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A política cultural da saúde transgênero: considerações a partir do encontro entre o ativismo trans e o teatro

The cultural politics of transgender health: considerations from the encounter between trans activism and theatre

Resumo

Neste trabalho analiso a formação de uma política cultural no seio da mobilização social em torno da saúde transgênero no Brasil. Através da etnografia da performance e reverberações da peça teatral Histórias compartilhadas durante a 11ª edição do festival For Rainbow em 2017 no centro cultural Dragão do Mar, em Fortaleza, Ceará, procuro compreender como tem se formado uma representação social de pessoas trans e travestis em prol do reclame de direitos como resultado de uma performance advinda de formas expressivas diversas. A peça teatral e sua animação sociopolítica foram constituídas como rituais de liminaridade cujo potencial de articulação voltou-se à mudança social. Este artigo insere-se em pesquisa etnográfica mais ampla desenvolvida em cenas hospitalares e de ativismo no Ceará entre os anos de 2017 e 2019.

Palavras-chave:
teatro; saúde trans; arte; cultura

Abstract

In this work I analyse the formation of a cultural policy within the social mobilization around transgender health in Brazil. Through the ethnography of the preparation, performance, and reverberations of the play Histórias compartilhadas during the 11th edition of the festival For Rainbow in 2017 at the Dragão do Mar cultural center, in Fortaleza, Ceará, I try to understand how a social representation of travesti and trans people has been formed in favor of the claim of rights as a result of a performance in different expressive ways. The theatrical play and its socio-political animation were constituted as liminality rituals whose potential for articulation turned to social change. This article is part of a broader ethnographic research developed in hospital and activism scenes in Ceará between 2017 and 2019.

Keywords:
theatre; transgender health; art; culture

Introdução1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes - Código de Financiamento 001).

A arte não deve desvairar-se no doido infinito das concepções ideais, mas identificar-se com o fundo das massas; copiar, acompanhar o povo em seus diversos movimentos, nos vários modos da sua atividade.

Machado de Assis (2008ASSIS, M. de. Ideias sobre o teatro. In: ASSIS, M. de. Obra completa em quatro volumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 3, p. 1026-1035., p. 1026)

O Centro Dragão do Mar, ou apenas Dragão do Mar, como é conhecido o principal centro de arte e cultura do Ceará, recebia, em novembro 2017, a 11ª edição do For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero. Localizado na Praia de Iracema, antigo cenário portuário do estado, o complexo é composto por multigalerias, biblioteca, planetário, cinema e teatro, além de uma praça, um auditório e um anfiteatro. Acompanhado dos ativistas trans Januário, Luana e Roberto, eu havia acabado de entrar no prédio pela rua Bóris naquele fim de tarde de 10 de novembro, enquanto via os corredores dos andares do lugar se encherem de visitantes, casais de diferentes orientações sexuais, crianças, adolescentes, grupos de estudantes fardados, drag queens montadas, rapazes com roupas e maquiagens tidas como femininas, entre outros. Nesse dia, e no seguinte, as atividades encerrar-se-iam com shows em palcos montados à rua, ao lado do complexo, reunindo ainda milhares de ouvintes para dançar forró e músicas pop. A atmosfera, visualmente colorida, incutia um clima de festividade e celebração que não parecia representar uma região de tão disseminada violência contra pessoas trans e travestis.

Eu estava acompanhado, na ocasião, ativistas pessoas trans e travestis2 2 Por pessoas trans e travestis compreendo todos os sujeitos que vivenciam, em alguma extensão, uma mudança de gênero relativa a um trânsito entre posições sociais de mulher e de homem que se baseiam em construir outros projetos corporais, identidades e lugares institucionais divergentes daqueles assinalados originalmente ao nascimento, o que, por sua vez, impacta todas as relações sociais e reconhecimento político no qual estejam enredados. Ao invés de centralizar tal trânsito em termos de identidade, concebo-o a partir da categoria de pessoa, a qual estabelece uma noção de Eu específica ao Ocidente (Mauss, 2003) que orienta, entre outros elementos próprios, o processo de identificação de si mesmo num dado contexto social e político. Acompanho ainda as tensões provocadas por Berenice Bento (2016), segundo as quais se entende que se referir a “pessoa trans” de modo isolado não cobre as diferenças dinamizadas por travestis brasileiras. que desenvolviam ações coletivas a partir de uma associação então emergente, todos eles e elas muito jovens, entre 18 e 25 anos de idade. Fora convidado, mais cedo, para assistir a um espetáculo teatral que se mostraria simbólica e politicamente significativo para o ativismo em torno da população LGBT,3 3 Utilizo-me da sigla LGBT, um acrônimo que faz referência a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, devido a sua construção social enquanto uma categoria de farto manejo no campo etnográfico. Isso não significa que eu não reconheça, nem que os ativistas que acompanhei não reflitam, sobre suas limitações. No âmbito do ativismo em torno da diversidade sexual e de gênero as discussões sobre a inabilidade da sigla de representar todos os grupos e identidades é apontada com certo vigor político, mas as táticas para sua superação esbarram em alternativas viáveis (aumento de letras na sigla, por exemplo). Na teoria antropológica tem se apontado para as dificuldades de se encontrar uma categoria global eficaz; do mesmo modo que tem se indicado a necessidade etnográfica de sua definição, sempre devedora do contexto. Nesse sentido, sempre que utilizar da sigla “LGBT” estou fazendo referência a um termo local que circunscreve uma comunidade imaginada, como apontou Silvia Aguião (2018), e não a uma categoria de análise ou descritiva. Como expressão descritiva recorro a “diversidade sexual e de gênero”, como já foi indicado na antropologia diante da implosão da homossexualidade como categoria capaz de reunir todas as experiências e pessoas desse espectro (Valle; Simões, 2015). e particularmente trans, na região. Tratava-se de um monólogo teatral chamado Histórias compartilhadas, o qual versava sobre a relação complicada entre pessoas trans e travestis e os serviços e profissionais de saúde e justiça no Brasil. Era considerado, principalmente, o suporte estatal para a transição de gênero4 4 Enquanto transição de gênero faço referência a uma trajetória individual vivida coletivamente de mudança entre posições sociais de homem para mulher ou vice-versa (Connell, 2012), e até mesmo de processos que não encontram um objetivo final delineado numa posição única. Esse processo pode ser vivido como um rito de passagem, de acordo com Arnold Van Gennep (2013), como apontou Anne Bolin (1983), ou como uma trajetória pessoal socialmente vivida em termos institucionais e de projeto corporal. Nessa experiência, é preponderante uma certa centralidade do corpo como objeto de engajamento político, identitário e social, mesmo que não seja possível inferir uma única maneira de fazê-lo. Durante o trabalho de campo, tive pouco contato com pessoas que constroem sua noção de Eu enquanto “não binário” ou de “instabilidade permanente” no campo das relações de gênero. Por isso, minhas análises aqui estão mais concentradas em experiências sociais de sujeitos que buscavam se localizar numa única posição de gênero (mesmo que esta seja travesti, homem ou mulher trans). e suas consequências para o reconhecimento e garantia da cidadania. O ator em cena, que começava a ler um livro sentado numa cadeira alta, havia coletado histórias trans, usando-se de um amplo e diversificado conjunto de recursos para a sua manifestação artística naquele pequeno palco. A sensibilidade dos espectadores estava sendo aguçada por mecanismos muito díspares entre si: trabalho corporal, vídeos exibidos em televisores, projetores, filmadoras, trilhas sonoras, microfones entre falas e silêncios. Essa peça de teatro, contudo, não foi o único objeto de engajamento artístico no campo do ativismo trans na cidade de Fortaleza.

Ao longo do meu trabalho de campo na cidade, pude observar diversas iniciativas nesse sentido, o que despertou minha atenção para compreendê-las de maneira antropológica. Argumentarei que essa peça integra um cenário de produção artística maior composto por filmes, exposições de artes plásticas, museológicas e fotográficas, escrita de poemas e de letras de música, entonações de canções e publicações de livros autobiográficos. Todos esses produtos integram-se como num quadro que não se arrefece numa homogeneidade, mas se apresenta em multiplicidade, tanto estética como simbólica. Essa vivificação heterogênea é animada grandemente por se conectar à dinâmica política que tem objetivado demarcar a existência social de pessoas que transicionam entre identidades de gênero e entre projetos corporais. Procuro desenhar alguns dos contornos e direcionamentos desse cenário. Assim, centro-me, neste artigo, em uma análise e em uma descrição etnográfica da produção, performance e das reverberações políticas da peça teatral5 5 Nos estudos teatrais ou das artes da performance e na própria prática cênica, peça teatral nem sempre pode ser o termo privilegiado por diretores, atores/atrizes, produtores, entre outros, ao se descrever o conjunto de cenas que tomarão/tomaram os palcos/espaço de atuação. “Experimento cênico” (Alexandre, 2017), “peça documental” (Dawson, 1999) - e sua variação, “documento cênico” - são algumas outras categorias que diversificam a nomeação de um exemplar de expressão do teatro. Isso se deve a diferentes visões sobre a ideia de representação, promoção de ficção ou não ficção, métodos na construção de informações-base, abordagens cênicas e, também, a forma de relacionamento com o público em termos de separação, aproximação ou continuidade performática. Refiro-me a esse monólogo enquanto peça teatral porque essa expressão unia os diferentes grupos e questões que ela suscitava, justamente por ser uma categoria de uso comum, tanto nas suas reverberações políticas e simbólicas, como no trabalho expressivo que o concebeu. Nesse sentido, essa definição busca captar as variadas formas que o espetáculo assumiu socialmente, e não busca contradizer a ideia de “documento cênico” que o grupo teatral que o montou por vezes apresentava à imprensa, já que esse espetáculo era visto como um agregado de histórias reais a partir do cotidiano transposto ao teatro. Algo que não fazia uma oposição entre documento cênico e peça teatral, justamente porque procurava, numa visão brechtiana, fazer os espectadores refletirem sobre suas vidas e as daqueles retratados no espetáculo. Histórias compartilhadas, produzida pelo Outro Grupo de Teatro, com direção de Eduardo Bruno, técnica de Tavares Neto e interpretação de Ari Areia, levando-me, com isso, a uma compreensão do engajamento político trans em torno da atenção à saúde.

Embora mantenha um diálogo com os estudos teatrais e das artes da performance, não procuro contribuir para uma teoria do teatro ou do performático, e sim para uma teoria antropológica da arte enquanto política a partir do ativismo trans. Nesse sentido, é necessário, para situar holisticamente o teatro, observar o processo criativo de atores e de atrizes em sua rede de relações, saberes e maneiras de pensar e de adaptar que traz o espetáculo a lume, como indica Eugenio Barba (1994)BARBA, E. The paper canoe: a guide to theatre anthropology. New York: Routledge, 1994.. O autor, também diretor e ator, procurava criticar um certo “etnocentrismo teatral” que incutia o resultado - a peça encenada - como um produto cultural dissociado da sua criatividade original. Não procuro reproduzir tal abordagem, e sim apenas extrair dela a ideia de que o ponto de vista do espectador não deve ser considerado sozinho. Isto é, não passo a nenhum estudo do comportamento pré-expressivo do trabalho de representação organizada, como nomeia Barba, mas incluo na análise o processo criativo.

Como numa ode à arte como política - e, portanto, à sua dissociação -, busco demonstrar neste artigo como se tem erigido um engajamento para a formação de uma política cultural difusa enquanto um dos trabalhos da mobilização social em torno da saúde transgênero6 6 Como saúde transgênero, ou simplesmente saúde trans, compreendo todo um campo social composto por diferentes profissionais e gestores em saúde - e pesquisadores - e animado por categorias sociais e noções não restritas ao corpo sexuado que podem assumir relações concorrentes e/ou complementares. Com isso, esses diferentes agentes sociais formalizam serviços e/ou práticas de (auto)atenção em saúde que objetivam oferecer terapêuticas biomédicas clínicas e/ou cirúrgicas a pessoas que vivenciam processos de transição de gênero e seu posterior acompanhamento (Vieira, F., 2020). Algo que não exclui outras formas fora do escopo biomédico de se pensar o corpo, a sua interpretação, explicação e abordagem. no Brasil. Parto etnograficamente de Fortaleza, no Ceará, mas tal universo é observável em todo o país, sendo algo mais geral e abrangente do ativismo trans presente não apenas em eventos culturais, mas em congressos acadêmicos e em reuniões político-administrativas com gestores públicos. Cabe já pontuar, contudo, que a expressão se refere, grosso modo, a uma orientação seguida para fomentar uma gama de atividades de cunho coletivo e individual de criação de objetos de diferentes formas expressivas capazes de cristalizar ou de materializar intenções sob o vivido em sua dimensão simbólica. A expressão faz jus ao uso comum de cultura e de produto cultural, tudo que procura representar hábitos e modos de vida através de qualquer forma expressiva em sua infinita variedade artística. Assim, não estou aludindo exatamente ao estudo das políticas públicas que tomam a cultura - ou a “cultura LGBT” - como objeto de ação estatal para o investimento e organização institucional, muito embora a peça teatral e muitos dos produtos culturais observados em campo tenham sido executados sob o fomento do governo do estado do Ceará e/ou do governo federal. Não obstante, está no meu horizonte analítico que esse cenário cultural se reproduz dentro dos efeitos que as políticas públicas impõem, como já indicados por Antonio Souza Lima e João Castro (2015)SOUZA LIMA, A. C. de; CASTRO, J. P. M. Notas para uma abordagem antropológica da(s) política(s) pública(s). Revista Anthropológicas, Recife, v. 26, n. 2, p. 17-54, 2015. ao considerarem as práticas que constroem o Estado. Antes, a política cultural difusa que observei trata-se de uma orientação política pouco organizada, mas que guia de alguma maneira atividades e gêneros artísticos num escopo mais geral de formação social.

Apesar de o meu foco recair majoritariamente sobre o teatro, recorrerei ao longo do trabalho a considerações acerca de outros formatos expressivos de artistas trans e não trans que comungam entre si do mesmo objetivo estético-político: a liberação trans enquanto acesso universal à cidadania e à proteção contra a violência a despeito e na forma da diferença que encampam, considerando o corpo sexuado e as relações de gênero como umbilicalmente constituídos por questões étnico-raciais, de classe, de origem, entre outras, que não somente “marcam”, mas formalizam-se como socialidades incorporadas.

Essa dinâmica política e artística trans na cena cearense se dava num contexto nacional de particular agitação social, principalmente devido às tensões crescentes provocadas pelas reações às propostas de diversidade e igualdade de gênero. Isto é, recrudescia um neoconservadorismo no país por meio de posturas, práticas e discursos contra quaisquer menções públicas, políticas e profissionais relativas a temáticas de gênero e sexualidade (Machado, 2016MACHADO, L. Z. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado: contextos e incertezas. Cadernos Pagu, Campinas, n. 47, p. 5-40, 2016.), o que daria espaço, junto a outros fatores, à destituição da presidenta Dilma Rousseff (PT) e a posterior ascensão de “novos” grupos e políticos conservadores, dentre eles, o mais notável, Jair Bolsonaro (PSL), que seria eleito presidente da República em 2018 (Anderson, P., 2020ANDERSON, P. Brasil à parte: 1964-2019. São Paulo: Boitempo, 2020.). Nesse horizonte, a peça teatral a que me refiro trazia dois focos de crítica: o modus operandi das instituições jurídicas e médicas, personificadas em seus profissionais diante de pessoas que buscavam transicionar de gênero ou a viver em fluxo constante, cuja orientação epistemológica era psicopatologizante. Algo que vem sendo apontado amplamente por diferentes pesquisas antropológicas e sociológicas em várias regiões do país (Almeida, 2012ALMEIDA, G. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 513-523, 2012.; Bento, 2006BENTO, B. A (re)invenção do corpo: gênero e sexualidades na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.; Costa Novo, 2021COSTA NOVO, A. L. “Mãe, Maria nunca existiu! Me chama de João?” Uma análise etnográfica das relações de família e medicalização nas experiências de “crianças trans”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 27, n. 60, p. 317-349, maio/ago. 2021.; Vieira, F., 2020VIEIRA, F. C. A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.; Vieira; Porto, 2019VIEIRA, F. C.; PORTO, R. M. “Fazer emergir o masculino”: noções de “terapia” e patologização na hormonização de homens trans. Cadernos Pagu, Campinas, n. 55, e195516, 2019.).

A nível nacional, até aquele momento, o Supremo Tribunal Federal (STF) não havia promulgado sua tese geral acerca da mudança autônoma de prenome e sexo no registro civil. A análise, em 2018, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275 impactaria consideravelmente o ativismo trans em torno da nomeação das pessoas quanto ao direito constitucional e registral, entretanto, ainda não estávamos sob os efeitos burocráticos que se desenvolveriam posteriormente. Em termos locais, os ativismos trans e de aliados encampavam a necessidade da instalação de um ambulatório do Processo Transexualizador a partir do Sistema Único de Saúde (SUS) que viria a ser oficializado no início de 2021, mas que operava autonomamente desde 2019. Nesse sentido, o documento cênico do Outro Grupo de Teatro vislumbrava essas questões de maneira mais contundente, apontando para uma generalização acerca da necessidade de se trabalhar ativamente para gerar mudanças sociais a níveis não apenas institucionais, mas cotidianos, coletivos e individuais em respeito à imagem da pessoa trans como sujeito universal, como mostrava a menção de histórias de nacionalidades diferentes organizadas em relação ao adoecimento e sofrimento no processo de transição de gênero.

Parece incomum se referir ao teatro a fim de compreender serviços de atenção à saúde ou enquanto mobilização social para sua idealização e construção burocrática, física e financeira. Contudo, se nos permitirmos olhar para a política como uma ação coletiva que não se restringe à oficialidade estatal, podemos aprender, como indicam diversos cientistas sociais, que a arte não apenas é socialmente delineada (Becker, 1977BECKER, H. S. Arte como ação coletiva. In: BECKER, H. S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 205-222.; Velho, 2006VELHO, G. Autoria e criação artística. In: SANTOS, G.; VELHO, G. (org.). Artifícios & artefatos: entre o literário e o antropológico. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.) e culturalmente organizada (Geertz, 2001GEERTZ, C. A arte como um sistema cultural. In: GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 142-81.), com condições de possibilidades para o destaque de seus artistas (Elias, 1995ELIAS, N. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.), ela também é politicamente significante em sua técnica e circulação (Benjamin, 1994BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.) e simbolicamente constituída ao lado de eventos sociais outros como performance que continua e modifica o cotidiano (Taylor, 2013TAYLOR, D. Traduzindo performance. In: DAWSEY, J. et al. (org.). Antropologia e performance: ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 9-16.) e capaz de intervir e modificar a realidade (Raposo, 2021RAPOSO, P. Antropologias, artes e política: engajamentos e encontros. Iluminuras, Porto Alegre, v. 22, n. 57, p. 19-32, outubro, 2021.); de modo que não é de se estranhar que se torne uma pedra angular de movimentos sociais (Grunvald, 2019GRUNVALD, V. Lâmpadas, corpos e cidades: reflexões acadêmico-ativistas sobre arte, dissidência e a ocupação do espaço público. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 25, n. 55, p. 263-290, set./dez. 2019.) e ferramenta de visibilização de corporalidades dissidentes (Melo; Ribeiro, 2015MELO, C. O.; RIBEIRO, R. A performance arte que virou polvo: flutuando nas águas das artes em corporalidades híbridas e ininteligíveis. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 239-248, jan./abr. 2015.). No caso particular do teatro, mas aplicável de algum modo a outras artes, fica explícita sua dinamização como um mecanismo de expressão, construção comunitária e resistência contra cenários de preconceito (Marra; Schanke, 2002MARRA, K.; SCHANKE, R. A. Introduction. In: MARRA, K.; SCHANKE, R. A. (ed.). Staging desire: queer readings of American theater history. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2002. p. 1-22.; Newton, 1979NEWTON, E. Mother camp: female impersonators in America. Chicago: University of Chicago Press, 1979.; Savran, 2003SAVRAN, D. A queer sort of materialism: recontextualizing American theater. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2003.), portanto, de homofobia e transfobia. Assim, como objeto de estudos antropológicos, teatrais e da performance, suas dimensões pré-expressivas, performáticas e consequenciais atrelam em difícil dissociação arte, política e estética corporalizada ao unir dança/movimentos, visões/engajamento sobre responsabilidades políticas e relações intersubjetivas (Barba, 2021BARBA, E. The two lungs of the actor. Introduction to Ana Correa’s work demonstration. Journal of Theatre Anthropology, Holstebro, n. 1, p. 223-234, Mar. 2021.; Carvalhaes, 2013CARVALHAES, A. G. Caminhos poéticos: traços de um Renato Cohen em um teatro transgressivo. In: DAWSEY, J. et al. (org.). Antropologia e performance: ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 411-424.; Müller, 2013MÜLLER, R. P. Mira, chica…: um estudo sobre arte da performance. In: DAWSEY, J. et al. (org.). Antropologia e performance: ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 361-372.) e interpretação (Brecht, 1957BRECHT, B. Estudos sobre teatro: para uma arte dramática não-aristotélica. Lisboa: Portugália, 1957.; Ruffini, 2021RUFFINI, F. Theatre anthropology. Journal of Theatre Anthropology, Holstebro, v. 1, p. 71-83, 2021.; Turner, V., 1982TURNER, V. Acting in everyday life and everyday life in acting. In: TURNER, V. From ritual to theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ Publications, 1982. p. 102-123.) no escopo da performance. Doutro modo, é crescente a ênfase dada a diferentes formas de ativismo para promover a importância da atenção à saúde trans - como é o caso dos zines produzidos por coletivos na Europa para disseminar informações e defender uma forma de saúde autônoma sem o controle estatal (Raha, 2021RAHA, N. Embodying autonomous trans health care in zines. TSQ: transgender studies quaterly, [ s. l. ], v. 8, n. 2, May 2021.).

Nesse sentido, à sua própria maneira, havia então, subjacente à criação artística do grupo de teatro e do engajamento militante que observei, a noção sociológica de que seria necessário não apenas convencer o gestor e o profissional do direito e da saúde, seria imprescindível modificar mentes, procurar atingir racionalidades que até ali diziam que a vivência transgênero era um deslocamento insuperável e adoecedor, porque sabiam que tais mentalidades organizavam as restrições que viviam. Na verdade, como reclamavam os(as) ativistas e expressavam-se em suas obras, das quais a peça teatral é um exemplo importante, o adoecimento era resultado do tratamento - e/ou da sua ausência - que recebiam e não dos projetos de transição. Ora, neste artigo não estou interessado na arte teatral como expressão da beleza ou do humano como valor regimental do mundo, mas como registro de ideias, ações e (contra)movimentos políticos, sociais e culturais que, lidando com o humano, inscreve-se como pivô de eventos e janelas para observar práticas políticas e a formação da pessoa dentro de processos criativos de expressão artística.

Etnografia, materiais e método

Os dados empíricos nos quais me baseio para a escrita deste trabalho são provenientes de dois materiais diferentes. O primeiro refere-se a observações etnográficas do engajamento de ativistas trans com o teatro e à performance do monólogo Histórias compartilhadas, peça produzida pelo Outro Grupo de Teatro proveniente de Fortaleza, no Ceará, quando da sua apresentação no palco do Dragão do Mar durante a 11ª edição do Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero - For Rainbow. Desde que começou a ser produzido, a partir de sua décima edição, no Dragão do Mar, o festival alcançou uma projeção inédita. Em seus comunicados oficiais, a sua organização se propõe ao “combate ao preconceito e à discriminação”, e “busca fortalecer a cultura LGBT em Fortaleza e celebrar a diversidade que faz do Ceará um lugar plural” (For Rainbow, 2016FOR RAINBOW. Início. For Rainbow, Fortaleza, 19 nov. 2016. Disponível em: Disponível em: https://forrainbow.com.br . Acesso em: 20 jan. 2019.
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). O objetivo, nesse sentido, visava a construção da região como uma forte atmosfera de defesa de direitos. Através de um exame das edições anteriores se percebe que, embora produtos com temática trans fossem recorrentes, o personagem homem trans não figurava de maneira contínua nos produtos do festival.7 7 Em 2011, na sua quinta edição, o curta-metragem pernambucano Entre lugares: a invisibilidade do homem trans apresentava a história pessoal de dois ativistas. Com 12 minutos, dirigido por Lucas Patrese, o filme trazia o argumento de que gênero e sexualidade eram temáticas diferentes, ao veicular que um dos personagens namorava uma travesti e o outro, um homem. Em 2016, na décima edição, o longa-metragem estadunidense O garoto real, direção de Saleece Haas, voltava a veicular a temática a partir da relação do protagonista e sua mãe durante a transição de gênero. Isso mudaria nessa 11ª edição quando a referida peça de teatro foi fortemente veiculada com a proposta de contar histórias de sofrimento.

Percebi que essa performance apresentou-se como uma excelente via de acesso para compreender a produção cultural que recebera atenção da política mobilizada por travestis, homens e mulheres trans. Compreendo-a enquanto uma apoteose de símbolos significativos para a região, um evento social com certa estrutura. Aproximo-me daquilo que Mariza Peirano (2002)PEIRANO, M. Rituais como estratégia analítica e abordagem etnográfica. In: PEIRANO, M. (org.). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: NuAP/UFRJ, 2002. p. 7-16. apontou acerca do estudo etnográfico dos rituais e dos eventos. Observo a peça de Ari Areia como um evento crítico que expôs - nas reverberações políticas, na produção e performance e entre espectadores - as tensões entre agenciamentos em torno da mudança social referente às relações de gênero e à heteronormatividade. Para a antropóloga, rituais se referem à ação social, em atos ou palavras ou em ambos, como no nosso caso, em que visões de mundo partilhadas circulam via linguagem. Assim, tais atos revelam aos(às) antropólogos(as) não apenas perspectivas/ideias de grupos sociais e de sujeitos, mas práticas que extrapolam o que se diz. Para os e as artistas, a peça teatral é um ritual de comunicação e de incorporação da crítica sobre o mundo social; para os ativistas, uma possibilidade de usar esse ato para sua política ao mesmo tempo que para sua satisfação estética; para todos aqueles que excedem esses grupos, esse teatro pode romper ou rompe desejadamente ou não uma certa ordem natural do que se entende pela vida coletiva e tudo aquilo que procura ser representado ou posto em diálogo dramatúrgico (o homem, a mulher, o sexo, etc.). Ao observar como tal performance de teatro une os grupos de maneira eloquente, a pesquisa etnográfica fornece a ferramenta para captar os imponderáveis que são daí suscitados.

Figura 1a
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

A segunda fonte empírica foi constituída pensando-se a repercussão da peça teatral. Inicialmente, entrevistei Ari Areia e depois passei ao levantamento e leitura de textos jornalísticos publicados em jornais cearenses sobre suas reverberações políticas e sociais. Foram dois os critérios de seleção desse material. Um seguiu, primordialmente, o maior peso de circulação local atribuído aos tabloides pelos próprios interlocutores quando discutíamos a respeito do impacto da performance de Ari Areia e do imbróglio e da perseguição que contra ele se instaurou entre políticos, jornalistas, religiosos e advogados. Já outro correspondeu ao período de 2015 até 2018, o que marcava o início da produção da peça e sua apresentação, a que eu assisti. Meu interesse em olhar para tais publicações populares estava em entender o debate público acerca da noção de transgênero/trans e como se impunham limites para sua livre reprodução social através da arte. Não realizo nenhum tipo de recenseamento ou mapeamento dessas matérias jornalísticas, mas sigo reportagens tornadas relevantes pelos colaboradores com os quais interagi. Não se trata de gerar uma imagem isolada da região, mas de associá-la aos debates nacionais em voga no período a nível nacional sobre a diversidade sexual e de gênero. Assim, os jornais considerados foram O Povo, Diário do Nordeste e Tribuna do Ceará. Dessa pesquisa tomei conhecimento da íntegra das reações de políticos eleitos e de profissionais do direito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) atuantes na região, as quais foram animadas em repúdio e escárnio à peça, ao seu conteúdo, forma e circulação.

Essa construção de dados faz parte de uma pesquisa de campo mais abrangente que se deu durante etnografia que realizei na capital do Ceará, Fortaleza, entre os anos de 2017 e 2019, tempo esse dividido entre visitas regulares e moradia contínua de um ano entre 2017 e 2018. Esse período de pesquisa foi imaginado incialmente para a confecção da minha tese de doutorado sobre saúde trans, política e biomedicina (Vieira, F., 2020VIEIRA, F. C. A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.), durante o qual convivi com artistas, ativistas, pacientes/usuários do SUS e profissionais de saúde (majoritariamente médicos e médicas e psicólogos e psicólogas) em clínicas, hospitais, abrigos, eventos políticos e no mais banal cotidiano de interlocutores, ao que se seguiram entrevistas de longa duração e análise de arquivos históricos e documentos estatais. Meu foco recaía especificamente no acesso de pessoas trans aos serviços de saúde e às estratégias empreendidas por pacientes e profissionais de saúde para criar um cenário legítimo com objetos, práticas, pessoas e discursos que chamei de campo social da saúde trans. Entretanto, boa parte dessas ações sociais se dava “fora” do que se poderia denominar “saúde”: fora dos corredores de hospitais, das salas de cirurgias e de atendimento e das filas para marcação de consultas. Assim, seguia a observar engajamentos em outros espaços sociais, como o da religião, do acesso à renda, da defesa de direitos ao registro civil, da comunhão de alimentação, bem como o da arte, objeto central deste artigo.

Com uma forte dimensão de atuação política de homens e mulheres trans e travestis, eu não poderia ignorar etnograficamente a criação artística que não apenas era estrategicamente encampada pelos ativistas em diferentes formatos, como invadia as situações como parte lúdica de tradução de uma ação coletiva. Ao longo de variadas e criativas formas expressivas em reuniões e eventos de militância, encontros com gestores e atividades recreativas, circulava entre nós uma performance artística que parecia falar de modo mais eloquente e visceral sobre o que se urgia sentir no cotidiano. Isso se tornou particularmente evidente para mim durante uma intervenção musical de homens trans ativistas em um evento alusivo às comemorações do Dia da Visibilidade Trans9 9 O Dia da Visibilidade Trans é comemorado no dia 29 de janeiro de cada ano, e tem sido marcado por atividades políticas, recreativas e informativas, organizadas tanto por grupos de ativismo como por setores estatais que se especializam na diversidade sexual e de gênero. realizado em janeiro de 2018, no pátio do casarão que abrigava o Centro de Referência Janaína Dutra,10 10 O Centro de Referência LGBT Janaína Dutra (CRJD) é um serviço da Prefeitura Municipal de Fortaleza, alocado na Coordenadoria da Diversidade Sexual que compõe a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social. no centro de Fortaleza. Naquele momento, rimas improvisadas deram forma a letras cantaroladas ao microfone com muito entusiasmo. No final do pequeno show que se instalou, enquanto alguns ativistas se dividiam tocando violão e tamborim, um outro ecoava o seguinte: “Sou trans e sou cidadão/ ninguém vai calar nossa voz/ todo lugar vai ter LGBT […]/ vai ter João com corpo de Maria […]/ sociedade transfóbica quer nos ensinar/ eu vou dizer pra vocês, quero respeito, quero amor…”11 11 Fragmento da letra de música sem título que foi cantada durante o evento organizado pelo Centro de Referência.

Quando terminávamos de cantar, ovacionávamos a apresentação e voltávamo-nos para a atividade de orientação para retificação do registro civil. Assim, parecia difícil separar de forma estanque não apenas militância e arte, mas também essas das ações estatais, algo que complexificava sobremaneira a política cultural que estava sendo produzida ali. O que eu percebia naquele momento, com ares de novidade relativa, era que havia um investimento largo, aliado a artistas cisgêneros, no âmbito da produção cultural, intentando-se uma mudança social que ajudasse a criar uma legitimidade para o que se estava reivindicando publicamente: o acesso a recursos, especialistas e estabelecimentos para uma transição de gênero em segurança (que não causasse sofrimento nem adoecimento), parte primordial no âmbito da proteção contra a violência a eles e elas direcionada. Essa percepção durante o trabalho de campo intensificou-se quando soube, segundo alguns ativistas, da existência do monólogo de Ari Areia e da sua exposição no teatro do Dragão do Mar.

Dessa maneira, ao partir prioritariamente da descrição de Histórias compartilhadas, pretendo corresponder à minha própria “experiência sensível”. Não formulo um retrato estático; por isso, posso relegar certos elementos a segundo plano e destacar outros. Tive alguma experiência prévia como ator, no início da minha vida adulta, quando participei de um pequeno grupo de teatro épico com um diálogo com o teatro de rua e de bonecos nos quais estavam envolvidos alguns dos meus amigos artistas do Vale do Açu, no Rio Grande do Norte. Assim, estive inserido desde o interior desse universo social particular como um praticante e não como um antropólogo. Assistir ao monólogo de Ari Areia e acompanhar a recepção que ele obteve trouxe-me muitas memórias desse período, algo que não trago para corroborar uma “descrição de um ator”, como se isso pudesse pretender maior fidedignidade - até porque há muito tempo que tomei outros rumos profissionais -, mas como um elemento biográfico que animou os meus sentidos durante o registro etnográfico. Portanto, esta etnografia é perpassada por essa memória que construí, gerando algumas referências que pude estabelecer ao considerar a importância dessa peça.

Histórias compartilhadas, ou dos corpos que não se bastam

O Dragão do Mar estava cheio de visitantes nesse dia. Atravessamos a ponte metálica de cor vermelha e descemos à praça. Alguns ambulantes vendiam objetos feitos à mão. Para não correr o risco de um maior atraso para assistir à peça, pegamos nossos ingressos gratuitos na bilheteria e entramos no teatro. Ao entrarmos, tenho a sensação que o monólogo que iremos assistir começa antes de começar. Avistei uma pequena câmera filmadora num tripé posicionada para a plateia desde o placo, e um pequeno televisor de tubo a cores projetava nossas imagens. O ator, vestindo um terno cinza, sentava-se numa cadeira de assento alto modelando pacientemente um boneco de massa de cor laranja. Após alguns minutos os alto-falantes do teatro começam a reproduzir um áudio diferente das imagens; é um rapaz falando sobre seu processo de transição de gênero. Eu reconheço sua voz, fico surpreso porque é um dos interlocutores dessa pesquisa. Ele não está conosco nesse momento, mas sua lembrança é ativada entre nós quando trocamos olhares. Faz quase dez minutos, então o ator se levanta e coloca o boneco sobre a cadeira, o qual, como uma pessoa, parece agora esperar algo acontecer. A frente do palco está iluminada e seu fundo permanece escuro. Com aquela câmera na mão, o personagem-ator continua a filmar a plateia enquanto fala sobre as dificuldades de aceitar a si mesmo. Um discurso se desenrola sobre o processo de transicionar, a sua necessidade frente a uma angústia. Ele alterna a filmadora para o próprio rosto, enquanto a sua imagem também é reproduzida na televisão. A fala agora enfatiza que a medicina e o direito através dos médicos e dos juízes tentam demarcar quem é trans por meio de uma “autorização”. “Mas isso não deveria ser assim”, argumenta. “As pessoas deveriam ser livres!” Menções aos corpos desviantes que ficam entre o homem e a mulher se materializam por alguns minutos antes de um vídeo ser projetado no fundo do palco. Passamos a assistir a um vídeo pornô no qual o famoso pioneiro ator trans Buck Angel faz sexo com uma atriz travesti.

Enquanto assistimos ao filme pornô, o personagem da peça tira toda a sua roupa. Ele está completamente nu, mas não por muito tempo: com uma fita branca, um esparadrapo que corta com as próprias mãos, ele coloca seu pênis para trás/baixo do seu corpo, reproduzindo algo similar à prática comum entre travestis, transformistas e mulheres trans para esconder o falo e reproduzir uma vagina aparente - ou, como chamam também travestis, transformistas, drag queens e gays, a prática de “aquendar a neca”12 12 Segundo Joseylson dos Santos (2012, p. 119), que estudou a prática de se montar como drag queen/transformista em Natal, Rio Grande do Norte: “‘Aquendar a neca’ é a forma de esconder a genitália: os testículos são posicionados na região pubiana. Depois o pênis é puxado para trás e preso com adesivos (Emplastro Sabiá) ou com calcinhas sobrepostas bem justas.” (Santos, 2012SANTOS, J. F. Femininos de montar: uma etnografia sobre experiências de gênero entre drag queens. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.). Nesse momento, duas mulheres se levantam da plateia e saem, possivelmente incomodadas. Eu sentia um pouco de animação e surpresa. Por um momento, vemos o ator no mesmo lugar da projeção do vídeo, a qual é inscrita em seu próprio corpo como parte da tela que recebe as imagens. Continuando sem falar, o personagem posiciona no canto da frente do palco uma mesinha alta com material cirúrgico. O vídeo pornográfico chega ao seu fim. A câmera que ele usava no começo do espetáculo é posicionada por ele mesmo para filmá-lo. Ele continua seminu, apenas seu pênis some. Abrindo alguns pacotes de gaze, ele levanta uma agulha ligada a uma seringa e abre um acesso venoso em seu braço direito. Quando ele volta para trás, uma cadeira de plástico com apoio para as costas apresenta um crucifixo. Enquanto tudo isso acontece uma trilha sonora nos acompanha, levando-nos a deter maior atenção. Nenhuma fala ainda.

O sangue do seu braço agora desliza pelo Jesus crucificado, pingando desde seu braço cortado pela agulha e marcado por um garrote de plástico translúcido. A cadeira de plástico que segura o enorme crucifixo está agora pontilhada de vermelho. Eu estou completamente chocado com o que vejo, e olho para os ativistas ao meu lado que olham tudo com muita compenetração. Tentando uma interpretação, imagino que a figura do Jesus em sangue estava sendo apresentada para comparar o sofrimento das pessoas trans com o dele, numa ode ao que o corpo sente na experiência que os sujeitos trans vivenciam. Jesus sofrera também porque não o entenderam. O corpo é levado ao extremo e essa imagem sacra une os dois sofrimentos imaginados e representados naquele palco.

Ao limpar seu braço, a cadeira e o Jesus permanecendo ao fundo, ele vem para o centro do palco para segurar com dificuldade um garrafão cheio de água. Com isso, começa um discurso outra vez. Tudo está escurecido à meia-luz. O peso do garrafão parece incomodá-lo numa analogia corporal à agonia. Suas expressões faciais vão ficando crescentemente alarmantes. O peso representa a sociedade, “os outros”, cochichava um interlocutor ao meu lado. Na sua fala, o sofrimento, mais uma vez, é a figura norteadora. Lamenta-se. Chama-se Riley e não Jéssica; era difícil ser assim, complementava. É a única vez que o ator encarna um personagem durante a peça, na qual ele se porta, na maior parte do tempo, como um contador de história. Divergindo seus olhares em direções diferentes a tensão aumenta. O seu ânimo fica mais energético depois de alguns minutos. O garrafão cai estrepitosamente no chão de madeira do palco, rolando até a sua borda e derramando água para todos os lados, inclusive no carpete da plateia.

Nesse momento eu penso, como ele conseguiu autorização para molhar o teatro? Sem me demorar muito nas minhas reações paralelas, a peça novamente capta minha atenção quando o ator, ainda seminu, passa de imóvel em sofrimento a limpar a água do palco com a própria roupa de que havia se despido. O silêncio entre os espectadores é inquebrável, e eu olho para as feições daqueles que estão ao meu lado e as vejo paralisadas. Nosso ator então torce a roupa para colocar novamente a água no garrafão esvaziado, com o auxílio de um funil. Com a roupa espremida, ele a veste, ainda sem falar nada. Vestindo seu terno molhado, o ator segura a sua câmera na mão e vai para trás do palco. Outro vídeo começa a ser projetado no mesmo lugar que a cena pornô de Buck Angel. Trata-se de um jovem rapaz que lê uma carta que ele mesmo escrevera, contando seu processo de intensa dúvida, confusão e ansiedade com o início de sua percepção sobre ser um homem e não uma mulher.

O espetáculo se encerra com o ator falando em um microfone. Ele está no final do palco, no canto esquerdo, e sua imagem aparece no telão. Não vejo sua figura presencialmente. Ele explica, desde a lateral da coxia, como Riley era um homem trans estadunidense que se suicidou. O relato memorialístico de uma tragédia é materializado com a leitura de sua carta escrita originalmente em inglês, mas traduzida pelo ator. A história acaba focalizando em como alguém se reposiciona com outro eu real, diferentemente do que as pessoas à sua volta esperam. Por isso, sofre uma continuada desvinculação daquilo que apresenta como novo, podendo chegar à morte caso não encontre suporte. A peça tem esse caráter recortado, cheio de esquetes que se complementam como um quebra-cabeça confuso. Como na minha descrição, o propósito da história parece ter sido o de performar teatralmente as emoções em conflitos, a coragem da autoafirmação, e o destino da morte produzida por aqueles que estão à volta, mas não se importam. O trato é sociológico porque o indivíduo aí é o resultado de relações que o fazem viver ou deixam morrer em meio a um ser psicologizado. Portanto, a peça é uma crítica das relações.

Quando a encenação termina, o palco volta a se iluminar. Olhamos uns para os outros com um ar de estupefação. No meu caso, era a primeira vez que via o espetáculo, mas mesmo os que já o tinham visto antes apresentavam alguma sensibilidade consternada. A performance a que assistimos parecia fazê-los vislumbrar, de algum modo, uma espécie de confirmação do real, a sua expansão à cena teatral, como se dissessem: “pronto, agora eu me vejo” num ato que simboliza com metáforas algo que não é ficcional. Aí, se informa algo que não depende do palco, mas que fora por ele confirmado. Como explicar, desse modo, que a peça funcionava ali atingindo subjetivamente tão eloquente e elaboradamente sujeitos que não tinham familiaridade com o teatro? Se tais ativistas estavam interessados em mudar suas realidades concretas no seio da atenção à saúde a que (não) tinham acesso, como a exposição cênica de suas vidas contribuía para isso? Adiante, procuro responder a essas questões indicando o caráter liminar encorpado pela peça Histórias compartilhadas, mesmo que não resida aí toda sua força simbólica.

Arte e política, teatro e liminaridade

Assim como a arte em geral, o teatro tem sido objeto de observação e interesse teórico-metodológico de uma variedade de antropólogos e antropólogas - e, inclusive, de inspiração disciplinar -, cujas abordagens podem ser diferidas entre si.13 13 Não faz parte do escopo deste artigo traçar todas as nuances e características gerais das tradições que unem antropologia e estudo do teatro. Cabe apontar, contudo, a nível informativo e contextual, duas abordagens que despontam nesse sentido: a antropologia teatral (Barba, 1994) e a antropologia da performance (Dawsey et al., 2013). Não é minha intenção pender para uma identificação ou uma adoção teórico-metodológica absoluta entre uma ou outra, mas trabalhar a descrição e a análise antropológica a partir de ambas, recorrendo a elementos, conceitos e pontos de partida que sejam relevantes para este trabalho. Um diálogo profícuo entre arte e antropologia não é uma novidade, de modo que ambas as esferas não apenas se inspiram mutuamente em suas abordagens, como podem tratar das mesmas questões e objetos sob saberes diversos, como apontou Roger Sansi (2015)SANSI, R. Art, anthropology, and the gift. London: Bloomsbury, 2015.. Para o autor, a arte se torna antropologia,14 14 Algo que remete, ainda que em outra direção, à postura metodológica de Evans-Pritchard (2005), para quem a experiência etnográfica não era apenas constituída pela aplicação objetiva de um método, mas atravessada pela sensibilidade e subjetividade do(a) antropólogo(a) em interação com os(as) interlocutores(as). Isso porque, ao estudar os seres humanos, a antropologia se estabelece como uma disciplina humanista na qual não poderíamos nos furtar ao fato do(a) etnógrafo(a) estar atravessado por tudo aquilo que constitui sua “personalidade”, como diz o antropólogo, e não apenas a formação acadêmica. um postulado que desenvolve a partir da análise de Joseph Kosuth, segundo a qual antropólogos e artistas trabalham com fluência cultural. Apesar de suas críticas à totalidade da proposição de Kosuth, Sansi estabelece que essa aproximação demonstra que há o mesmo trabalho de exercício de crítica de um saber sobre o cotidiano. No caminho inverso, atores, atrizes, dramaturgos(as) e diretores(as) recorrem à antropologia para estudar e explicar seu métier, como é o exemplo de Eugenio Barba (1994)BARBA, E. The paper canoe: a guide to theatre anthropology. New York: Routledge, 1994. e sua antropologia teatral, que busca explicar a fase pré-expressiva do trabalho cênico e de interpretação de atores, atrizes e dançarinos(as). Assim, são pertinentes as colocações de Victor Turner (1982TURNER, V. Acting in everyday life and everyday life in acting. In: TURNER, V. From ritual to theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ Publications, 1982. p. 102-123., p. 102) sobre ser esse tipo de palco uma arena detentora de efeitos próximos aos de um ritual na “sociedade de larga escala”, como nomeia. Isso talvez possa ajudar a explicar o valor moral e cultural atrelado às performances e textos teatrais, vistos como um espaço e uma ferramenta de mudança política (Brecht, 1957BRECHT, B. Estudos sobre teatro: para uma arte dramática não-aristotélica. Lisboa: Portugália, 1957.), de compreensão do mundo social e até mesmo do humano pela via da cena performada ou do espectador que a assistir (Peixoto, 1980PEIXOTO, F. O que é teatro. São Paulo: Brasiliense, 1980.).

Ademais, no plano do senso comum no qual as artes aparecem como refinamento instrucional e de visão de mundo, seguindo o sentido que nos relembrou Roy Wagner (2010)WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010. para a cultura como cultivo intelectual, o teatro aparece como uma peça importante de educação em sentido largo. No Brasil, o debate em torno do teatro como símbolo de uma certa civilização e de uma performance sobre o cotidiano não é uma novidade do presente e segue, ao longo da história do país, noções e práticas diversas a respeito, conforme os grupos e os temas presentes nos palcos se expandam e adentrem conflitos e disputas sociopolíticas. Não é à toa que Machado de Assis e seus companheiros de geração, já no século XIX, reclamavam do atraso brasileiro por não ter àquela época uma obra teatral própria. Construir um teatro nacional significava modernizar a sociedade brasileira, trazê-la para um “mundo civilizado” (Mello, 2011MELLO, F. A. da S. Quando o crítico se retira da plateia: a desilusão de Machado de Assis com o teatro. Machado de Assis em Linha, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 119-138, dez. 2011.), o que fazia dessa atividade resultado de um projeto político ativo através da escrita de peças e suas performances com a estruturação de palcos, publicação de críticas, e, mais importante, a geração de um público espectador. Não se tratava apenas de criar um cenário para uma reprodução do teatro, como demonstrou Franceli Mello (2011)MELLO, F. A. da S. Quando o crítico se retira da plateia: a desilusão de Machado de Assis com o teatro. Machado de Assis em Linha, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 119-138, dez. 2011., mas de nacionalizá-lo, impedindo a excessiva tradução de obras estrangeiras e se voltando a um cultivo da arte para longe do mercado industrializado que começava a popularizar os produtos culturais. Um teatro em língua portuguesa, sobre o Brasil e criado por artistas e públicos brasileiros. Estava em jogo o gosto pela arte em si mesma, politicamente informada e relevante.

Isso também se manifesta na arquitetura urbana, a qual nos oferece outras pistas para entender o lugar do teatro e sua dimensão político-social. Muito embora a prática teatral seja muito anterior à construção de edifícios para essa finalidade, tais casas são registros históricos e sociais. Em todas as regiões brasileiras há teatros municipais construídos no período imperial (pequeno porte) e/ou no início do período republicano (grande porte), inspirados por formas europeias alçadas como modelos ou não (Budasz, 2008BUDASZ, R. Teatro e música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça, gênero e poder. Curitiba: DEARTES UFPR, 2008.). Percebe-se ainda que, quanto mais desenvolvida economicamente a cidade, mais suntuosos as suas coxias e seus espetáculos.15 15 Para uma compreensão historiográfica maior acerca da presença do teatro no Brasil Colônia e Império ver Rogério Budasz (2008), já quando se trata de o caso cearense ver Erotilde Honório Silva (1979). Assim, o teatro brasileiro, desde a Colônia até a República, foi um objeto de intenso engajamento, fosse para a censura ou para o incentivo (Prado, 1999PRADO, D. de A. História concisa do teatro brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.).16 16 Isso se dava de tal modo que a Coroa Portuguesa contava com um manual de instruções de comportamento de artistas e da plateia que ia da vestimenta às verbalizações e que resultavam em elitização do espaço e censura através do Conservatório Dramático fundado em 1849 (Scandarolli, 2017; Souza, 2002). Da passagem de um teatro dramático ao épico ou ao pós-dramático, há muito que se satisfizeram, no país, os anseios oitocentistas por uma área do conhecimento com formação superior, arquitetura urbana, um sistema de formação e reprodução disciplinar com departamentos acadêmicos, financiamento público e um corpo de profissionais e saberes próprios.

O Ceará não foi nem é nenhuma exceção nesse horizonte, tendo seu teatro se consolidado como uma plataforma para a crítica dos costumes. Nesse sentido, a peça encenada por Ari Areia continuava uma tradição local que via nos hábitos simples um material de representação e performance organizada. Arriscando aqui propor alguma unidade provisória, o teatro cearense sempre buscou inscrever-se em si mesmo e recusou a centralidade que o eixo Rio-São Paulo tem na historiografia nacional nesse tema. Esse teatro passa a ter um grande destaque já na Primeira República, como mostrou Erotilde Honório Silva (1979)HONÓRIO SILVA, E. História do teatro cearense. Revista de Comunicação Social, Fortaleza, v. 9, n. 1/2, p. 43-82, jan./dez. 1979., principalmente por sua associação ao progresso que o cultivo artístico denotava na nova elite alinhada a de outros estados (Lima, 2012LIMA, C. I. S. Nos palcos da cidade: a representação da moralidade e dos costumes no teatro de Fortaleza na Primeira República (1889-1930). 2012. Dissertação (Mestrado em História Cultural) - Centro de Humanidade, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.). Honório Silva (1979)HONÓRIO SILVA, E. História do teatro cearense. Revista de Comunicação Social, Fortaleza, v. 9, n. 1/2, p. 43-82, jan./dez. 1979. demonstra ainda que, em Fortaleza, “artístico” era sinônimo de “teatral”, onde os profissionais se interessavam em incutir nas peças uma “situação regional” mesmo antes da construção do Teatro José de Alencar. Até a década de 1930, esse círculo de produção cultural irá conhecer em várias figuras, como a do promotor e dramaturgo Carlos Câmara, uma forte louvação ao homem do sertão através do desenho de papeis sociais aos homens e às mulheres em torno do matrimônio. Oposições valorativas contrárias de novo/antigo, campo/cidade, atraso/civilização se atrelam à moral cristã, a qual, por sua vez, estava circunscrita a uma forma de iluminar o que era essencial à vida cotidiana. A dramaturgia aí se preocupava em representar relações equilibradas entre os sexos17 17 Ao fugir do anacronismo, o termo “sexo” é mais apropriado aqui por fazer referência a um período histórico no qual homens e mulheres eram vistos em termos de sexo e não de gênero, localizados especificamente quanto a diferença sexual vista como natural. Além disso, como desde sempre o sexo é uma categoria de gênero, como demonstrou Judith Butler (1993), ambos podem se intercambiar como sinônimos, já que os corpos sexuados se dão em termos de relações de gênero e sua performatividade. e os modelos ascendentes da elite sobre certa brasilidade e cearensidade através de uma comédia dos costumes (Costa, 2013COSTA, M. F. Era uma vez um grêmio: o teatro musical de Carlos Câmara e a construção do teatro cearense. 2013. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.; Lima, 2012LIMA, C. I. S. Nos palcos da cidade: a representação da moralidade e dos costumes no teatro de Fortaleza na Primeira República (1889-1930). 2012. Dissertação (Mestrado em História Cultural) - Centro de Humanidade, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.). Portanto, as relações entre os sexos foram um conteúdo contínuo para falar do Ceará e do país.

Seria simplista enquadrar esse cenário como apenas nacionalista - ou regionalista -, no sentindo que lhe deu Benedict Anderson (2008)ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., seja a partir da experiência carioca da geração machadiana lida como “nacional”, seja pela experiência cearense tida como “regional”. Estão em evidência modelos de arte legitimados por horizontes políticos e de ordem econômica. Enquanto o teatro brasileiro foi impactado pela colonização e por uma disputa regional em torno da imagem nacional, também o é pela normatividade heterossexual. Esse último dado está explícito na produção, na performance, na recepção e na repercussão da peça Histórias compartilhadas. Contudo, embora a peça de Ari possa ser remetida a uma tradição cearense da produção teatral, ele também rompe com ela e com seu regionalismo. Isso porque a produção cultural que sua peça enseja universaliza seus argumentos ao unir histórias locais com personagens tomados como não ficcionais de outras regiões e de outros países, entrando, portanto, nos trânsitos transnacionais nos quais as noções de transexualidade e transgênero se reproduzem globalmente (Vieira, F., 2020VIEIRA, F. C. A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.). Atraindo o público com chamadas nos jornais, O Outro Grupo de Teatro apresentava:

A peça “Histórias Compartilhadas” no Teatro Dragão do Mar, sexta-feira (10), às 19h, com entrada gratuita. O monólogo traz Ari Areia em cena com direção de Eduardo Bruno aprofundando uma discussão sobre transexualidade masculina. A apresentação acontece com apoio da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) por meio do Edital Cultura LGBT 2016. Não recomendado para menores de 18 anos. (Scaliotti, 2017SCALIOTTI, O. De olho no 11º For Rainbow. O Povo, Fortaleza, 10 nov. 2017. Disponível em: Disponível em: https://mais.opovo.com.br/jornal/colunas/cenag/2017/11/de-olho-no-11-for-rainbow.html . Acesso em: 14 dez. 2018.
https://mais.opovo.com.br/jornal/colunas...
).

Na entrevista que realizei com Ari Areia, ele me lembra que a peça estava em cartaz bem antes disso, em 2015. Ele levara cerca de um ano para a sua preparação, a partir de levantamento bibliográfico, entrevistas e auxílio de ativistas na preparação do texto. Ele e seu diretor trabalharam na união do material. Enquanto bloco de relatos biográficos presentes, para além de nomes locais, também são mencionadas figuras conhecidas, como o ativista carioca João W. Nery e o já referido ator Buck Angel. Apesar de se localizar no cenário cearense, tenta-se atrelá-lo a personagens reais num contexto tão extenso que comprova a sua universalidade. Essa é uma característica da reprodução social da arte apontada por Pierre Bourdieu (1996)BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., quando descreve sua pretensão a um caráter transcendental, cujos referentes à experiência sensível não se prenderiam a particularismos. Adotando uma narrativa do sofrimento a peça centraliza o corpo, como já se percebe na sua sinopse presente na propaganda que circulou antes e durante o festival:

Corpo, Mídia, Gênero, Pênis, Mulher, Vagina, Homem, “Disforia”. Fragmentos do Cotidiano e vozes misturadas. O eu como uma construção. O Gênero não como meritocracia das genitálias. Corpos que, na tentativa de coexistir, rompem os limites da resistência e fazem da presença um símbolo de luta. Para não se afogar em silêncio todos os dias e cada dia mais um pouco, a gente tem que gritar: todos os corpos são certos. (Instituto Dragão do Mar, 2017INSTITUTO DRAGÃO DO MAR. Espetáculo “Histórias Compartilhadas - Ou dos corpos que não se bastam”. In: MAPA cultural do Ceará. Fortaleza: Governo do Estado do Ceará, 2 ago. 2017. Disponível em: Disponível em: https://mapacultural.secult.ce.gov.br/evento/340/ . Acesso em: 20 jan. 2019.
https://mapacultural.secult.ce.gov.br/ev...
).

A metáfora então enunciada recorre às ideias de luta, de grito e de insistência. O objetivo é de demonstrar que o sofrimento vivido durante e por causa da experiência da transição de gênero, “desencadeado pela sociedade”, é resultado de um lugar que esse corpo ocupa, no sentido da não importância, do erro, ou até mesmo da monstruosidade. Embora a peça não tenha sido produzida ou encenada por atores trans, ela recebeu forte suporte e agradecimento de ativistas locais que acompanhei, fosse concedendo entrevistas, fosse gravando em áudio ou em audiovisual suas narrativas para serem usadas pelo ator ou divulgando e prestigiando o espetáculo. Não havia, assim, um discurso essencialista cuja política impedisse uma aliança com pessoas que não transicionaram de gênero.

Ao menos no meio social em que eu interagia em Fortaleza, artistas, ativistas e agentes estatais, a peça era uma unanimidade positiva. Em uma crítica de teatro, a transfeminista Helena Vieira (2015)VIEIRA, H. Transmasculinidade em Histórias Compartilhadas. Outro Grupo, Fortaleza, 10 maio 2015. Disponível em: Disponível em: https://outrogrupo.wordpress.com/2015/05/10/transmasculinidade-em-historias-compartilhadas/ . Acesso em: 20 jan. 2019.
https://outrogrupo.wordpress.com/2015/05...
, que vivia na região, escreveu:

O ator dizia: “O mundo tentou me abrir, mas permaneci fechado”. Eu digo: O mundo tenta me fechar, mas permaneço aberta. Não há como não sentir dor, seja vendo aquela peça ou escrevendo sobre ela agora. Riley se matou. Só este ano, nos EUA, foram 10 pessoas trans, no Brasil não dispomos dessa estatística, mas eu, como ativista, tive diálogos profundos com 5 meninos trans só este ano, que estavam à beira do suicídio. Eu mesma, em alguns momentos, me pego olhando para o mar, ou por cima de uma ponte e pensando: Quanto mais eu consigo suportar?

A peça, portanto, ressoou experiências trans compartilhadas entre mulheres, homens e travestis, articulando não uma suspensão para longe do cotidiano, porque este estava fortemente representado e performado no texto e na cena teatrais, mas uma proposta de se pensar sua resolutividade e formas de resistir e de refazer a vida diante de normas sociais que nos atravessam e informam. E isso foi possível devido à potência criadora e transformadora do teatro épico de Histórias compartilhadas. Como espaço de performance inserida no corpo social, o teatro articula aquilo que Victor Turner (apudEdith Turner, 1986TURNER, E. Prologue: from the Ndembu to Broadway. In: TURNER, V. On the edge of the bush: anthropology as experience. Tucson: University of Arizona Press, 1986. p. 1-18., p. 10)18 18 A partir de manuscrito não publicado. chamou de “exploração do nosso futuro”. Assim como o ritual Ndembu que Victor Turner (2005)TURNER, V. Floresta de símbolos: aspectos do ritual ndembu. Niterói: Ed. UFF, 2005. observou, o teatro é uma arena de liminaridade na qual se gera um nível de poder simbólico que tem uma eficácia própria. Como Edith Turner (1986TURNER, E. Prologue: from the Ndembu to Broadway. In: TURNER, V. On the edge of the bush: anthropology as experience. Tucson: University of Arizona Press, 1986. p. 1-18., tradução minha, p. 10) estabelece, “o teatro é um tipo de ritual vivo, em constante mudança, que é congruente com a natureza de uma sociedade turbulenta que pode ser caracterizada mais por devir do que por ser”. Com o seu propósito de mudar as regras sociais que produzem o estigma para o trânsito de gênero e para outras formas de corresponder sexo/gênero/desejo, a peça sobre a vida dos homens trans criou um ambiente no qual essas normas morais foram suspensas através de sua crítica para gerar sua modificação.

A liminaridade aqui se fez em dois níveis sobrepostos: um quanto ao ator em cena que compartilhava histórias e colocava seu corpo como parte dessa materialidade para representação, e outro quando se referiu à experiência dos espectadores que se viam materializados no palco. Contudo, se concebermos que a arte é um encontro, como coloca Sansi (2015)SANSI, R. Art, anthropology, and the gift. London: Bloomsbury, 2015., e não um dado objeto que existe em si mesmo e sozinho, a peça de teatro dirigida por Eduardo Bruno não se estabeleceu da mesma fora para outros públicos. Nas imagens abaixo, é possível, ainda, visualizarmos não apenas um registro da peça em fotografia, mas a sua reprodução social, dados os ângulos e enquadramentos objetivados na sua disposição imagética. De autoria da Mídia Ninja,19 19 As fotografias aqui reunidas foram realizadas quando da encenação da peça na Universidade de Brasília em 2016, mas faço referência etnográfica à sua apresentação no Teatro do Dragão do Mar. um coletivo de fotógrafos anônimos que licenciam suas imagens sob a licença Creative Commons (aumentando, assim, sua propagação), tais imagens contribuem para alargar o alcance da peça e foram um elemento nodal ao debate que se seguiu publicamente em torno dela. Outros fotógrafos também fizeram registros em outras ocasiões quando a peça era apresentada.

Figura 1b
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

Figura 1c
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

Figura 1d
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

Figura 1e
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

Figura 1f
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

Figura 1g
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

Figura 1h
Histórias compartilhadas apresentada em Brasília.

As imagens acima estão propositalmente dispostas de modo aleatório. Não procuro reproduzir imageticamente um desencadeamento cronológico ou em etapas, o que faria ensejar uma construção cênica artificial porque a sua percepção depende de quem observa. Portanto, inspiro-me nas pranchetas fotográficas de Gregory Bateson e Margaret Mead (1942)BATESON, G.; MEAD, M. Balinese character: a photographic analysis. New York: New York Academy of Sciences, 1942. usadas originalmente sobre a cultura balinesa para agregar à descrição etnográfica uma outra forma de comunicação que excedesse os problemas epistemológicos de categorias antropológicas concebidas no Ocidente, mas usadas transculturalmente. Embora o comportamento teatral desse monólogo que descrevo não seja nenhuma prática do cotidiano, ele o refaz metafórica e corporalmente, de modo que sua divulgação visual é um dos elementos que foram utilizados por grupos conservadores para reconstituir a normalidade heterossexual.

Sangue como insígnia da heterossexualidade

A peça de Ari, entretanto, não fora criada especificamente para o festival For Rainbow, mas como seu trabalho de conclusão de curso em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará. Realizando espetáculos na instituição, acabou atraindo as críticas de religiosos, a ponto de a Comissão de Liberdade Religiosa da secção estadual da OAB requerer investigação do Ministério Público em 2016. Inclusive, uma nota foi publicada apontando o escândalo:

[…] enquanto o ator seminu derramava o próprio sangue sobre o símbolo religioso, um filme pornô era exibido no telão. A universidade como ambiente de nascedouro, proliferação e discussão de ideias, pode e deve apoiar todos e qualquer debate, mas dentro dos limites estabelecidos na legislação brasileira. A Ordem dos Advogados do Brasil tem o papel institucional de fiscalizar e/ou propor medidas para assegurar um ambiente diversificado e respeitoso além de promover cidadania, bem como reparar danos provocados por eventuais infrações legais. (OAB Ceará, 2016OAB CEARÁ. Nota. OAB Ceará, Fortaleza, 6 jun. 2016. Disponível em: Disponível em: https://oabce.org.br/2016/06/nota-3/ . Acesso em: 20 jan. 2019.
https://oabce.org.br/2016/06/nota-3/...
).

O jornal O Povo, em 9 de junho de 2016, informava que comentários massivos foram escritos através da internet condenando a peça de teatro. O ator chegou a receber ameaças de agressão e de morte, tendo sido, inclusive, abordado por estranhos em público, na rua. A comparação que o monólogo procurou realizar encontrou certamente a ojeriza de pessoas que não viram o espetáculo, mas apenas descrições e fotos. O problema aparente estava no aspecto sacro violado com a presença de um Jesus crucificado. A Nota da OAB continua:

A bandeira levantada pelo ator Ari Areia do “Outro Grupo” de Teatro é pertinente e merece respeito, porém para ilustrar e contextualizar suas ideias ele certamente pode usar outros personagens históricos. A liberdade de expressão não é incontestável tampouco pode violar ou ofender demais direitos constitucionais. (Araújo, 2016ARAÚJO, A. OAB aciona MP para investigar peça sobre transexualidade que utiliza crucifixo em cena. O Povo, Fortaleza, 9 jun. 2016. Disponível em: Disponível em: https://www20.opovo.com.br/app/fortaleza/2016/06/09/noticiafortaleza,3622151/oab-quer-que-mp-investigue-peca-sobre-transexualidade-que-usa-crucific.shtml . Acesso em: 26 mar. 2019.
https://www20.opovo.com.br/app/fortaleza...
).

A analogia com a crucificação de Jesus Cristo tem sido desde muito tempo utilizada em diferentes obras de arte em todo o “Ocidente” (Cartlidge; Elliott, 2001CARTLIDGE, D.; ELLIOT, J. K. Art and the Christian apocrypha. London: Routledge, 2001.). A sua representação artística foi impulsionada por séculos pela doutrina católica da Encarnação, que colocava o material num nível de importância quase igual ao do espírito - Jesus como a encarnação de Deus para redimir os pecados da humanidade (Cartlidge; Elliott, 2001CARTLIDGE, D.; ELLIOT, J. K. Art and the Christian apocrypha. London: Routledge, 2001.). Mas, no Brasil, encontrou particular rejeição entre 2016 e 2017 quando foi associada a manifestações artísticas ligadas à população de homossexuais, travestis e pessoas trans. Rompia-se o caráter imaculado da figura sacra, princípio oposto ao atrelado a indivíduos tidos como invertidos sexuais ou de gênero.

Nesse sentido, em entrevista com Ari Areia, ele me recorda que a reação da OAB-Ceará e de anônimos e figuras populares à sua peça ocorreram dentro de um contexto nacional de tentativas de censura a obras de arte moralmente condenáveis.20 20 Em 2019 essa reação esteve presente também na recepção de um episódio especial de Natal produzido pelo Porta dos Fundos para o canal sob demanda Netflix. Grupos religiosos criaram abaixo-assinados na internet para tentar boicotar o programa. Primeira tentação de Cristo, o episódio de mais de uma hora, trazia um Jesus delicado com um namorado afeminado, e que saíam do armário para a família no decorrer da narrativa. A história ainda trazia Maria traindo José, e uma avó de Jesus racista. A reverberação foi tanta que o Supremo Tribunal Federal foi envolvido porque um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro chegou a censurar o programa. O STF decidiu em resposta que o episódio continuaria no ar (Alecrim, 2020; Guerra, 2020). Essas ações foram encabeçadas por políticos e ativistas de direita e religiosos, como aquelas em direção a manifestações artísticas da performance de nu La bête, de Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna de São Paulo e a exposição Histórias da sexualidade do Museu de Arte de São Paulo, na capital paulista; e a Queermuseu - cartografias da diferença na arte da brasileira,21 21 Para um detalhamento maior acerca da exposição, ver Alves (2022). exposição realizada e fechada pelo Santander Cultural em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Esses episódios levaram vários museus no país a adotar a autocensura para evitar qualquer ingerência externa (Gonçalves Filho, 2017GONÇALVES FILHO, A. Museus já adotam autocensura para evitar repetição do caso Santander. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 set. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.estadao.com.br/cultura/artes/museus-ja-adotam-autocensura-para-evitar-repeticao-do-caso-santander/ . Acesso em: 20 jan. 2019.
https://www.estadao.com.br/cultura/artes...
).

Em resposta à requisição da OAB, o Ministério Público local havia solicitado a Ari Areia e sua companhia de teatro que respondessem um extenso questionário. Em sua argumentação, estiveram presentes noções ligadas à liberdade de expressão e ao intento da peça de lançar luz sobre a realidade social. Nesse sentido, se reclama a autonomia enquanto membro de campo social específico: o da arte enquanto sua forma teatral. Foi dentre religiosos e políticos profissionais que veio a reação simbólica de restringir o exercício artístico quando ele desafiava o postulado de crença numa ordem de natureza. O argumento de que o “pecado” da obra era seu uso de uma imagem sacra é um veículo para provocar sua censura, uma vez que as reações dizem respeito muito mais à exposição da transexualidade como tema de arte e como “bandeira” política ao lado da apresentação de elementos tidos como homossexuais, pornográficos e viscerais, tudo ligado ao corpo. Ainda mais porque o que se chama em teoria teatral de “quarta parede”22 22 “Quarta parede” refere-se à perspectiva do espectador diante de um ambiente de representação. Isso corresponde a dizer que ao permanecer a quarta parede se procura um simulacro na dramatização, a tê-la confundida com o real (Peixoto, 1980). Por exemplo, a telenovela brasileira A força do querer foi um tipo de drama que manteve a “quarta parede”. estava suspenso em Histórias compartilhadas, isto é, o excessivo lembrete de que o que se performava era um retrato do que acontecia no cotidiano, uma crítica ao real e não a sua simulação absoluta, dava ainda mais energia à reação.

Para Pierre Bourdieu (1996)BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., o campo de arte procura para si uma autonomia nos moldes que produza um discurso pela sua transcendência. Ou seja, de que o que ali se apresenta não é passível de ser racionalizado porque é resultado de algo inatingível à consciência do analista. O objetivo deveria ser apenas senti-la, sem questioná-la, sem formular suas origens. Esse não é o propósito da peça de Ari Areia, como ficou exposto, mas o contrário, o de mostrar que sua performance e representação teatral não busca o ficcional para atingir o real, o de que o ator não procura interpretar um homem trans de modo per se. Assim, como argumentou Bourdieu (1996BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 15), o campo artístico, um mundo paradoxal que impõe seus “interesses desinteressados”, tem sua obra de arte regida por um princípio de existência permeado por aquilo que tem de histórico e de trans-histórico. É ele mesmo um “signo intencional habitado e regulado por alguma outra coisa, da qual ela é também sintoma”. Essa peça e a reação negativa que causou demonstram as dinâmicas culturais e sociais do tempo presente brasileiro, às quais o ativismo de homens trans no Ceará dá forma particular. Nesse sentido, o campo artístico se confunde com o campo do poder, uma vez que as relações entre eles, como mostrou Bourdieu, são figuras de condição de suas produções.

Esse crescente número de produções culturais - filmes, peças de teatro, reportagens jornalísticas, telenovelas - que têm as figuras de pessoas trans e travestis como personagens principais demonstra duas questões importantes, excedendo também o Ceará. Primeiro, que elas têm movimentado um novo cenário de visibilidade de histórias trans do nosso tempo presente, de modo a amplificar tal representação; e, segundo, que elas próprias se tornaram sujeitos de maior independência ontológica. Não podem mais ser compreendidos como um extremo da lesbianidade, nem mesmo uma variação sem muita especificidade da transexualidade feminina. Essa produção cultural não apenas expõe esse universo: ela o cria e recria. Quando temas, questões ou problemas sociais são visíveis para serem representados e performados, isso não indica apenas que se tornaram relevantes fora dessa imagem a ponto de influenciá-la, ela própria constitui o sujeito que tenta representar. Não apenas se apresentam elementos, mas também se selecionam, excluindo outros.

Considerações finais: os limites da representação trans

Logo após o final da peça ficamos esperando o ator sair da coxia e vir falar conosco. Ari Areia concordou em tirar algumas fotos com os ativistas que estavam bem animados com o que acabávamos de assistir. O espetáculo seria apresentado outras vezes em turnês pelo sudeste do país. Naquele momento o ator se ofereceu para se apresentar outra vez na cidade para que o grupo pudesse reunir doações na forma dinheiro dos espectadores para custear as ações da associação. Depois da sessão de fotos, estávamos ainda ávidos para jantar e nos sentamos à mesa de um pequeno vendedor de cachorro-quente nas imediações do Dragão do Mar. Enquanto comíamos, Januário, um dos fundadores da militância de homens trans na cidade, falava que a peça trazia algo que ele nunca tinha visto antes. Era a primeira vez que via elementos da sua trajetória contados de forma tão potente. Havia, assim, um ar de satisfação e de promessa de futuro. Outras produções culturais estavam para ser publicadas nos próximos dias, como um documentário sobre dois outros ativistas.

Figura 2
Vídeo-carta de um homem trans exibido no monólogo.

Assim, a peça de teatro sobre a qual parti, neste artigo, para considerar os lugares e as políticas incutidas na produção cultural difusa que ganhava forma em Fortaleza, no Ceará, era um objeto de representação e performance artística entre vários outros. Se se encontravam dificuldades para um acesso eficaz aos serviços de saúde na região e à proteção contra a violência, esse universo de representação parecia trazer alguma normalidade às vidas trans encenadas no espetáculo. Ainda que esse sentimento fosse compartilhado por vários interlocutores, não havia nenhuma ilusão sobre isso resolver solitariamente as dificuldades que enfrentavam e que entravam na ordem econômica e racial, de moradia, de acesso à renda, entre outros fatores. Januário, que antes era um ativista bem atuante, começava, noutras ocasiões em que conversamos, a se questionar sobre se continuaria ou não na ativa. Para ele, que fora atacado fisicamente quando usava o transporte público, o ativismo trazia enorme exposição. Hoje, enquanto concluo a escrita deste texto, ele não mais se encontra trabalhando como o ativista de antes. Não sem motivo, um realismo talvez pessimista invadiu sua vida. O que poderia fazer? Ele encontraria outras formas de resistir, como vivendo como um homem, concluindo sua transição nos moldes que deseja e situando quem puder a partir de conversas e diálogos. Contudo, não mais aparecia em matérias jornalísticas.

Januário expressava certo pessimismo que está presente na crítica a produtos culturais a serem veiculados para dar visibilidade a grupos marginais. Reina Gossett, Eric Stanley e Johanna Burton (2017GOSSETT, R.; STANLEY, E. A.; BURTON, J. Known unknowns: an introduction to trap door. In: GOSSETT, R.; STANLEY, E. A.; BURTON, J. (ed.). Trap door: trans cultural production and the politics of visibility. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2017. p. xv-xxvi., p. xv, tradução minha) argumentam que embora o hoje possa ser chamado de o “tempo da visibilidade trans”, este é também o “tempo da violência antitrans”. Para os autores, haveria na representação trans uma armadilha. Ao ser produzida através de premissas capitalistas, a “positividade” dá pouca garantia de proteção e promoção de melhores condições de vida àqueles que não são brancos e vivem situações de pobreza; isto é, dramas espetacularizados não iriam resolver problemas econômicos e raciais. Os autores não veem, contudo, outros contextos nacionais nos quais essa representação se dá aliada a setores do Estado-nação, como é o caso que acabei de descrever. A peça de Ari Areia fora financiada por políticas de governo e foi encenada numa instituição pública. Mas, mesmo que seja ela mesma alimentada por uma política pública e que traga à conversão pública um importante debate sobre cidadania e acesso à saúde transgênero, não é suficiente - nem se propõe a ser - resolução às racionalidades que constroem ambientes e medidas antitrans e antidiversidade de gênero dentro e fora do Estado brasileiro. Mesmo assim, a política cultural difusa da qual participa é vista como uma importante ferramenta de mudança social, e vem se tornado cada vez mais presente no ativismo trans que é também artivismo.

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  • WAGNER, R. A invenção da cultura São Paulo: Cosac Naify, 2010.
  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes - Código de Financiamento 001).
  • 2
    Por pessoas trans e travestis compreendo todos os sujeitos que vivenciam, em alguma extensão, uma mudança de gênero relativa a um trânsito entre posições sociais de mulher e de homem que se baseiam em construir outros projetos corporais, identidades e lugares institucionais divergentes daqueles assinalados originalmente ao nascimento, o que, por sua vez, impacta todas as relações sociais e reconhecimento político no qual estejam enredados. Ao invés de centralizar tal trânsito em termos de identidade, concebo-o a partir da categoria de pessoa, a qual estabelece uma noção de Eu específica ao Ocidente (Mauss, 2003MAUSS, M. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do eu. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 367-397.) que orienta, entre outros elementos próprios, o processo de identificação de si mesmo num dado contexto social e político. Acompanho ainda as tensões provocadas por Berenice Bento (2016)BENTO, B. Transfeminicídio: violência de gênero e o gênero da violência. In: COLLING, L. (org.). Dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EdUFBA, 2016., segundo as quais se entende que se referir a “pessoa trans” de modo isolado não cobre as diferenças dinamizadas por travestis brasileiras.
  • 3
    Utilizo-me da sigla LGBT, um acrônimo que faz referência a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, devido a sua construção social enquanto uma categoria de farto manejo no campo etnográfico. Isso não significa que eu não reconheça, nem que os ativistas que acompanhei não reflitam, sobre suas limitações. No âmbito do ativismo em torno da diversidade sexual e de gênero as discussões sobre a inabilidade da sigla de representar todos os grupos e identidades é apontada com certo vigor político, mas as táticas para sua superação esbarram em alternativas viáveis (aumento de letras na sigla, por exemplo). Na teoria antropológica tem se apontado para as dificuldades de se encontrar uma categoria global eficaz; do mesmo modo que tem se indicado a necessidade etnográfica de sua definição, sempre devedora do contexto. Nesse sentido, sempre que utilizar da sigla “LGBT” estou fazendo referência a um termo local que circunscreve uma comunidade imaginada, como apontou Silvia Aguião (2018)AGUIÃO, S. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2018., e não a uma categoria de análise ou descritiva. Como expressão descritiva recorro a “diversidade sexual e de gênero”, como já foi indicado na antropologia diante da implosão da homossexualidade como categoria capaz de reunir todas as experiências e pessoas desse espectro (Valle; Simões, 2015VALLE, C. G. do; SIMÕES, J. A. Apresentação do Dossiê “Diversidade sexual e de gênero, memórias e envelhecimento”. Bagoas: estudos gays: gêneros e sexualidades, Natal, v. 9, n. 13, p. 17-30, 2015.).
  • 4
    Enquanto transição de gênero faço referência a uma trajetória individual vivida coletivamente de mudança entre posições sociais de homem para mulher ou vice-versa (Connell, 2012CONNELL, R. Transexual women and feminist thought: toward new understanding and new politics. Signs, [s. l.], v. 37, n. 4, p. 857-881, 2012.), e até mesmo de processos que não encontram um objetivo final delineado numa posição única. Esse processo pode ser vivido como um rito de passagem, de acordo com Arnold Van Gennep (2013)VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 2013., como apontou Anne Bolin (1983)BOLIN, A. E. In search of Eve: transsexual rites of passage. 1983. Tese (Doutorado em Antropologia) - University of Colorado, Denver, 1983., ou como uma trajetória pessoal socialmente vivida em termos institucionais e de projeto corporal. Nessa experiência, é preponderante uma certa centralidade do corpo como objeto de engajamento político, identitário e social, mesmo que não seja possível inferir uma única maneira de fazê-lo. Durante o trabalho de campo, tive pouco contato com pessoas que constroem sua noção de Eu enquanto “não binário” ou de “instabilidade permanente” no campo das relações de gênero. Por isso, minhas análises aqui estão mais concentradas em experiências sociais de sujeitos que buscavam se localizar numa única posição de gênero (mesmo que esta seja travesti, homem ou mulher trans).
  • 5
    Nos estudos teatrais ou das artes da performance e na própria prática cênica, peça teatral nem sempre pode ser o termo privilegiado por diretores, atores/atrizes, produtores, entre outros, ao se descrever o conjunto de cenas que tomarão/tomaram os palcos/espaço de atuação. “Experimento cênico” (Alexandre, 2017ALEXANDRE, R. H. de L. As ações de convívio, o teatro documentário e o documento vivo no experimento cênico territórios. 2017. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Instituto de Filosofia, Artes e Cultura, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2017.), “peça documental” (Dawson, 1999DAWSON, G. F. Documentary theatre in United States. Westport: Greenwood Press, 1999.) - e sua variação, “documento cênico” - são algumas outras categorias que diversificam a nomeação de um exemplar de expressão do teatro. Isso se deve a diferentes visões sobre a ideia de representação, promoção de ficção ou não ficção, métodos na construção de informações-base, abordagens cênicas e, também, a forma de relacionamento com o público em termos de separação, aproximação ou continuidade performática. Refiro-me a esse monólogo enquanto peça teatral porque essa expressão unia os diferentes grupos e questões que ela suscitava, justamente por ser uma categoria de uso comum, tanto nas suas reverberações políticas e simbólicas, como no trabalho expressivo que o concebeu. Nesse sentido, essa definição busca captar as variadas formas que o espetáculo assumiu socialmente, e não busca contradizer a ideia de “documento cênico” que o grupo teatral que o montou por vezes apresentava à imprensa, já que esse espetáculo era visto como um agregado de histórias reais a partir do cotidiano transposto ao teatro. Algo que não fazia uma oposição entre documento cênico e peça teatral, justamente porque procurava, numa visão brechtiana, fazer os espectadores refletirem sobre suas vidas e as daqueles retratados no espetáculo.
  • 6
    Como saúde transgênero, ou simplesmente saúde trans, compreendo todo um campo social composto por diferentes profissionais e gestores em saúde - e pesquisadores - e animado por categorias sociais e noções não restritas ao corpo sexuado que podem assumir relações concorrentes e/ou complementares. Com isso, esses diferentes agentes sociais formalizam serviços e/ou práticas de (auto)atenção em saúde que objetivam oferecer terapêuticas biomédicas clínicas e/ou cirúrgicas a pessoas que vivenciam processos de transição de gênero e seu posterior acompanhamento (Vieira, F., 2020VIEIRA, F. C. A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.). Algo que não exclui outras formas fora do escopo biomédico de se pensar o corpo, a sua interpretação, explicação e abordagem.
  • 7
    Em 2011, na sua quinta edição, o curta-metragem pernambucano Entre lugares: a invisibilidade do homem trans apresentava a história pessoal de dois ativistas. Com 12 minutos, dirigido por Lucas Patrese, o filme trazia o argumento de que gênero e sexualidade eram temáticas diferentes, ao veicular que um dos personagens namorava uma travesti e o outro, um homem. Em 2016, na décima edição, o longa-metragem estadunidense O garoto real, direção de Saleece Haas, voltava a veicular a temática a partir da relação do protagonista e sua mãe durante a transição de gênero.
  • 8
    As imagens reproduzidas neste artigo se referem à apresentação do espetáculo na Universidade de Brasília, em julho de 2016. Contudo, minha descrição etnográfica corresponde majoritariamente à sua apresentação em 2017 no teatro do Dragão do Mar, em Fortaleza.
  • 9
    O Dia da Visibilidade Trans é comemorado no dia 29 de janeiro de cada ano, e tem sido marcado por atividades políticas, recreativas e informativas, organizadas tanto por grupos de ativismo como por setores estatais que se especializam na diversidade sexual e de gênero.
  • 10
    O Centro de Referência LGBT Janaína Dutra (CRJD) é um serviço da Prefeitura Municipal de Fortaleza, alocado na Coordenadoria da Diversidade Sexual que compõe a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social.
  • 11
    Fragmento da letra de música sem título que foi cantada durante o evento organizado pelo Centro de Referência.
  • 12
    Segundo Joseylson dos Santos (2012SANTOS, J. F. Femininos de montar: uma etnografia sobre experiências de gênero entre drag queens. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012., p. 119), que estudou a prática de se montar como drag queen/transformista em Natal, Rio Grande do Norte: “‘Aquendar a neca’ é a forma de esconder a genitália: os testículos são posicionados na região pubiana. Depois o pênis é puxado para trás e preso com adesivos (Emplastro Sabiá) ou com calcinhas sobrepostas bem justas.”
  • 13
    Não faz parte do escopo deste artigo traçar todas as nuances e características gerais das tradições que unem antropologia e estudo do teatro. Cabe apontar, contudo, a nível informativo e contextual, duas abordagens que despontam nesse sentido: a antropologia teatral (Barba, 1994BARBA, E. The paper canoe: a guide to theatre anthropology. New York: Routledge, 1994.) e a antropologia da performance (Dawsey et al., 2013DAWSEY, J. et al. (org.). Antropologia e performance: ensaios Napedra. São Paulo: Terceiro Nome, 2013.). Não é minha intenção pender para uma identificação ou uma adoção teórico-metodológica absoluta entre uma ou outra, mas trabalhar a descrição e a análise antropológica a partir de ambas, recorrendo a elementos, conceitos e pontos de partida que sejam relevantes para este trabalho.
  • 14
    Algo que remete, ainda que em outra direção, à postura metodológica de Evans-Pritchard (2005)EVANS-PRITCHARD, E. E. Algumas reminiscências e reflexões sobre o trabalho de campo. In: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 243-255., para quem a experiência etnográfica não era apenas constituída pela aplicação objetiva de um método, mas atravessada pela sensibilidade e subjetividade do(a) antropólogo(a) em interação com os(as) interlocutores(as). Isso porque, ao estudar os seres humanos, a antropologia se estabelece como uma disciplina humanista na qual não poderíamos nos furtar ao fato do(a) etnógrafo(a) estar atravessado por tudo aquilo que constitui sua “personalidade”, como diz o antropólogo, e não apenas a formação acadêmica.
  • 15
    Para uma compreensão historiográfica maior acerca da presença do teatro no Brasil Colônia e Império ver Rogério Budasz (2008)BUDASZ, R. Teatro e música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça, gênero e poder. Curitiba: DEARTES UFPR, 2008., já quando se trata de o caso cearense ver Erotilde Honório Silva (1979)HONÓRIO SILVA, E. História do teatro cearense. Revista de Comunicação Social, Fortaleza, v. 9, n. 1/2, p. 43-82, jan./dez. 1979..
  • 16
    Isso se dava de tal modo que a Coroa Portuguesa contava com um manual de instruções de comportamento de artistas e da plateia que ia da vestimenta às verbalizações e que resultavam em elitização do espaço e censura através do Conservatório Dramático fundado em 1849 (Scandarolli, 2017SCANDAROLLI, D. A censura teatral no Brasil Império. Café História, 29 mar. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-censura-teatral-no-brasil-imperio/ . Acesso em: 15 jul. 2022.
    https://www.cafehistoria.com.br/a-censur...
    ; Souza, 2002SOUZA, S. C. M. de. Os literatos fluminenses e o Conservatório Dramático Brasileiro. In: SOUZA, S. C. M. de. As noites do ginásio: teatro e tensões culturais na corte (1832/1868). São Paulo: Ed. Unicamp, 2002. p. 139-222.).
  • 17
    Ao fugir do anacronismo, o termo “sexo” é mais apropriado aqui por fazer referência a um período histórico no qual homens e mulheres eram vistos em termos de sexo e não de gênero, localizados especificamente quanto a diferença sexual vista como natural. Além disso, como desde sempre o sexo é uma categoria de gênero, como demonstrou Judith Butler (1993)BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York: Routledge, 1993., ambos podem se intercambiar como sinônimos, já que os corpos sexuados se dão em termos de relações de gênero e sua performatividade.
  • 18
    A partir de manuscrito não publicado.
  • 19
    As fotografias aqui reunidas foram realizadas quando da encenação da peça na Universidade de Brasília em 2016, mas faço referência etnográfica à sua apresentação no Teatro do Dragão do Mar.
  • 20
    Em 2019 essa reação esteve presente também na recepção de um episódio especial de Natal produzido pelo Porta dos Fundos para o canal sob demanda Netflix. Grupos religiosos criaram abaixo-assinados na internet para tentar boicotar o programa. Primeira tentação de Cristo, o episódio de mais de uma hora, trazia um Jesus delicado com um namorado afeminado, e que saíam do armário para a família no decorrer da narrativa. A história ainda trazia Maria traindo José, e uma avó de Jesus racista. A reverberação foi tanta que o Supremo Tribunal Federal foi envolvido porque um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro chegou a censurar o programa. O STF decidiu em resposta que o episódio continuaria no ar (Alecrim, 2020ALECRIM, E. STF derruba decisão que proibia especial do Porta dos Fundos na Netflix. Tecnoblog, [s. l.], 9 jan. 2020. Disponível em: Disponível em: https://tecnoblog.net/320896/supremo-suspende-proibicao-especial-porta-dos-fundos-netflix/ . Acesso em: 30 jun. 2020.
    https://tecnoblog.net/320896/supremo-sus...
    ; Guerra, 2020GUERRA, R. Desembargador censura especial de Natal do Porta dos fundos na Netflix para “acalmar ânimos”. O Globo, Rio de Janeiro, 8 jan. 2020. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/desembargador-censura-especial-de-natal-do-porta-dos-fundos-na-netflix-para-acalmar-animos-24178422 . Acesso em: 30 jun. 2020.
    https://oglobo.globo.com/brasil/desembar...
    ).
  • 21
    Para um detalhamento maior acerca da exposição, ver Alves (2022)ALVES, R. H. A. O queer e a aids na exposição Queermuseu. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e75514, 2022..
  • 22
    “Quarta parede” refere-se à perspectiva do espectador diante de um ambiente de representação. Isso corresponde a dizer que ao permanecer a quarta parede se procura um simulacro na dramatização, a tê-la confundida com o real (Peixoto, 1980PEIXOTO, F. O que é teatro. São Paulo: Brasiliense, 1980.). Por exemplo, a telenovela brasileira A força do querer foi um tipo de drama que manteve a “quarta parede”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2022
  • Aceito
    03 Maio 2023
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