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SANSI, Roger. Art, anthropology and the gift. London: Bloomsbury, 2015. 188 p.

SANSI, Roger. . Art, anthropology and the gift . London: Bloomsbury, 2015. 188 p.

Arte e antropologia questionam a modernidade e o Ocidente aos quais estão também associadas. Para Roger Sansi, ambas se preocupam, no sentido teórico e prático, com a política da representação. Não compartilham simplesmente um interesse por “outras culturas”, mas “o objetivo de quebrar com a expertise, a erudição e a autoridade acadêmicas, para serem elas mesmas ‘primitivas’” (p. 140, tradução minha).

O livro Art, anthropology and the gift é uma análise estrategicamente construída por uma colagem de conexões entre arte e antropologia a partir do índice da dádiva. O objetivo é indagar qual a extensão desse e de outros conceitos caros a antropólogos - como Marcel Mauss, Marilyn Strathern e Alfred Gell - na arte. “Em vez de perguntar se eles estão usando a antropologia corretamente, pode-se perguntar para o que eles a utilizam” (p. 37, tradução minha). A obra situa os temas da relação e da participação na arte contemporânea, descreve alguns trabalhos e relê autores centrais desse campo, como o curador e crítico Nicolas Bourriaud.

O engajamento da arte com questões que são tradicionalmente do domínio das ciências sociais as conecta explicitamente. Há uma geração recente de artistas que definiram seu trabalho como “prática social” e cuja referência não é apenas história da arte, mas também teoria social e cultural, a antropologia em particular. O autor mostra como essa conexão é reiterada historicamente, relendo movimentos artísticos do século XX a partir do debate teórico e conceitual da antropologia. Além disso, discute como arte e antropologia (com foco nas teorias sobre a dádiva) travaram diálogos transversais, e se influenciaram mutuamente - mesmo que o interesse do livro não seja propriamente pelos mecanismos de tradução recíproca.

No Dadaísmo (movimento deflagrado na década de 1910), destaca a revisão da centralidade da autoria e o desenvolvimento do acaso. O próprio termo “dada” indica uma relação primitiva com a realidade, evidenciando a defesa do desaprendizado da civilização e da arte acadêmica e uma abertura para as coisas cotidianas. No Surrealismo (década de 1920), sublinha a relação de artistas com autores como Georges Bataille e Michel Leiris. Antropólogos e artistas desenvolveram no período pensamentos afins sobre magia, colagem, apropriação; além do filme de montagem, praticado tanto pelo cinema surrealista como no documentário etnográfico. Destaca também as relações entre práticas artísticas e antropológicas no Situacionismo (década de 1960), em síntese, o ato de deriva como proposição estética, especialmente na cidade, que passa a ser o próprio objeto da arte, extrapolando os espaços convencionais e subvertendo o cotidiano.

A crise da representação na antropologia, ligada à chamada crítica pós-moderna - da cultura como texto, sua descrição etnográfica como narrativa e a defesa da aproximação a métodos artísticos (especialmente literários) para se encontrar formas experimentais de (des)escrever, assumindo a arte de representar - foi por alguns denominada Virada Literária. Sansi propõe observá-la paralelamente à crítica da institucionalização das práticas artísticas e às argumentações por um maior engajamento com coletividades - a chamada Virada Etnográfica (década de 1980), em que artistas formulam seus trabalhos a partir de pesquisas com comunidades específicas, adotando inclusive a linguagem e os rituais das ciências sociais, especialmente o trabalho de campo.

O livro centra-se na produção artística contemporânea calcada em métodos participativos. Por exemplo, trabalhos em que o objetivo seja convidar pessoas para se reunir e conversar, construir relações sociais, quase sempre efêmeras - hoje os museus de arte muitas vezes parecem “jardins comunitários” (p. 2). Os artistas se estabelecem mais como mediadores - pessoas que oferecem situações de troca - do que como criadores de objetos e materialidades. Produzir uma forma é, nesse sentido, estimular a reciprocidade através da proposição de uma situação de encontro, inventando um protocolo de trocas sem precedentes entre comunidades distantes, subvertendo contextos e instituições.

Os artistas apresentados não se assemelham àquele que domina técnicas usuais, mas, sim, ocupam-se em dirigir e organizar materiais produzidos por expectadores-participantes, criando aparatos físicos ou discursivos em que atores se expressam a partir dos dispositivos a que são convidados. O evento artístico não está definido por uma mente que cria, mas é um encontro com o acaso, já que os projetos são permeáveis à indeterminação dos processos.

Sansi, em diálogo com Bourriaud (2009)BOURRIAUD, N. A estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. em A estética relacional, defende que esse tipo de trabalho produz relações sociais e não objetos-commodities - faz pessoas das coisas, e não coisas das pessoas. A arte é trabalhada como uma forma de vida e não como uma profissão, contrapondo-se à alienação do trabalho na produção industrial. Esse artista, mesmo que não seja um retrato da situação, é, para o autor, o seu estado potencial, pois exercita uma promessa de liberdade e de troca baseada na produção de relações especulando novos espaços, protótipos de uma vida compartilhada.

Recupera também conceitos discutidos por Gell (1998)GELL, A. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press, 1998. em Art and agency, autor que, segundo Sansi, elaborou uma teoria em sintonia com a arte de seu tempo, mais do que poderia imaginar. Em Gell, a arte não é tratada como representação, mas enquanto ação. Trabalhos de arte são objetificações da agência humana, uma rede (trap) de agências produtoras de efeitos (p. 53). Interessa menos o que a arte significa, e mais como a arte funciona.

O último capítulo do livro de Gell é uma breve incursão sobre Marcel Duchamp e a “mente estendida”. Sansi ilumina esse ponto ao conectar o conceito de ready-made à rede de complexas intencionalidades e agências dos trabalhos de artes contemporâneas que envolvem a participação. Objetos e pessoas se encontram simultaneamente, incorporam histórias e coautorias aos processos, tornando indistinguível produção e apropriação.

No sentido inverso (ou simétrico), Sansi também discute de que maneira antropólogos podem repensar seu trabalho - procedimentos, alcances, resultados - a partir dos processos de artistas. A etnografia sempre foi relacional, permeada por hospitalidade e troca de dons. Sansi sublinha os acasos da etnografia, permitindo experimentação e bricolagem a partir das contingências. Defende que o encontro no trabalho de campo seja pensado não como um método, mas uma estética de colaboração e participação. O processo artístico poderia ser um modelo para a pesquisa antropológica também para desestruturá-la, trazer outros elementos para sua manufatura e retirá-la da necessidade de produzir um discurso coerente.

O livro se conecta à corrente, ligada a autores como George Marcus (2010MARCUS, G. Contemporary fieldwork aesthetics in art and anthropology: experiments in collaboration and intervention. Visual Anthropology, v. 23, n. 4, 263-277, 2010., 2014MARCUS, G. Prototyping and contemporary anthropological experiments with ethnographic method. Journal of Cultural Economy, v. 7, n. 4, p. 399-410, 2014.), que defende a antropologia como construtora das realidades que estuda, ao invés de representar uma já existente. Uma abordagem performativa e transformativa do campo social em que os “dados” são produzidos a partir de disparadores, como na moldura artística - o que se denomina “conceitualismo etnográfico” (Ssorin-Chaikov, 2013SSORIN-CHAIKOV, N. Ethnographic conceptualism: an introduction. Laboratorium, v. 5, n. 2, p. 5-18, 2013.). O campo é pensado como um evento do encontro e a etnografia como um dispositivo, que não representa realidades preexistentes, mas performa mundos possíveis, aproximando experimentação artística e ciência.

Há no livro, porém, uma leitura propositiva da antropologia que caberia ser problematizada. O objetivo de autores como Mauss (2003)MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183-314. não é fomentar a dádiva na sociedade da mercadoria. No texto de Sansi, o ofício de traçar relações (próprio da antropologia) se confunde com o atributo, dos trabalhos participativos, de fomentar relações. O autor embaralha, em algumas passagens, referências de seus interlocutores (artistas), teoria antropológica e sua própria avaliação sobre o potencial transgressivo das duas produções. Caberia pensar os equívocos do intercâmbio de conceitos e práticas entre arte e antropologia e como são traçados os limites de seus campos.

Do projeto We Can Xalant - uma caravana que convida à troca de experiências e que pode ser posteriormente disposta em uma exposição, documentada ou metamorfoseada em outros formatos - capa do livro, partem outras interessantes questões. Sansi interroga sobre o papel disruptivo da dádiva nos movimentos artísticos ou se isso é facilmente cooptado por forças da mercadoria. Interessa pensar outros elementos decorrentes da teoria da dádiva maussiana - as obrigações, as hierarquias, as práticas e regras do mercado de arte, a formação e legitimação de carreiras profissionais e a construção de autorias. A agência do trabalho, tanto na arte como na antropologia, pode estar distribuída, mas sob controle direto e assinatura que se perpetua no tempo, reservando certa ambiguidade aos ideais da participação.

Referências

  • BOURRIAUD, N. A estética relacional São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • GELL, A. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon Press, 1998.
  • MARCUS, G. Contemporary fieldwork aesthetics in art and anthropology: experiments in collaboration and intervention. Visual Anthropology, v. 23, n. 4, 263-277, 2010.
  • MARCUS, G. Prototyping and contemporary anthropological experiments with ethnographic method. Journal of Cultural Economy, v. 7, n. 4, p. 399-410, 2014.
  • MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183-314.
  • SSORIN-CHAIKOV, N. Ethnographic conceptualism: an introduction. Laboratorium, v. 5, n. 2, p. 5-18, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
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