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KOHN, Eduardo. How forests think: toward an anthropology beyond the human. Berkeley: University of California Press, 2013. 267 p.

KOHN, Eduardo. 2013. How forests think: toward an anthropology beyond the human. University of California Press, Berkeley: 267

How forests think, o título do livro soa intrigante. É possível afirmar que florestas pensam? Depois das críticas à centralidade do humano, do pós-humanismo, de toda discussão acerca do lugar dos não humanos na composição do mundo comum, talvez alguns de nós já estejamos convencidos de que os não humanos compartilham com os humanos a qualidade de agentes. Claro, desde que a noção de agência seja redefinida, deixe de estar vinculada a intenções, motivos, atribuição de significado, estes sim considerados como atributos exclusivamente humanos. O que dizer então diante da ousada (é bom acentuar este adjetivo) ideia de que florestas pensam? Antes de rejeitarmos a proposta de Kohn qualificando-a como uma tentativa inaceitável de conferir capacidades humanas, como as de pensar e representar, a outros tipos de entes não humanos, é bom saber que, sim, ele afirma claramente que animais e florestas podem pensar e representar. Mas aqui as próprias noções de pensamento e representação passam por uma redefinição radical, apoiada na filosofia de Peirce. Ele, entretanto, não se limita a atestar que outros entes mostram tais capacidades, Kohn pretende pensar as consequências disso para a nossa compreensão de sociedade, de cultura, de vida e do mundo em que habitamos. Além disso, ele se interroga acerca das modificações que isso produz nas práticas, nos métodos e no objeto da antropologia, uma disciplina, como o nome indica, voltada para o estudo do homem. A ambição de Kohn, portanto, está longe de ser modesta.

Considerando a originalidade e ousadia das ideias trazidas por Kohn e a dificuldade de sintetizar todos os seus argumentos em uma resenha, me proponho a apresentar brevemente algumas das questões e temas tratados na obra, para tentar mostrar que efetivamente vale a pena a leitura do livro.

Embora a tarefa a ser empreendida por Kohn envolva a tentativa de redefinir conceitos como o de pensamento e representação, o autor não qualifica o seu trabalho como uma realização exclusivamente teórica. Ao contrário, segundo ele, essa é uma investigação radicalmente etnográfica e rigorosamente empírica no sentido de que as questões que são tratadas no livro emergiram de sua experiência no campo. Portanto, embora não seja possível encontrar no livro uma narrativa etnográfica em seu sentido estrito, sua inspiração nasce da prolongada convivência com um grupo runa, residente em Ávila, no Equador. Não por acaso, ele anuncia a sua principal questão apresentando um relato de campo: tendo saído para caçar e pernoitar na floresta juntamente com alguns nativos, é aconselhado por um deles a não dormir com a cabeça para baixo, pois assim se um jaguar aparecer à noite não verá sua face, não saberá que ele pode mirá-lo, pode confundi-lo com uma presa (com carne morta) e atacá-lo mortalmente. Ao narrar esse episódio, Kohn apresenta a ideia fundamental desenvolvida no livro: outros tipos de seres nos veem e isso não é sem consequências para nós. Tal fato deve nos levar a reconhecer que ver, pensar, representar (isso mesmo, é essa a palavra que ele usa) não são atributos exclusivamente humanos. Ao menos é assim que as coisas são no mundo em que vivem os runas de Ávila. Mas é bom prestar atenção, o título do livro não é “Como os runas pensam a floresta” e, sim, “Como as florestas pensam”. Ou seja, assim como outros autores que pretendem alinhar antropologia e ontologia, ele não se propõe a descrever o ponto de vista dos nativos sobre o mundo, mas o próprio mundo em que os nativos (e ele também afinal) vivem (Carrithers et al., 2010CARRITHERS, M. et al. Ontology is just another word for culture: motion tabled at the 2008 Meeting of the Group for Debates in Anthropological Theory, University of Manchester. Critique of Anthropology, London, v. 30, n. 2, p. 152-200, 2010.).

Foi por conta de seu empenho em prestar atenção à forma como as pessoas em Ávila se relacionavam com diferentes tipos de criaturas, como jaguares, cães, pássaros e insetos, e por observar o esforço que despendiam para encontrar um caminho de comunicação com todos esses seres, que emergiu para Kohn um problema de natureza geral: o da existência de pensamento em outras formas de vida não humanas. Por que tanto empenho dos runas? As pessoas em Ávila habitam as bordas da floresta amazônica; para viver plantam hortas, pescam e caçam, por isso, precisam interagir com uma miríade de entidades não humanas que povoam o denso ambiente da selva. Por exemplo, elas convivem intimamente com jaguares (palavra que pode denotar tanto uma espécie animal singular quanto ser usada para designar predador de modo genérico), intimidade que implica o risco real de ser devorado por eles. Mas também por vezes eles, os runas, são predadores que entram na floresta em busca de caça. Isso revela o inevitável enredamento do mundo humano em relações com essas outras criaturas. O que devem, então, fazer os antropólogos com essas criaturas? Como abordá-las? O livro tenta responder a essas indagações.

Kohn reconhece que não foi o primeiro a se deixar interpelar pelos não humanos. Os estudos de ciência e tecnologia, bem como os estudos multiespécies já tocaram previamente nessas questões. E ele se sente em certa medida afinado às correntes pós-humanistas. Entretanto, o viés antirrepresentacionalista dessas abordagens o distancia delas, posto que ele pretende desenvolver, a partir da semiótica de Peirce, a ideia de que processos representacionais fundamentam qualquer pensamento e estão presentes em todas as formas de vida, mesmo nas não humanas.

Como ele sustenta, então, que qualquer ente vivo é capaz de pensar? Primeiro, para ele, é preciso descartar os pressupostos sobre o que é representação e ampliar seu sentido para além do linguístico e simbólico. Com efeito, argumenta Kohn, a forma humana da linguagem simbólica emerge de outras formas de representação como a icônica e a indicial, modalidades não exclusivas do humano, que compartilhamos com outras criaturas.

O signo icônico imita o acontecimento e abre o próprio mundo, sem se remeter apenas aos contextos humanos, estendendo-se para além deles. Por exemplo, o som produzido por um porco do mato ao mergulhar no rio enquanto escapa do caçador é uma representação direta do acontecimento. Pode ser compreendido pelo caçador que se dá conta da fuga de sua presa, mas também por outras entidades presentes à situação. Um som análogo ao do mergulho, “tchibum”, pode ser depois reproduzido em uma conversa na aldeia pelo caçador que narra sua malsucedida tentativa de caçar o animal.

O signo indicial, por sua vez, supõe uma relação de contiguidade com aquilo que é representado. Por exemplo, tomemos o célebre caso apresentado por Von Uexküll (2010)VON UEXKÜLL, J. A foray into the worlds of animals and human. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010. do comportamento do carrapato. Ao sentir o odor do ácido butírico emitido por animais de sangue quente, ele toma esse signo como indício de sua aproximação e se prepara para desgarrar suas patas da planta onde está suspenso e tentar cair sobre o mamífero que passará por ele em seguida. O odor aponta para algo que não está presente, mas virá proximamente. Nesse sentido, todo signo indicial assinala uma ausência.

Para Kohn tanto os ícones quanto os indícios são modos de representação que compartilhamos com outras criaturas vivas. Para ele o que caracteriza a vida e a distingue do “mundo físico inanimado é que as formas de vida representam o mundo de algum modo e estas representações são intrínsecas aos seus seres. A vida é constitutivamente semiótica.” (p. 9).

Ele usa no trecho acima o termo “intrínseco”, mas isso não significa que os signos sejam indiferenciados para todos os seres ou que resultem de algum processo interno a cada organismo. Podemos entender melhor o que ele pretende dizer recuperando o exemplo do carrapato. Primeiro, signos são vivos na medida em que são interpretados por um outro, em uma cadeia semiótica que se estende na direção de um futuro possível, no caso, a passagem iminente do animal. Segundo, a resposta do carrapato ao odor não é, do ponto de vista de Kohn, de natureza mecânica e individual da espécie. Ela resulta de hábitos de entidades (plantas, mamíferos, carrapatos, entre outros) que coevoluíram na floresta. A floresta tropical é para ele é uma teia proliferante de hábitos que evoluíram conjuntamente, de tal modo que ela se converte em uma complexa entidade viva, por isso capaz de pensar. E os signos, por sua vez, são vivos justamente porque fazem parte de um processo relacional, de uma dinâmica através da qual ganham um devir, brotam e produzem efeitos no mundo.

Assim, runas, cães, predadores e presas, criaturas da floresta, espíritos e outras entidades fazem parte de uma ecologia que faz com que cada um deles seja o que é. Sem dúvida, esse emaranhamento de entes que os coconstitui é extremamente complexo, mas não inapreensível. O modo de compreendê-lo é prestando cuidadosa atenção aos modos como a comunicação com essas entidades é experimentalmente empreendida. Pois, por mais que os humanos gozem de relações íntimas com seus cães, por exemplo, eles nunca sabem com total certeza o que os cachorros pensam. Contudo, eles podem ter bons palpites sobre isso. É importante acentuar que a teoria da relação proposta por Kohn não começa com a busca de conhecimento seguro, mas com intuições provisórias que as pessoas são levadas a fazer sobre seus cães ou sobre outros entes vivos com os quais convivem. E tal teoria tampouco toma como ponto de partida a existência de diferenças irredutíveis, nem seu oposto, a compreensão absoluta. Para ele alteridade absoluta, incomensurabilidade, diferença irredutível são obstáculos que nossas teorias precisam superar. Há similaridades, este é o ponto de partida, embora a incompreensão seja sempre uma possibilidade presente. Sem dúvida, a comunicação transespécies é um negócio perigoso, pois é preciso evitar, de um lado, a completa transmutação do humano em outro – ninguém quer se tornar permanentemente um cachorro – e, de outro, o isolamento monádico representado pela cegueira da alma que impede qualquer compreensão. Para mitigar esses riscos as pessoas em Ávila lançam mão de diferentes estratégias comunicativas entre espécies e procuram aprender como habitar os variados pontos de vista encarnados. Os runas são perspectivistas no sentido dado a esse termo por Viveiros de Castro (2003)VIVEIROS DE CASTRO, E. And: after-dinner speech given at Anthropology and Science, the 5th Decennial Conference of the Association of Social Anthropologists of the UK and Commonwealth, 2003. Manchester: Department of Social Anthropology, University of Manchester, 2003. (Manchester Papers in Social Anthropology, n. 7).. Para eles, não humanos são também pessoas, ou seja, veem a si mesmo como pessoas, embora não sejam vistos da mesma forma por outros animais. Esse tipo de animismo, segundo Kohn, nasce da necessidade de interagir com selves semióticos em sua diversidade e é fundado em um fato ontológico: há outros tipos de selves pensantes além dos humanos. Além disso, o animismo runa é pragmaticamente orientado, pois eles se engajam intimamente com os seres da floresta para, em grande medida, comê-los. Isso requer sintonia, afinidades compartilhadas com outros selves, ao mesmo tempo reconhecimento de diferenças que marcam as distinções entre os variados tipos de selves que povoam a floresta (p. 96). É claro que a convivência com outros tipos de selves, o reconhecimento de que eles são pessoas não implica que as relações sejam simétricas; na verdade, viver nessa ecologia implica em várias ocasiões transformar um self em objeto, por exemplo, transformar um animal vivo em carne a ser comida e compartilhada com outros runas, ou mesmo usar os cães que são companheiros como ferramentas na caça. Isso também faz parte dessa vasta ecologia de selves que faz da floresta uma entidade múltipla e viva.

Muitos autores antes de Kohn já observaram a peculiaridade da relação de povos amazônicos com os animais, como Viveiros de Castro (2003), mencionado acima. Outros procuraram mostrar que os animais respondem, mais do que meramente reagem de modos automáticos às situações e relações (por exemplo, Despret, 2008DESPRET, V. The becomings of subjectivity in animal worlds. Subjectivity, Basingstoke, v. 23, n. 1, p. 123-139, 2008. e Haraway, 2011HARAWAY, D. A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 27-64, jan./jun. 2011.). Porém, a tentativa de Kohn se diferencia das propostas destes autores porque ele procura especificar o modo como se dá a comunicação e o compartilhamento do mundo entre humanos e outras criaturas vivas com as quais convivem. Além disso, ele pretende pensar as consequências disso para a antropologia.

Ao final, voltemos à pergunta de Kohn, por que a antropologia deve olhar para esse vasto mundo além do humano? Para Kohn, olhar para essas outras criaturas que “devolvem o nosso olhar, e que olham conosco” nos leva a descobrir que elas são parte do que somos, que suas vidas que se estendem bem além de nós, e “pode nos dizer algo sobre como aquilo que jaz além do humano também nos sustenta e nos faz os seres que somos e aquilo que podemos devir” (p. 221). Além disso, a riqueza da ecologia de selves mostrada por ele depende, para continuar a existir, do florescer contínuo da densa ecologia não humana, bem como dos humanos que se engajam nessa ecologia. Se muitos dos elementos que compõem essa ecologia desparecerem, se esse modo de vida particular chegar ao fim, será preciso lamentar sua ausência, pois deixaremos de apreciar um mundo em que a atenção a várias lógicas de vida e ao modo de pensar da floresta são cultivados, algo de que teremos todos que cuidar se pretendemos sobreviver ao antropoceno.

Referências

  • 1
    CARRITHERS, M. et al. Ontology is just another word for culture: motion tabled at the 2008 Meeting of the Group for Debates in Anthropological Theory, University of Manchester. Critique of Anthropology, London, v. 30, n. 2, p. 152-200, 2010.
  • 2
    DESPRET, V. The becomings of subjectivity in animal worlds. Subjectivity, Basingstoke, v. 23, n. 1, p. 123-139, 2008.
  • 3
    HARAWAY, D. A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 27-64, jan./jun. 2011.
  • 4
    VIVEIROS DE CASTRO, E. And: after-dinner speech given at Anthropology and Science, the 5th Decennial Conference of the Association of Social Anthropologists of the UK and Commonwealth, 2003. Manchester: Department of Social Anthropology, University of Manchester, 2003. (Manchester Papers in Social Anthropology, n. 7).
  • 5
    VON UEXKÜLL, J. A foray into the worlds of animals and human Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015
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