Acessibilidade / Reportar erro

O imaginário e o poético nas Ciências Sociais

RESENHAS

Martins, José de Souza; Eckert, Cornelia; Caiuby Novaes, Sylvia (Org.). O imaginário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru: Edusc, 2005. 328 p.

Nilton Bueno Fischer

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

Este livro, organizado por duas antropólogas (Cornelia Eckert - UFRGS e Sylvia Caiuby Novaes - USP) e um sociólogo (José de Souza Martins - USP), editado pela Edusc no ano de 2005, propõe e desenvolve uma instigante, qualificada e sensível contribuição, para a produção científica em nosso país, na área das ciências sociais e humanas. Esta obra trata de oportunizar, também ao "leitor ampliado", além do mundo acadêmico, um diferenciado, inovador e "convidativo" acesso aos textos de diversos autores, brasileiros e pesquisadores, em sua maioria, de diferentes instituições e a partir de diferentes "objetos" e inserções profissionais. Na forma de coletânea, 11 autores socializam suas sensibilidades a partir de uma plural e harmoniosa combinação de ênfases em torno da centralidade dos objetivos propostos, e muito bem anunciados na introdução, pelos seus organizadores: "nosso objetivo, na organização do livro, foi conjugar reflexões sobre experiências concretas de pesquisa nas ciências sociais que têm como reparo estranhos recursos e fascinantes descobertas" (p. 9).

Embora possa parecer uma inovação, fruto de inúmeras e contemporâneas discussões a respeito da "linguagem científica" estamos diante de uma fluida interação desses autores também com suas próprias fontes teóricas, incluindo muitos clássicos das ciências sociais, mediada por um sólido trabalho empírico. Essa interação resulta num processo comunicativo daquilo que é muitas vezes produzido e "represado" por tantos colegas, tornando o plano da produção mais privilegiado em detrimento ao da circulação. Nesse caso estamos diante da indissociável combinação entre esses dois momentos destacando sua perspectiva "comunicativa" inovadora, pela linguagem da imagem. Essa coletânea resulta de uma atividade desenvolvida na reunião da Anpocs de 2004. O reconhecimento dessa origem não significa uma destinação cativa ao terreno das ciências sociais. Da forma como foi concebido, o resultado material desse encontro transcende sua "origem" para repercutir intensamente em outras áreas do conhecimento. A linguagem da imagem serve como importante subsídio aos pesquisadores que não se contentam em usar esse recurso como "apêndice ilustrativo" ou utilitarista de suas investigações.

Neste momento interessa nos perguntarmos como surge uma produção dessa natureza dentro da tradição acadêmica? Que inquietações se instituíram para motivar esses autores e organizadores a colocarem essas suas "reflexões" para os leitores de língua portuguesa? E por que agora, nestes tempos? Ao longo dos diferentes capítulos, certamente o leitor encontrará preciosidades, através dos depoimentos a respeito de como foram "fisgados" pela vontade em explorar, reflexivamente, suas aproximações com essa forma comunicativa da pesquisa, por meio da "imagem". Insisto nesse aspecto, pois muitos dos autores abriram seus corações e mentes na forma de desenvolver seus argumentos. Remeto que sejam observados depoimentos que iniciam pela formação que tiveram aqueles autores em outras áreas do conhecimento, anterior ao processo de suas aproximações com "a antropologia visual". Pelo resultado podemos dizer que houve uma conexão, entre todos, por meio de uma sensibilidade para com o outro, fonte de todas nossas inquietações de pesquisa, independente do objeto de cada um. Há, entretanto, uma relação muita bem feita entre autores dos capítulos, com mútuas citações e estes com relação aos colegas que foram responsáveis pela organização do livro. Esse mérito é um tanto raro em coletâneas dessa natureza, pois oportuniza que a independência de pensamento dos autores se expresse também dentro de um patamar comum de reflexões.

A diversidade dos textos também se expressa na forma "concreta" através, por exemplo, nas diversas dimensões de cada capítulo e na própria estrutura e redação dos mesmos. Textos descritivos são encontrados nos quais se pode perceber o "movimento", como uma espécie de depoimento de seus autores frente ao objeto do seminário. Outros, entretanto, se apresentam com uma formatação mais clássica e que vão se entremeando com outros textos, nos quais constam ilustrações e suas respectivas análises.

Fruto dessa diversidade, também se navega nos tempos desde o final do século XIX até nossos dias. As presenças da história e da antropologia predominam, complementarmente. As fontes são também representativas desses períodos, tanto no exame das fotos tiradas por terceiros como pelos próprios pesquisadores. Essa riqueza, pela diversidade, é muito instigante. Por outro lado há um outro elemento, a corporeidade (artesania rural). Fugindo aos procedimentos analíticos de ordem maniqueísta, reducionista, binária, os temas como classes sociais, assentamentos rurais, favelas, os espaços da rua, etc., tudo vai desfilando no mundo do "sensível". O sensível já se apresenta na capa, com tons ocres: a ilustração do Concerto de Flauta de Frederico, o Grande, pode nos levar para uma viagem no tempo, numa compreensão nova do passado. Pois, lendo o livro em sua íntegra, poderemos nos autorizar a fazermos livres associações com essa cena, talvez como um sarau literário-acadêmico, cujas cores ocres desvelariam a "terra" como local do enraizamento das pesquisas diversas e, ao mesmo tempo, sua socialização, num ambiente de fruição que inclui a produção e a recepção do "produzido". Também o leitor terá aguçado sua fruição estética ao seguir as 60 ilustrações, com detalhes técnicos diversos (foco destacado, cores, desenhos e mapas), distribuídas em cerca de quase metade (cinco) dos 11 capítulos.

Trata-se de uma obra que inclui temas que vão desde oficinas de argila e memória, passando pela fotografia e os espaços da cidade, pelo reconhecimento do fazer musical, pintores e contextos históricos de suas produções, das imagens da colonização representadas nas imagens do sagrado, a importância do cinema documental, do documento visual e a produção de documentário na construção do conhecimento. Mas o que vai nos impregnando é o tratamento respeitoso aos múltiplos "outros" presentes por detrás de cada um desses temas. Dessa forma são feitas reflexivas observações a respeito dos indispensáveis cuidados que a mediação da pesquisa deve ter com relação aos diversos sujeitos em seus diferentes contextos sócio-históricos. Assim, ao longo dos seus 11 capítulos temos a agradável companhia de historiadores, antropólogos, diretores de cinema bem como das 60 ilustrações, e uma leitura que interage com os tempos, desde o século XIX até o XXI.

Vale salientar que os autores se complementam também nas suas inserções, relacionadas com os temas enfocados. Assim as contribuições vão se desdobrando em formas reflexivas, privilegiando o campo teórico, discutindo categorias de análise, e outras estão dentro de uma matriz que une conhecimento e ações concretas. Esse entrelaçamento de focos produz uma pluralidade de contribuições que afetam a produção acadêmica e também revelam intenções de alguns autores em incidir nas ações desenvolvidas por agentes de mediação e também na formulação de políticas públicas a respeito dos sujeitos "pesquisados" (como é o caso dos dois últimos capítulos - internos da Febem e populações assentadas em projetos de geração de renda).

Qual é o "saldo" de tudo isto? São vários os "ganhos" e resumo numa só palavra: convite!

Sim, trata-se de um texto, amealhado por tantas mãos, que desvela os caminhos percorridos, pessoais e profissionais, pelos seus autores em suas inquietações de pesquisa, tanto na escolha dos objetos como na sua produção e circulação. Mas é de se registrar também que se trata de um convite que demanda "compromisso", de parte do sujeito pesquisador, em compreender a riqueza e complexidade em tentar conhecer esse "outro" (do métier da pesquisa) numa assunção do ato em si. Isso envolve o estranhamento e o limite de que o que está sendo revelado (objeto) nunca é o que estamos revelando!

Um outro ganho desse trabalho feito pelos colegas está no ato de evidenciar semelhantes inspirações feitas por outros autores, de outras paragens. Assim, vale lembrar outro texto, quase com um mesmo título, das paragens da Itália, presente no livro organizado por Alberto Melucci, denominado Políticas e Poéticas do Texto Sociológico (Tota, 2005). Embora com ênfase na escrita, no texto científico, são produções que se complementam em seus enfoques na direção de revelar criatividades na produção acadêmica, via incorporação de novas linguagens, sem diminuir na sua qualidade e exigências bem como na rigorosidade científica. Nas palavras de Tota (2005, p. 290) se capta a busca comum que está presente também em todos os textos do livro resenhado: "[...] analisar as poéticas que informam as práticas de escrita é um modo de olhar as políticas que compreendem uma fase particular do trabalho científico, aquela da comunicação dos resultados". Na apresentação do livro os organizadores também enfatizam esse caráter comunicativo, ao assim dizerem: "Nosso desafio é o de uma comunicação experimental que traga ao plano do conhecimento as imagens da vida em sociedade e seu questionamento de representações verossímeis." (p. 10).

Aceitemos o convite de uma prazerosa leitura!

Referência

TOTA, Anna Lisa. Políticas e poéticas do texto sociológico - as retóricas da argumentação científica. In: MELUCCI, Alberto (Org.). Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br