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Igreja in concert: padres cantores, mídia e marketing

RESENHAS

Souza, André Ricardo de. Igreja in concert: padres cantores, mídia e marketing. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2005. 146 p.

Sílvia Regina Alves Fernandes

Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais - Brasil

Padres cantores e o catolicismo - as interfaces do espetáculo e da fé.

O livro de André traz uma contribuição importante para as ciências da religião por tratar de um fenômeno recente e curioso do ponto de vista do cenário religioso brasileiro: os padres cantores e a relação da instituição católica com o mercado midiático.

A virtude principal do trabalho é a leveza ou a forma despretensiosa com que André vai caracterizando o fenômeno sem deixar de contextualizar historicamente a origem do mesmo. Assim, logo no primeiro capítulo a criação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e o desenvolvimento da Teologia da Libertação e das CEBs são analisados sob a perspectiva da afirmação ou reafirmação de uma identidade católica. Para o autor, o catolicismo praticado no Brasil até os anos 1950 poderia ser categorizado em tradicional e romanizado, sendo o primeiro marcadamente constituído pelas festas populares, e o segundo, pela ênfase nos sacramentos e em uma moralidade rígida. Esse último aspecto é observado também nos dias atuais.

O breve histórico traçado sobre o catolicismo desemboca no surgimento da Renovação Carismática Católica (RCC), movimento que nasce nos EUA e chega ao Brasil em fins dos anos 1960. O autor compartilha da tese de Reginaldo Prandi de que a RCC cresce enquanto as CEBs arrefecem. Para contextualizar esse arrefecimento, situa o refluxo dos movimentos sociais em geral, a partir de 1989, com a queda/desintegração do bloco dos países socialistas. Além disso, concorda com a visão do pluralismo como uma característica do mercado religioso defendido por autores como Peter Berger. Essa é a grande linha argumentativa de André para trabalhar a presença dos padres cantores como produto lançado no mercado religioso. Um olhar um pouco mais matizado poderia contribuir para uma não absolutização da noção do fenômeno religioso como um grande mercado, se forem levadas em conta outras variáveis conjunturais importantes para o entendimento do sucesso do padre Marcelo Rossi, ator principal analisado nesse trabalho.

A idéia, defendida pelo autor, que a Renovação Carismática Católica se constitui como um movimento que populariza o catolicismo, é bastante interessante. Esse aspecto é trabalhado no Capítulo II do livro. Entretanto, a defesa do caráter intelectualizado da RCC, bem como de que os adeptos do movimento possuem uma linguagem elaborada, pode ser facilmente questionada. Embora a RCC se origine nas camadas médias, sua penetração nas camadas populares se dá num período de aproximadamente 15 anos e, nesse caso, muitas lideranças são provenientes das classes desfavorecidas economicamente.

Outro aspecto questionável é a consideração de que a visão sobre o "mal" na RCC está estritamente vinculada a um desequilíbrio da própria pessoa, numa perspectiva psicológica. Alguns estudos (Fernandes, 2002; Mariz, 2001) já demonstraram que a ênfase no poder da ação demoníaca é forte na visão de mundo do movimento, bem como a crença na oração como arma para combater a malignidade. Portanto, os católicos carismáticos demonstram forte crença no demônio.

André explora pouco uma visão interessante a respeito do "terço bizantino", objeto difundido pelo padre Marcelo Rossi, numa readaptação do terço tradicional. Para o autor, a fórmula repetidora utilizada para a oração com esse objeto funcionaria como elemento de auto-ajuda, com o adicional da "bênção divina".

No intuito de compreender o tão propalado retorno dos católicos, o autor faz uma enquete no Santuário Bizantino, templo onde são realizadas as missas do padre Marcelo Rossi. Por meio da enquête pode-se constatar que 76% dos entrevistados eram católicos tradicionais e foram atraídos para as missas do santuário graças à mídia eletrônica; 16% passaram a freqüentar a missa depois do sucesso do padre; e 8% freqüentavam outra religião e passaram a ir às missas católicas. Por fim, apenas 6% eram evangélicos e passaram a freqüentar a missa depois do sucesso do padre Marcelo Rossi. Contudo, não fica explícito se esses 6% atualmente passam a declarar-se como católicos ou mantêm a identidade evangélica ainda que freqüentando as missas carismáticas. André conclui a análise dos dados argumentando que efetivamente não há comprovação empírica sobre a "volta" dos católicos.

O que eu chamaria de perigo analítico a perpassar todo o trabalho é a radical distinção entre a renovação popularizadora católica e a RCC. Para o autor, a primeira seria mais ampla, "propaganda explícita da religião", envolvendo todas as camadas sociais, mas principalmente os mais pobres, e a segunda seria mais presente nas camadas médias. Ocorre que ainda que se possa admitir a amplitude da RCC e uma certa impregnação desse modo de ser católico, os tentáculos do movimento são claramente perceptíveis nas camadas populares. Como, então, considerar que ele atinge apenas as camadas médias?

A análise dos eventos religiosos de massa e a cobertura da mídia secular a esses eventos é realizada por André no Capítulo III. Ele demonstra a relação de líderes religiosos com a mídia e comenta o fenômeno da profissão recorrente de fé por parte de artistas e jogadores de futebol. Nesse item é trabalhada brevemente a tensão enunciada por Eliade entre o sagrado e o profano.

No Capítulo IV, o autor analisa a mensagem religiosa na mídia. É realizada uma contextualização da música gospel e é explicitada a diferenciação entre a música religiosa cantada na Igreja católica nos anos de 1970 e 1980 e a outra, difundida na década de 1990. A principal diferença lembrada pelo autor é que nas décadas de 1970 e 1980 as letras das músicas apresentavam um cunho político. Cabe ressaltar que é exatamente nestas décadas que a Igreja católica vê prosperar as comunidades eclesiais de base, cujo discurso propunha a junção de fé e vida numa perspectiva sociotransformadora. Quanto às músicas religiosas que fazem sucesso na década de 1990, destacam-se aquelas que possuem o estilo gospel com letras mais emocionais, próprias das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais.

Nesse capítulo é apresentado um breve histórico da criação da Rede Canção Nova, TV católica que tem crescido rapidamente no território nacional. O autor comenta ainda a existência de um certo pudor de jovens padres cantores quanto à exposição midiática. Esse pudor também foi confirmado em estudo de caso no Rio de Janeiro com 16 jovens seminaristas que desejavam tornar-se padres. A maioria expressou concordância com a utilização dos veículos de comunicação para a disseminação da mensagem católica, porém não se mostraram tão favoráveis à aparição dos padres nos veículos de comunicação. Dessa forma, criticam a exposição em excesso e temem o abandono dos sacerdotes de sua missão primeira, que seria "pastorear o rebanho" (Fernandes, 2004).

O padre cantor de maior visibilidade no Brasil é o padre Marcelo Rossi. No Capítulo V, André faz uma descrição da trajetória do padre e dá destaque ao debate instaurado sobre o afastamento ou o retorno de católicos a partir da presença de padre Marcelo na mídia e de suas celebrações festivas. Um posicionamento mais rígido em relação à moral católica é adotado por esse padre que, na visão do autor, é também o protagonista da renovação popularizadora católica que estaria em curso.

O aumento de seminaristas nas dioceses brasileiras estaria relacionado com a atuação de padre Marcelo Rossi. André argumenta e exemplifica que na diocese de Santo Amaro (locus de atuação de padre Marcelo) houve um crescimento de 375% entre os anos de 1995 e 2004 por influência da Renovação Carismática Católica. Tendo realizado entrevistas com seminaristas afinados com a RCC, considera que o desejo de projeção social por meio dos novos modos de evangelização estaria motivando o ingresso de jovens nos seminários brasileiros. Nesse aspecto, teria sido importante que seminaristas não participantes da RCC tivessem sido entrevistados, para que se pudesse fazer uma análise mais aprofundada da influência ou não da RCC no que tange à vocação sacerdotal.

André apresenta ainda um relato documental das pressões vividas pelo padre Marcelo Rossi dentro e fora da Igreja, e alguns textos produzidos por teólogos progressistas a respeito da presença desse sacerdote na mídia. Nesses textos se evidenciam as tensões internas dos agentes religiosos frente ao fenômeno Marcelo Rossi. É ainda nesse capítulo que o autor explora a atração que o padre exerce sobre as mulheres e como seu discurso se consolida de forma ambivalente ao combinar moralismo com valorização do corpo. André chama atenção para a intrigante relação entre valorização e interdição do corpo: "padre do futuro com fortes traços do passado".

O marketing religioso é trabalhado mais detidamente no Capítulo VI do livro, onde o autor explora as ações desenvolvidas pelas comunidades carismáticas ainda pouco estudadas pela literatura sociológica. As articulações entre redes de TV e comunidades fazem com que o autor afirme a existência de uma opção pela mídia e pelo marketing como forma de expansão do catolicismo e de contenção do declínio dessa religião anunciado durante décadas pelos censos. É importante destacar, entretanto, que a chamada opção pelo marketing não é uma medida oficialmente declarada pela Igreja e nem mesmo é aceita por seus diversos setores. Sendo assim, cabe não considerá-la de modo generalizante, ou seja, como uma estratégia da Igreja católica como um todo.

No Capítulo VII os temas do mercado religioso e da perda da hegemonia católica são abordados mais detidamente. O autor vai conformando sua hipótese de que a mídia católica cria e reforça a popularização do catolicismo nos moldes da espiritualidade carismática, mas para além dela. O trabalho é finalizado com uma análise do novo momento do catolicismo a partir da eleição do novo papa Bento XVI e a consideração de que muito provavelmente as diretrizes evangelizadoras de cunho conservador do papa João Paulo II se manterão com o novo papa e, sendo assim, se dará prosseguimento ao "espetáculo da evangelização".

O livro de André é cuidadoso na utilização de matérias jornalísticas sobre o tema, bem como dos periódicos semanais. O diálogo acadêmico é feito majoritariamente com cientistas sociais brasileiros, mas nem por isso perde em qualidade. Trata-se de um trabalho que pode servir como fonte relevante para outros estudos sobre as novidades do cenário católico no Brasil.

Referências

FERNANDES, Sílvia Regina A.. Renovação Carismática e o Demônio: notas do monitoramento da Revista Jesus Vive e é o Senhor. Mneme: Revista de Humanidades, Caicó: UFRN, v. 3, n. 6, 2002. Disponível em: <http://www.seol.com.br/mneme/026-p.htm>. Acesso em: 1 fev. 2003.

FERNANDES, Sílvia Regina A. "Ser padre pra ser santo"; "Ser freira pra servir": a construção social da vocação religiosa - uma análise comparativa entre rapazes e moças no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)-Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

MARIZ, Cecília. Católicos da libertação, católicos renovados e neopentecostais - estudo de caso no Rio de Janeiro. Cadernos CERIS, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 17-42, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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