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Apresentação

O desafio que originou esta edição de Horizontes Antropológicos foi o de aproximar a tradição de pesquisa em torno da cultura oral, inaugurada por estudiosos do folclore popular, e dos estudos clássicos sobre narrativa no âmbito das sociedades complexas moderno-contemporâneas.

Tal aproximação pode gerar implicações epistemológicas e metodológicas para ambos os campos de conhecimento tematizados a seguir, em termos das possíveis tensões paradigmáticas que podem vir a ser pontuadas entre as diferentes tradições de pensamento, oral e escrita, que orientam a conformação dos estudos de narrativas. As diferenças e aproximações entre ambas as tradições são aqui retratadas em muitos dos artigos que compõe esta publicação e podem fornecer novas perspectivas teóricas e metodológicas de investigação antropológica para aqueles que dirigem seu interesse para o estudo abrangente das culturas e linguagens humanas.

Nesta apresentação permitimo-nos destacar alguns pontos precisos abordados pelos autores que colaboram neste número de Horizontes Antropológicos, que também apontam para a riqueza de suas idéias. Por um lado, muitos autores ressaltam o complexo problema da tradução de significados culturais que constitui o trabalho de pesquisa etnográfica quando esta dirige-se para os estudos de narrativas, sob a ótica singular da “cultura oral”. Por outro lado, os autores reforçam a necessidade de re-invenção de técnicas e procedimentos metodológicos clássicos em Antropologia. Isto se dá em razão do tratamento diferencial do processo de tradução que abarca os estudos de narrativas, ou que resulta, muitas vezes, re-orientações em suas áreas de conhecimento, como o caso do que se convencionou nominar “cultura oral”.

Neste sentido, esta publicação visa a contribuir para a compreensão das próprias fronteiras do conhecimento antropológico naquilo que o constitui, ou seja, seu lugar a-tópico, lugar não-lugar, e no interior do qual se inscreve o próprio trabalho de exegese do pensamento do etnógrafo.

Isto posto, o ato de leitura, silenciosa e individual, dos artigos aqui apresentados exigido pela própria tradição oriunda da cultura escrita é, antes de tudo, um convite para se pensar o personagem do antropólogo, herdeiro de uma comunidade lingüística, ela própria uma comunidade de vida. Mergulhado num jogo dialético de sistemas e experiências, o antropólogo constitui-se na figura do narrador de experiências de vida, dos contextos sócio-culturais e dos processos históricos em que estas foram constituídas, à luz dos instrumentos de vigilância epistemológica do ethos científico.

Reunir temas como cultura oral e narrativa numa publicação, tem aqui um estatuto de provocação para nós, antropólogos, confrontados com o problema hermenêutico e preocupados que estamos, no momento do trabalho de campo, com a construção do encontro ou do diálogo etnográfico, ou mesmo com a autoridade etnográfica durante o processo de escritura dos resultados de nossas pesquisas, principalmente quando o fato etnográfico é gerado na interação com grupos sociais que não compartilham plenamente seu universo simbólico letrado e erudito.

Nesta perspectiva, esta publicação não encerra um debate, ao contrário, ela serve a um trabalho de descoberta das múltiplas intenções dos autores dos textos aqui apresentados, onde o sentido original de suas palavras não é jamais finito, rebatendo-se uns aos outros. Ato de leitura que, esperamos, encerre a possibilidade do leitor abrir-se para a compreensão do fenômeno que rege a formação de juízos reflexivos e teleológicos que configura a construção do método etnográfico.

Sabe-se, pela prática acadêmica, que as implicações epistemológicas e metodológicas da polêmica instaurada pelos pós-modernos se traduzem numa rica profusão de estudos sobre narrativa no âmbito da Antropologia, muito embora elas nem sempre se disseminem com a mesma força para outras áreas de conhecimento correlatas, como é o caso, por exemplo, dos estudos clássicos sobre o tema da cultura oral propriamente dita realizados por antropólogos.

Cultura oral e narrativa é, portanto, um título muito apropriado para este número de Horizontes Antropológicos. Com ele propomos recolocar a importância de se encontrar a unidade entre as tradições oral e escrita como parte de um único e mesmo fenômeno que constrói o ofício do antropólogo. Reuni-las num conjunto de artigos é a promessa esperada de que o sentido das vidas vividas por inúmeros antropólogos e por muitos outros, e que inspiraram seus relatos e descrições, se perpetue, através da leitura deste número de Horizontes Antropológicos. Isto porque “quem ouve uma história está na companhia do narrador; mesmo quem lê participa dessa companhia”.1 1 Expressão cunhada pelas autoras inspiradas em Walter Benjamin.

Podemos sugerir que três sessões organizam logicamente a seqüência dos textos. Inicialmente propomos os estudos de narrativa como uma rica fonte de aprendizagens para os antropólogos na medida em que permitem a ele refletir sobre as condições epistemológicas que orientam sua prática profissional, refletindo sobre a compreensão narrativa como projeto (hermenêutico) que tece um encontro de paradigmas para encontrar aí tensões internas à própria disciplina. Justamente neste saber explodido, sugere-se captar a produção de conhecimento sobre as refigurações das experiências do tempo e as estéticas narrativas sobre o mundo. Assim, situamos os textos de Esther Jean Langdon – A fixação da narrativa: do mito para a poética de literatura oral, de Raúl Díaz – Personaje e identidad narrativa: una aproximación metodológica, seguido de Mauro Guilherme Pinheiro Koury – Imagem e narrativa ou, existe um discurso da imagem?; de Rita Laura Segato – El vacío y su frontera: Ia búsqueda del otro lado en dos textos argentinos; de José Bizerril – O território da confluência poética e antropologia e de Sônia Weidner Maluf – Antropologia, narrativas e a busca de sentido.

O enfoque biográfico conforma uma segunda sessão. O gênero das histórias contadas refletem experiências culturais onde a história oral como o instrumental do historiador, ou a experiências de vida narradas e observadas diretamente pelos etnógrafos, constituem da mesma forma instrumentos da arte de contar. Assim os artigos de Claudia de Lima Costa – The (mis)uses of life histories the linguistic turn, life histories and (women’s) life stories; o de Núbia Rodrigues e Carlos Caroso – A Sina de curar: a palavra de um terapeuta religioso, o de Alain Giami – Parler de sexualité: subjectivité et singularité de l’expérience individuelle, o de Benito Bisso Schmidt – Anita Xavier da Costa: memórias da filha de um pioneiro do socialismo no Rio Grande do Sul – da fogueira das lembranças ao álbum de recordações e o texto em co-autoria de Maria Cristina Belloc, Andrea Dupuy e Silvia Pérez – Migraciones estudiantiles: un abordaje interdisciplinario desde Ias historias de vida, tecem as teias de consciências reflexivas que re-situam as reminiscências em ação que fluem os acontecimentos reinterpretados na memória de narradores.

Uma última sessão é composta de textos que enfocam a cultura oral como forma de re-atualizar o passado e de re-interpretar o presente na linguagem da tradição. Os textos de Luciana Hartmann – Oralidade, corpo e memória entre contadores e contadoras de causo gaúchos; o de Julie Cavignac -Vozes da tradição; reflexões preliminares sobre o tratamento do texto narrativo em antropologia; e o de Eduardo Diatahy B. de Menezes – Das classificações por ciclos temáticos da narrativa popular em verso: uma querela inútil, dão ritmo as formas de reinvenção da tradição, na expressão singular de dominar o tempo, a desordem, que a linguagem mítica estetiza.

O relato de Pierre Sanchis – Impressões da Rússia –, apresentado em Espaço Aberto como uma experiência humana etnográfica, em sua dimensão espaço-temporal, sob a forma de uma narrativa poética, por estar a fim com a temática deste número de Horizontes Antropológicos, também contribui para sua compreensão.

Por último, e não menos importante, queremos agradecer a todos os colaboradores desta Revista temática e, em especial, expressar nossa gratidão ao acadêmico Rafael Victorino Devos (BIC Cnpq) pelo belo trabalho de ilustração da capa e a antropóloga Liliane Guterres, por sua valiosa colaboração na organização do material publicado, além das sugestões com as quais acresceu a elaboração deste periódico.

Cornelia EckertAna Luiza Carvalho da Rocha

  • 1
    Expressão cunhada pelas autoras inspiradas em Walter Benjamin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 1999
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