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Ethnicity, Inc.

RESENHAS

Marcos de Araújo Silva* * Doutorando em Antropologia Social.

Universidade Federal de Pernambuco -Brasil

COMAROFF, Jean; COMAROFF, John L. Ethnicity, Inc. Chicago: University of Chicago Press, 2009. 234 p.

Em Ethnicity, Inc., Jean e John Comaroff refletem sobre um fenômeno crescente: a incorporação da identidade e a comodificação da cultura em diversos grupos étnicos ao redor do planeta que estão se reinventando a partir da reflexividade sobre suas etnicidades e da posterior comercialização destas. Por comodificação da cultura, os autores entendem a efetiva entrada na esfera do mercado de domínios da existência humana que anteriormente escapavam dela, tais como os símbolos identitários de um grupo ou uma nação, as crenças religiosas, as práticas tradicionais de cura, os rituais, etc. Já por incorporação da identidade os autores entendem o processo pelo qual a identidade passa a ser reivindicada pelos grupos étnicos com base nos regimes de propriedade intelectual.

Coerentemente, eles lembram que tanto a incorporação da identidade quanto a comodificação da cultura são fenômenos já apontados em suas formas seminais por estudos antropológicos desde a década de 1970. O que constitui o diferencial desses fenômenos na atualidade seria a amplificação de suas dimensões políticas e econômicas e de suas implicações nas maneiras particulares pelas quais as noções de cultura, identidade e alteridade são percebidas e vivenciadas.

Trabalho mais recente destes dois experientes antropólogos e lançado em 2009, o livro Ethnicity, Inc. possui vasta pesquisa documental, bibliográfica e etnográfica baseada em exemplos da África, da Ásia, da Europa e das Américas. Partindo da premissa de que em muitos lugares a "sobrevivência cultural" tem dado forma a uma sobrevivência através da cultura, Jean e John Comaroff afirmam que no mercado, os grupos étnicos podem forjar novos padrões de sociabilidade, reanimar a subjetividade cultural e reforçar a autoconsciência coletiva. Isso ocorre, de acordo com eles, porque muitas vezes a versão comodificada de artefatos e práticas culturais torna-se a versão comumente reconhecida como "autêntica".

A noção de etnicidade ao longo do livro é percebida como um repertório amplo e instável de sinais culturais através dos quais as relações são construídas e comunicadas. Com base no preceito de que ao mesmo tempo em que a etnicidade passa a ser construída e explorada sob influência das ideologias neoliberais o comércio excede a mera venda de bens e serviços, os autores afirmam que em um contexto mais amplo, da mesma forma que as mercadorias estão se tornando explicitamente culturais, a cultura está sendo comodificada.

De uma maneira perspicaz, John e Jean Comaroff fazem referências, no terceiro capítulo do livro, a casos nos quais a redescoberta da genealogia1 1 Que pode ser feita através de sites tais como http://www.genetree.com e http://www.ancestry-bydna.com, entre outros citados. permitiu que diversos grupos adotassem novas etnicidades baseadas no DNA; tal redescoberta muitas vezes ocorre com o propósito de ganhar "soberania", titulações de terra ou outros benefícios materiais, mas em outras visam questões mais subjetivas e identitárias, como no caso de um cristão que por meio de profundas investigações no seu genoma conseguiu provar sua "ancestralidade genética judaica", no sentido de conquistar a cidadania israelense.

Para os autores, o crescente comércio da etnoancestralidade aponta na direção de uma política da identidade, pois ele evidencia a simultaneidade da biologia e da autoatribuição nas maneiras como a identidade cultural passa a ser experimentada e negociada nas esferas políticas do mundo contemporâneo. Nesse contexto, eles sugerem que as identidades passam a ser vistas e experimentadas como empresariais e que a ideologia começa a dar forma a uma ID-ologia - a ontologia da identidade como o fundamento do engajamento político. Como um caso dramático de um processo como este, os autores relatam a história dos índios me-wuk do sul da Califórnia (EUA), um grupo étnico que "renasceu" pelo poder do capital advindo de uma "manufatura identitária" e que revela como, em algumas circunstâncias, a etnicidade pode nascer diretamente de um empreendimento comercial.

No quarto capítulo, os autores delineiam o que consideram ser as sete dimensões do "identity business": 1) os processos de pertencimento; 2) os processos de etnogênese; 3) o estabelecimento de etnoeconomias corporativas; 4) o fato dos etnoempreendimentos muitas vezes não terem muito a ver com o conteúdo das diferenças culturais que os fundamentam; 5) uma vez tendo a soberania reconhecida, muitos grupos étnicos tendem a afirmá-la contra o Estado;2 2 Como ocorreu em casos citados no livro e que envolveram "First Nations" nos EUA e no Canadá. 6) muitos processos que envolvem a criação de uma corporação (comercial) étnica geralmente envolvem (e muitas vezes começam com) algum tipo de reivindicação territorial; 7) a adesão aos regimes de propriedade intelectual pelos grupos étnicos visando que seus produtos e práticas culturais comodificadas rendam benefícios para eles próprios. Um caso trazido pelos autores e que ilustra bem esta última dimensão foi a do povo zia, que exigiram (e ganharam) na justiça norte-americana compensações e royalties das empresas e do governo do Novo México pelos usos indevidos de uma imagem que pertencia à sua iconografia.

O quinto capítulo traz "um conto acerca de duas etnicidades", mas especificamente dos grupos sam e bafokeng, exemplos típicos de "associações corporativas étnicas" na África. Aqui é descrita não apenas a inserção desses grupos no "mercado da identidade", mas também as consequências disso para suas cosmologias, suas relações com a esfera estatal e suas estratégias de organização familiar e étnica. Segundo os autores, dentre esses dois grupos, os lucros advindos da exploração da cultura e da tradição acentuaram a "consciência étnica", com alguns acusando outros de serem "falsos sam" ou de serem "sam" a partir de genealogias ilegítimas ou de identidade "adulteradas", por exemplo. Para Jean e John Comaroff, a afirmação do regime de propriedade intelectual nesses grupos étnicos pode efetivamente articular e sedimentar suas respectivas identidades, embora acentuem, como no caso dos bafokeng, o complicado relacionamento deles enquanto uma "nação" e enquanto uma "corporação".

O sexto capítulo traz considerações sobre os processos de comodificação em estados nacionais e na esfera religiosa, fenômenos que os autores chamam de "Nationality, Inc." e "Divinity, Inc.", respectivamente. Exemplos etnográficos de países como Argentina e Itália sugerem que os Estados saíram de uma época na qual o domínio da economia e o domínio da política eram claramente distinguíveis para uma na qual o mercado se tornou o seu princípio organizador subjacente. E como uma das consequências desse processo, um "bom governo" passa a ser medido pela sua capacidade de agir como um vendedor, comodificando a essência da comunidade imaginada e criando condições para que seus indivíduos (considerados "empreendedores" por natureza) realizem suas aspirações e possam agir como acionistas da nação corporativa. Além disso, alguns desses Estados colocaram à venda no mercado suas "marcas" identitárias, como no caso da Azienda Italia. No que se refere aos processos de comodificação da essência da fé religiosa, John e Jean Comaroff citam o caso das disputas que envolveram, no Paquistão, as marcas registradas e os direitos autorais do que seria a autêntica "muçulmaneidade".

Uma importante reflexão do livro que está subsumida em todos os capítulos é um pouco aprofundada na conclusão: apesar do "etnocomércio" poder abrir oportunidades sem precedentes e aumentar a autonomia e a presença política dos grupos "minoritários", o processo da comodificação cultural pode muitas vezes sujeitar as populações a novas formas de controle e de exclusão ou aprofundar relações existentes de desigualdade. Conscientes de que a comodificação cultural e a incorporação da identidade ocorrem de maneiras diferenciadas ao redor do planeta, os autores convidam outros antropólogos a verificar como tais processos podem variar e revelar novas interfaces e problemáticas. Afinal, considerando as especificidades existentes, a pesquisa etnográfica sistemática em diversos contextos poderá revelar quem efetivamente se beneficia desses processos, quem sofre com eles e em que proporções. Ou seja, um convite estimulante para tentar trazer à tona as incertezas desse processo neoliberal, aberto e cujas consequências ao futuro parecem ser ainda imprevisíveis.

  • *
    Doutorando em Antropologia Social.
  • 1
    Que pode ser feita através de
    sites tais como
    http://www.ancestry-bydna.com, entre outros citados.
  • 2
    Como ocorreu em casos citados no livro e que envolveram "First Nations" nos EUA e no Canadá.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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