um período de atividades teóricas em uma instituição de ensino profissional4 4 O acompanhamento da aprendizagem prática na empresa deve ser fornecido prioritariamente pelo “Sistema S”, mas a demanda também pode ser suprida por escolas técnicas de educação e entidades sem fins lucrativos (Costa, 2013). e uma capacitação prática em empresas privadas que aderissem ao programa.

Tomás foi um dos 13 integrantes de uma turma de aprendizes selecionada e recrutada, em um Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) da Zona Norte de Porto Alegre, por uma empresa do ramo de comércio e serviços da cidade para participar do Projeto Piloto.5 5 Todas as pessoas com deficiência prevista na lei nº 8.213/1991 (Brasil, 1991) são elegíveis a participarem do Programa. As formas de recrutamento são diversas. Em geral, as pessoas são selecionadas e indicadas ao Programa pelos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) de seus bairros. Mas em alguns casos, como o deste estudo, as empresas recorrem a profissionais autônomos para realizarem esse serviço. Por ser usuário do Benefício da Prestação Continuada (BPC) 6 Sobre o BPC, ver: http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/beneficiosassistenciais/bpc. 6 como “pessoa com deficiência”, Tomás enquadrava-se no projeto como “público-alvo” do programa BPC Trabalho7 7 A partir de 2011, esse Programa prevê que “o beneficiário do BPC com deficiência passe a ter o benefício suspenso, e não mais cancelado, se contratado para o trabalho. Além disso, se perder o emprego, pode voltar a receber o BPC. A mudança ainda prevê que o beneficiário contratado como aprendiz poderá acumular o salário recebido nesta condição com o valor do BPC, por até dois anos”. Fonte: http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa-com-deficiencia/observatorio/inclusao-social/bpc-trabalho. de incentivo à inclusão.

Neste texto, tenho como objetivo analisar a experiência de inclusão no mundo do trabalho vivenciada por Tomás. A partir do ponto de vista de suas experiências individuais, analiso as transformações subjetivas pelas quais passou em situações cotidianas ao longo de seu processo de inclusão pela política de cotas, atentando tanto para o que Michel Foucault chama de processos de subjetivação quanto para a sua agência nesse processo. Este empreendimento analítico segue a leitura de Foucault realizada por Nikolas Rose (199721 ROSE, N. Assembling the modern self. In: PORTER, R. (Ed). Rewriting the self: histories from the Renaissance to the present. London: Routledge, 1997. p. 224-288., p. 226, tradução minha), para quem somos assembled selves: “sujeitos cujos efeitos ‘privados’ de interioridade psicológica são constituídos em nossas relações com linguagens ‘públicas’, práticas, técnicas e artefatos” e com a relação que estabelecemos com nós mesmos.

Na análise dessas relações que constituem o sujeito, lanço um olhar mais atento à agência de Tomás nesse processo, entendendo essa categoria a partir da sugestão de Saba Mahmood (2006)14 MAHMOOD, S. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egipto. Etnográfica, Lisboa, v. 10, n. 1, p. 121-158, 2006.. Ao explorar modalidades de agência cujo significado e efeito não se encontram nas lógicas de subversão e ressignificação de normas hegemônicas liberais, a autora propõe que pensemos essa categoria analítica através do “paradoxo da subjetivação”. Nesse sentido, argumenta que, ao entendermos a constituição do sujeito como “um processo que não só assegura a sua subordinação às relações de poder, mas também produz os meios através dos quais ele se transforma numa entidade autoconsciente e num agente”, somos capazes de pensar a agência como “uma capacidade para a ação criada e propiciada por relações concretas de subordinação historicamente configuradas” (Mahmood, 200614 MAHMOOD, S. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egipto. Etnográfica, Lisboa, v. 10, n. 1, p. 121-158, 2006., p. 121).

Nesta chave analítica, então, proponho compreender a agência de Tomás frente às “práticas pelas quais ele foi levado a prestar atenção a si próprio, a se decifrar e a se reconhecer, estabelecendo consigo uma certa relação que lhe permite descobrir [e, eu diria, transformar] a verdade de seu ser” (Foucault, 200711 FOUCAULT, M. Introdução. A problematização moral dos prazeres. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 2007. p. 7-32., p. 11).

Atenta para as realidades locais resultantes de formas particulares de governo das pessoas e concebendo as políticas públicas como tecnologias produtoras de sujeitos e relações sociais (Biehl; Petryna, 20133 BIEHL, J.; PETRYNA, A. (Ed.). When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013.; Ong, 200316 ONG, A. Buddha is hidding: refugees, citizenship, the new America. Berkeley: University of California Press, 2003.; Schuch, 200923 SCHUCH, P. Práticas de Justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.), proponho-me, mais especificamente, a entender como Tomás habita as categorias diagnósticas a ele atribuídas e como é capaz de agir sobre elas e a partir delas, na interação com os diversos atores com quem se relaciona.

Em minha etnografia acompanhei por aproximadamente dois anos as interações de Tomás com seus professores, sua família, seus colegas de trabalho e com os especialistas psi8 8 Entendo aqui como especialistas psi aqueles que Nikolas Rose (2007, p. 163, tradução minha) nomeia “especialistas da subjetividade”: pessoas que teriam a autoridade de falar sobre os selves e que “transfiguram questões existenciais sobre o propósito da vida e o significado do sofrimento em questões técnicas, em maneiras mais efetivas de se administrar o mau funcionamento e melhorar a ‘qualidade de vida’”. com quem conviveu ao longo dessa trajetória, realizando um percurso etnográfico que busca dar privilégio às pessoas (Biehl, 20051 BIEHL, J. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005., 20082 BIEHL, J. Antropologia do devir: psicofármacos – abandono social – desejo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 413-449, 2008.; Biehl; Petryna, 20133 BIEHL, J.; PETRYNA, A. (Ed.). When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013.) e às categorias que para elas são importantes, atribuindo-as um estatuto de destaque na análise antropológica.

Ao longo do tempo em que estive em contato com Tomás, assisti, por seis meses, na frequência de uma vez por semana, às aulas do curso de capacitação para o trabalho das quais Tomás participou e observei, também por seis meses, a rotina de sua atividade prática profissional no setor administrativo de uma empresa de comércio e serviços em Porto Alegre. Durante minha permanência na empresa realizei oito entrevistas com funcionários que trabalhavam no setor de Tomás, seu gestor direto e o gerente geral. Durante e após o período do Projeto, estive com Tomás também em outros espaços que não o de trabalho. Visitei-o diversas vezes em sua casa, saímos para visitar sua mãe na padaria onde trabalha, compramos peixes juntos, fomos ao shopping center e caminhamos pelo bairro onde mora.

Estive presente também em alguns eventos institucionais, como na formatura do curso de aprendizado de Tomás e na entrevista de avaliação do Programa BPC Trabalho para a qual ele e sua mãe foram convocados por profissionais do governo federal para prestar seu depoimento. Tomás, nas palavras do avaliador da política, é “público prioritário para o governo”. Ele ilustra a transformação pragmática e simbólica de um grupo específico de pessoas “dependentes” de programas assistenciais em cidadãos “autônomos” e “produtivos”. Sua inserção no mercado de trabalho foi um dos “casos exemplares” que, aliado às pesquisas estatísticas e indicadores de desenvolvimento inclusivo, foi escolhido para ser escutado na avaliação do desempenho desses programas sociais de inclusão.

Para mim, no entanto, o “caso” de Tomás não é nem “exemplar” e nem “representativo” de um universo específico de pessoas. Ao narrar a sua experiência, não pretendo, como Sidney Mintz (198415 MINTZ, S. Encontrando Taso, me descobrindo. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 45-58, 1984., p. 55), falar de “uma história dentro da história”. Ao percorrer com Tomás os caminhos trilhados em busca de sua inserção no mercado de trabalho, compartilho de uma agenda etnográfica (Biehl, 20051 BIEHL, J. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005., 20082 BIEHL, J. Antropologia do devir: psicofármacos – abandono social – desejo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 413-449, 2008.; Biehl; Petryna, 20133 BIEHL, J.; PETRYNA, A. (Ed.). When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013.; Das, 20117 DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, p. 9-41, jul./dez. 2011.) que se propõe a perceber a realidade através do caso de uma única pessoa e compreendê-la “em experimento com a vida” (Das, 20117 DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, p. 9-41, jul./dez. 2011., p. 16).

Assim como a história de Catarina permite que João Biehl (2005)1 BIEHL, J. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005. pense sobre as políticas de saúde mental e a medicalização da vida, e o caso de Asha permite que Venna Das (2011)7 DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, p. 9-41, jul./dez. 2011. entenda o surgimento e a vivência de novas normas sociais, minha etnografia com Tomás lança luz sobre os modos de gestão das políticas de cotas e os processos de subjetivação de pessoas com deficiência na prática cotidiana dos sujeitos, assim como evidencia as possibilidades de agência dessas pessoas frente a esses processos.

“Quando ele era pequenininho era um guri normal… Daí começou que não aprendia”

Aos 20 anos de idade, Tomás é um jovem franzino. Tem cabelos curtos lisos loiro-escuros, os quais diz “terem vindo da família alemã da sua mãe”, e, por trás dos grossos óculos, esconde grandes olhos castanho-claros. Mora com os pais em um bairro da Zona Norte de Porto Alegre, em uma casa simples, de quatro cômodos. Sua mãe, Joana, trabalha como diarista e balconista de padaria, atribuições que lhe consomem três turnos por dia, inclusive aos domingos; seu pai, Pedro, acometido de depressão, dedica-se exclusivamente aos cuidados de Ruan, o filho caçula do casal, de 15 anos, diagnosticado com “autismo clássico”.9 9 Segundo minha interlocutora Clara, uma profissional com formação em psicologia comportamental que trabalha na implementação das políticas que estudo, o chamado “autismo clássico” é um tipo de Transtorno do Espectro Autista (TEA) considerado “de baixa funcionalidade”. Segundo ela, o que temos como consenso hoje no campo biomédico é que o TEA engloba diferentes síndromes marcadas três características fundamentais, que podem manifestar-se em conjunto ou isoladamente: a dificuldade de comunicação por deficiência no domínio da linguagem e no uso da imaginação para lidar com jogos simbólicos, a dificuldade de socialização e a presença de um padrão de comportamento restritivo e repetitivo.

Filho de pais com baixa escolaridade e renda, oriundos da zona rural do Rio Grande do Sul, Tomás guarda lembranças sempre felizes dos finais de semana e das férias que passa na chácara de sua avó no interior do estado, quando alimenta os animais e “faz omeletes com ovos de gema amarelo-bem-forte das galinhas-caipira” criadas na propriedade. Em sua casa, ele tem um aquário, dois passarinhos e Scooby, um cachorro vira-latas com cuja foto compõe seu perfil na rede social Facebook.

Segundo sua mãe, Tomás “nasceu ali mesmo no Cristo Redentor”, hospital próximo à sua casa. Joana conta que,

quando ele era pequenininho, a gente não notava nada, tudo era normal… Ia para creche, era um guri feliz, normal. Daí começou que não aprendia. Foi uma fase horrorosa, difícil… Ele se irritava, riscava todo caderno. Tinha que fazer os temas junto, a professora mandava texto e ele não conseguia… Eu tinha que inventar, ditar letra por letra, todo dia isso, um stress. (Entrevista gravada em abril de 2015).

Tomás frequentou uma escola regular da rede estadual de ensino dos 6 aos 12 anos de idade. Nesse percurso, cursou por dois anos a primeira série e repetiu por quatro anos a segunda. Sua mãe conta que “depois que foi crescendo, não quis mais ir na escola. Um menino como ele, quando vai chegando à adolescência vai ficando difícil, vai perdendo os amigos”, lamenta Joana.

Poucas vezes Tomás se referiu à escola durante nossas conversas; numa delas, relatou o momento em que teria se apercebido de sua condição de “pessoa com dificuldade”. Isso teria ocorrido durante as repetidas vezes, em sala de aula, quando “a professora gritava: Vou explicar de novo, pro Tomás!”. Por duas vezes essas lembranças o remeteram à época em que “teve TOC”:10 10 Para registro, o Transtorno Obsessivo Compulsivo “é caracterizado pela presença de obsessões, que seriam pensamentos, impulsos ou imagens indesejáveis e involuntários, que invadem a consciência causando acentuada ansiedade ou desconforto e obrigando o indivíduo a executar rituais (compulsões) que afastariam possíveis ameaças” (fonte: http://www.ufrgs.br/toc/). “Eu tinha TOC. Escovava os dentes até sangrar. E lavava as mãos também.” Essa época da vida de Tomás parece estar marcada mais fortemente pela presença de especialistas psi em seu cotidiano. Em algumas de nossas conversas, ele referiu-se a esse período – que parece para ele ter ficado no passado – ressaltando práticas e categorias biomédicas, como o uso contínuo de remédios e visitas semanais ao Centro de Atendimento Psicológico do seu bairro. Isso teria ocorrido por volta de seus 11, 12 anos, período em que cursou seus últimos anos na escola regular e, também, segundo Joana, quando Ruan começava a dar os primeiros sinais de que “também não aprendia”.

Tomás foi, então, para uma “Escola Especial”.11 11 Escolas Especiais são aquelas onde são matriculadas apenas pessoas com deficiência. Contou-me que desta ele “não gostava porque era só desenho pra pintar” e a professora dizia que eles “não iam ser ninguém na vida”. Não gostava porque “ele queria aprender as coisas”. Joana me disse que “não foi fácil a transferência de escola, que isso marca a vida de uma criança”. “Lá era todo mundo com Down, essas coisas, sabe?… Mas ele ficou. Daí, mais tarde, acho que uns dois anos depois de entrar nessa escola, as professoras disseram que era melhor ele ir para uma escola regular, que ele tinha condições.”

Nas avaliações da escola,12 12 Joana entregou-me cópias e autorizou o uso para pesquisa de todas as avaliações escolares e psicológicas de Tomás, assim como de seus laudos médicos. a “tranquilidade”, a “educação” e a “alegria” de Tomás eram qualidades sempre elogiadas nas observações por escrito das professoras, as quais aparecem seguidas de um “apesar de ter muita dificuldade para vencer a inibição” ou de incentivos como: “mas está melhorando o entrosamento com os colegas” e “mas está mais falante e participativo”.

Joana contou-me que, “quando Ruan começou a piorar”, com uns 6, 7 anos (e Tomás, então, com uns 13), indicaram-lhe que procurasse auxílio psicológico para os meninos.

– Ainda bem que a Dona Helena13 13 Dona Helena é uma das pessoas para quem Joana trabalha como diarista. Ela é psiquiatra e ajuda Joana há mais de 12 anos com roupas, remédios e atendimento psicológico para os filhos. conseguiu isso pra mim, né, senão ainda ia ter que pagar. Era uma via sacra, guria, toda semana eu ia lá na clínica com os dois. Pegava dois ônibus e ia com os guris debaixo do braço. Tinha que ser sete vezes pra fazer a avaliação do Tomás. Ele tinha um retardo, né… leve… Mas foi aí que disseram que ele tinha… – nesse momento Joana faz uma breve pausa na sua fala. Visivelmente não queria ou não conseguia nomear o diagnóstico de Tomás. Ela abaixa o tom de voz, olha para o chão e fala: – uma deficiência. É tantos por cento lá, eu não sei – continua.

– E tinha que faltar o trabalho todos os dias? – pergunto tentando mudar de assunto.

– Não. Era uma vez por semana.

– E o marido? – perguntei.

– Pois foi bem nessa época que ele tava internado. Era segurança ali no posto e levou um tiro.

– Bah, guria, que fase, hein?!

– É, não foi fácil… Bom, eu vivia que nem zumbi, né. Nem sei como não me deu um piripaque.

Joana, então, mostra-me o parecer psicológico da clínica (de 2007) e um atestado do posto de saúde, os quais registram uma avaliação diagnóstica que em muito distanciava a percepção da mãe daquela descrita pelos especialistas: “Atesto para os devidos fins que Tomás está em acompanhamento psiquiátrico pelo CID-10 F42; F7.5 e F84.9.” Tal “documento com CID”14 14 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. CID 10 – F42 (Transtorno Obsessivo Compulsivo); F7.5 (Retardo Mental Leve) e F84.9 (Transtornos Globais do Desenvolvimento). era necessário para que Tomás comprovasse que tinha “deficiência” e, assim, candidatar-se a uma vaga de trabalho pela lei de cotas em uma empresa que lhe tinham indicado. Ele queria trabalhar.

Joana queixa-se de que, desde que fez 18 anos, quando saiu da escola, até a sua entrada no programa de aprendizado para o trabalho, com 20, Tomás “passava os dias em casa sem fazer nada”, embora contribuísse para o sustento da família com o recebimento do Benefício da Prestação Continuada (BPC). Joana lamenta que ele “era deprimido, sem amigos”, e conta que “seu sonho era trabalhar”.

“Meu irmão tem autismo… Ele não entende as coisas”

A turma de Tomás no curso de aprendizagem era composta por 13 jovens entre 16 e 25 anos, provenientes de bairros da periferia da Zona Norte de Porto Alegre. Eles haviam sido selecionados pela assistente social da empresa na qual fariam os estágios. Não tive autorização para entrevistar essa profissional, mas, segundo a responsável pela instituição de ensino, eles foram encaminhados para o curso já com os “laudos médicos atestando deficiência compatível com as exigências previstas pela lei”. Tal condição teria sido avaliada por um médico contratado pela empresa e documentada através de laudos periciais que atestaram que os jovens apresentavam diagnóstico de “retardo mental leve a moderado”.15 15 Tais referências seguem os parâmetros do DSM IV (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais). Segundo a psicopedagoga da instituição de ensino onde realizei a pesquisa, os profissionais preferem utilizar o termo “deficiência intelectual”, por considerá-lo menos estigmatizante.

Durante os seis meses de curso, a turma de aprendizes participou de diversas atividades, desde aulas sobre matemática básica até treinamentos de comunicação e expressão no trabalho. Em uma das primeiras aulas sobre busca de informações na internet, enquanto eu caminhava pela sala e conversava um pouco com cada aluno, percebi que Tomás estava, durante o tempo todo da aula, no site de busca do Google Imagens, pesquisando fotos de peixes e aves. Quando ele notou minha presença, perguntei o que estava vendo. Ele me olhou e, com a fala entrecortada por uma leve gagueira, perguntou-me: “Tu conhece o paulistinha rosa? É geneticamente modificado. O original é preto e branco”, acrescentou; discorrendo longamente sobre cada foto que aparecia na tela. Fiquei abismada. Como ele sabia o nome de tantas espécies diferentes de peixes? A seguir, dissertou sobre o pH da água ideal para cada espécie, o tempo de vida de cada peixe e sobre quais poderiam conviver pacificamente no aquário. “O beta é agressivo. Quando a gente quer cruzar tem que colocar a fêmea em um aquário do lado. Daí vê se ele se interessa… Fica olhando… Se ele não ficar do lado dela, não pode colocar no aquário. Não tá no cio. Daí ela mata ele!”, explicou, animado, com sua forma breve e direta de falar. E não era apenas sobre peixes que ele discorria com propriedade. Mostrou saracuras, galinhas, e outras aves também. Fiquei fascinada com o que considerei, como leiga em teorias do aprendizado e do desenvolvimento, uma incoerência: como uma pessoa que não teria conseguido ir além da segunda série do ensino fundamental poderia saber tanto sobre o mundo animal?

Quando a turma saiu para o intervalo, comentei com as pessoas que estavam na sala dos professores sobre o vasto conhecimento de um jovem da turma que eu observava. “Ah, tu conheceste o Tomás!”, comenta uma professora da instituição. “São os interesses específicos! Ele tem autismo.”

A troca de informações entre os professores e os profissionais do setor pedagógico da instituição que promovia o curso costumava levar em consideração as particularidades de cada aluno e, no caso de pessoas com deficiência, seus diagnósticos são um desses elementos. Nesse dia, Clara, responsável pelo acompanhamento das turmas de aprendizado, estava presente na sala dos professores quando comentei do aprendiz. Naquele momento, outros professores do curso deram início a um diálogo com Clara sobre alguns alunos: “Eu acho que tenho um outro menino com autismo na minha sala. O Antônio, tu já viu ele?”, pergunta uma professora. “Ele não tem o diagnóstico, mas tá muito na cara… Ele é estranho! Não me olha nos olhos, caminha saltitando na ponta dos pés… Às vezes fica olhando fixo e mexendo na etiqueta da blusa. Parece que está em outro mundo.”

O interesse pelo autismo realmente tomou conta da sala. Parecia que essa categoria trazia consigo uma aura de mistério e encantamento. Enquanto as professoras tiravam dúvidas e compartilhavam experiências de sala de aula com Clara, em suas expressões era visível o interesse sobre os conhecimentos psicológicos e comportamentais que a profissional lhes trazia. Clara explicava que

o autismo é um transtorno global do desenvolvimento, chama-se Transtorno do Espectro Autista – TEA. É formado por uma tríade que envolve dificuldades de comunicação e interação social e o desenvolvimento de comportamentos e interesses restritos ou repetitivos… Antigamente, e aqui no Brasil no dia a dia ainda se chama assim, tínhamos a Síndrome de Asperger que [se] diferenciava do autismo mais clássico. Mas hoje se diz que dentro do espectro temos pessoas com baixo, médio e alto funcionamento. Não é um diagnóstico simples de se fazer porque é clínico. A observação de vários fatores comportamentais e, principalmente, de funcionamento são levados em consideração até que a gente possa dizer que alguém está no espectro. (Diário de campo, outubro de 2013).

Clara falou-me que havia feito a avaliação de Tomás no início do curso e compartilhado com as professoras que ele era “um menino dentro do espectro, aparentemente com um autismo moderado. Tinha boa capacidade de linguagem receptiva e expressiva, mas capacidade cognitiva abaixo da média para idade cronológica. Era o típico menino embotado, com leve alteração sensorial e pouca capacidade de atenção social ou atenção compartilhada – que seria o que podemos chamar de interação social.”

No primeiro mês de recebimento do seu salário, acompanhei Tomás até uma loja do seu bairro que, segundo ele, “vendia galinhas também, mas agora não mais. Vende só peixes e outras coisas.” Lá, ele me apresentou muitas espécies de peixe e comprou cinco novas delas para seu aquário. “Será que tá bom assim? Tu acha que compro aquele também?” Minha impressão era de que ele ia levar a loja toda! Quando fomos ao balcão para o atendente registrar a nota, este, com uma intimidade que me surpreendeu, perguntou-lhe: “Esse é qual, Tomás?” Em resposta, ele nomeou a espécie e, a seguir, lançou-me um olhar que não escondia a satisfação de dominar plenamente o assunto.

No caminho de retorno a casa, Tomás caminhava a passos largos pelas ruas curvas do seu bairro. Ao logo do trajeto, apontava com familiaridade os estabelecimentos comerciais da região, intimamente ligados ao seu cotidiano: a loja em que alugava todos os filmes a que assistia nos fins de semana, o lugar que antigamente abrigara uma sorveteria, a padaria onde sua mãe cumpria uma de suas jornadas de trabalho. “Eu nasci aqui. Meu irmão também…” Falar do irmão trouxe-lhe a lembrança de que, ao chegar em casa, “tinha que cuidar para o Ruan não estressar os peixes”. “Ele é autista, sabe? Olha aqui” – e me mostrou os braços com marcas de arranhões. “Ele sacode o saco e os peixes morrem. Eles ficam estressados e morrem”, disse-me, exaltado, temeroso da reação do irmão.

O comportamento imprevisível e incontrolável de Ruan, nas mais diversas situações públicas e familiares, era acolhido com uma compreensão sensível por Tomás. As agressões que sofria do irmão eram-lhe um comportamento relacionado ao autismo em si e não resultado de um conflito de implicações pessoais.

Perguntei-lhe o que era “autismo”: “Ele não entende as coisas”, respondeu. “Como assim?”, questionei. “Ele não entende a morte… Não tem vergonha também”, falou, referindo-se ao fato de Ruan não se importar de aparecer sem roupas na sacada ou diante de pessoas estranhas. Nessa conversa ficava evidente para mim que, para Tomás, a categoria “autismo” não era capaz de classificá-lo. Ele entendia as coisas, ele tinha vergonha de sua nudez em frente às pessoas.

Tomás fala de sua condição no contraste com os diagnósticos atribuídos aos seus familiares. Suas explicações sobre o autismo do irmão, assim como seu entendimento sobre a depressão do pai como uma enfermidade que “não lhe deixa sair de casa”, ou o seu TOC que lhe fazia “escovar os dentes até sangrarem as gengivas”, ilustram a forma concreta e intensa com que os diagnósticos habitam sua vida e a de sua família.

Quando chegamos em sua casa, enquanto Tomás tentava esconder os peixes do irmão, era visível a preocupação do pai com o comportamento de Ruan. “Valéria! Valéria!”, o menino berrava da janela enquanto eu subia as escadas. Ele havia sido avisado da visita e estava muito agitado com a novidade. Perguntei se estava tudo bem, se eu poderia entrar. “Claro”, disse o pai. “Ele tá bem.” E segurava as mãos do menino para evitar que me tocasse. Eu disse que não havia problema, que eu não me importava com as manifestações do menino. “Ele só quer te conhecer”, explicou. Ruan executava movimentos agitados e repetitivos. Ia e voltava do quarto durante minha visita, repetindo, ansiosamente, a mesma pergunta: “Tu vai embora de ônibus? Tu vai embora de ônibus?”; “tu tá de calça preta? Tu tá de calça preta?” Segundo o pai, “ele gostava de andar de ônibus”. “Diz que tu volta de ônibus que ele para”, alertou-me. Como previsto por Tomás, assim que Ruan viu o saco com os peixes, pulou sobre eles, deixando o irmão visivelmente contrariado. Nesse momento, foi levado pelo pai à cozinha, com o pretexto de “buscar um café para a visita”!

Tomás sabia que “ele não era muito bom” em atividades que exigiam o falar; chegou a comentar comigo que nessas ocasiões “ficava nervoso”. Ao longo do curso, em muitos momentos ele se referiu, em tom de reprimenda, às atitudes dos colegas que não obedeciam às regras. “Eu nunca faltei”; “o Fulano dorme na aula; não presta atenção”; “o Beltrano chega atrasado, eu não”; “eu não falo palavrão”. Tomás estava confiante de que suas atitudes eram exemplares, mas ainda assim manifestava claramente temeridade em relação àquilo que denominava “sua dificuldade”. Isso é o que mais fazia com que ele duvidasse das suas possibilidades de conseguir um emprego. Comparando-se com colegas em várias aulas, Tomás por vezes elogiava o bonito desenho de um e, por outras, salientava suas qualidades cognitivas e conquistas de aprendizado. “A Gabriela não sabe fazer continha, eu sei. Eu sei fazer continha.” “Já acabei a atividade, tu viu? Antes dos outros.”

Ele estava se esforçando no curso e as professoras o escolheram como “funcionário do mês” mais de uma vez. No entanto, ao longo das aulas, alguns momentos foram-lhe de visível tensão, como no dia em que foi chamado à frente da sala pela professora a fim de responder a algumas perguntas sobre o que haviam aprendido na aula de planejamento de vendas:

No quadro negro, a professora escreveu uma lista com as etapas do planejamento: 1) Formar a equipe de trabalho; 2) Escolher o nome da empresa; 3) Decorar o stand de vendas…

– O que a gente fez até agora, Tomás? – pergunta a professora.

Tomás olha fixo para a professora, em silêncio.

– Vem aqui na frente – solicita a professora. Tomás levanta devagar, hesitando em caminhar até o quadro negro. Ele caminha até ela, com passos curtos e os braços colados ao longo do corpo trêmulo.

– Olha pra todo mundo – pede-lhe a professora com voz firme, mas suave, tentando acalmar o menino. Ele levanta e abaixa o olhar, repetidamente, até voltar a olhar para o quadro negro.

– O que a gente fez ontem? – ela repete a pergunta.

– Doces – responde.

– Doces? Fizemos doces, Tomás? Eu não lembro de a gente ter feito nenhum doce!

A colega Aline ajuda Tomás lembrando-lhe de que a turma havia feito doces de decoração em tecido.

– Sim, Aline, fizemos recortes de docinhos, mas pra quê? – faz um breve silêncio e continua com a resposta – Pra decoração. Então fizemos decoração – corrige a professora, expressando o desejo de que Tomás tivesse apontado à turma o assunto sobre vendas, listado no quadro.

– Pode sentar, Tomás – ela finaliza a sua participação. (Diário de Campo, março de 2014).

Em tal situação de exposição, importante na visão das professoras para que os aprendizes pudessem futuramente “ter coragem de encarar chefes e colegas de trabalho”, Tomás se via fragilizado. Naquele momento, lembrei-me do comentário de Clara, segundo o qual “nas empresas devemos trabalhar diferentemente as competências das pessoas com deficiência, ao invés de desenvolvermos seus pontos negativos, devemos focar nos positivos”. Para ela, adepta de uma vertente mais comportamental da psicologia,16 16 Para uma etnografia sobre as diferentes vertentes da psicologia no tratamento de pessoas com TEA, ver López e Sarti (2013). uma pessoa com autismo pode, sim, “treinar algumas habilidades sociais, mas sempre terá esta área mais deficitária do que outras pessoas”, e isso deve ser levado em consideração na forma de lidar com elas, bem como na atribuição de seus cargos e funções.

Uma das preocupações dos especialistas com os quais conversei é o desconhecimento sobre o que é o autismo e os efeitos desta condição na vida das pessoas. “Não veremos um chefe cobrar que um cadeirante ande, mas é comum vermos a exigência de que pessoas dentro do espectro desenvolvam habilidades sociais, como entrosar-se com colegas ou atender ao público, o que para elas pode ser uma violência”, disse-me um psiquiatra que acompanha experiências de emprego de seus pacientes.

As conversas e cenas que presenciei em meu trabalho de campo vão ao encontro da fala desse especialista e evidenciam a centralidade dos diagnósticos na prática da política de cotas; elas levam-me a refletir sobre o modo como as pessoas experienciam as deficiências e qual o espaço das categorias biomédicas nas suas vidas. No caso da inclusão de Tomás no mercado de trabalho, de que forma o conhecimento (ou o desconhecimento) do seu diagnóstico de autismo afeta a forma como as pessoas interagem com ele? Como Tomás percebe a presença dessa possível diferença de tratamento? Como isso afeta a forma pela qual ele age e se entende? E, em um nível de análise mais amplo, o que a compreensão de sua experiência de inclusão pela política de cotas tem a nos dizer sobre o caráter produtivo das políticas públicas e seus efeitos nas vidas das pessoas com deficiência intelectual/psicossocial? Parece-me que uma das formas significativas de responder em parte a esses questionamentos pode estar antes na consideração do que Tomás tem a dizer sobre si mesmo do que na apreciação dos seus diagnósticos médicos.

“Eu fiz tudo certo, né?”

Ao fim das aulas teóricas, observei o período de estágio prático de Tomás no setor administrativo de uma grande empresa do ramo de comércio e serviços em Porto Alegre. Durante seis meses, ocupei uma mesa, oportunamente escolhida, pela chefe do departamento de recursos humanos, ao lado do gerente geral, na ampla sala em que Tomás foi instalado e participei, uma vez por semana,17 17 Esse limite foi negociado com a empresa. de seu cotidiano de trabalho.

Minha rotina de observações cumpria um protocolo bastante limitado. Tinha autorização para entrar na empresa somente às 9 horas da manhã, meia hora depois do início do expediente, tendo que deixá-la ao final do turno. Durante o período da manhã, procurava não interferir no trabalho dos funcionários, limitando minhas aproximações à mesa de Tomás. Com o pretexto de tomar um café, trocava com ele algumas palavras sobre como havia sido a semana. Tínhamos maior oportunidade de conversar durante os intervalos do lanche e do almoço. No entanto, esses dois momentos de convivência, após dois meses, foram-me negados pela gerente de recursos humanos da empresa, sem justificativa aparente.

A primeira frase de Tomás, todas as vezes em que fazíamos um intervalo para o lanche na sala de convivência dos funcionários, era, invariavelmente, sobre seus relacionamentos pessoais com os colegas: “A Laura sentou na minha mesa do almoço ontem. Ela é minha amiga”; “a Bárbara sempre me dá oi quando eu chego”. Sempre tinha uma novidade relativa às suas trocas afetivas no espaço de trabalho, mais especificamente sobre quem mais o havia dado um “oi”. Quando lhe perguntava se estava gostando do emprego, ele respondia laconicamente: “Sim.” E, ao ser questionado sobre se pretendia permanecer naquela empresa ou procurar outra quando concluísse as atividades práticas do curso, respondia: “Ficar aqui.”

Um dia perguntou se eu tinha visto que “a Kátia não cumprimentava ele”. “Acho que ela tem preconceito com pessoa que tem dificuldade”, ponderou. “Tu tem dificuldade, Tomás?”, perguntei. Sua resposta foi a de que “a Gabriela [sua colega de curso] tem mais dificuldade, não sei se ela fica na empresa. Ela nem sabe fazer continha, eu sei.” Olhava-me fixo, parecia resgatar uma explicação para minha pergunta. Depois de uns segundos, disse: “Eu fiz cocô quando ainda tava na barriga da minha mãe.”

Na empresa, a função atribuída a Tomás foi a de dispor notas fiscais em ordem numérica e etiquetá-las, tarefa que cumpriu perfeitamente ao longo de todo estágio. Um de seus colegas de curso, Edson, também foi designado para o mesmo setor dessa empresa. A ele, inicialmente, teria sido dada a mesma atribuição, mas, para queixa de Tomás, “Edson recebeu outras tarefas e aprendeu outras coisas” durante o período de adaptação dos dois.

Clara, psicopedagoga responsável pela turma do Tomás ao longo de todo curso na instituição de ensino, também realizou as visitas de avaliação de estágio dele na empresa. Embasada em seus conhecimentos sobre Análise Aplicada do Comportamento (ABA)18 18 A Applied Behaviour Analysis (ABA) é uma abordagem da psicologia comportamental que foi adaptada para o ensino de crianças com autismo. Baseia-se nos princípios de reforço positivo, solicitações graduais, repetição e a divisão das tarefas em pequenas partes, ensinadas inicialmente em separado (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%A1lise_do_comportamento_aplicada). e neurociências cognitivas, a psicopedagoga auxilia também as empresas a escolherem as melhores funções e espaços de trabalho para pessoas com TEA e orienta os gestores, ou colegas de setor, a como lidarem com elas, como o fez em uma de suas conversas com um gerente de recursos humanos:

Trabalhos que exijam rotina e sejam repetitivos não são um problema para eles. Pelo contrário! Eles se acalmam com a rotina. Ficam desorganizados quando há um imprevisto ou quando precisam tomar decisões por si mesmos frente a muitas opções. O manejo com eles deve ser mais diretivo: – Agora tu vais separar estas notas. – Agora tu vais colocá-las nas caixas. Quando acabar, me avisa que eu te dou outra tarefa. Se tu chegar pra eles e perguntar “o que tu achas de fazer tal coisa ou outra?” ou “que tal ir ver o estoque?” eles vão se perder, tu vais deixá-los nervosos. (Diário de campo, janeiro de 2014).

Tomás permaneceu o tempo todo do estágio cumprindo atividades na sessão de etiquetamento das notas fiscais. Pegava a etiqueta, olhava o número, procurava seu correspondente em uma planilha e dispunha em ordem. Pegava outra etiqueta e continuava essa tarefa durante as 4 horas do turno da manhã. Maurício, o gerente do galpão de estoque, comentou comigo que “não dá pra saber se ele tá bem, se tá gostando ou não do trabalho. Ele fica ali, sempre com aquela mesma cara, com esse jeitão dele.” “Não fala muito ele, né!?”, me perguntou um dia. Maurício comentou que eles “até tinham pensado em colocar ele lá nos correios pra mudar um pouco de setor, pra ver se ele gostava mais de outra função”, mas que Tomás, ao ver a altura das prateleiras, teria se “petrificado”:

Ele ficou parado ali na entrada do depósito! Congelou. Perigoso isso! E se vem uma empilhadeira? Os caras andam rápido naquelas máquinas. Não dá pra botar ele lá. E o computador a gente tentou ensinar, mas ele não pegou o sistema… Eu não sei o que ele tem… Disseram que o cara é autista. Eu já trabalhei com PCDs,19 19 A sigla “PCD” é um termo êmico recorrente para referência a “Pessoas Com Deficiência” que são contratadas nas cotas da lei nº 8.213/1991 (Brasil, 1991) no meio empresarial. a gente tem uns [deficientes] físicos, sem um dedo e tal, problema no braço, mas não com esse tipo [de deficiência]. É novo pra mim. (Diário de campo, abril de 2014).

Quando cheguei para acompanhar o último dia do estágio de Tomás, ele levantou o olhar das etiquetas e notas fiscais com que se ocupava no momento e me olhou com o seu característico sorriso nos lábios. Sempre que concentrado em dispor em ordem numérica as etiquetas de pedidos da loja, ele ficava sério, de testa franzida. Quando levantava para ir ao banheiro ou pegar um café, caminhava a passos curtos, braços estáticos ao lado do corpo, mirando fixo o destino final do trajeto, sem descompor o sorriso.

– Eu sempre fico sorrindo, né?! – um dia me perguntou.

– É? – retornei a pergunta.

– Sim, eu tô sempre sorrindo. As pessoas me dizem que tô sempre sorrindo… Por que, heim!?

– Sei lá, Tomás, acho que é porque queres ser simpático com as pessoas, não? E tu, o que achas?

– Eu sorrio quando fico nervoso.

– E quando tu fica nervoso?

– Não sei… Sempre.

Nesse dia, em menos de 30 segundos, olhou-me fixo umas três vezes com o tal sorriso. Estava visivelmente agitado. Algo o perturbava profundamente e eu sabia o quê. Naquele dia ele receberia uma importante notícia do RH da empresa: seria ou não efetivado após seu estágio de seis meses como aprendiz no centro de distribuição de produtos de uma grande loja de departamento de Porto Alegre.

“Tu sabe que ele teve um ataque de ansiedade ontem, né?” – veio logo me contar seu Paulo quando cheguei. “Ficou branco, tremia todo que nem vara verde. Suava as mãos, reclamou de dor de barriga. Tu não pode fazer nada?”, perguntou. “Fala lá pra eles no RH que não se faz isso com o menino! A gente que é forte, saudável, já fica ansioso com essas coisas. Imagina ele!” (Diário de campo, agosto de 2014).

Seu Paulo, funcionário experiente e muito querido pelos colegas, foi designado para ser o responsável por Tomás logo que ele chegou na empresa. Segundo o gerente, “Tomás estava bem amparado, o seu Paulo é uma pessoa paciente e afetiva”. Seu Paulo me falou que o pessoal da gerência havia lhe dito que “tinha que ficar de olho nele” e “lhe repassar tarefas fáceis de fazer”. A escolha foi colocar em ordem e etiquetar as notas fiscais de produtos da loja.

Nas primeiras semanas fui abordada algumas vezes pelos colegas de trabalho de Tomás, os quais pareciam curiosos em conhecer o seu “diagnóstico”. “Ele é estranho, afinal, o que ele tem?”, perguntou-me um funcionário. Respondi que “eu estava apenas acompanhando o estágio e só sabia que ele ocupava uma vaga de aprendizes com deficiência” – o que pensava já ser de conhecimento de todos. Descobri depois que a empresa não havia esclarecido aos colegas de Tomás sobre o diagnóstico de autismo, sobre o qual eu havia sido informada no curso, mas que “corriam boatos sobre essa condição no setor em que estava trabalhando”. A centralidade do “tipo de deficiência” nas preocupações das pessoas com relação a Tomás me fez refletir sobre a forma como escolas e empresas gerenciam a diferença. Se nas aulas teóricas do curso de aprendizado as professoras, sabendo de suas fragilidades, já colocavam o menino em situações de vulnerabilidade, como seria em uma empresa, e sem esse conhecimento?

Perguntei para um colega como estava o desempenho de Tomás no trabalho. “Ele está bem, mas não se relaciona. Aqui na empresa isso conta pra ser efetivado. Tem que se integrar com o grupo. No almoço ele fica sozinho, não senta com as outras pessoas no refeitório. O Edson fazia companhia pra ele, mas agora se enturmou com a gurizada do depósito e almoça com os guris.”

Tomás chegou todos os dias exatamente 30 minutos antes do seu horário de trabalho. “Sete e meia ele já tá aqui”, elogiou um colega que trabalha no setor de atendimento ao cliente. No dia final do estágio, Tomás perguntava-me sobre todas suas possíveis “falhas” e lembrava do seu único dia de atraso. “Tive que voltar em casa pra trocar de roupa. Tava todo molhado. Caiu um temporal”, e continuou, nervoso, a demandar minha opinião sobre seu desempenho: “Tudo que me pedem eu faço, né? Eu não faltei nenhum dia. Tu acha que eu vou ficar!?” O esforço para ser um bom funcionário parecia não ser suficiente para que Tomás correspondesse às exigências de “perfil” da empresa. Sua trajetória até ali parecia lhe impor uma barreira social (Diniz; Santos, 20109 DINIZ, D.; SANTOS, W. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas à discriminação. In: DINIZ, D.; SANTOS, W. (Org.). Deficiência e discriminação. Brasília: Letras Livres: Editora da UNB, 2010. p. 9-18.) que estava além da sua vontade individual.

Eu sabia das estratégias de algumas empresas de contratarem turmas de aprendizes com deficiência para que pudessem prorrogar, por dois anos, o prazo para o cumprimento das exigências impostas pela lei de cotas. Imaginava também que, se fosse pela vontade dos gestores, Tomás não efetivaria sua vaga. Presenciei vários telefonemas e reações de descontentamento do gestor geral com a “pouca produtividade dos PCDs” e o fato de “não poder demiti-los por faltarem ao trabalho”. Além disso, a presença de Tomás, na visão do RH da empresa, exigia um responsável permanente por seu trabalho, alguém que verificasse quando ele havia finalizado um lote de etiquetas e lhe entregasse outro, uma vez que havia sido observado que ele não parecia ter “pró-atividade” para solicitar novas tarefas. Ao acabar, “ficava ali parado aguardando a solicitação do que fazer”, comentou um colega do setor. Tal fato foi visto como um problema para a empresa, pois demandaria um funcionário disposto a incorporar tal responsabilidade a uma carga de trabalho já extenuante. Mas, na fala do gerente geral, a não contratação de Tomás não parecia uma opção, uma vez que “a empresa tem que cumprir a cota”. “Fazer o quê?”, reclamou quando comentava sobre a dificuldade de “cobrar trabalho” das pessoas com deficiência.

O dia da notícia de que Tomás seria, sim, contratado foi, com certeza, um dos mais emocionantes de sua trajetória (e o mais intenso que vivi como pesquisadora!). Ao final da manhã, os aprendizes foram chamados na sala da gerente de recursos humanos e, após uns 15 minutos de muita espera angustiada de minha parte (pois não permitiram que eu os acompanhasse), voltaram radiantes! Tomás e Edson haviam sido aprovados no período de aprendizagem e teriam, pela primeira vez em suas vidas, a carteira assinada! Tomás, ao voltar da sala da gestora, seguiu em direção à sua mesa para concluir o expediente, mas a excitação era tanta, que não conseguiu fazê-lo. No meio do caminho, quebrou o seu protocolo de trabalhar initerruptamente e mudou o trajeto, vindo em minha direção. Diante dele, frente à minha mesa, perguntei: “E aí?” “Sim”, disse ele, com aquele sorriso nos lábios, agora de um “nervoso feliz”. “Parabéns, guris!”, disse aos dois, “vocês merecem muito!”. Edson, com os olhos mareados, pulava e dançava sacudindo os braços. “Tô estranho, acho que não posso receber notícia boa.” Tomás, após uns minutos sem esboçar palavra, trêmulo, parado em minha frente, com a voz embargada, resumiu numa única palavra a emoção daquele momento: “Consegui!”

“Pode puxar dele que ele faz, ele trabalha”

No dia em que teria de levar a carteira de trabalho para que fosse efetivado, combinei de encontrar Tomás, junto com sua mãe, na frente da empresa. Ela estava um pouco contrariada porque a renda da família, a partir do momento em que o filho fosse efetivado, iria baixar. Isso porque, durante o período do curso, Tomás recebia o salário da empresa acrescido do BPC, mas, agora, com a contratação como funcionário regular, ele, necessariamente, teria o benefício suspenso.20 20 A alteração feita pela lei nº 12.470/11 (Brasil, 2011) à LOAS (lei nº 8.742/1993) permite que o BPC seja suspenso durante o período em que o beneficiário esteja trabalhando. Caso este venha a ser desligado da empresa, pode voltar a receber o benefício sem necessidade de nova perícia. “Vai ficar mais difícil pra gente, né. Mas é o sonho do Tomás trabalhar, né… A gente tem que dar um jeito.”

Sua mãe relata que trabalha como diarista três dias da semana, do início da manhã até as 16 horas, na casa da mesma patroa. Nos outros três dias faz faxina em outras casas e de segunda a sábado, do final da tarde até às 9 da noite, “pega na padaria” perto de casa. “Tenho só o domingo pra dar conta de toda casa, quando não trabalho domingo também. Tu viu como tava quando tu foi lá, né? Não dá, menina! E o pai não dá conta porque com o Ruan é 24 horas.”

Antes da responsável pelo RH chegar, Joana manifestou-me seu descontentamento: a empresa havia assegurado a ela que Tomás iria trabalhar num turno de seis horas, incluído o sábado; agora, no entanto, adotando outro discurso, expôs-lhe a necessidade de diminuir a sua carga horária, o que implicaria, necessariamente, perda salarial. Contrariada, a mãe de Tomás baixa o tom de voz e afirma que “eles não estavam se explicando direito… Disseram que é porque precisa de uma pessoa pra ficar com ele e que a empresa não tinha ninguém disponível pra esse tempo todo”. Joana havia entendido que a empresa justificava a redução da carga horária de Tomás com o argumento de que o diagnóstico de autismo do filho exigisse atenção especial: “Disseram que ele é autista! Ele não é autista, autista é o Ruan… que, né…” E reproduz um movimento repetitivo de balanço do corpo, sacudindo os braços, lembrando-me do irmão do Tomás.

A compreensão que a mãe construía sobre o autismo baseava-se na sua vivência com filho mais novo. O contraste entre Ruan e Tomás tornava incompatível, na experiência da família, a inclusão de ambos dentro de um mesmo espectro de transtorno do desenvolvimento, como havia sido mencionado pela gerente de recursos humanos e avaliado pela psicopedagoga.

Tão logo chega a gerente, Joana reage: “Ele pode aprender. Pode puxar dele que ele faz, ele trabalha.” A funcionária, sem saber como conduzir a situação, limitou-se a um comentário pragmático: “Mas não tem problema, o que importa é se ele tem alguma coisa pra entrar na cota. Ele tem laudo, né?”, pergunta. A mãe diz que “ele tem laudo de retardo leve, acho que é isso que tá lá… Se for por isso, não. Podem puxar dele que ele consegue fazer as coisas.” E, em voz mais baixa, repete, dirigindo-se mim: “Autismo tem o Ruan.” A gerente de RH explica então que “não era por isso que tinham diminuído a carga horária dele”, mas, sim, porque “a empresa não tinha um funcionário disponível para cuidar dele por mais tempo”.

O diagnóstico de autismo, que havia chegado aos ouvidos dos funcionários, não correspondia com o laudo que a mãe tinha em mãos, feito pelo médico, e nem era o mesmo que sua mãe construíra em sua vivência com o filho. Mesmo que, para a burocracia da empresa, o diagnóstico parecesse pouco importar para o preenchimento da vaga de Tomás nas cotas da lei, a redução de carga-horária evidenciava que ele estava sendo visto como uma pessoa que requereria um “cuidador”. Essa avaliação importava, sim, para Joana, pois não era como alguém “dependente” e “incapaz” de trabalhar sozinho ou de aprender que ela avaliava seu filho.

A atitude da funcionária nessa cena evidenciava quais pessoas, quais corpos são possíveis de habitar o espaço da empresa e a quais é negado esse direito. O fato de Tomás ser nomeado como “autista”, reforçado pela reação de negação desse diagnóstico por sua mãe, o tornava mais estranho, mais problemático, menos capaz do que seu colega de curso para o mercado de trabalho. Tomás, por sua vez, presenciava a cena em silêncio, sentado ao lado da mãe. Com as costas curvadas, a cabeça baixa e os braços em cruz entre as pernas, não proferiu palavra e nem se moveu durante toda a conversa da mãe. Às vezes me olhava rapidamente, como que querendo me dizer algo. Parecia mais envergonhado na presença da mãe do que de costume. Quando a mãe contestou a diminuição de sua carga horária, se remexeu na cadeira, desconcertado. Sua expressão me dizia que estava com medo de não ser contratado. Nesse momento, Joana percebeu a inquietação do filho e disse: “Mas a gente faz o que pode. Ele quer trabalhar, tem que trabalhar.”

“Ele disse que eu nem pareço mais que tenho dificuldade”

A formatura da turma de Tomás contou com toda pompa política de um evento promovido pelo Estado. Lá estavam as autoridades da Superintendência Regional do Trabalho, a direção da instituição de ensino, as professoras e os familiares dos estudantes. À abertura do evento, marcada oficialmente pela execução do hino nacional, seguiram-se os discursos de autoridades responsáveis pelos órgãos do governo e instituições envolvidas nos programas de inclusão. Cumpridas as formalidades, os aprendizes de três turmas desfilaram guiados pela orgulhosa professora do curso preparatório. Tomás, agradecido, observou: “Essas professoras nasceram pra ensinar.” O ponto alto do evento foi quando uma menina, de aproximadamente 20 anos, oradora da turma, levantou-se de sua cadeira, posicionando-se em frente à plateia, para ler o seu discurso. Sua leitura, entrecortada, ainda que expusesse ao público seu distanciamento com o universo das letras, traduzia, emocionada, o agradecimento singelo aos professores que acreditaram e confiaram nela e em seus colegas.

Acredito que todos os colegas, quando iniciaram esse curso, ficaram nervosos e com medo. Aprendemos a conviver com os demais num ambiente de trabalho, sem gritaria, brincadeiras, apelidos e exageros de acessórios. […] O nosso muito obrigado pelo carinho e pela paciência. O nosso muito obrigado. (Diário de campo, 27 de novembro de 2014).

A festa oferecida após a cerimônia de conclusão do curso contava com a presença de apenas quatro aprendizes da turma de Tomás: ele, Edson, Amanda e Sônia. Destes, somente Tomás e Edson haviam permanecido no emprego. Fiquei ao lado de Joana na plateia, como sua convidada. Ela, geralmente contida, estava falante e animada naquele dia, descrevendo-me em detalhes a compra da roupa nova que Tomás insistira em usar na formatura. Contou-me também dos outros colegas de Tomás que não foram efetivados nos empregos. Segundo ela, “alguns não tinham quem os orientassem, daí sozinhos não conseguem ter uma rotina”. “O Fulano, por exemplo, não tem ninguém por ele. Como é que um guri com dificuldades que mora num quartinho nos fundos da casa da avó, largado lá, vai levantar todo dia pra ir pra o emprego?”; outros porque “acharam o trabalho exaustivo demais para os filhos” ou porque “a família não quis porque o salário ficava pouco”.

Joana referia-se ao salário mínimo proporcional ao meio turno (quatro horas diárias) contratado pela empresa, decrescido do BPC no ato de registro da carteira de trabalho. A lembrança da questão financeira fez com que comentasse comigo que “o INSS havia lhe acionado pelo não cancelamento do BPC de Tomás”. “Me trataram que nem bicho, quase me chamaram de ladra. Disseram que eu tinha que ter cancelado o benefício desde o início. Mas eu sabia que não. As professoras da escola, que são pessoas informadas, tinham me dito que era só depois dele ser contratado na empresa. Esse tempo, sim, eu fui deixando, não pude largar o serviço… Mas desde antes não, né?”, me perguntou.

Como eu não sabia a resposta, a apresentei para a fiscal da Superintendência Regional do Trabalho, que estava na festa e poderia ajudá-la. Uma semana depois, fui chamada para acompanhar Tomás e sua mãe em uma reunião de avaliação do Programa BPC Trabalho por agentes do Ministério do Desenvolvimento Social do governo federal.

Após a reunião, tomando um sorvete, Tomás, incrivelmente radiante, contou-me as novidades da empresa, engatando, incessantemente, uma frase na outra, em uma velocidade que eu até então não havia presenciado: “Tu sabia que a Laura fez um Facebook pra mim? Eu baixei uma foto dela sem querer [risos]. Agora tu pode me adicionar!” Laura se tornara a primeira paixão de Tomás. “Ela é minha amiga”, me falou. “Ela disse que tenho que voltar a estudar. O Reinaldo, [seu gerente direto] também. Ele disse que eu nem pareço mais que tenho dificuldade, que aprendo as coisas!” Tomás está esperando uma vaga em uma Escola de Educação de Jovens e Adultos (EJA) de seu bairro e, segundo ele, trabalhará de dia e estudará à noite.

Sobre autismo, subjetividade e políticas de inclusão

Ao longo de meu percurso etnográfico, estive atenta ao processo de subjetivação de Tomás em diversas situações e relações cotidianas. Privilegiei na escuta o que ele tinha a dizer sobre si mesmo, buscando compreender como ele habita as categorias a ele atribuídas ao longo do seu processo de inclusão no mercado de trabalho, e como é capaz de agir sobre elas e a partir delas na transformação de si e da própria prática da política.

Tomás me falava o tempo todo sobre relações, questionava-se sobre as pessoas, se gostavam dele, ou sobre o que pensavam dele. Contou-me sobre como aprendeu coisas novas, fez novas amizades e se apaixonou. Como procurei mostrar ao descrever nossas conversas, Tomás pensou sobre si intensamente durante suas novas experiências, agiu sobre suas dificuldades de interação social e modificou as preconcepções que eu e os colegas de trabalho tínhamos sobre “uma pessoa com autismo”.

Ele agiu sobre sua dificuldade de interagir com as pessoas, foi criando coragem de se pôr em evidência. Ao fim de um ano no Projeto, ele se questionou sobre sua “dificuldade” – sua própria maneira de falar da “deficiência”, categoria que o levou a ter direito às cotas e que é nominada pelos especialistas de outras formas. Se Tomás parecia atribuir sua dificuldade ao fato biológico de ter defecado enquanto estava no ventre de sua mãe, essa interpretação parece ter desaparecido em suas últimas reflexões sobre si mesmo ao fim do processo que presenciei.

No Projeto, Tomás era pontual, responsável e comprometido tanto com as aulas quanto com suas tarefas na empresa. Disciplinado e prestativo, logo foi visto como uma pessoa “de confiança” – “qualidade difícil hoje em dia no mercado de trabalho”, segundo seu Paulo, a primeira pessoa que se ocupou da tarefa de ajudá-lo na empresa. Para a mãe, Tomás é uma pessoa “responsável e de bom coração” que merece ter seu sonho de trabalhar alcançado.

Assim como as interlocutoras de Saba Mahmood, Tomás não está “resistindo” às relações de dominação às quais está exposto. Pelo contrário, sua ação vai no sentido de comportar-se da forma mais “adequada” possível, de aderir intensamente às regras impostas pela empresa a fim de evitar aquilo que seria motivo para sua não contratação.

Nesse empreendimento, os efeitos das categorias biomédicas na percepção que Tomás tem de si mesmo e na sua interação cotidiana com as pessoas pareceram-me ser um ponto central para compreensão da sua agência e da prática dessa política pública, a qual exige que a pessoa “incluída na cota” tenha um diagnóstico que ateste uma “deficiência” legalmente validada pelo CID.

Na experiência de Tomás, provavelmente diferente da de outras pessoas que se entendem como “no espectro autista” (Ortega, 200817 ORTEGA, F. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 477-509, 2008.; Ortega; Choughury, 201119 ORTEGA, F.; CHOUGHURY, S. ‘Wired up differently’: Autism, adolescence and the politics of neurological identities. Subjetivity, Basingstoke, v. 4, n. 3, p. 323-345, 2011.), o diagnóstico dos especialistas parece pouco informar sobre sua subjetividade. Tomás não fala dessa categoria e parece não se identificar com ela. É sua vivência do que diz ser “sua dificuldade” que informa sua compreensão de si nesse sentido. As dificuldades de “aprender rápido” e de “fazer amizades”, seu “sorriso constante” e seus episódios de fragilidade emocional, como quando “teve TOC”, são elementos que informam como ele percebe e habita suas “deficiências”.

Dizer que Tomás não habita a categoria “autismo” não deslegitima o saber especialista, mas contribui para sua compreensão do “outro” ao informar que nem sempre as categorias biomédicas são compartilhadas pelas pessoas e que diagnósticos são diferentemente habitados por elas, podendo ou não constituir parte de sua subjetividade, como vemos, por exemplo, entre membros do movimento da neurodiversidade (Ortega, 200817 ORTEGA, F. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 477-509, 2008.).

Ian Hacking (200612 HACKING, I. Making up people: clinical classifications. London Review of Books, London, v. 28, n. 16, p. 23-26, Aug. 2006., p. 23, tradução minha) chama a atenção para o “looping effect” das classificações: “As categorias têm efeitos sobre as pessoas, mas esses efeitos nas pessoas também modificam as categorias.” Segundo o autor, o autismo, que já foi visto como o comportamento de pacientes esquizofrênicos ou “uma desordem psiquiátrica da infância”, hoje é objeto de disputas entre os que o entendem como uma desordem do desenvolvimento, uma deficiência ou uma diversidade neurobiológica, um jeito de ser e estar no mundo (Hacking, 200612 HACKING, I. Making up people: clinical classifications. London Review of Books, London, v. 28, n. 16, p. 23-26, Aug. 2006.; Ortega, 200817 ORTEGA, F. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 477-509, 2008.).

Especialistas afirmam que o diagnóstico do TEA é complexo; que o espectro é amplo e fluido, podendo apresentar diferentes formas e graus de comprometimento. No entanto, em nossa sociedade, o rótulo de “autismo” parece estar sob o estigma do corpo perigoso e da mente fragilizada que, a qualquer alteração no ambiente, pode reagir imprevisivelmente, gerando uma desordem indesejada – noção estereotipada e homogeneizante, decorrente em grande parte por “não sabermos muito sobre ele”, e menos ainda sobre “a pessoa com autismo e os detalhes prosaicos de sua vida diária” (Fitzgerald, 201310 FITZGERALD, D. Autism, ignorance and love. Science and Culture, London, v. 22, n. 3, p. 394-400, 2013., p. 397, tradução minha). De todo modo, parece que Tomás, frente ao saber-poder das categorias biomédicas, de alguma forma age no “looping” dessa classificação, não a reconhecendo como sua ou fazendo com que o saber biomédico sobre esse “espectro” seja ampliado.

No leque de “deficiências” possíveis para que Tomás tivesse direito à política social, “retardo mental” foi a escolhida pela mãe para relatar à gerente de RH e ao profissional do governo. Naquele momento, ela pareceu menos perigosa e mais provável de ser aceita dentre os tipos de subjetividade legítimas no mundo do trabalho. Tomás, no entanto, parece alheio à especificidade das categorias que lhe são atribuídas: “deficiência”, “retardo” ou “autismo” seriam indiferentes ao rapaz que, frente a um novo mundo, transforma-se em uma pessoa que “nem parece que tem dificuldade”.

No cotidiano laboral de Tomás, a realidade da exigência de um “sujeito autônomo, responsável e gestor dos próprios riscos, que deve se adaptar e aprimorar suas capacidades e habilidades para atingir demandas de um mercado cada vez mais competitivo” (Ortega, 200918 ORTEGA, F. Neurociências, neurocultutra e ajuda cerebral. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 247-260, out./dez. 2009., p. 256; ver também Ortega; Choughury, 201119 ORTEGA, F.; CHOUGHURY, S. ‘Wired up differently’: Autism, adolescence and the politics of neurological identities. Subjetivity, Basingstoke, v. 4, n. 3, p. 323-345, 2011.; Rose, 200722 ROSE, N. The politics of life itself: biomedicine, power and subjectivity in the twenty first century. Princeton: Princeton University Press, 2007.), entra em disputa com os princípios éticos das políticas de inclusão social das pessoas com deficiência, como o direito ao cuidado (Diniz; Santos, 20109 DINIZ, D.; SANTOS, W. Deficiência e direitos humanos: desafios e respostas à discriminação. In: DINIZ, D.; SANTOS, W. (Org.). Deficiência e discriminação. Brasília: Letras Livres: Editora da UNB, 2010. p. 9-18.). Talvez seja este o efeito mais imediato dessa política no cotidiano das empresas: a necessidade evidente da construção de formas de gestão que legitimem a interdependência humana e desenvolvam sensibilidades sociais mais “inclusivas”.

No caso de Tomás, incluí-lo no trabalho significa ter a compreensão de que pode ser difícil para ele ter a atitude de ir até o gestor e solicitar nova tarefa, ou esperar que ele tenha a inciativa de expressar insatisfação com suas atividades e sugerir mudanças para organização. Mas, mais do que isso, significa entender que ele tem direito ao acompanhamento de um monitor ou tutor, não apenas durante o período de aprendizado, mas para que sua permanência na empresa e o desenvolvimento de suas habilidades sejam possíveis.

A ideia de que uma “pessoa com dificuldade” tem direito ao cuidado, ou, nos termos da lei, a um “apoio” (Costa, 20136 COSTA, A. M. M. da. Inclusão gradual no trabalho: aprendizagem profissional. In: PASSERINO, L.; BEZ, M. R.; PEREIRA, A. C. C. (Org.). Comunicar para incluir. Porto Alegre: CRBF, 2013. p. 61-79.) para promoção da sua inclusão social lança luz sobre a necessidade de problematizarmos o caráter individualista com que a autonomia é pensada em nossa sociedade, onde adquire centralidade nos modos de subjetivação liberal (Rabinow; Rose, 200620 RABINOW, P.; ROSE, N. O conceito de biopoder hoje. Política & Trabalho, João Pessoa, n. 24, p. 27-57, abr. 2006.) e é pressuposto para o alcance da cidadania.

O “caso” de Tomás também deixa pistas sobre a centralidade dos cuidadores na efetivação dessa política pública. Para que Tomás pudesse acessar o mundo do trabalho, sua família abriu mão de parte de sua renda e a empresa dispôs de um funcionário para que ele tivesse um “apoio” para exercer suas atividades laborais. Como lembra Débora Diniz (2012)8 DINIZ, D. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2012., são os vínculos de dependência que estruturam as relações humanas e, para muitas pessoas, como as pessoas com deficiência, o direito à igualdade e à promoção da justiça e da qualidade de vida só se faz possível através da interdependência humana.

Estudos antropológicos têm procurado ir além do estudo das políticas públicas enquanto promotoras de direitos de cidadania ao entenderem que, como práticas socioculturais (Shore, 201025 SHORE, C. La antropologia y el estúdio de la política pública: reflexiones sobre la ‘formulación’ de las políticas. Antípoda: Revista de Antropologia y Arqueologia, Bogotá, n. 10, p. 21-49, ene. 2010. Disponível em: <http://antipoda.uniandes.edu.co/view.php/147/view.php>. Acesso em: 28 set. 2015.
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), elas têm um caráter produtivo, transformam realidades e constroem novas subjetividades e sensibilidades sociais (Schuch, 200923 SCHUCH, P. Práticas de Justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009., 201224 SCHUCH, P. Justiça, cultura e subjetividade: tecnologias jurídicas e a formação de novas sensibilidades sociais no Brasil. Scripta Nova: Revista Eletrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, v. 16, n. 395, 2012.; Teixeira, 201226 TEIXEIRA, C. A produção política e os manejos da diversidade na saúde da população indígena brasileira. Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v. 55, n. 2, p. 567-608, 2012. Disponível em: <http://www.revistas.usp. br/ra/article/viewFile/59296/62332>. Acesso em: 28 set. 2015.
http://www.revistas.usp. br/ra/article/v...
).

Esta etnografia evidencia a agência de Tomás ao longo de um processo de inclusão no qual ele aprende a ser “um bom trabalhador”; e, ao fazê-lo, questiona a categoria “deficiência”, a qual lhe fora atribuída para ter direito à política. Tal transformação subjetiva não se deu através de uma resistência às relações de poder às quais foi submetido – tais como a atribuição de categorias biomédicas (autismo e deficiência) e a imposição limitada de tarefas e horário de trabalho –, mas a sua presença e suas ações na empresa tensionaram um modelo de gestão empresarial pautado pelo valor da independência e da produtividade, assim como suscitaram a construção de novas sensibilidades sociais mais inclusivas no ambiente de trabalho.

Referências

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  • 26
    TEIXEIRA, C. A produção política e os manejos da diversidade na saúde da população indígena brasileira. Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v. 55, n. 2, p. 567-608, 2012. Disponível em: <http://www.revistas.usp. br/ra/article/viewFile/59296/62332>. Acesso em: 28 set. 2015.
    » http://www.revistas.usp. br/ra/article/viewFile/59296/62332
  • *
    Agradeço imensamente a Tomás e sua família por me permitirem compartilhar suas histórias e às instituições e organizações que autorizaram a minha pesquisa de campo. Sou grata também às contribuições de Ademar Leão, Patrice Schuch, Clarice Rios, Tiago Lemões, Marcos Andrade Neves e dos colegas do grupo de estudos em “Antropologia, Políticas Públicas e Deficiência”: Helena Fietz, Leonardo Pedrete, Liziane Goncalves, Mário Poglia e Roberta Grudzinski. Agradeço aos pareceristas da revista pelas sugestões e críticas ao texto, as quais serão também de grande valia para o desenvolvimento do trabalho. Esta pesquisa conta com o financiamento do CNPq.
  • 1
    Todos os nomes próprios empregados neste texto são fictícios.
  • 2
    Esse projeto é coordenado pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Estado (SRTE/RS) e envolve uma ampla rede de parceiros. Sobre as leis e decretos de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, ver: Costa (2013)6 COSTA, A. M. M. da. Inclusão gradual no trabalho: aprendizagem profissional. In: PASSERINO, L.; BEZ, M. R.; PEREIRA, A. C. C. (Org.). Comunicar para incluir. Porto Alegre: CRBF, 2013. p. 61-79..
  • 3
    A lei determina que empresas com mais de cem funcionários devem destinar de 2% a 5% das vagas do quadro de empregados a pessoas portadoras de deficiência.
  • 4
    O acompanhamento da aprendizagem prática na empresa deve ser fornecido prioritariamente pelo “Sistema S”, mas a demanda também pode ser suprida por escolas técnicas de educação e entidades sem fins lucrativos (Costa, 20136 COSTA, A. M. M. da. Inclusão gradual no trabalho: aprendizagem profissional. In: PASSERINO, L.; BEZ, M. R.; PEREIRA, A. C. C. (Org.). Comunicar para incluir. Porto Alegre: CRBF, 2013. p. 61-79.).
  • 5
    Todas as pessoas com deficiência prevista na lei nº 8.213/1991 (Brasil, 19914 BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 28 set. 2015.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    ) são elegíveis a participarem do Programa. As formas de recrutamento são diversas. Em geral, as pessoas são selecionadas e indicadas ao Programa pelos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) de seus bairros. Mas em alguns casos, como o deste estudo, as empresas recorrem a profissionais autônomos para realizarem esse serviço.
  • 6
  • 7
    A partir de 2011, esse Programa prevê que “o beneficiário do BPC com deficiência passe a ter o benefício suspenso, e não mais cancelado, se contratado para o trabalho. Além disso, se perder o emprego, pode voltar a receber o BPC. A mudança ainda prevê que o beneficiário contratado como aprendiz poderá acumular o salário recebido nesta condição com o valor do BPC, por até dois anos”. Fonte: http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa-com-deficiencia/observatorio/inclusao-social/bpc-trabalho.
  • 8
    Entendo aqui como especialistas psi aqueles que Nikolas Rose (200722 ROSE, N. The politics of life itself: biomedicine, power and subjectivity in the twenty first century. Princeton: Princeton University Press, 2007., p. 163, tradução minha) nomeia “especialistas da subjetividade”: pessoas que teriam a autoridade de falar sobre os selves e que “transfiguram questões existenciais sobre o propósito da vida e o significado do sofrimento em questões técnicas, em maneiras mais efetivas de se administrar o mau funcionamento e melhorar a ‘qualidade de vida’”.
  • 9
    Segundo minha interlocutora Clara, uma profissional com formação em psicologia comportamental que trabalha na implementação das políticas que estudo, o chamado “autismo clássico” é um tipo de Transtorno do Espectro Autista (TEA) considerado “de baixa funcionalidade”. Segundo ela, o que temos como consenso hoje no campo biomédico é que o TEA engloba diferentes síndromes marcadas três características fundamentais, que podem manifestar-se em conjunto ou isoladamente: a dificuldade de comunicação por deficiência no domínio da linguagem e no uso da imaginação para lidar com jogos simbólicos, a dificuldade de socialização e a presença de um padrão de comportamento restritivo e repetitivo.
  • 10
    Para registro, o Transtorno Obsessivo Compulsivo “é caracterizado pela presença de obsessões, que seriam pensamentos, impulsos ou imagens indesejáveis e involuntários, que invadem a consciência causando acentuada ansiedade ou desconforto e obrigando o indivíduo a executar rituais (compulsões) que afastariam possíveis ameaças” (fonte: http://www.ufrgs.br/toc/).
  • 11
    Escolas Especiais são aquelas onde são matriculadas apenas pessoas com deficiência.
  • 12
    Joana entregou-me cópias e autorizou o uso para pesquisa de todas as avaliações escolares e psicológicas de Tomás, assim como de seus laudos médicos.
  • 13
    Dona Helena é uma das pessoas para quem Joana trabalha como diarista. Ela é psiquiatra e ajuda Joana há mais de 12 anos com roupas, remédios e atendimento psicológico para os filhos.
  • 14
    Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. CID 10 – F42 (Transtorno Obsessivo Compulsivo); F7.5 (Retardo Mental Leve) e F84.9 (Transtornos Globais do Desenvolvimento).
  • 15
    Tais referências seguem os parâmetros do DSM IV (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais). Segundo a psicopedagoga da instituição de ensino onde realizei a pesquisa, os profissionais preferem utilizar o termo “deficiência intelectual”, por considerá-lo menos estigmatizante.
  • 16
    Para uma etnografia sobre as diferentes vertentes da psicologia no tratamento de pessoas com TEA, ver López e Sarti (2013)13 LÓPEZ, R. M. M.; SARTI, C. Eles vão ficando mais próximos do normal… Considerações sobre normalização na assistência ao autismo infantil. Ideias, Campinas, n. 6, p. 77-98, 2013..
  • 17
    Esse limite foi negociado com a empresa.
  • 18
    A Applied Behaviour Analysis (ABA) é uma abordagem da psicologia comportamental que foi adaptada para o ensino de crianças com autismo. Baseia-se nos princípios de reforço positivo, solicitações graduais, repetição e a divisão das tarefas em pequenas partes, ensinadas inicialmente em separado (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%A1lise_do_comportamento_aplicada).
  • 19
    A sigla “PCD” é um termo êmico recorrente para referência a “Pessoas Com Deficiência” que são contratadas nas cotas da lei nº 8.213/1991 (Brasil, 19914 BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 28 set. 2015.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    ) no meio empresarial.
  • 20
    A alteração feita pela lei nº 12.470/11 (Brasil, 20115 BRASIL. Lei n. 12.470, de 31 de agosto de 2011. Altera os arts. 21 e 24 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre o Plano de Custeio da Previdência Social, para estabelecer alíquota diferenciada de contribuição para o microempreendedor individual e do segurado facultativo sem renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencente a família de baixa renda; altera os arts. 16, 72 e 77 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social, para incluir o filho ou o irmão que tenha deficiência intelectual ou mental como dependente e determinar o pagamento do salário-maternidade devido à empregada do microempreendedor individual diretamente pela Previdência Social; altera os arts. 20 e 21 e acrescenta o art. 21-A à Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 - Lei Orgânica de Assistência Social, para alterar regras do benefício de prestação continuada da pessoa com deficiência; e acrescenta os §§ 4º e 5º ao art. 968 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, para estabelecer trâmite especial e simplificado para o processo de abertura, registro, alteração e baixa do microempreendedor individual. Brasília, 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12470.htm>. Acesso em: 28 set. 2015.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ) à LOAS (lei nº 8.742/1993) permite que o BPC seja suspenso durante o período em que o beneficiário esteja trabalhando. Caso este venha a ser desligado da empresa, pode voltar a receber o benefício sem necessidade de nova perícia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2015
  • Aceito
    09 Mar 2016
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
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