Acessibilidade / Reportar erro

VEIGA, Juracilda. Organização social e cosmovisão Kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê Meridional. 1994. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)-Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994. 220 p.

VEIGA, Juracilda. . Organização social e cosmovisão Kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê Meridional. 1994. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)-Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994. 220 p.

Aqueles que conheceram Juracilda Veiga, trabalhando com a questão indígena nos anos 80 e participando com os Kaingang do Toldo Chimbangue de sua luta pela recuperação de suas terras, poderiam hoje não reconhecê-la na antropóloga que participa de congressos e ministra cursos para professores indígenas. Contudo, tanto os pronunciamentos apaixonados como os complexos desafios teóricos escolhidos como temática de suas pesquisas evidenciam o vigor militante dessa importante conhecedora do povo kaingang, que se antes foi acolhida por eles como parceira de suas lutas, agora o é pela academia, como pesquisadora e especialista em sua cultura.

Esses “mesmos” Kaingang, que foram vistos como aculturados nos anos 60, resistentes nos 70, e políticos nos 80, emergem agora no imaginário antropológico brasileiro enquanto culturas indígenas dotadas de cosmovisões e sistemas de parentesco próprios, para espanto dos antropólogos dos grandes centros, que se deslocam para o Centro-Oeste ou até a Amazônia com a finalidade ele desenvolver essas temáticas. Essa nova abordagem teórica, que também motiva outros pesquisadores contemporâneos tais como Greg Urban, Kimiye Tommasino e Robert Crépeau, retira as sociedades jê meridionais do ostracismo a que foram relegadas após notada presença na antropologia da primeira metade deste século (vide a relevância da pesquisa de Jules Henry entre os Xokleng, no marco da escola Cultura e Personalidade; ou a importância dada aos mitos kaingang no conjunto das Mythologiques de Claude Lévi-Strauss).

A sensibilidade de Veiga em relação ao “outro” kaingang parece aproximá-la intuitivamente de Leroi-Gourhan, mesmo que esse autor não esteja arrolado entre os títulos de sua extensa bibliografia: “Comecei a prestar atenção e verificar que palavras e gestos estavam informados por uma lógica e uma visão completamente estranha à nossa.” Contudo, sua inserção metodológica oscila, em seus próprios termos, entre preceitos colonizadores tais como “penetrar no seu mundo” e “descobrir o significado de muitas de suas práticas” e outros, pautados na alteridade, onde a autora sugere o “respeito à privacidade e intimidade” ao preferir “perguntar de menos”, ou mesmo pretende deixar-se “guiar pelos Kaingang pelos longos caminhos de sua tradição”.

Uma citação de Egon Schaden, que aponta para a falta de um estudo monográfico sobre a sociedade kaingang, é o que motivou Juracilda Veiga na escolha do tema de sua pesquisa. Realizá-la entre as mesmas comunidades, situadas na fronteira entre Santa Catarina e Paraná, em que Herbert Baldus, na década de 30, pesquisara o que denominou de “culto aos mortos”, foi partir da premissa de que a prática desse ritual torne visível a organização social kaingang. A carência de tratamento homogêneo na profundidade das análises dos diversos capítulos pode ser vista como um problema quando se trata de um estudo que se pretende monográfico. Da mesma forma, a abrangência do título não condiz com aquela do trabalho, em se tratando de um estudo de caso. Isso, contudo, não prejudica a pesquisa em si. De minha parte, recomendo a leitura dos capítulos etnográficos, pois são aqueles que apresentam maior coerência entre a multiplicidade de temas de que se pretende dar conta.

Como está dito em seu resumo, a tese de Veiga encontra-se dividida em três partes, sendo que a primeira destas (capítulos II a IV), situa os Kaingang no quadro das sociedades jê. A segunda (capítulos V a VII), entendida pela autora como tema central de sua pesquisa, refere-se à organização social Kaingang. Finalmente, a terceira parte (capítulos VIII e IX), adiciona elementos relativos à cosmovisão desse povo, enfocados pelo prisma da religiosidade.

Por mais que seja arriscado tentar resumir os aportes trazidos em função da inevitável perda de conteúdos e mesmo de possíveis equívocos, tentarei sintetizar, assim como esboçar possíveis críticas pessoais que instiguem os eventuais leitores dessa resenha a não se contentar com a mesma e a proceder a leitura do texto original.

No capítulo II, a autora situa a organização social Kaingang no contexto dos estudos dos povos jê e bororo, sumarizando os aportes bibliográficos considerados relevantes para sua abordagem comparativa, tais como a distinção entre nós-consangüíneos/outros-afins, as metades, a disposição espacial das aldeias, a terminologia de parentesco e a nominação. Dialectical societies, de Maybury-Lewis, é ressaltado enquanto obra fundante de sua análise.

O capítulo III é uma caracterização do povo kaingang, onde a autora discorre brevemente sobre sua conexão com tradições arqueológicas, discute auto e heterodenominações e esboça sua economia tradicional. Oferece ainda resenha de algumas fontes históricas sobre o contato, a classificação lingüística dos Kaingang e uma leitura crítica de fontes bibliográficas.

O capítulo IV apresenta uma reconstrução histórica unilateral que privilegia a extensão da política indigenista oficial sobre “Os Kaingang de Xapecó”, não oferecendo a visão êmica desse corte cronológico. A periodização entre “referências históricas” e “situação atual” parece ignorar a historicidade no quadro de relações do presente, denunciando uma perspectiva de história dicotômica na abordagem da autora. O recurso às discussões, nem tão recentes, sobre o tema, como as desenvolvidas nos trabalhos de Marshall Sahlins e de João Pacheco de Oliveira, para citar apenas um autor estrangeiro e outro nacional conhecidos, seria de bom alvitre.

O capítulo V dá início à parte teoricamente privilegiada do trabalho, onde a autora destaca o estudo da organização social kaingang como pertinente às discussões, que eu chamaria de pós-estruturalistas, sobre sociedades sul-americanas. O tema de sua dissertação ganha destaque no quadro teórico uma vez que permite abordar simultaneamente tanto as noções de descendência (metades clânicas kamé e kainru) quanto as da teoria da aliança (tais metades são exogâmicas). Aborda ainda, com pertinência, a distinção entre metades, seções e papéis cerimoniais, assim como sua visualização em rituais pela via das pinturas corporais. Contudo, o recurso a explicações de cunho difusionista para explicar diacronicamente o surgimento das seções (a exemplo do que também faz Greg Urban ao historicizar um mito xokleng), descarta das análises de ambos os autores a busca de uma significação no presente para a organização social dos povos estudados, não contribuindo para a compreensão do que talvez ofereça sentido em ritualidades ainda não estudadas em termos antropológicos.

No capítulo VI, um dos mais ricos em etnografia, a autora caracteriza os Kaingang enquanto sociedade de princípios dualistas, em conformidade à teorização de Lévi-Strauss; ilustra os princípios de aliança a partir de um mito colhido em campo e de sua interpretação êmica, obtendo alusões teóricas e poéticas profundas; aborda as significações sociais da uxorilocalidade; e sistematiza as regras de casamento utilizando um modelo estatístico (abordagem que ficaria enriquecida por uma distinção mais clara entre práticas e normas sociais). A terminologia tradicional de parentesco, cuidadosamente caracterizada, é constituída enquanto um modelo um pouco mecânico. Minha experiência de campo entre os Kaingang permite inferir que a eleição situacional em termos dos parâmetros metade, sexo e geração (estes, conforme Veiga) seria mais adequada do que definições rígidas estabelecidas previamente, dado que os Kaingang tendem a se classificar, todos, ou como consangüíneos ou como afins, dotando a terminologia de parentesco de uma virtualidade que só se institui a nível das relações sociais concretas. A autora caracteriza o regime de trocas kaingang como tendo analogias com o sistema Kariera, mas escapa das discussões bizantinas que dominam tal temática sem que se acrescente à compreensão da organização social das sociedades pesquisadas.

No capítulo VII, o “sistema denominação” é abordado como criador de identidades sociais e cerimoniais vinculadas ao rompimento/restabelecimento de vínculos entre vivos e mortos. Através da nominação, Veiga percebe a relevância da patrilinearidade na organização social kaingang.

No capítulo VIII, “os Kaingang e seus mortos” são explicados como transitando entre esses dois mundos, cuja mediação é feita através do xamanismo. O capítulo é rico em exemplos etnográficos.

No capítulo IX, a autora nos oferece urna descrição etnográfica do ritual que denomina kikikoi, privilegiando os elementos pertinentes a sua abordagem.

Sua conclusão (capítulo X) é de grande densidade teórica, muito embora apresente novos elementos que, se trabalhados no corpo da tese, teriam maior consistência.

Independente da enorme quantidade e excelente qualidade dos dados etnográficos, ou mesmo da ostensiva revisão bibliográfica, o trunfo maior da tese de Juracilda Veiga consiste na inserção da sociedade kaingang no contexto dos estudos das sociedades jê, aportando aos mesmos contribuição teórica significativa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 1997
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br