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Mulheres com deficiência na Amazônia: a autoetnografia como recurso metodológico para narrar histórias invisibilizadas

Women with disabilities in the Amazon: autoethnography as a methodological resource to narrate invisible stories

Resumo

Este artigo traz a reflexão de duas histórias de mulheres com deficiência, moradoras de dois lugares distintos da Amazônia, uma da Amazônia da capital Belém, outra da Amazônia interiorana da cidade de Santarém (PA). A partir da vivência de ambas, conectadas com a paisagem da beira do rio, como paisagem que constrói narrativas à margem e elemento constitutivo da subjetividade de suas identidades, faz-se uma reflexão de como o capacitismo esteve presente durante suas trajetórias nesse território. Capacitismo como opressão que faz com que pessoas com deficiência sejam lidas socialmente em um estado diminuído. Nesse cenário, a autoetnografia foi utilizada como recurso metodológico por permitir narrar de forma crítica tais histórias, e , para além da escrita em prosa dissertativa, também permitiu o uso de poesia como componente fundamental.

Palavras-chave:
capacitismo; autoetnografia; Amazônia; beira

Abstract

This article reflects on two stories of women with disabilities, living in two different places in the Amazon, one in the Amazon in the capital Belém/PA, the other in the countryside Amazon in the city of Santarém/PA. From the experience of both, connected with the riverside landscape as a landscape that builds narratives on the sidelines and constitutive element of the subjectivity of their identities, this article reflects on how ableism was present during their journeys in this territory. Ableism like the oppression that causes people with disabilities to be socially read in a diminished state. In this scenario, autoethnography was chosen as a methodological resource because it allows us to critically narrate these stories, which, in addition to writing in essay prose, also allowed the use of poetry as a fundamental component.

Keywords:
ableism; autoethnography; Amazon; border

Introdução

Fui ensinada a pedir licença ao entrar na casa alheia não coloco um pé sequer dentro d’água sem pedir permissão Ao entrar na mata peço licença ao curupira e respeito a anatomia dos seus pés peço ao seu corpo pequeno que não me deixe perdida na mata seis horas saio correndo dos igarapés - É a hora da mãe d’água! - Peço permissão à cobra-grande torcendo para que sua ira se volte contra o capital que seu corpo gigantesco enfurecido engula o garimpo e a madeira ilegal Que a flecha de Oxóssi deslize em cada verso - e em cada prosa - que, assim, eu peço licença agora, mesmo pouco interessada na resposta, para começar essa escrita em prosa (Keké, 2022)

Esta é uma escrita localizada que parte de paisagem e território específico, duas cidades da Amazônia paraense. Belém, a capital do estado, e Santarém, cidade do interior. Tais paisagens são importantes para localizar as experiências, principalmente na figura do rio, que em alguns momentos aparece no texto com mais frequência, mas que mesmo naqueles em que não aparece nitidamente está como paisagem fundamental de construção de subjetividade das narrativas. Partimos do conceito desenvolvido pela antropóloga santarena Liendria Malcher (2021MALCHER, L. M. Cinema de beiras: produção de narrativas audiovisuais por documentaristas do baixo Tapajós. 2021. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2021., p. 11) sobre a paisagem da beira do rio como paisagem que constrói narrativas de resistência: “há muitos sentidos para beiras, mas a primeira imagem que quero evocar é da beira do rio. Sempre relacional, ela existe enquanto antecede o curso da água. Ela pode ir ao fundo ou insurgir de acordo com a sazonalidade.” Da beira do rio que se modifica, no caso de Belém, com as altas das marés, numa dinâmica diária, características da capital agitada, paisagem de uma Amazônia frenética, que se compõe no descer e subir das suas águas. A tempestividade do rio dita a mobilidade urbana dos moradores(as), quando ele decide subir em demasia a cidade para e transborda, transformando o asfalto e o concreto em uma nova margem do rio.

Em Santarém, o ritmo de subida e descida do rio, conhecidos como períodos de cheia e de seca, duram seis meses cada. Cada paisagem dos dois períodos distintos transforma a vida dos santarenos, na cheia com a presença do rio nas primeiras ruas da cidade, as pontes de madeira e os barcos em evidência, e na seca com as longas faixas de areia criando uma nova beira de rio e estabelecendo outras dinâmicas de comércio e locomoção da cidade. Contar histórias de beira é admitir que o rio não é apenas uma via aquática de mobilidade, mas que nessa paisagem habitam sujeitos e histórias que estão à margem, que, tal qual a beira do rio, movimentam-se, alteram-se e rebelam-se, construindo novos espaços e novas dinâmicas.

A partir desse lugar de beira, nos atentemos, neste momento, ao fio condutor metodológico desta escrita, a autoetnografia. Produzir a escrita autoetnográfica é um caminho sem volta. Uma volta feita de si, por si, para si, mas em consonância a outros mundos e realidades que nos são tocadas através das palavras. Temos o poder da autogerência ao captar vozes interiores ocultas, condicionadas a mostrar o que se tem de melhor ou pior daquele que relata. No contexto dominante e hegemônico, compreender lugares de fala é algo desestabilizador. Nesse sentido, aprendemos, então, que nossa voz importa e o silêncio pode dizer muito também, com a diferença de que “somos convidados a ouvir os silêncios não mais emudecidos, mas eloquentes em reverberação com nossos corpos e historicidades, para, com isso, promover a justiça social” (Raimondi et al., 2020RAIMONDI, G. A. et al. A autoetnografia performática e a pesquisa qualitativa na Saúde Coletiva: (des) encontros método+lógicos. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 12, e00095320, 2020., p. 5).

Assim, Daniela Versani (2002)VERSANI, D. B. Autoetnografia: uma alternativa conceitual. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 37, n. 4, p. 57-72, dez. 2002. nos diz que a autoetnografia pensa a escrita e a história de forma conectada, entrecruzando o pessoal, cultural, social e político. “O conceito autoetnografia […] parece ser produtivo para leitura de escrita de sujeitos/autores que refletem sua própria inserção social, histórica, identitária em especial no caso de subjetividades ligadas a grupos minoritários” (Versani, 2002VERSANI, D. B. Autoetnografia: uma alternativa conceitual. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 37, n. 4, p. 57-72, dez. 2002. , p. 68, grifo da autora).

As narrativas sobre o que se viveu, o que se pensou e o que se sentiu de cada indivíduo fazem parte do processo de investigação social, sistematizando a escrita com a experiência pessoal para entender a experiência cultural. É uma outra perspectiva de investigação, que desafia as formas canônicas de escrita e de representação do outro, pois considera fortemente a politização com diretrizes que buscam a justiça e a consciência social, permitindo que outras histórias não hegemônicas possam ser contadas (Ellis; Adams; Bochner, 2011ELLIS, C.; ADAMS, T.; BOCHNER, A. Autoetnografía: un panorama. Forum Qualitative Sozialforschung / Forum: Qualitative Social Research, [s. l.], v. 12, n. 1, Art. 10, 2011.).

Isso quer dizer que essa forma de escrita parte das experiências sentidas e recontadas por quem vive no exercício de buscar compreender suas subjetividades. Em vista disso, expor as nossas histórias de mulheres com deficiência, partindo dessa metodologia, permite-nos estabelecer os fatos individuais de modo analítico, trazer para o social aqueles que antes eram lidos como acontecimentos isolados e que, agora, fazem parte de uma investigação que se amplia para problemas sociais, sociológicos e antropológicos. A narração pessoal tem um papel valioso, em especial nas ciências humanas, por isso os “dados” em uma autoetnografia são as próprias “experiências” encarnadas em processos de reflexividade e engajamento, que por si só tornam as pesquisas “transgressoras, indisciplinadas e políticas”, como aponta Gama (2020GAMA, F. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla. Anuário Antropológico, Brasília, v. 45, n. 2, p. 188-208, 2020., p. 2).

Mello (2019)MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019., em sua tese de doutorado, discute a influência da surdez no fazer antropológico a partir de uma perspectiva autoetnográfica, ao focar em sua experiência enquanto antropóloga surda. Ela expõe os desafios metodológicos imbricados na prática do fazer antropológico, “o olhar, o ouvir e o escrever”, de Roberto Cardoso de Oliveira (2006)CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Paralelo 15, 2006., ou “o olhar, o (não) ouvir e o escrever” proposto pela autora como formas possíveis de encarnar esse papel a partir de outras experiências sensoriais possíveis. Mello (2019MELLO, A. G. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019., p. 37) avalia que

[…] o próprio processo de construção de autoetnografias implica desafiar categorias dualistas como sujeito produtor de conhecimento e objeto de pesquisa, observador e observado, outsider e insider, dentre outros, o que nos leva a pensar sobre o lugar da subjetividade na teoria antropológica e a legitimidade das práticas antropológicas contemporâneas com a entrada na academia de membros oriundos de “grupos minoritários” também chamados de “nativos” ou “subalternos”.

Outra característica da escrita autoetnográfica é a possibilidade de dissolver, ou movimentar, as margens da escrita artística e científica, produzindo textos estéticos, literários e científicos, que passam a se pertencer mutuamente. A proposta, segundo Laurel Richardson e Elizabeth Pierre (2005)RICHARDSON, L.; PIERRE, E. Writing as a method of inquiry. In: DENZIN, N.; LINCOLN, Y. (ed.). The SAGE handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage, 2005. p. 1410-1444., é desafiar a ideia que se deu desde o século XVII, que, além de separar a escrita artística da científica, associou a primeira somente a textos ficcionais, de alta subjetividade. Por isso, durante este texto estão presentes poesias, não como adereços ou perfumaria, mas enquanto partes construtivas do texto, como parte fundamental da construção da narrativa.

A autoetnografia propõe um trabalho que produza uma narrativa séria, com bases analíticas e reflexivas, produzindo material intelectual, que, no nosso caso, atue em direção da desconstrução de estereótipos sobre pessoas com deficiência, produções textuais que se permitam mergulhar na sensibilidade das histórias, sem romantizá-las - processo importante para a construção de um outro olhar acadêmico e social sobre a identidade da pessoa com deficiência.

Parte fundamental desse processo é a possibilidade de revisitar as nossas experiências de forma que os pontos que convergem em nossas histórias não sejam lidos como mero acaso, mas que possam ser analisados criticamente nos mostrando que as consonâncias de nossos relatos deixam à mostra como se constroem os corpos de mulheres com deficiência em dois contextos diferentes da Amazônia. Estar na beira dos rios, mesmo estes sendo tão distintos nas duas cidades, dita a sociabilidade e a mobilidade de ambas. A Amazônia da capital Belém, com seus rios de águas barrentas, espalhados pela cidade, tempestivos, com águas inquietas e o rio da Amazônia interiorana da cidade de Santarém, com águas verdes, mansa e gigante. Nessas duas paisagens de vivência de beira de rio, que se aproximam e distanciam a todo momento, estão nossos corpos com deficiência, vivendo e interagindo com esses espaços que, na maioria das vezes, não possuem nenhum tipo de acessibilidade. A proposta, aqui, é ultrapassar as estruturas de unidades pessoalísticas para que possamos pensar socialmente o que conduz nossas experiências de pessoas com deficiência enquanto amazônidas.

A seguir, teremos nossos relatos e histórias de vida, reiterando como a autoetnografia é uma metodologia importante, especialmente na reafirmação social de resistência, de como nossas vozes em primeira pessoa, narrando sobre nossas trajetórias como um ato político, constroem novas formas de pensar, formas capazes de subverter lógicas capacitistas, sexistas e segregacionistas em geral, que invisibilizam e condicionam nossas experiências em direção ao apagamento e ao esquecimento.

O pessoal é político. O que não é político, na verdade? Verbalizar nossas dores, angústias, anseios é revolucionário por meio da “transformação do silêncio em linguagem ação” (Lorde, 2020LORDE, A. A transformação do silêncio em linguagem e ação. In: LORDE, A. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 51-55.), com foco na história de existência de um corpo que é afirmado politicamente e humanamente durante o processo de “escrevivências”, nos termos de Conceição Evaristo (2008)EVARISTO, C. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Releitura, Belo Horizonte, n. 23, p. 5-11, 2008.. Nossas histórias, contadas por nós, servem para não esquecermos quem de fato somos, o que queremos e a que viemos neste mundo.

Quando eu nasci eu era o anjo torto e repetia pra mim: “Não vou ser gauche na vida!”

A poesia corponormativa é o soneto Eu nasci sem rima Nasci onomatopeia - putz - Problema ortopédico - Pediatria - Me querem fazer soneto Na sala de cirurgia Arrancam o pronome oblíquo Em nome da santa estética - Culta - Lhe digo que é mais gostoso palavra fora de ordem Digo-lhe porque sou obrigada Soneto forçado de um corpo em prosa. (Keké, 2020)

Eu, nascida em 1992, em Santarém, pessoa com deficiência física de nascença, com diagnóstico de má-formação e espinha bífida, atrofia e encurtamento do membro inferior direito e desde a infância conhecida pelo apelido de “Keké”, mulher negra, neta de indígena, seringueiro e retirantes nordestinos. Meu pai veio para o Pará muito jovem. Meu avô, minha avó - que teve 18 gestações e, dessas, 15 sobreviventes - e seus 15 filhos saíram da casa em que viviam após um conflito de terra, na cidade de Vitorino Freire (MA), e fizeram o percurso de 1.562,4 km pedindo carona e caminhando até Miritituba, cidade localizada no oeste do Pará, nas margens do rio Tapajós, em frente a Itaituba, conhecida por sediar muitos garimpos, apelidada como a cidade do ouro. Foi justamente o metal e também o discurso integracionista com o Norte, na colonização mais recente da Amazônia, que motivaram a vinda deles para esses lados. Dessa experiência, segundo meu pai, “a única coisa amarela que eles conseguiram foi a malária”.1 1 A malária é uma doença infecciosa febril aguda, causada por protozoários do gênero Plasmodium transmitidos pela picada da fêmea infectada do mosquito do gênero Anopheles, também conhecido como mosquito-prego.

Minha mãe, ribeirinha, nascida no interior de Gurupá (PA),2 2 O território do Município de Gurupá está localizado no nordeste do estado do Pará, na zona fisiográfica do Marajó e Ilhas. filha de indígena e seringueiro, com 15 irmãos, traçou um caminho muito conhecido pelas jovens da beira de rio da região, sendo levada para trabalhar e morar em casa de família na capital, Belém, aos 9 anos de idade. Depois da adolescência foi para Santarém, oeste do Pará, morar perto de minha avó, que, naquela altura, já havia saído do interior de Gurupá e morava na periferia de Santarém.

Eu sou a terceira filha desse casal, a caçula. Quando nasci, minha mãe era empregada em uma loja de tecido e meu pai, autônomo, trabalhando com fotografia. Nessa época morávamos na periferia de Santarém, no bairro São José Operário. Quando minha mãe descobriu que estava gestante de mim tinha acabado de parir meu irmão - nossa diferença de idade é de 10 meses. O teste do pezinho na época não era obrigatório e foi meu pai quem fez o primeiro diagnóstico da minha deficiência, quando foi me visitar após meu nascimento. Depois de perceber que o pé e as pernas eram tortos, foi questionar o médico, e aí começava a correria para saber o do que se tratava.

Mesmo tendo nascido às margens do rio Tapajós e tendo nesse rio a entidade que me constrói enquanto gente, eu não sei nadar. Nunca aprendi a nadar. Eu sempre digo que o rio é manso e deixa a gente ficar de bubuia,3 3 Palavra usada no Norte, sinônimo de boiar. contemplando a mansidão. Mas não é só isso. Quando tinha 5 anos de idade, fui fazer minha primeira aula de natação. Quando tirei a roupa no vestiário, as crianças me colocaram no centro de uma roda de risos, apontando e rindo do meu corpo: “É torto!”. Gargalhadas. Saí correndo do julgamento pérfido infantil e nunca aprendi a nadar. Falo sobre isso para mostrar como o capacitismo tem limitado nossas vivências e interferido na construção de nossas subjetividades, nos furtando pertencimento de espaços e lugares fundamentais, como o rio que é a referência e paisagem essencial para nós da Amazônia. Como um corpo diferente da corponormatividade é impedido socialmente de construir seus vínculos subjetivos e forçado por barreiras sociais de conhecer e expandir as potencialidades de si.

Capacitismo é o termo traduzido por Anahí Mello (2014MELLO, A. G. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma analise antropológica de experiências, narrativas e observações sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., p. 94), que o conceitua como um sistema de opressão marcado por uma postura preconceituosa, “[…] é uma categoria que define como as pessoas com deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes - incapazes de produzir, trabalhar, aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo, de ser desejada de ter relações sexuais etc.” Mario Toboso (2017)TOBOSO, M. M. Capacitismo. In: PLATERO, L.; ROSÓN, M.; ORTEGA, E. (ed.). Barbarismos queer y otras esdrújulas. Barcelona: Bellaterra, 2017. p. 73-81. destaca a produção do corponormativo, que forja a norma corporal e coloca pessoas com deficiência como quase humanos, produzindo um discurso de dominação e poder que engessa as capacidades normativas como única alternativa viável de vida. Do inglês, disablism é a discriminação sofridas por pessoas com deficiência unicamente por não pertencerem à normatividade corporal instituída.

Campbell (2008)CAMPBELL, F. K. Refusing able(ness): a preliminary conversation about ableism. M/C Journal, [s. l.], v. 11, n. 3, 2008. DOI: https://doi.org/10.5204/mcj.46. Disponível em: Disponível em: https://journal.media-culture.org.au/index.php/mcjournal/article/view/46 . Acesso em: 20 out. 2021.
https://doi.org/10.5204/mcj.46...
aponta que o capacitismo é um conjunto de processos e crenças, consciente e inconsciente, de práticas que provocam desigualdade e discriminam pessoas com deficiência. Para Adriana Dias (2013DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal a narrativa capacitista social. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DEFICIÊNCIA, 1., 2013, São Paulo. Anais […]. São Paulo: SEDPcD: Diversitas: USP Legal, 2013. Disponível em: Disponível em: https://docplayer.com.br/145111795-Por-uma-genealogia-do-capacitismo-da-eugenia-estatal-a-narrativa-capacitista-social.html . Acesso em: 20 out. 2021.
https://docplayer.com.br/145111795-Por-u...
, p. 6), o capacitismo é “a concepção presente no social que lê as pessoas com deficiência como não iguais […] A deficiência para o capacitista é um estado diminuído do ser humano.” O capacitismo desnuda a falsa ideia de que as diferenças são acolhidas, no discurso que frequentemente as reafirma ao mesmo tempo que não reconhece sua existência nas relações sociais.

Lígia Amaral (1998)AMARAL, L. A. Sobre crocodilo e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, J. G. (org.). Diferença e preconceitos na escola: alternativa teórica e prática. São Paulo: Summus, 1998. p. 11-30. também nos lembra que a diferença em seu estado diminuído, quando age em detrimento da possibilidade da constelação da diversidade, se dá a partir da projeção do corpo ideal. Para a autora:

Todos nós sabemos (embora nem todos os confessemos) que em nosso contexto social esse tipo ideal - que, na verdade, faz um papel de espelho virtual e generoso de nós mesmos - corresponde, no mínimo, a um ser: jovem, do gênero masculino, branco, cristão, heterossexual, físico e mentalmente perfeito, belo e produtivo. A aproximação ou semelhança com essa idealização em sua totalidade ou particularidades é perseguida, consciente ou inconscientemente, por todos nós uma vez que o afastamento caracteriza a diferença significativa, o desvio, a anormalidade. (Amaral, 1998AMARAL, L. A. Sobre crocodilo e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, J. G. (org.). Diferença e preconceitos na escola: alternativa teórica e prática. São Paulo: Summus, 1998. p. 11-30., p. 14).

Entender o capacitismo como um conceito de opressão é pensar na construção de vias políticas na luta por direitos das pessoas com deficiência, é a politização do enfrentamento da deficiência (Silva, 2006SILVA, L. M. A deficiência como expressão da diferença. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 44, p. 111-133, 2006. ). Quando se tem uma deficiência, são socialmente normalizadas as tentativas de colocar - e retirar - o corpo em espaços determinados, como aconteceu quando não pude aprender a nadar e, por consequência, não pude experienciar com mais profundidade o rio, como os demais, e ficava ali na beira a observá-los se afastando. Não poder estar no rio como demais não seria a única experiência tomada pelo capacitismo; quando aprendi a andar na bicicleta da minha mãe, meu corpo era bem pequeno para a bicicleta, então desenvolvi empiricamente uma técnica em que minha perna maior conseguia pedalar com bastante força, até que a perna curta, que não conseguia dar a volta completa, pudesse alcançar o pedal. Quando cheguei a esse método me senti extremamente astuta, como quem doma o “bicho de ferro”. Fiquei ágil e me movimentava para todos os lugares sem nenhuma dificuldade. Até que alguém da vizinhança me viu andando na rua e as zombarias começaram. Eu devia ter, no máximo, 12 anos. Só voltei a andar de bicicleta aos 15.

O fato de eu ter dominado a bicicleta e de, mais uma vez, não ter meus movimentos corporais aceitos, por estarem fora da ordem-padrão, fora dos protocolos corporais de pedalar, nos mostra sobre a adaptabilidade do meu corpo: há outras maneiras de, simplesmente, andar de bicicleta, e como essas formas são silenciadas pelo capacitismo. Afinal de contas, “habitar um corpo com impedimentos físicos, intelectuais ou sensoriais é uma das muitas formas de estar no mundo” (Diniz et al., 2009DINIZ, D. et al. Deficiência, direitos humanos e justiça. SUR: revista internacional de direitos humanos, [s. l.], v. 6, n. 11, p. 65-77, dez. 2009., p. 23).

Ser tolhida e censurada socialmente, pela minha capacidade de pedalar e desenvoltura na dominação de uma técnica diferente, é uma violência contra as potencialidades criativas do corpo e, mais uma vez, atua minando as experiências dos corpos diferentes com o mundo, cultivando subjetividades inferiorizadas, confirmando o que Mello e Mozzi (2018MELLO, A. G.; MOZZI, G. de. A favor da deficiência nos estudos interseccionais de matriz feminista. In: ROSA, M. V. de F. et al. (org.). Políticas públicas, relações de gênero, diversidade sexual e raça na perspectiva interseccional. Porto Alegre: Editora Secco, 2018. p. 17-30., p. 23) dizem sobre o “quanto mais incapaz for a estrutura social para prever a diversidade corporal/funcional, mais severa será a experiência da deficiência”. Esse fato se articula, ainda, com a compreensão normatizada e autoritária sobre o padrão corporal que Carla Vendramin (2019VENDRAMIN, C. Repensando mitos contemporâneos: o capacitismo. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL “REPENSANDO MITOS CONTEMPORÂNEOS”, 3., 2019, Campinas. Anais […]. Campinas: Unicamp, 2019. p. 16-25., p. 17) pontua:

Está relacionado a uma compreensão normatizada e autoritária sobre o padrão comportamental humano, que deflagra uma crença de que corpos desviantes serão consequentemente insuficientes, seja diminuindo seus direitos e mesmo o direito à vida em si, seja de maneira conceitual e estética, na realização de alguma tarefa específica, ou na determinação de que essas sejam naturalmente não saudáveis.

Por isso, o enfrentamento ao capacitismo passa por compreender a pluralidade e a diversidade dos corpos sem hierarquizá-los. Compreender que o corpo com deficiência é uma forma de experienciar o mundo e sua diversidade, e que, muitas vezes, em sociedades capacitistas, essas potencialidades são apagadas em detrimento de normas e padrões.

Nesse sentido, gosto de me pensar feito poesia de um corpo que senta na beira do rio para apreciá-lo, se sentir parte do grande mistério das águas, das curvas tortas de cada braço de rio, pensando na permeabilidade desse lugar, no vaivém das águas, que, mesmo na sua mansidão, sobem e ocupam a orla nos períodos de cheia, aquele pedaço concretado que fora tomado na invenção da cidade, é nessa beira de rio que meu corpo-poesia se constitui.

Este corpo que senta desaprumado nessa beira e sabe que pertencente a esse rio se recusa constantemente a ser gauche.4 4 Segundo o dicionário, “gauche” é um indivíduo tímido, incapaz, sem muita aptidão. Gauche, lembro de ter visto essa palavra a primeira vez quando li o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond, eu tinha uns 10 anos, fiquei com aquela palavra na cabeça, quando descobri o significado pensei “eu que não quero ser gauche na vida!”, ali eu já sentia que queria movimentar as beiras dos rios, queria subir rebelde sobre a cidade, queria poder escolher apreciar o rio da beira e não ser obrigada a estar no raso. Precisava romper o silêncio. Eu movimentei a beira do rio, virei poeta.

Olho na água do rio Às vezes eu olho nos olhos pra ver se me vejo E a depender dos olhos E a depender do rio E a depender do espelho Não consigo entender Olhos, rios, espelhos, parecem enviesados Quando quero me ver de verdade eu olho as palavras Que quando despidas se parecem comigo Na profunda intimidade das palavras minhas - as quais não sou dona - Elas não pertencem a mim, embora o pronome queira posse Eu não sou o outro nos meus olhos, no rio que eu cresci, no espelho que tenho em casa, nas palavras Mas eu me pergunto O que eles dizem de mim Num tom mesmo profético - e vós, quem dizeis que eu sou? - Pela palavra deles, pelo rio que muitos deles não viram, pelo espelho, pelo retrato pelo quadrado o que eles têm dito de mim pertence, mas não pertence a mim se do lado de lá eu sou o outro do lado daqui eu sou o anjo torto e repetia pra mim não vou ser gauche na vida. (Keké, 2021)

Falando por si de si: trajetórias de uma doente crônica

Diferente de Keké, eu não “nasci anjo torto”, na verdade, eu me tornei. Não sei se “torta”, talvez sim, dentro de uma visão retilínea, fixa e essencialista que se tem sobre os corpos, aquela que nos condiciona a lugares de não fala e de preterimento dentro do sistema capitalista e colonial. Posso dizer que tanto eu quanto Keké somos tortas para os padrões! Tortas por sermos inadequadas a modelos de arquétipos considerados “aptos à sobrevivência” que seguem um ideal de norma de corpo prevalecente.

Aos 31 anos, atualmente, morri e renasci várias vezes. A minha vida de fato começou, ou melhor, recomeçou há aproximadamente 14 anos, quando recebi o diagnóstico de uma doença crônica, progressiva, desmielinizante5 5 Uma doença desmielinizante é qualquer doença no cérebro ou na medula em que ocorra uma alteração do tipo inflamação na bainha de mielina dos nervos, interrompendo a condução dos impulsos elétricos. e autoimune chamada esclerose múltipla, apontada também nos trabalhos de Fabiane Gama, autora que também convive com essa patologia. Na época eu era só uma adolescente de 16 anos, que pouco pensava em problemas sérios, mas desde nova aspirava a um futuro promissor, cheia de sonhos e de vida! Logo na melhor fase da vida, ela (a esclerose) chegou devastando a alma, dolorindo o corpo e construindo novos sentidos que me fizeram, novamente, renascer. Ah, quantas vezes morri para renascer só querendo, unicamente, viver… bem, saudável e dentro dos padrões de normalidade que eu acreditava serem os de uma jovem da minha idade.

“Mas como assim, esclerose múltipla? O que é isso? É contagiosa? Tem cura? Por que comigo?” Os questionamentos foram muitos e surgiam concomitantemente aos próprios sintomas da doença, que se manifestavam de forma peculiar e imprevisível no organismo, como dormências, formigamentos no corpo, dificuldade para andar, enxergar, memorizar… Fadiga imensa, terrível. Difícil até de explicar. Aliás, como explicar que uma jovem moça de 16 anos está com fadiga! Uma sensação de cansaço extremo sem ter realizado nenhum esforço físico. Isso não é possível! Só pode ser “fingimento”, manha ou desculpa esfarrapada - muitas pessoas, infelizmente, ainda pensam assim. Uma sensação de impotência tomava conta a cada dia.

Mantive-me firme e serena, mesmo jovem e pouco entendedora do assunto. Pesquisei muito. Conversei com várias gentes. Essas gentes me ensinaram tanto com seus compartilhamentos de histórias, seja pelas conversas virtuais, pelos corredores dos hospitais, horas extenuantes em clínicas, reuniões em associações de apoio a uma nova causa em que passei a me engajar e outros lugares que me construíram como paciente - às vezes nem tão paciente assim - doente crônica, era essa a vestimenta social que passou a me identificar. Em muitos desses espaços me vi representada em cada história, e de algumas eu me senti bem distante também, principalmente em virtude de carregar alguns privilégios inegáveis, como uma condição social suficiente para arcar com custos relacionados aos tratos com saúde física e psicológica, além de possuir, também, uma rede de apoio familiar e de amizades essenciais para continuar uma caminhada de incertezas constantes. Infelizmente, muitos não tiveram oportunidades como as que eu tive. Gozar disso refletiu em mim uma vontade interna de colaborar em alguma medida para que outras pessoas pudessem experienciar o adoecimento crônico de forma menos dolorosa possível.

A obra Aonde eu coloco as minhas dores, doutor? (Costa, 2019COSTA, K. S. da. Aonde eu coloco as minhas dores, doutor?: um olhar antropológico da esclerose múltipla. Porto Alegre: Editora FI, 2019.) nasceu durante esse processo de catarse provocada durante a pesquisa de dissertação onde eu me vi envolvida subjetivamente com as minhas interlocutoras, que refletiam as minhas dores. Nesse trabalho, analisei a vida de mulheres com a mesma patologia que a minha, observando as influências sociais geradas a partir do fechamento de um diagnóstico, que nomeia e distingue possíveis trajetórias pessoais ao ser marcado por destinos previsíveis do que pode ser considerado “trágico”, “fatal” e “limitante”, compactuantes com uma lógica capacitista e estigmatizadora. Um médico outrora disse ao meu pai, logo no início do diagnóstico, que em um ano eu estaria em uma cadeira de rodas. As expectativas e prognósticos rompidos causam estranhamento a quem encara a doença ou a deficiência através do olhar frio e cruel, colonial e capacitista, que enrijece nossas vivências a modos homogeneizantes de ser e estar no mundo.

A doença é considerada, socialmente, a anomalia, a anormalidade no seio de uma sociedade saudável. E é impossível falarmos sobre doença e saúde sem recorrermos ao discurso biomédico. Fomos moldados a falar sobre nossos corpos e nós mesmos a partir dele. Um discurso que, como todos o são, tem sua formação histórica, social e cultural. Entretanto, a experiência de adoecer não se esgota em sua forma médica de descrever a doença. (Silveira, 2016SILVEIRA, B. R. Dor compartilhada é dor diminuída: autobiografia e formação identitária em blogs de pessoas em condição de doença. 2016. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 23).

Voltar o olhar para mim virou um exercício diário e prazeroso, proporcionando-me inclusive o autoconhecimento tão necessário e evocado por sabedores da espiritualidade. Olhar-me, também, enquanto “o outro” na busca por similar aceitação, na luta pela garantia de direitos e em tudo o que envolve os rótulos construídos e reafirmados historicamente, principalmente por ser uma jovem mulher com uma deficiência, vale ressaltar, até então, não tão visível, fez-me perceber que mesmo pertencentes ao mesmo grupo social, existem diferenças entre nós. Enquanto em alguns corpos a deficiência é marcada visualmente, no meu corpo, especificamente, pouco era notada, pois não podia ser vista. As minhas dificuldades eram minhas e pouco externalizadas, a não ser quando a necessidade batia para sentar, descansar ou parar alguma atividade quando o corpo pedia pausa.

Como é o caso quando acesso alguns espaços como shows, praças, estádios, eventos culturais e deparo-me com a falta de acessibilidade ou a pouca disponibilidade de oferta vinda de organizadores e agentes públicos. De forma frequente - e nisso a memória não falha, como costuma falhar em alguns momentos - passo por desconfortos nesses espaços por não me adequar a uma estrutura que não acolhe as diferenças corporais, minhas e de outros, ou quando minha deficiência é posta em xeque - lembrando a célebre frase “só acredito vendo”. Contudo, com sintomas múltiplos e distintos, a esclerose múltipla se enquadra no campo chamado “deficiências invisíveis”. Visível mesmo só para mim, que do mesmo modo como muitos não a vejo, mas a sinto diariamente.

A sociedade, adaptada ou não às características peculiares dos diferentes corpos, predispõe de uma falta de legitimação naqueles em que as “lesões” não são visíveis. Torna-se mais difícil, à vista disso, a compreensão das doenças crônicas no quadro das deficiências, até mesmo por haver corpos lesionados que não são “deficientes”, assim como o contrário também, corpos “deficientes” que não necessariamente têm alguma lesão. Há uma complexidade em se fazer incorporar a doença na identidade, pois envolve autoimagens e mecanismos dinâmicos que estão inseridos no processo de compreensão, conhecimento e aceitação de si. Há várias identidades em uma, e por que, então, só a doença vem a nos definir? (Costa, 2019COSTA, K. S. da. Aonde eu coloco as minhas dores, doutor?: um olhar antropológico da esclerose múltipla. Porto Alegre: Editora FI, 2019., p. 54).

Trabalhar o conceito de capacitismo ligado aos comprometimentos físicos decorrentes da esclerose múltipla é extremamente necessário no que se refere aos impactos sociais gerados pela incompreensão dos olhares de quem não a entende. Gostaria de ressaltar, nesse sentido, que, mais do que as dores e sintomas sentidos de forma orgânica, é o modo como a doença é vista socialmente o maior impedimento de viver com dignidade. A postura preconceituosa que hierarquiza corpos também desumaniza seres humanos ao tratar de modo generalizado quem tem condições físicas e cognitivas distintas do valor moral da norma, visto como detentor de incapacidades. Incapacidades de trabalhar, de estudar, de se relacionar afetivamente, de produzir, de desejar e ser desejado, de ter relações sexuais, etc. As lutas por visibilidade social e reconhecimento jurídico são constantes.

Nas filas preferenciais, nas vagas reservadas em estacionamentos, em provas de seleção de concurso, no mercado de trabalho, nos espaços de lazer… em vários momentos deparamo-nos com situações desafiadoras que influenciam nosso acesso e permanência em diferentes ambientes, desafios esses que vão além de um incentivo a investimento em políticas para o nosso segmento, mas dizem respeito a algo mais amplo, que é a própria mentalidade, postura, construída ao longo do tempo que deve ser mudada por meio de práticas anticapacitistas, já que o capacitismo está arraigado nos nossos hábitos.

A escrita, principalmente a partir da autoetnografia, é um excelente instrumento para questionar padrões corporais impostos socialmente e explanar experiências que quebram o silêncio sobre nós e refuta condicionamentos já não aceitos neste momento, pois nos inferiorizam, nos incapacitam, nos infantilizam e nos invisibilizam em cada fala e gesto, seja de exclusão ou comiseração, intrínsecos nas relações construídas no seio social. Tendo isso em vista, minhas experiências me condicionaram a pensar a doença como um processo social (Silveira, 2016SILVEIRA, B. R. Dor compartilhada é dor diminuída: autobiografia e formação identitária em blogs de pessoas em condição de doença. 2016. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.) e não apenas biológico.

Por conseguinte, o modelo social da deficiência, arcabouço teórico utilizado em minha pesquisa de dissertação, acendeu em mim novas formas de pensar a condição do meu corpo em sociedade, não mais me vendo como um “problema” enquanto pessoa com deficiência física6 6 Apresento como consequência de surtos irreversíveis, provocados pela esclerose múltipla, a monoparesia crural à direita, resultando um déficit de força muscular no membro inferior direito, além de alteração da sensibilidade tátil desse membro. Por isso, passo a ser inserida no grupo categorizado: pessoas com deficiência. - no meu caso, ocasionada pela esclerose múltipla - ou como um infortúnio, uma espécie de “castigo divino” por não ter tido merecimento a uma vida “normal” e sem problema. O “problema”, afinal, não sou eu e muito menos está em mim, mas sim se encontra na maneira em que a normalidade é construída para criar o “problema” da pessoa com deficiência (Davis, 2006DAVIS, L. J. (ed.). The disability studies reader. New York: Taylor & Francis, 2006.). As estruturas sociais têm um papel crucial nesse sentido, pois é responsabilidade das estruturas pouco adaptadas às diferenças corporais que a reprodução do capacitismo ocorre cotidianamente. Do modelo social, desse modo, pode-se dizer que “[…] não se foca nas limitações funcionais oriundas de deficiência, mas sim a concebe como o resultado das interações pessoais, ambientais e sociais da pessoa com seu entorno” (Mello, 2014MELLO, A. G. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma analise antropológica de experiências, narrativas e observações sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014., p. 27).

A condição da deficiência e da doença crônica é marcada pelo estigma, reflexo também de outros marcadores sociais que porventura podem acentuar os estranhamentos e discriminações a esse “outro”, que, além da condição de deficiência ou doença - vale ressaltar que são conceitos diferentes -, também é marcado por particularidades de raça, gênero, classe, religião, orientação sexual, que não podem ser desconsideradas no processo de análise.

Enquanto mulher amazônida, não posso deixar de me referir também ao lugar geográfico onde me encontro. Morar no Norte do país identifica-me socialmente e politicamente, fazendo parte assim do meu processo de vivência e resistência aos sistemas de dominação colonialistas, ainda mais excludentes para quem não reside nos eixos centrais do Sul/Sudeste. Considero que entender as desigualdades existentes entre as regiões brasileiras é importante para visualizar as dinâmicas que alocam recursos econômicos por meio das configurações espaciais e desenvolvimentistas demonstradas por toda a colonialidade do poder (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2005.). O capacitismo toma corpo, junto com o racismo, o sexismo e o próprio preconceito geográfico, nas elaborações colonialistas que apagam histórias e modos de vida próprios em decorrência de lógicas de poder que subalternizam sujeitos e deslegitimam saberes, vivências e singularidades.

O silenciamento é uma tática usada pelos colonizadores para nos invisibilizar. Usar a nossa voz para romper com as imposições faz parte da luta diária por afirmação social. Justamente é essa trajetória de dores, perseverança e resiliência que marca a minha vida e de tantas outras pessoas, sejam mulheres ou homens, que escolheram enfrentar os temores de uma vida cronicamente incurável a ter que silenciar suas próprias vozes, sentimentos, e sim decidir encarar a imprevisibilidade ao abster-se da resignação.

Considerações finais

Diante do exposto, podemos verificar, a partir do relato das nossas experiências, o quanto a nossa caminhada é repleta de lutas, resistência e agencialismos na busca por direitos, afirmação social e representatividade, esta última realizada, inclusive, através do processo de escrita deste trabalho e nossos marcadores sociais identitários enquanto mulheres amazônidas, nortistas e com deficiência. Alinhadas a Anzaldúa et al. (2000ANZALDÚA, G. et al. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000., p. 234), acreditamos que “escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita revela: os medos, as raivas, a força de uma mulher sob uma opressão tripla ou quádrupla. Porém, neste ato reside nossa sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida.”

É através do exercício reflexivo proveniente da escrita autoetnográfica, focada nas nossas biografias, que sobrepujamos narrativas hegemônicas que não reconhecem nossas diferenças e multiplicidades. Isso ocorre por meio de compreensões sociais que leitores e leitoras passam a adquirir ao ter acesso à nossa biografia contada por nós mesmas, e isso significa que passamos a ser vistas não apenas como “objeto de pesquisa”, mas como sujeitas que escrevem e reinscrevem suas próprias histórias, ou seja, sujeitas políticas. Mesmo que, para isso, façamos retornos às nossas histórias, nos encontremos com dores, áreas sensíveis incicatrizáveis, um exercício autoetnográfico para retirar do individualismo as experiências capacitistas e entender nossas histórias como reflexo dessa opressão.

Refletimos nas águas dos rios da Amazônia, pertencemos a esse território com nossos corpos com deficiência e entendemos que estar localizada aqui é estar num lugar de profundo silenciamento, corpos que margeiam as narrativas hegemônicas, na beira dos rios da Amazônia. Mesmo quando esses rios não são evidenciados em palavras, sabemos que estes dois corpos são construídos subjetivamente por essas águas, sem que, necessariamente, as águas estejam ditas em palavras. Nossos corpos-beira-de-rio são extensão deste, não é um corpo que separa sujeito/natureza, nossos corpos com deficiência são corpos líquidos afluentes das águas que nos permeiam, o rio está na nossa existência desde o tutano. É nesse sentido que a autoetnografia nos permite romper com o silenciamento e movimentar as beiras e margens. Movimentemos!

Talvez seja isso, Há um lugar que o náufrago não é fraqueza No fundo do coração estão carinhosamente naufragados bons sentimentos No fundo, no fundo naufraga a verdade O náufrago das boas relações profundas Talvez, problema mesmo, seja estar na superfície. (Keké, 2020)

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  • 1
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  • 2
    O território do Município de Gurupá está localizado no nordeste do estado do Pará, na zona fisiográfica do Marajó e Ilhas.
  • 3
    Palavra usada no Norte, sinônimo de boiar.
  • 4
    Segundo o dicionário, “gauche” é um indivíduo tímido, incapaz, sem muita aptidão.
  • 5
    Uma doença desmielinizante é qualquer doença no cérebro ou na medula em que ocorra uma alteração do tipo inflamação na bainha de mielina dos nervos, interrompendo a condução dos impulsos elétricos.
  • 6
    Apresento como consequência de surtos irreversíveis, provocados pela esclerose múltipla, a monoparesia crural à direita, resultando um déficit de força muscular no membro inferior direito, além de alteração da sensibilidade tátil desse membro. Por isso, passo a ser inserida no grupo categorizado: pessoas com deficiência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2021
  • Aceito
    27 Jun 2022
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