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SANTOS, Ricardo; COIMBRA, Carlos E. A. (Org.). Saúde e povos indígenas. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1994. 251 p.

SANTOS, Ricardo; COIMBRA, Carlos E. A.. (Org.). Saúde e povos indígenas . Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1994. 251 p.

O livro Saúde e povos indígenas aborda o processo saúde/doença das populações indígenas com uma perspectiva multidisciplinar, procurando dar conta dos diferentes fatores envolvidos nesta realidade ‘processual’.

Este livro é dividido em três partes: l) Saúde e doença na pré-história e contato; 2) Sistema de crenças e práticas médicas e 3) Mudanças nos perfis de saúde. Por sua vez, cada uma destas partes é subdividida em artigos de diferentes autores.

O primeiro artigo, “Saúde e doença em grupos indígenas pré-históricos do Brasil: paleopatologia e paleoparasitologia”, escrito por Souza, Araújo e Ferreira, procura compreender o processo saúde/doença em grupos indígenas pré-históricos, suas relações da saúde com o meio ambiente e o modo de vida destas populações. Para isto são utilizados métodos bioarqueológicos: a paleopatologia e paleoparasitologia.

A primeira “investiga as alterações morfológicas e/ou funcionais associáveis a situações de doença” (p. 22), e é desenvolvida a partir de uma perspectiva populacional, procurando definir os “conjunto de doenças existentes em um determinado grupo humano, os patocenos” (p. 24). Enquanto que a paleoparasitologia, utiliza as fezes humanas dessecadas para conhecer as infecções parasitárias que acometiam estas populações (p. 32). Com estas pesquisas é possível reconstituir a vida dos ameríndios do passado e inferir sobre as transformações causadas pelo contato entre estes e os europeus. Bem como, nos mostra que algumas doenças, consideradas a princípio como conseqüência do contato entre os grupos indígenas e os europeus, podem ser autóctones, como é o caso da sífilis, da tuberculose e da lepra.

O segundo artigo, escrito por Coimbra e Santos, analisa a doença de chagas e o seu desenvolvimento diferenciado nas Terras Altas (Andinas) e nas Terras Baixas (Floresta Amazônica), considerando que o seu agente etiológico (Trypanossoma cruzi) e seu hospedeiro (triatomíneos) estão presentes em toda a América do Sul.

Segundo os autores, a pequena domesticação de animais e a alta mobilidade dos grupos indígenas das Terras Baixas, que vivem conforme os padrões tradicionais, impediram que o triatomíneo (barbeiro) se adaptasse às habitações humanas. Já as populações Andinas além de serem sedentárias e possuírem uma alta densidade populacional, também domesticam animais mamíferos para sua alimentação, o que favorece a domiciliação dos triatomíneos.

As alterações ambientais da Floresta Amazônica e as mudanças socioculturais das sociedades indígenas, devido ao contato com o homem branco, podem estimular os triatomíneos a se dirigirem às habitações humanas em busca de alimentos e condições climáticas ideais ao seu desenvolvimento, difundindo assim a doença de chagas.

O terceiro artigo, escrito por Black, afirma que as sociedades indígenas são mais suscetíveis biologicamente a algumas doenças, não por possuírem um sistema imunológico deficiente ou devido a fatores genéticos específicos, mas sim devido a uma homogeneidade biológica (inexistência de alguns gens que possibilitam a resistência a doenças específicas). Esta facilita a difusão dos agentes biológicos responsáveis pelas doenças, pois não oferece obstáculos a adaptação destes ao organismo humano. A homogeneidade biológica, segundo o autor, é influenciada e construída pela prática cultural do casamento endogâmico.

A segunda parte do livro, “Sistema de crenças e práticas médicas”, nos dá uma visão de como a doença pode ser construída socialmente e de como esta, com seus respectivos tratamentos, são representados pelos diferentes grupos humanos, ou seja, quais os sentidos e os significados atribuídos a este fenômeno, em uma perspectiva individual e também coletiva, no sentido do grupo no qual o indivíduo está inserido.

A doença é um fenômeno experiencial, “suas manifestações dependem de fatores culturais, sociais e psicológicos que operam juntamente com o processo psicobiológico” (p. 144), o que implica em uma realidade processual, onde a saúde, a doença e a cura se encontram dentro de um sistema médico específico que por sua vez é determinado pela cultura.

No artigo “A construção social da doença e seus determinantes culturais: a doença de reclusão no Alto Xingu”, Verani procura comparar as representações tradicionais sobre a doença ele reclusão e as representações da medicina ocidental, tendo em conta as diferentes interpretações dadas pelos dois grupos.

Na concepção tradicional indígena do Alto Xingu, esta doença tem sua origem em uma esfera sobrenatural. Na medida em que o sujeito não segue as regras sociais e rituais prescritas pelo seu grupo, ele se expõe a forças sobrenaturais que podem levá-lo a doença - atamikâra. Já na concepção da biomedicina (medicina ocidental) a doença se deve as condições aos quais são submetidos estes indivíduos durante o ritual, porém nesta concepção a esfera da sobrenatureza que se encontra na categoria tradicional atamikâra é retirada.

Por isso os profissionais da saúde ocidental sentiram necessidade de construir uma categoria que envolvesse as diferentes dimensões desta doença (bio-psico-social e espiritual). A doença de reclusão é uma categoria mista, pois engloba elementos das representações da biomedicina ocidental e da tradição alto-xinguana, que por sua vez a coloca no âmbito da cosmologia.

“A categoria branco foi reinterpretada, segundo a lógica tradicional, através da incorporação do universo ocidental à cosmologia alto-xinguana” (p. 104). A sociedade ocidental, assim corno sua medicina, seus agentes, são incorporados como compatíveis com a visão de mundo tradicional alto­xinguana.

Este processo também é verificado nos outros grupos indígenas referidos no livro Saúde e povos indígenas. No artigo escrito por Langdon, “Representações de doenças e itinerário terapêutico dos Siona da Amazônia Colombiana”, percebe-se que também há uma abertura à novas alternativas terapêuticas - biomédicas e populares - o que não indica, necessariamente, uma mudança nas representações sobre a saúde/doença e nem tira a importância da prática terapêutica tradicional Siona. Esta é classificada como “sistema xamânico”, devido a sua visão de mundo, com crenças etiológicas e ritos de cura com o yagé, sendo considerada o real mecanismo de cura, apesar do emprego de outros tipos de tratamentos.

O xamã, através do conhecimento das forças sobrenaturais possui o poder de dominá-las e dirigi-las de acordo com o seu interesse, para isto ele usa ritualmente a Banisteriopis caapi (yagé), chamado por eles de “i’ko”. Este é um importante instrumento no processo de manter o equilíbrio entre o estado saudável (wahi) e o estado de doença (hin’i), tanto a nível individual quanto coletivo.

Este poder que o xamã possui (para fazer suas viagens astrais, ter suas visões, curar ou causar doenças) se chama dau, termo que designa também um estado de doença, que por sua vez só pode ser curada quando retirada do corpo do doente por outro xamã. Entre os Siona, “as doenças súbitas e/ou sérias, que não curam logo, são consideradas como resultado de forças invisíveis que são postas em ação a partir da ocorrência de conflitos entre comunidades, ou seja, através da feitiçaria” (p. 121). Entretanto, estas doenças podem ser diagnosticadas pela biomedicina como uma epidemia de sarampo, tuberculose.

No artigo “Etnomedicina kulina”, escrito por Pollock sobre o grupo localizado na bacia do Purus, Amazônia Ocidental, as crenças e práticas kulinas estão associadas à concepção de pessoa (percepção do corpo e da alma) e às práticas sociais que envolvem estas pessoas.

As doenças kulinas são classificadas, pelo autor, em dois tipos: a) as doenças externas, que ocorrem fora do corpo, na pele (feridas, picadas de insetos) e b) as doenças internas, que ocorrem dentro do corpo e são associadas a uma origem mística (a feitiçaria, sendo que esta não é entendida pelos Kulinas como doença). As primeiras são tratadas com ervas preparadas de diferentes formas. As plantas são selecionadas pelo seu aroma agradável, que possuem poderes curativos. Como a doença é um estado ‘insocial’, pois tira o indivíduo dos afazeres cotidianos, os bons aromas é que podem restaurar a sociabilidade do doente. Na concepção kulina, as doenças acontecem devido a contatos impróprios com a natureza ameaçadora e insocial da floresta.

Quanto às doenças internas, existem dois tipos principais: a dori, que ataca crianças e adultos e a epetukai, que acometem os bebês. A dori é causada por substâncias invasoras com o mesmo nome, que são injetadas no corpo das vítimas por feiticeiros ou xamãs inimigos. Assim como entre os Siona, quem tem o poder de cura é o xamã, porque ele é quem possui dori. Já a epetukai se deve a um comportamento indevido dos pais do recém-nascido e também pode ser curada por um xamã. A última é diagnosticada quando a criança está com diarréia e quando há relações conflituosas na família.

No ritual de cura kulina, chamado cokorime (espíritos que dão poder e ajudam ao xamã), se utiliza o tabaco, o canto (essência do ritual), pinturas corporais (cada uma representado um espírito) e também uma bebida fermentada de mandioca chamada koidza, que é oferecida aos espíritos para que estes ajudem a realizar a cura pretendida.

Assim como as sociedades indígenas do Alto Xingu e da Amazônia Colombiana (Siona), os Kulinas também são receptivos aos remédios ocidentais, principalmente aqueles que confirmam as práticas terapêuticas tradicionais.

No artigo “O sistema médico wari”, escrito por Concklin, sobre os Wari da Floresta Tropical do Estado de Rondônia, também se verifica uma recorrência aos remédios ocidentais, estes são avaliados com base nos princípios do sistema médico tradicional, onde os aromas desempenham um importante papel no estabelecimento da cura. A medicina tradicional e os tratamentos ocidentais, não são considerados antagônicos e acontecem concomitantemente.

Os conceitos do sistema médico tradicional wari influencia a maneira como este grupo compreende as doenças contemporâneas e a medicina ocidental, bem como permite uma capacidade de ajuste das epidemias causadas pelo contato. Segundo Conklin, existe uma distinção entre a doença wari, considerada normal (pré-contato) e doença civilizada (pós-contato), que são epidêmicas, ambas são denominadas pelo mesmo termo.

O sistema médico tradicional orientava-se para explicar, tratar e prevenir as doenças não epidêmicas. Segundo este, existe duas explicações para a pergunta: “por que eu e não outro?” A primeira diz respeito a ataque de espíritos humanos - feitiçaria - esta pode fazer com que o espírito se separe do corpo e leve o sujeito à morte; enquanto que a segunda se deve a invasões de elementos externos ao corpo humano, causada por ataque de espíritos de animais possuidores de poderes mágicos ou de espíritos da natureza.

Os xamãs são os agentes que curam os males causados pelo ataque de espíritos. A morte súbita é atribuída a feitiçaria, não a doenças, fator que se verifica presente nos outros grupos abordados. Na última década houve um reavivamento do xamanismo entre os Wari, pois este oferece uma explicação para a origem das doenças.

Na concepção wari, a doença é uma ocasião para se solucionar conflitos sociais, todos os familiares participam do restabelecimento do doente, quando o caso é grave toda a comunidade é envolvida.

A terceira parte do livro, “Mudanças nos perfis de saúde”, começa com um artigo escrito por Santos e Coimbra, “Contato, mudanças socioeconômicas e a bioantropologia dos Tupí-Mondé da Amazônia Brasileira”, que enfatiza a necessidade de se levar em conta o impacto de processos históricos e socioeconômicos na interpretação da biologia humana das populações indígenas amazônicas.

Com as transformações sociais, econômicas e ambientais que ocorreram à Amazônia, a partir da década de 70, houve inúmeros processos disruptivos nas várias dimensões na organização social das comunidades indígenas do local. As epidemias infecciosas, responsáveis pela redução demográfica das sociedades indígenas, foram uma das conseqüências do contato entre estes e a sociedade ocidental.

A bioantropologia tem como objetivo verificar o impacto do contato sobre os povos indígenas. Segundo Coimbra é improvável que as populações ameríndias tenham ficado em completo isolamento de influencias externas, pois pesquisa bioarqueológicas indicam que as doenças epidêmicas já estão presentes entre estes grupos no período anterior ao acirramento do contato. Não se faz necessário o contato direto para que estas doenças se difundam.

Com as mudanças econômicas na região, foi introduzido o capital nas aldeias surui, na medida em que este ficou na mão de algumas pessoas, passou a gerar uma diferenciação socioeconômica interna, em uma sociedade que a princípio possuía uma organização social igualitária. Por sua vez, esta diferenciação interferiu no processo de crescimento físico dos indivíduos, bem como influenciou o estado nutricional da ‘juventude’ surui e pode alterar a morfologia corporal da parcela adulta.

No livro “Saúde e Povos Indígenas” também contém um artigo de Flower sobre “A crise e recuperação demográfica: os Xavantes de Pimentel Barbosa, Mato Grosso”. Depois do primeiro momento crítico após o contato, passa a haver um aumento nos contingentes populacionais em algumas sociedades indígenas.

Entre os Xavante, este fenômeno assegura a existência física do grupo, renovando a confiança quanto ao seu futuro e quanto a sua capacidade política. Entretanto, não assegura a reprodução dos padrões culturais tradicionais, podendo colocar em risco os recursos naturais das áreas indígenas e por conseqüência o seu sistema tradicional de subsistência, assim como, na medida em que os jovens superam em número os mais velhos, podem ocorrer um enfraquecimento das tradições e conflitos entre as gerações.

Através de dados demográficos coletados sobre a população Xavante, localizada no Brasil Central, em um contexto pré-contato percebe-se que em grupos semi-nômades existe uma alta taxa de fecundidade e uma baixa taxa de mortalidade infantil; no período do contato, que traz inúmeras doenças e rupturas sociais, a taxa de fecundidade é baixa e a de mortalidade infantil é alta; recentemente a taxa de fecundidade vêm aumentando, enquanto que a de mortalidade infantil vêm diminuindo, porém a taxa de fecundidade ainda não pode ser considerada ‘normal’.

Segundo Flower, a possibilidade de um grupo indígena resistir as doenças trazidas pelo contato, depende de inúmeros fatores: externos - velocidade com que o grupo é forçado a se adequar as novas condições sociais e ambientais impostas pelo contato, isto depende das fronteiras estabelecidas entre os grupos; e internos - elevados níveis de fecundidade, assegurando a sobrevivência biológica Xavante, esta é influenciada por inúmeras condições sociais, culturais e físicas.

O livro encerra com o artigo, “A morte como apelo para a vida: o suicídio kaiowá”, sobre os Kaiowá da região de Dourados, Mato Grosso do Sul, escrito por José Meihy. Este enfatiza a necessidade de entendermos a questão da auto-imolação segundo a ótica da sociedade na qual o fenômeno acontece e não com uma “visão de fora”, que considera estas mortes como uma resposta a uma pressão exercida pela sociedade envolvente sobre a sociedade indígena. Neste caso, o fator externo seria o suficiente para causar a desintegração do grupo, colocando as sociedades indígenas corno meros agentes passivos, incapazes de reação e indeterminação.

Na análise do autor a maioria das mortes acontecem em adolescentes entre 10 e 17 anos, e se dão pela garganta, de onde sai a voz, que é sinônimo da alma para os Kaiowá, por outro lado é justamente neste período que a voz está mudando. Com isto passa a haver uma recuperação mitológico, onde é resgatada a importância da fala. As formas com que os Kaiowá se suicidam são tradicionais, sem sangue e sem sujeira. Esta prática evoca um ritual, um sistema de rezas e enterros que tem sido recriado como um grito de vida e não como uma negação a sua própria existência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 1997
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