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CHRISTENSEN, Dorthe Refslund; WILLERSLEV, Rane (Ed.). Taming time, timing death: social technologies and ritual. Farnham: Ashgate, 2013. 269 p.

CHRISTENSEN, Dorthe Refslund; WILLERSLEV, Rane. (Ed.). Taming time, timing death: social technologies and ritual. Farnham: Ashgate, 2013. 269 p.

Não é de hoje que a antropologia esboça uma conexão entre a morte e o tempo. Desde o clássico ensaio sobre a morte de Robert Hertz, passando por diversos trabalhos que se debruçaram sobre um ou outro desses temas, uma potencial implicação recíproca entre a morte e o tempo parece se insinuar, ainda que nunca tenha sido plenamente desenvolvida. O livro organizado por Dorthe Christensen e Rane Willerslev vem ocupar essa lacuna. Sem perder de vista a dimensão necessariamente etnográfica e os débitos de seu trabalho para com Hertz, a quem o livro é dedicado, a questão proposta pelos organizadores, e subscrita criativamente por cada um dos colaboradores, equaciona morte e tempo de maneira definitiva ao sugerir que os modos através dos quais a morte e os mortos são pensados e vividos implicam necessariamente – mais do que qualquer outro evento – modos de se pensar e viver o tempo. Nesse sentido, e de diversas maneiras, sugerem Christensen e Willerslev, mais do que dar conteúdo ao tempo, a morte cria o tempo (p. 9).

Talvez seja essa a aposta mais radical dos organizadores, com desdobramentos instigantes que colocam não apenas a relação morte-tempo, como cada um dos seus termos, a morte e o tempo, em uma nova perspectiva. Ao deslocar o problema de um suposto determinismo social que informaria a maneira como as diversas populações lidariam com dados naturais e focar os efeitos da relação entre morte e tempo, a própria dicotomia natureza-cultura subjacente nos trabalhos que abordam a questão parece ser, se não superada, escamoteada. Ainda que pensados como fenômenos universais, quando colocados lado a lado morte e tempo já não operam no registro da representação ou mesmo como pontos nodais que atestam à sociedade sua finitude ou seus limites; antes, e ainda que os organizadores não invistam nesse ponto, aparecem mesmo como a condição para que, onde quer que seja pertinente, a própria dicotomia natureza-cultura se estabeleça.

Para tanto, Christensen e Willerslev retomam, na introdução do livro, os trabalhos clássicos publicados sobre tempo e morte, para pensá-los, sobretudo, através dos dados etnográficos que lhes dão forma e, especificamente, explorando as diversas maneiras em que morte e tempo aparecem relacionados. E os exemplos são muitos. Dos momentos especificamente reconhecidos como adequados para se lidar com o corpo morto às práticas de duplas exéquias; dos modos como a finitude da vida humana se opõe – ou não – à eternidade dos mortos; da ausência dos mortos e o efeito do luto ali onde as relações são desfeitas com a morte aos mortos que permanecem entre os vivos, e o movimento de ruptura e continuidade que um e outro sugerem; da vida como etapas que se sucedem até o dia em que cessa de existir a repetições de vidas que caminham juntas, habitam um mesmo corpo, como repetições que não deixam de trazer em si a diferença; dos modos como a morte-por-vir informa o que é, no limite, a vida, seja quando esta é tomada como um ciclo radicalmente oposto àquela, ou quando, entre vida e morte, existem relações de continuidade, através da reencarnação.

Em cada uma dessas inflexões, e em outras tantas exploradas pelos organizadores, a morte aparece como um problema de tempo, e vice-versa. Conta-se a hora certa para morrer e o tempo certo para cuidar dos que se foram; conta-se a vida em relação à morte; conta-se o tempo dos vivos na presença ou ausência dos mortos. E, especialmente, através da noção de agência dos mortos, Christensen e Willerslev mostram como a presença destes não pode ser pensada como um simples efeito do modo como morte e tempo são concebidos. Antes, os organizadores sugerem que os mortos, estando presentes ou ausentes, têm um papel ativo no modo como a morte e o tempo são diversamente elaborados.

Os artigos aparecem divididos em quatro seções que não deixam de dialogar entre si. A primeira reúne os trabalhos de Stuart McLean sobre a relação entre mortos, vivos e a percepção do ambiente nas Ilhas Órcadas; de Knut Rio – que aborda a relação entre os mortos, a bruxaria e o tempo nas práticas de adivinhação (divination) em Vanuatu; e de Michael Kearl e Michael Jacobsen, que refletem sobre o lugar da morte e do tempo através da noção de eternidade e, especialmente, como essa noção ganha novos contornos na modernidade tardia. Tomados em conjunto, é possível dizer que estes trabalhos, ainda que amplamente inspirados em experiências etnográficas, buscam apresentar contribuições de alcance mais geral sobre as noções de morte e tempo.

A segunda seção apresenta trabalhos que, em comum, refletem sobre o papel do luto e da memória no modo como o tempo é vivido e pensado. Rane Willerslev apresenta uma releitura do clássico escrito de Freud sobre o luto e a melancolia, através da perspectiva siberiana do tempo; Dorthe Christensen e Kjetil Sandvik mostram como um site criado na Dinamarca para pessoas em luto opera, especialmente entre os que perderam seus filhos, como um espaço ritual no qual o tempo e a própria vida são reorganizados diante da perda; já Piers Vitebsky demonstra as mudanças no modo de se conceber o tempo efetivadas pelas modificações no tratamento dos mortos entre os sora, na Índia, quando o grupo adota a religião batista.

Na terceira seção as contribuições refletem sobre os efeitos da presença dos mortos entre os vivos, abordando especialmente as conexões entre tempo e espaço favorecidas pela presença dos mortos. Em seu capítulo, Mikkel Bille narra a relação entre peregrinos e santos na Jordânia, bem como o papel dessa relação com os mortos na divisão do tempo entre “eras de ignorância” e “era do conhecimento”, uma vez que uma leitura mais ortodoxa do islamismo ganha espaço. Jesper Ostergaard explora os efeitos da presença de seres do tempo mítico entre os marika, no Nepal, argumentando que a presença desses seres na paisagem ancora a imaterialidade do tempo na materialidade do espaço. Lotte Meinert e Susan Whyte partem da disseminação de práticas de enterros secundários no período pós-guerra entre os acholi, em Uganda, para refletir sobre a relação entre mortos e terra e seus efeitos no modo como o tempo é pensado. Rune Nyord, por sua vez, parte dos cultos mortuários no antigo Egito e sugere que as tumbas favorecem modos de se engajar em temporalidades distintas.

A última seção reúne trabalhos que abordam questões que tangenciam o suicídio e os problemas colocados pela hora da morte. Kristian Bjorkdahl e Karen Syse mostram como corpos de animais deixam de ser mostrados em livros de receitas noruegueses, argumentando ser esse um movimento desencadeado pela associação cada vez mais estreita entre humanos e animais. Henrik Mikkelsen sugere que a caça de cabeças é, entre os bugkalot nas Filipinas, uma forma de suicídio realizada no outro, um ritual de passagem que marca a transformação do jovem em adulto. O trabalho de Murray Last encerra livro, e nele o autor sugere que existem evidências, em Kano, Nigéria, de uma correlação entre os dias em que as pessoas morrem e o dia considerado adequado por mulçumanos para morrer e se questiona: em que medida seria possível que a pessoa opte por deixar de viver no momento que escolhe?

O livro reúne, assim, trabalhos realizados nas mais diversas regiões do globo, com variados modos de aproximação ao problema geral e com contribuições que sugerem uma abordagem interdisciplinar, reunindo artigos antropológicos e de áreas afins – o que, inclusive, favorece o modo criativo por meio do qual a relação entre a morte e o tempo é abordada, dado que se trata de questões que percorrem as ciências humanas em geral. Passando por temas tão diversos, os capítulos do livro não apenas refletem sobre os temas já mencionados, mas também mostram que ainda há muito que dizer sobre a relação entre a morte e o tempo. Dão, com isso, um novo fôlego para estes estudos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
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