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As musicovivências do reggae e suas pulsões de (re)existência

The musical experiences of reggae and its impulses of resistance and (re)existence

Resumo

O presente artigo versa sobre as musicovivências do reggae, enquanto estética musical que emerge das condições impostas pelos processos de colonização, racialização e subalternização na Jamaica. Busco discutir as relações estabelecidas entre os elementos de formação do estilo musical jamaicano e sua constituição como expressão do processo de (re)existências das populações afrodiaspóricas nas Américas. A metodologia de análise utilizada para consecução da pesquisa atrelou dois elementos: uma revisão de literatura, reconstituindo os processos sócio-históricos e culturais que serviram de base para a formação do reggae, e o seu intercruzamento com os elementos biográficos dos principais músicos de reggae jamaicano, entre as décadas de 1960 e 1980. Busca-se assim delimitar a peculiaridade da relação entre música reggae e o cotidiano periférico vivenciado pelos músicos na composição do reggae. Demonstro as condições e estratégias de produção de um estilo que considero outsider, em relação ao estilo estético ocidental.

Palavras-chave:
reggae; musicovivência; (re)existência; descolonização

Abstract

The present article considers the musical experiences of reggae, as an aesthetic that emerges out of conditions imposed by processes of colonization, racialization and subalternization in Jamaica. I seek to discuss the relationships established between the elements that make up this Jamaican musical style and its formation as an expression of the process of (re)existence of Afrodiasporic populations in the Americas. The methodology of analysis used to develop this research involved two strands: a revision of the literature, reconstituting the socio-historical and cultural contexts that acted as a foundation for the emergence of reggae, and their interconnections with the biographical narratives of the main Jamaican reggae musicians between the 1960s and 80s. Seeking in this manner to outline the particularity of the relationship between reggae and the day-to-day experience of marginalization of the musicians in the emergence of reggae, I present the conditions and strategies for the production of a musical genre that I consider to be an outsider in relation to the Western aesthetic model.

Keywords:
reggae; musical experience; (re)existence; decolonization

Introdução

Debruçar-se sobre o processo de formação do reggae jamaicano, como uma das formas de (re)existência dos afrodiaspóricos nas Américas, requer que nos apropriemos do contexto histórico e dos cenários que serviram de base para conformação estética desse estilo musical do Atlântico negro. Nesse sentido, a retomada dos elementos históricos e de dados biográficos de alguns personagens importantes na trajetória do reggae jamaicano cumprirão aqui condições sine qua non à nossa compreensão.

Para consecução desses objetivos de pesquisa, optei metodologicamente por uma estratégia de investigação sócio-histórica e biográfica, que permitiu compreender o reggae jamaicano a partir das narrativas de vivências dos corpos pretos de Rita Marley, Bob Marley e Peter Tosh, localizados em um cenário complexo de relações entre o indivíduo, suas inscrições e seus cotidianos (History, [2018a]HISTORY. Early years. In: PETER TOSH. [S. l.]: Peter Tosh Estate, [2018a]. Disponível em: Disponível em: https://petertosh.com/history/ . Acesso em: 15 dez. 2018.
https://petertosh.com/history/...
, [2018b]HISTORY. The Wailers. In: PETER TOSH. [S. l.]: Peter Tosh Estate, [2018b]. Disponível em: Disponível em: https://petertosh.com/history/ . Acesso em: 15 dez. 2018.
https://petertosh.com/history/...
; Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004.; White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011.). Foram utilizadas como técnica de investigação a revisão de literatura, a coleta de materiais sócio-históricos e biográficos por meio virtuais, e a análise de conteúdo documental. Nesse sentido, o escopo desta investigação se constitui por livros biográficos e sócio-histórico sobre o reggae, materiais audiovisuais, e matérias de jornais e revistas. Porém, os desafios apresentados para radiografar o processo de formação do reggae jamaicano, com base nas vivências musicais de um mundo racializado, foram inúmeros. A história das existências negras em diáspora é marcada pelo assalto de suas memórias e pela fratura das suas inscrições no mundo.

A música reggae desponta no século XX, assim como uma diversidade de expressões criadas pelas condições da diáspora pelos afrodiaspóricos nas Américas, como uma forma sociocultural engajada pela luta contra o colonialismo. A autoria dessas canções do Atlântico negro compõe um movimento outsider diante de uma estética vinculada aos padrões colonialistas.

Os percursos estéticos que seguiram o reggae jamaicano compartilham a mesma aura estética insurgente que a escritora Maria da Conceição Evaristo (2017)EVARISTO, M. da C. Conceição Evaristo: ‘minha escrita é contaminada pela condição de mulher negra’. Entrevista a Juliana Domingos de Lima. Nexo, [s. l.], 26 maio 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/05/26/Concei%C3%A7%C3%A3o-Evaristo-%E2%80%98minha-escrita-%C3%A9-contaminada-pela-condi%C3%A7%C3%A3o-de-mulher-negra%E2%80%99 . Acesso em: 18 jan. 2018.
https://www.nexojornal.com.br/entrevista...
preconiza ao falar da escrita literária afrodiaspórica em realidades brasileiras, ao apontar uma escrita intitulada de escrevivência, cujo objetivo “não é para adormecer os da Casa Grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (Evaristo, 2017EVARISTO, M. da C. Conceição Evaristo: ‘minha escrita é contaminada pela condição de mulher negra’. Entrevista a Juliana Domingos de Lima. Nexo, [s. l.], 26 maio 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/05/26/Concei%C3%A7%C3%A3o-Evaristo-%E2%80%98minha-escrita-%C3%A9-contaminada-pela-condi%C3%A7%C3%A3o-de-mulher-negra%E2%80%99 . Acesso em: 18 jan. 2018.
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).

Se a escrevivência emerge na literatura afro-brasileira enquanto uma escrita vinculada à vivência negra, as musicovivências eclodem na música afro-jamaicanas a partir de subjetividades que se alicerçam em sentimentos coletivos de existências que foram insistentemente negadas. Em forma de reggae, elas propagam os sentimentos, as dores, as alegrias, os gritos e os sussurros que emergem dos guetos do Caribe. Nesse sentido, denomino de musicovivência a práxis sonora desses três astros do reggae, que transformaram suas vivências nas periferias de Kingston, capital da Jamaica, e suas experiências afrodiaspóricas nas principais inspirações para a produção de suas músicas.

Na primeira seção, é apresentada uma discussão acerca do colonialismo e do seu modelo estético para explorar a relação deste modelo com a música popular nas Américas. Depois, apresento o estilo reggae jamaicano, construído a partir de um cenário de colonialidade, mas também de (re)existência, como um estilo outsider frente a um padrão estético colonial. Por fim, caminho para algumas considerações finais sobre como o estilo jamaicano, através de suas bases sonoras populares, manteve suas características estéticas em seu processo de internacionalização.

O colonialismo, seus sistemas estéticos e a música popular nas Américas

Em um mundo marcado pelo colonialismo e pela colonialidade do poder as formas de dominação socioculturais estão alicerçadas na tentativa de imposição de padrões de existência. Nesse cenário, tornou-se comum no campo da música a universalização dos pressupostos ocidentais, enquanto um parâmetro de forma/conteúdo. A música passou a ser vivida como se fosse um advento da civilização ocidental ou, por outro viés de entendimento, como se ela tivesse assumido a sua expressão mais virtuosa no Ocidente (Quijano, 2006QUIJANO, A. Colonialidade e modernidade-racionalidade. In: BONILLA, H. Os conquistados: 1492 e a população indígena das Américas. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 417-426.).

Assim, mesmo quando as visões modernas sobre a música perpassam por uma diversidade, tal pluralidade sempre esteve situada nos horizontes construídos por uma forma/conteúdo de fazer música que se associa aos padrões estéticos dos grandes centros do mundo ocidental euro-americano. Dos parâmetros hegelianos de música romântica às rupturas antissistemas da música negativa adorniana, de um lado a outro desses extremos, os critérios de análises musicais circunscrevem-se pelo privilégio a certos aspectos, que foram historicamente relevantes na tradição ocidental. Tais análises estão ensimesmadas na zona da racionalidade iluminista, com sua estrutura estética regida pela mensuração da suposta complexidade organizacional de suas elaborações.

A compreensão do campo da tradição musical ocidental estava presa à perspectiva iluminista de valorização da existência reflexiva. Esse entendimento se tornou um infortúnio, quando manipulado para hierarquizar os seres humanos e as suas sonoridades, a partir da definição de parâmetros de originalidade e complexidade, conformando o campo da música como um espelho do modo de existência colonialista.

Tais condições fizeram com que as tradições musicais ocidentais passassem a negar/diminuir as heranças do contato com outras formas/conteúdos de musicalidade, de outros povos e territórios. Assim, a história do Ocidente euro-americano, em suas mais diversas dimensões estéticas, está associada à sua longa relação de conflitos e dominação sobre outros territórios e povos, estabelecendo estruturas coloniais de hierarquização e distinção entre as formas de existência coloniais e as colonizadas, concomitante com um processo de exploração das riquezas materiais e simbólicas. Em suma, as teorias musicais ocidentais, embora tentem afirmar a pureza de sua musicalidade, comportam traços sonoros que acusam uma forte influência de outras culturais musicais em sua conformação.

Por exemplo, podemos lançar um olhar sobre as experiências do colonialismo ocidental e como estão associadas tanto ao terror das formas de dominação e exploração europeias, sobre povos não ocidentais, quanto a processos de troca, que envolveram os contatos desses povos com novas formas de existências, perpassando elementos musicais. Como nos relata Pahlen (1963PAHLEN, K. A história universal da música. 3. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1963., p. 305), sobre os primeiros contatos dos navegantes europeus com a musicalidade indígena:

Aventureiros, guerreiros e sacerdotes formam a vanguarda da Europa quando este continente, que se aproximava do apogeu, descobre a América, pelos fins do século XV. Em primeiro lugar são espanhóis e portugueses os realizadores das portentosas viagens que ampliam enormemente a terra. Recai sobre eles, ainda que só excepcionalmente pertençam às camadas mais cultas dos seus países, o reflexo de uma brilhante vida espiritual e artística, que naquele tempo animava cidades e universidades da Europa. A música índia, ao se lhes deparar no novo continente, parece-lhes na sua maioria primitiva, estranha, feia, assim como, aproximadamente mil anos antes, pareceu aos romanos a música das tribos da Europa Central.

No entanto, ao seguir os caminhos ditados pela lógica civilizatória colonial, o percurso trilhado pelo contato, entre culturas e povos tão díspares, seguiu o que foi determinado pelo projeto colonial. No campo da musicalidade, as sonoridades ocidentais afirmaram-se em detrimento das demais. Segundo Carvalho (1992)CARVALHO, J. J. de. Estéticas da opacidade e da transparência: mito, música e ritual no culto xangô e na tradição erudita ocidental. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992., as tradições musicais europeias modernas estão fundamentadas pelo modelo de racionalidade científica e certo autoconhecimento, que seriam peculiares à sociedade moderna. Para o autor, essas tradições estão presas ao formalismo dos fundamentos estéticos da música, uma vez que cada peça musical deve ser avaliada pelo critério de originalidade. Este, por sua vez, é entendido a partir de uma determinada concepção de forma, através de certa disposição das massas sonoras e em um trabalho localizado por um tempo musical específico.

A partir dessa busca da originalidade técnico-formal, apontada por Carvalho (1992)CARVALHO, J. J. de. Estéticas da opacidade e da transparência: mito, música e ritual no culto xangô e na tradição erudita ocidental. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992., o Ocidente institui um modelo desejado para a forma/conteúdo musical. As produções musicais não europeias não se circunscrevem nesse modelo, ao passo que não são mobilizadas pela busca de uma originalidade distintiva, visto que suas composições musicais não enfatizam uma função de excentricidade, mas a valorização e absorção das heranças de músicas anteriores à sua constituição. É nesse sentido que Carvalho (1992)CARVALHO, J. J. de. Estéticas da opacidade e da transparência: mito, música e ritual no culto xangô e na tradição erudita ocidental. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. nos chama atenção às diferenças que primam na tradição musical entre o Ocidente e o Oriente:

Em contraposição a essa concepção de estética e eficácia, existem outras tradições musicais (como a indiana, a turca e a persa, para citar três que são, num certo sentido, comparáveis entre si a partir de suas estruturas eminentemente modais) em que a nova composição vem colocar-se ao lado das que já existem e não contra elas; de sorte que certos repertórios de gêneros musicais dessas tradições podem crescer até abarcar milhares de peças distintas sem ameaçar ou abandonar a tradição fundamental. (Carvalho, 1992CARVALHO, J. J. de. Estéticas da opacidade e da transparência: mito, música e ritual no culto xangô e na tradição erudita ocidental. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992., p. 108).

Ainda nessa linha, Napolitano (2002)NAPOLITANO, M. História e música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. argumenta que historicamente se estabeleceu uma falsa dicotomia no estudo da música erudita e da música popular, posto que essa relação estava baseada, principalmente, em uma oposição derivada dos conflitos das sociedades coloniais - de que haveria na música erudita dos colonos um fator radicalmente diferente e de maior qualidade do que a música popular dos colonizados.

Portanto, diante desse enquadramento, argumento que essa dicotomização produzida dentro dos processos de dominações coloniais repercute em efeitos negativos no modo como a música popular nas Américas é analisada. Ao passo que, de maneira contrária, a música erudita e os estilos que mais dialogam com ela passam a compor o padrão positivo dentro de um sistema classificatório musical.

Desse modo, me posiciono contra o dispositivo de colonialidade que transformou a música popular - pela aparente aferição de sua autenticidade e complexidade, baseada nas normas dos sistemas estéticos ocidentais (principalmente, em sua relação com a música erudita) - em um estilo estético pobre. Seguir esse juízo de gosto estético colonizado corresponderia a reproduzir o mesmo processo de classificação hierarquizante ao qual foi submetida a música popular, pela tradição estética europeia, como nos aponta Napolitano (2002NAPOLITANO, M. História e música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002., p. 11):

A música popular nasceu bastarda e rejeitada por todos os campos que lhe emprestaram seus elementos formais: para os adeptos da música erudita e seus críticos especializados, a música popular expressava uma dupla decadência: a do compositor, permitindo que qualquer compositor medíocre fizesse sucesso junto ao público, e do próprio ouvinte, que se submetia a fórmulas impostas por interesses comerciais, cada vez mais restritivas à liberdade de criação dos verdadeiros compositores. Além de tudo, conforme os críticos eruditos, a música popular trabalhava com os restos da música erudita e, sobretudo no plano harmônico melódico, era simplória e repetitiva.

Tais processos de diferenciação produziram consequências marcantes nas relações entre os estilos músicas, pois o estabelecimento de hierarquias entre os próprios estilos os transformou em opostos. Nesse sentido, embora as relações entre os estilos e as construções de suas próprias identidades musicais não se repelissem, o prisma da relação construído pelos seres humanos, sob a égide do projeto de dominação ocidental, foi moldado em função de uma hierarquização das músicas, produzindo-as como se fossem estilos purificados e divorciados uns dos outros. Diante de tais circunstâncias, criaram-se classificações musicais, que estavam baseadas no padrão musical associado ao modo de fazer música no Ocidente.

A música não estava, dessa maneira, isenta da cisão dos seres humanos pelo colonialismo e foi como consequência dessa cisão que a música produzida no Ocidente passou a ser considerada de qualidade, enquanto a que era criada nas periferias se tornou ruim. A música erudita tinha qualidade e a música popular era insignificante; os estilos musicais do Ocidente eram belos e os da periferia eram abjetos; a música do Ocidente era clássica e a das periferias, popular.

Pode-se citar o caso do jazz, por exemplo, que surgiu com uma forte influência de três tradições culturais europeias (a espanhola, a francesa e a anglo-saxã), que se fundiam com a tradição musical afro-americana. No entanto, na medida em que o jazz deixou de seguir um padrão étnico, dentro dos paradigmas da estrutura harmônico-melódica do Ocidente, passando acentuar seu desenvolvimento em estruturas étnicas não ocidentais (como uma célula rítmica), tornou-se grotesco para o Ocidente.

O processo de dominação colonial em curso transformou a relação entre as músicas em um reflexo das hierarquias entre os territórios e povos. O modelo civilizatório ocidental, com sua restrita capacidade de perceber o Outro, tardara para enxergar que não passaria a pautar as formas da musicalidade no mundo.

Dentre os estilos que se lançaram nesse embate pela ressignificação das amarras impostas à música pelos padrões ocidentais de classificação, encontra-se o reggae jamaicano. Esse estilo despontou na década de 1960, com toda a pujança das formas culturais negras frente à modernidade ocidental, e apresentou ao mundo a capacidade das músicas construídas pelo dilema das populações afrodiaspóricas transatlânticas em busca de Ser, a partir da confluência sonora, simultaneamente moderna e modernizante. Assim, Gilroy (2001GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001., p. 159) nos sinaliza sobre a potência descolonizadora das sonoridades do Atlântico negro:

São modernas porque têm sido marcadas por suas origens híbridas e crioulas no Ocidente; porque têm se empenhado em fugir ao seu status de mercadoria e da posição determinada pelo mesmo no interior das indústrias culturais.

Nesse sentido, o estilo caribenho ganhou destaque no cenário de contestação construído pelos processos de (re)existência das populações afrodiaspóricas nas Américas. Na medida em que despontou do cotidiano da periferia, dotou-se de uma posição instável diante do capitalismo. Por outro lado, enunciou ao mundo uma musicovivência capaz de ao mesmo tempo se inserir nas condições de produção exigidas pela indústria fonográfica e desarticular a estreiteza dos padrões estéticos de música ocidental.

A seguir, exploro mais elementos sobre a produção do reggae e sua constituição como um estilo outsider e de enfrentamento.

Ecos outsider: a música reggae como processo de contestação

O reggae emerge no século XX como uma música fortemente ligada aos anseios de contestação e libertação das populações afrodiaspóricas. Imersas nessa realidade imposta pelas condições colonialistas nas Américas, as pulsões sonoras do gênero musical jamaicano estão diretamente relacionadas com o processo de reafricanização. Trata-se de algo semelhante ao que nos levanta Pinho (2003)PINHO, O. S. de A. “O mundo negro”: sócio-antropologia da reafricanização em Salvador. 2003. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003., a respeito do movimento realizado pelas expressões da cultura afro-brasileira, em Salvador, na Bahia.

O processo de reafricanização corresponde ao movimento de apropriação pelos(as) negros(as) dos rumos de sua existência, diante da negação colonialista de sua humanidade. Esse processo de (re)existência do sujeito afrodiaspórico condiz, segundo o autor, com a construção de referências orientadas por uma práxis de reconstrução dos seus horizontes de localização no mundo, a partir da formação de textos, objetos, narrativas, símbolos, discursos, performances, etc.

Assim, reafricanização configurou-se enquanto uma posição política diante dos processos de subalternização sociorraciais impostos pela colonialidade do poder aos povos afrodiaspóricos. Essa (re)existência afrodiaspórica, a partir da afirmação das matrizes africanas, conforma-se como uma práxis política frente as opressões - não como um modo imperialista de afirmação africana e negação de outras matrizes socioculturais (nativa americana, europeia, etc.). Assim, esse processo edifica-se enquanto uma estratégia política de resistência para os povos negros das Américas e não como uma negação da base hibrida de formação da cultura afrodiaspórica.

Aqui, veremos como o reggae jamaicano questionou o movimento que estabeleceu, através de classificações hierárquicas, o distanciamento entre a música produzida no Ocidente e a música produzida pela periferia, bem como o que ficou conhecido como padrão musical ocidental. Esse estilo realiza tal questionamento desde o modo como seus processos criativos se abrem para dialogar com outros estilos, passando por como se apresenta em forma/conteúdo estético, até as relações estabelecidas entre os artistas e as suas obras.

É isso que nos sinalizam, por exemplo, os escritos biográficos de Rita Marley e Peter Tosh, respectivamente:

Tia Gorda morreu quando eu tinha cartoze anos. O filho dela, meu primo Constantine “Deam” Walker, de onze anos, veio morar conosco. Como a casa deles ficava a uma quadra de distância, nós éramos muito próximos. Por causa das “Duas Irmãs”, crescemos mais como irmão e irmã do que como primos. Titia nos havia ensinado um pouco de harmonia. Dream passou a me ajudar nos ensaios, fazendo as vezes de banda e criando harmonias para que eu cantasse. Todas as noites, nos apresentávamos no quintal. Sabíamos de cor qualquer canção que tocasse no rádio. Ouvíamos rádios de Miami, que tocavam canções de rhythm and blues de artistas como Otis Redding, Sam Cooke, Wilson Pickett e Tina Turner, e de grupos como The Impressions, The Drifter, The Supremes, Pattila Belle and The Bluebells e The Temptations. Conhecíamos todos os sucessos da Motown. Quem vivesse na Trench Town daquela época ouviria também ska e tipos muito antigos de música baseada em tradições africanas, como os tambores Nyabinghi e o mento. Isso era natural para nós, como seria natural para um americano ouvir soul e música pop no rádio, mas também folk e blues de raiz. (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004., p. 21-22).

Nascido Winston Hubert McIntosh, na paróquia rural de Westmoreland, Jamaica, em 1944, [Peter Tosh] mudou-se para a famosa favela de Trench Town […] aos 16 anos. Sua mãe o influenciou fortemente, e sua sensibilidade se tornou aparente em suas letras e opiniões; ela estava particularmente preocupada que ele tivesse uma educação cristã. Ele frequentava a igreja local diariamente, e sua experiência lá - cantando no coro e aprendendo a tocar órgão - formou uma espécie de aprendizado musical que o preparou para sua carreira subsequente. (History, [2018a]HISTORY. Early years. In: PETER TOSH. [S. l.]: Peter Tosh Estate, [2018a]. Disponível em: Disponível em: https://petertosh.com/history/ . Acesso em: 15 dez. 2018.
https://petertosh.com/history/...
, tradução minha).

Peter também buscou refúgio dos rigores da pobreza na música pop, notavelmente o rhythm & blues e o doo-wop transmitidos para o Caribe por estações na Flórida e na Louisiana. Tendo cultivado suas habilidades na guitarra e seus expressivos vocais de barítono, ele começou a tocar com Bob Marley e Neville “Bunny” Livingstone no início dos anos 1960. (History, [2018b]HISTORY. The Wailers. In: PETER TOSH. [S. l.]: Peter Tosh Estate, [2018b]. Disponível em: Disponível em: https://petertosh.com/history/ . Acesso em: 15 dez. 2018.
https://petertosh.com/history/...
, tradução minha).

Como podemos perceber nessas passagens biográficas, o cotidiano dos afro-jamaicanos das periferias estava recheado por experiências musicais. A música vinha de muitos lugares e de diversas formas para ser absorvida e regurgitada em novas sonoridades. As sonoridades chegam através dos fluxos das ondas das rádios norte-americanas, das tradições musicais trazidas pelos colonos, dos discos que acompanhavam os trabalhadores marinheiros aos diferentes portos, dos cânticos religiosos do trabalho rural, das rodas de confraternização e dos rituais religiosos.

Assim, a composição musical do reggae jamaicano tem uma interface com estilos e gêneros locais como: as músicas indígenas, as músicas dos marroons1 1 Correspondem as sonoridades produzidas pelos(as) negros(as) que compunham o quilombo Maroons, um dos primeiros quilombos das Américas, situado nas planícies agrícolas da Jamaica. Podemos citar como exemplo o burru, estilo musical dono de um ritmo cadenciado tocado entre os maroons e originário de países africanos. , mentos2 2 O mentos é um gênero musical que tem relação direta com as práticas de trabalho na ilha caribenha. , ska3 3 O ska é um gênero musical que surgiu pela primeira vez nos estúdios da Jamaica entre os anos de 1959 e 1961, desenvolvendo-se a partir do mentos, anterior a ele. É caracterizado por uma linha de walking bass, ritmos acentuados da guitarra ou do piano no tempo fraco, e, por vezes, riffs jazzísticos nos metais. e rocksteady4 4 Rocksteady era um estilo de música popular jamaicano surgido na década de 1960. Se diferencia do ska por conter a metade da velocidade, com o trombone substituído pelo piano e pelo baixo proeminente. As letras desse estilo são voltadas a temas sociais, com ênfase na consciência política. . Desse modo, o reggae tem em suas bases uma forte influência de estilos e gêneros musicais de outros países, desde a influência exercida pelo calipso, gênero do seu país vizinho Trinidad Tobago, até as fortes conexões com os estilos e gêneros ingleses (nação que colonizou a Jamaica) e norte-americanos. A influência musical inglesa sobre a ilha acompanha os afro-jamaicanos desde o período de escravidão, quando os escravizados foram ensinados a tocar valsas tradicionais europeias para os seus senhores, e se estendeu até o século XX, com os adventos dos estilos que utilizavam instrumentos elétricos (bateria, guitarra, baixo, teclado, etc.), como o rock and roll inglês. Já dos Estados Unidos vieram a influência das músicas afro-americanas como o rhythm & blues, blues, o jazz, e o rock and roll americano (Bradley, 2014BRADLEY, L. Bass culture: when reggae was king. Madrid: Machado Grupo de Distribución, 2014.; Cardoso, 1997CARDOSO, M. A. (org.). A magia do reggae. São Paulo: Martin Claret, 1997.; Davis; Simon, 1983DAVIS, S.; SIMON, P. Reggae: música e cultura da Jamaica. Coimbra: Centelha, 1983.; Giovannetti, 2001GIOVANNETTI, J. L. Sonidos de condena: sociabilidad, historia y política em la música reggae jamaicana. Buenos Aires: Siglo Vientiuno, 2001.; Silva, 1995SILVA, C. B. da. Da Terra das Primaveras à Ilha do Amor. São Luís: EDUFMA, 1995.).

Nesse cenário musical, os músicos afro-jamaicanos estão amparados em suas trajetórias pela mobilização de afetos, realizada por formas de sociabilidades como os laços de afinidades, a religiosidade, o ativismo político e a práxis filosófica marginal, que no confronto com o projeto do racionalismo ocidental perderam espaço. Em um cotidiano marcado pela colonialidade, para os afro-jamaicanos as relações afetivas e religiosas foram as poucas lacunas de liberdade encontradas por eles para continuarem o desenvolvimento de suas habilidades humanas, tais como a sensibilidade estética, a cultural e a manutenção da ancestralidade africana.

Nesse sentido, o reggae segue na contramão da predominância das formas de iniciações e criação estéticas dos grandes centros, que ocorriam em espaços especializados. As práticas artísticas e musicais dos afrodiaspóricos nos estados periféricos estavam relacionadas ao estabelecimento de laços afetivos, que transbordavam do domínio do ensino formal das escolas de arte. Esses espaços foram de fundamental importância para oferecer aos negros as condições necessárias para criação de suas musicovivências.

Como salienta a história de vida de Rita Marley e Peter Tosh, assim como a de muitos outros(as) cantores(as) afrodiaspóricos das Américas, seus processos de iniciação e criação musical se deram a partir de grupos de afetos e religiosidades. Foram nas igrejas, nos quintais, nos becos, nas rodas nayambing5 5 As rodas nayambing são espaços ritualísticos dos rastafáris, onde eles tocam tambores e fumam ganja (maconha) para se conectarem espiritualmente com o divino. e nas esquinas que eles deram suas primeiras notas e começaram fazer seus processos criativos. As musicovivências do reggae são resultado dos momentos de confraternização em Trench Town, dos ritos de religiosidade rastafári, dos cultos das igrejas pentecostais, interligadas às condições de encruzilhada impostas pela diáspora do Atlântico negro e pelos processos de reativação da sua sensibilidade ancestral.

Rita Marley (2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004., p. 21-22) afirma sobre sua iniciação musical e seu processo criativo:

Nossa família tinha o costume de se reunir todas as noites para cantar debaixo da ameixeira do quintal - a famosa “praça do governo” sobre a qual Bob cantaria anos mais tarde. […] Às vezes eu e Dream organizávamos shows que atraíam muitas pessoas. Cobrávamos ingressos de meio penny. Toda a comunidade, os vizinhos, as crianças, os bons e os maus - todos queriam assistir às nossas noites de “entretenimento especial”. Até mesmo alguns dos músicos amigos de papai, gente como Roland Alphonso e Jah Jerry, apareciam para nos ouvir. Com a ajuda de papai, fizemos um pedaço de madeira na lata para servir como braço do violão, e depois colocávamos as cordas. Os “violões” eram pequenos, mas funcionavam!

White (2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., p. 137), também narra uma passagem interessante acerca dos aprendizados de Bob Marley e Bunny Wailer:

Ciddy o vira brincando e cantando com Bunny no quintal, o amigo arranhando uma guitarra improvisada a partir de uma enorme lata de sardinha servindo de corpo, uma vara de bambu servindo de braço e fios elétricos de cobre servindo de cordas, a imitar os sucessos de Sam Crooker numa versão de Jim Dandyta da Res-cue e uma musiquinha que o próprio Nesta criara - sua primeira tentativa de fazer uma letra - chamada My Fantasy.

Os cenários criativos dessas musicovivências estavam alicerçados na precariedade e no terror da racialização, escravização e das necropolíticas adotadas pelo Estado jamaicano no século XX, a exemplo do que nos relata T. White (2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., p. 126-127) sobre as condições de miséria em que estavam imersas as populações negras nas yard, como as políticas de secessão e a política de extermínio, realizada pelo aparelho repressor do Estado sobre a juventude negra do país:

Extramuros, não havia rotina que comentar, e a única refeição de qualquer dia bem podia ser uma reles papa de farinha ou banana amassada. Mesmo entre os mais pobres, havia subdivisões marcantes. Os grandes niveladores sociais eram as quadrilhas políticas, dedicadas tanto ao Partido Trabalhista da Jamaica quanto ao Partido Popular Nacional, que extorquiam dinheiro a título de proteção em troca do privilégio de um domicílio em dado distrito, e os caras-de-pau da delegacia policial de Deham Town, que mantinham o desespero da zona oeste de Kingston sob a pressão de seus rifles carregados com munição de calibre Mark 7, capazes de abrir um buraco do tamanho de uma moeda de porte médio na mais resistente das carnes humanas. […] embora ninguém tenha percebido na ocasião, isso foi o início de uma guerra não-declarada entre a polícia e os pobres.

Dessa maneira, a Jamaica do século XX está fincada nessa estrutura de atualização das formas de dominações coloniais, baseadas em estados semi-independentes. O Estado semi-independente6 6 Os Estados semi-independentes configuram territórios nacionais que passaram por processos de dominação administrativa pelo regime colonial, e conquistaram sua independência administrativa. Contudo, essa conquista não configurou o fim do colonialismo e das suas formas de subalternização, mas um processo de atualização dessas formas de subordinação. jamaicano, entranhado pelas lógicas impostas pelo capitalismo econômico e racial, em sua fase monopolista, aplicou uma política de austeridade e de redução das redes de proteção social. Os reflexos de escassez predominavam em vários âmbitos da vida do povo jamaicano. Assim, o país entrou no rol dos Estados contemporâneos que vivenciaram a instauração das políticas de soberania baseadas na necropolítica, que coloca em curso uma gestão da administração pública baseada nas condições sociais de classificação das existências jamaicanas a partir de políticas que elegem os sujeitos que devem morrer e viver (Mbembe, 2016MBEMBE, A. Necropolitica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, ano 22, n. 32, p. 122-151, 2016.).

O Estado jamaicano, ao seguir o padrão dos Estados ocidentais modernos, assim como os demais países semi-independentes, tratou de criar suas estratégias de fusão entre morte e política, tendo como um de seus principais mediadores a associação entre racismo e a segregação as classes miseráveis. A antiga Ilha da Primavera se transformou em um território inóspito para as populações afro-jamaicanas. Os reflexos da necropolítica para afro-jamaicanos foram nefastos. Nesse cenário, a capital, Kingston, foi lugar de aplicação intensa de necropolíticas. Os dois exemplos mais expressivos do desamparo e da desesperança vivenciados pelas populações afro-jamaicanas, a partir de sua conformação enquanto estado semi-independente, correspondem à realidade de miséria vivenciada pelo bairro de Trench Town e à formação dos Rude Boys, grupo de jovens que viviam de furto, espalhando terror e violência entre a população da capital.

O bairro de Trench Town é um exemplo clássico de construção de estigmatização e de práticas de subalternização de grupos inteiros, propulsores de um imaginário cultural de distinção social a partir do espaço. Esse bairro de Kingston foi construído através da iniciativa do governo de entulhar uma parte de porto pesqueiro ocidental da cidade, que logo foi ocupada por diversas famílias que sofriam do déficit habitacional. Muitos desses sujeitos eram oriundos do êxodo rural e migraram para a capital em busca de melhores condições de vida. Essas edificações habitacionais foram erguidas sem nenhum planejamento e apoio por parte do Estado. As casas foram construídas com base nas miseráveis condições financeiras que assolavam aquelas famílias; suas estruturas eram compostas de pedaços de madeira, de sucata de chapas férreas, e os moradores viviam sem nenhum acesso a energia elétrica ou água encanada.

Como nos relatam Davis e Simon (1983DAVIS, S.; SIMON, P. Reggae: música e cultura da Jamaica. Coimbra: Centelha, 1983., p. 35),

Os bairros de lata (Trench Town, Ghost Town, The Dungle) cresceram, na verdade, por cima dum monte de lixo e de dejetos humanos. Uma auréola de moscas e miséria, uma mortalidade infantil comparável à Calcutá, uma paisagem lunar de desagregação.

Em bairros marginalizados, como Trench Town, começaram a surgir um modelo de moradia denominado de yard. Os yards modernos compunham pequenos aglomerados de moradias circundadas por muros ou cercas, onde cada unidade habitacional era composta por um único cômodo. O banheiro e a cozinha eram coletivos para todos os moradores do conjunto. Esses conglomerados eram geridos por um proprietário, que alugava o espaço para famílias de baixa renda, normalmente vindas do campo para a cidade em busca de melhores condições de vida. Somente a partir da década de 1930 o governo inglês, seguindo o modelo dos yards, tomou a iniciativa de criar um programa habitacional em Kingston. Os conjuntos habitacionais foram criados para grupos sociais de baixa renda, continham um número superior de unidades residenciais, com cozinha e banheiros individuais. Tratava-se de algo semelhante à imagem que temos dos cortiços brasileiros. Uma parte do bairro de Trench Town foi utilizada para implementar esse programa habitacional do governo.

É nesse cenário de miséria que foram forjados os principais representantes do reggae jamaicano, dentre eles Bob Marley, Bunny Walers e Peter Tosh. Como nos relata White (2011)WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., na biografia de Bob Marley, o cantor ainda criança migrou com sua mãe, seu amigo Bunny e o pai de Bunny (Toddy) da cidade de Santa Anna para morar em um yard de aluguel em Trench Town, na capital Kingston, alimentados pelos anseios de melhoria social.

[…] o novo lar ficava no centro de uma construção de estuque, com dois andares e doze apartamentos, em forma de ferradura, cercada por todos os lados de barracos de cupim tirados do lixo. Cada residência chegava a ter oito pessoas, totalizando cerca de 70 moradores. O apartamento não era muito maior que o de Toddy, embora mais fresco e menos depauperado, com paredes de alvenaria sólida e piso de ladrilho - uma grande melhoria em relação à moradia construída de tábuas arrebentadas onde ele morava antes. Havia duas camas largas (uma para crianças e outra para adultos), um armário de pinho para a louça, uma penteadeira laqueada e duas cadeiras de palha, mobília desgastada, mas em estado de uso. A cozinha (compartilhada com o apartamento vizinho) tinha um forno a lenha e um tanque bojudo e sem torneira, mas com ralo. Bem diante da porta havia um outro recipiente raso, um braseiro apoiado sobre três pernas no qual o povo pobre da cidade preparava suas refeições. As instalações sanitárias eram coletivas e os vasos dispostos em quatro cabines (duas das quais há meses interditadas); contava-se também com quatro chuveiros (um com defeito) e duas bicas d’água. […] Em Trench Town, entre uma e outra rua asfaltada pelo poder público, corria uma rede de acessos estreitíssimos sem pavimento para os pedestres; a nova moradia ficava na confluência de algumas dessas enredadas trilhas de chão batido. Poucas eram as árvores, a grama inexistente, cactos espinhentos e acácias eram o único tipo de vegetação que vingava ali. Ao caminhar, as pessoas logo se acostumavam aos estalidos de seus passos esmigalhando baratas, besouros e chinks (percervejos), mortos e ressecados sobre o solo. Só os muito pobres andavam descalços pelas redondezas devido ao perigo de pegar bicho-do-pé, o minúsculo inseto tunga que penetra sob a pele para pôr seus ovos e transmite uma doença causadora de terríveis desfigurações. (White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., p. 124-125).

A fragmentação do espaço na cidade Kingston demonstra a divisão existente entre espaço dos brancos e espaço dos negros, espaço de ricos e espaços dos miseráveis. O bairro dos afro-jamaicanos correspondia a um espaço de miséria, como relatado acima na biografia de Bob Marley.

As marcas construídas nesse cenário são violentas para esses sujeitos. Viver a realidade de miséria das favelas, como em Trench Town, corresponde a uma atualização dos processos de desumanização vivenciados na face mais cruel da escravização. Ser um ser humano negro na fase do colonialismo contemporâneo também produz ódio, violência e inveja. Em meio a esse contexto de agruras surgem, entre os jovens das periferias de Kingston, um grupo que tinha como critérios de unidade a rebeldia e a contestação de todas as regras sociais: os Rudes Boys. A tribo urbana dos Rudes Boys ficara estigmatizada por transformar o cotidiano das ruas da capital da Jamaica em um verdadeiro espaço de “vadiagem”. Eles utilizavam de violência, puxando navalhas mortais, furtando bolsas, roubando carteiras, estuprando e assaltando de maneira violenta. Se, por um lado, estes eram jovens famosos por serem perigosos e violentos, por outro, constavam apenas como números na estatística dos residentes da yard que viviam em condições de extrema pobreza, integravam o contingente de alto índice de evasão escolar e faziam parte de famílias de desempregados ou comerciantes informais.

Para alguns, a saída encontrada para esse cotidiano consistiu em estabelecer pulsões sonoras que pudessem transbordar o campo estético, dialogando com o campo da política e da filosofia marginal. Nesses cenários de crueldade, aos quais foram jogados os jovens afro-jamaicanos, restava-lhes compor uma canção que se tornasse um grande hit dos dance hall da cidade de Kingston, ao invés de conviver com a certeza do abreviamento de sua existência, pelo estado de exceção dos aparelhos estatais.

Se as primeiras experiências musicais dos escravizados africanos na Jamaica emergiram do contexto cruel de escravização - lembremos das músicas criadas por eles no exercício do trabalho rural, da formação de orquestras compostas por escravizados, que embalavam os sentimentos nas práticas funerárias7 7 Essas canções são peculiares da região oeste da Jamaica. Cantadas por coros amadores, construídas como ladainhas, com o chamado e o chamado-resposta, junto com as repetições de pequenos fraseados musicais. (Davis; Simon, 1983DAVIS, S.; SIMON, P. Reggae: música e cultura da Jamaica. Coimbra: Centelha, 1983., p. 16) - o contexto de terror, criado pelo Estado semi-independente da Jamaica, também suscitou práticas musicais como formas de resistência às opressões no século XX. Segundo Hall (2003HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003., p. 12), nesse contexto complexo, as políticas culturais e a luta em que os afrodiaspóricos se engajam operam em muitas frentes e em todos os níveis da cultura, inclusive na vida cotidiana, na cultura popular e na cultura de massa.

Foram as desgraças produzidas pela condenação de existências afro-jamaicanas às condições de miséria que fundamentaram a base contestatória e potente para o cenário de eclosão do reggae. Diante de tais circunstâncias, o caminho percorrido pelo reggae jamaicano esteve relacionado com uma forma de fazer música diretamente associada a um engajamento sociopolítico. As composições e o ativismo político dos cantores Bob Marley, Rita Marley e Peter Tosh demonstram a latência política que estava presente nas bases de surgimento do reggae. A forma/conteúdo das pulsões sonoras produzidas por essas personalidades “regueiras” transformou em práxis a compreensão de intelectual orgânico, preconizada nas formulações de Gilroy (2001GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001., p. 164) sobre as músicas negras:

As tradições inventadas de expressão musical, que constituem aqui meu objeto, são igualmente importantes no estudo dos negros da diáspora e da modernidade porque elas têm apoiado a formação de uma casta distinta, muitas vezes sacerdotal, de intelectuais orgânicos cujas experiências nos permitem focalizar com particular clareza a crise da modernidade e dos valores modernos.

Esses intelectuais da musicovivência do reggae produziram músicas, compartilharam subversão e afeto. Eles se portaram diante das condições impostas pelo capitalismo nas periferias e a ascensão das lutas antirracistas no mundo na década de 1960. Serviram como satélite da sensibilidade descolonizatória para os afro-jamaicanos.

Para os negros de todo o mundo, os anos 60 foram um tempo de conscientização. Nos Estados Unidos, as pessoas não apenas consideravam que o negro era lindo, mas havia chegado a hora do “Poder Negro”. Essas idéias também chegaram até a Jamaica. A certa altura estávamos todos esculpindo pequenos punhos negros em madeira, que vendíamos na loja de discos. As pessoas os compravam para usá-los no pescoço. Para a capa de um de seus discos, os Wailers posaram para fotografias empunhando armas de brinquedo e usando as boinas que todos associavam aos Panteras Negras. (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004., p. 52).

A associação entre a música e a filosofia rastafári cumpriu papel sine qua non para estabelecer os princípios e horizontes a serem perseguidos pelos músicos na orientação das suas composições. A filiação de muitos dos intelectuais orgânicos do reggae ao rastafarianismo funcionou como um mediador da relação entre estética musical e filosofia marginal nas produções das músicas. Por exemplo, no conteúdo de músicas como Rasta man chant e Loving Jah Rastafari de Bob Marley se apresenta como a música reggae transborda, coadunando a sua forma/conteúdo estético e uma filosofia-política.

Ao estabelecer um diálogo com uma filosofia política marginal, o reggae jamaicano buscou redefinir os limites rígidos das formas ocidentais estéticas, já que estas estreitaram a compreensão sobre a música dentro de uma perspectiva de exclusão dos pares, à medida que concentraram a capacidade de produção do conhecimento e, por consequência, de sua transformação, em um campo muito específico: o saber científico.

Diante desse movimento, o reggae enquanto música forjada no Atlântico negro realiza o processo nomeado por Gilroy (2001)GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001. de uma “antimodernidade”. Assim, o gênero jamaicano realiza um processo de transfiguração das relações estabilizadas em uma ciência autônoma e asséptica, ao colocar em curso um processo de ruptura entre as fronteiras rígidas existentes entre a música e os saberes do mundo. O estilo adiciona as possibilidades de conhecer expressões sociais ligadas diretamente à esfera do sensível.

A educação musical dos cantores e instrumentistas do reggae estava diretamente ligada a um aprendizado cotidiano de entrelaçamento entre o continente africano e a diáspora, através das lutas e das expressões de (re)existências musicais das ancestralidades afrodiaspóricas.

Como salienta Letieres Leite (2017LEITE, L. Rumpilezzinho laboratório musical de jovens: relatos de uma experiência. Salvador: Instituto Rumpilezz, 2017., p. 33), acerca das bases ordinárias do cotidiano presente na produção dos sons da diáspora negra no Atlântico, “os músicos vinham desses lugares de concentração afrodescendente, de bairros populares, onde se pratica música dentro do sistema da oralidade, onde a música era praticada e aprendida no cotidiano”. Trata-se de uma antropofagia musical.

O reggae é um estilo que terá suas produções sonoras firmadas nos principais dilemas que os afro-jamaicanos vivenciavam em sua realidade cotidiana. Posto que, aliado à efervescência da cotidianidade, estava o vigor da ancestralidade de matriz africana, que criou caminhos alternativos à colonialidade. Compartilhando sua idiossincrasia histórica por meio das artes e da oralidade.

A música reggae jamaicana é um estilo que não se restringe às partituras musicais, pois o seu compasso é marcado pelas nuances rítmicas que tocam o corpo (este já extremamente sensível às marcas históricas do colonialismo). Ela é uma música que surgiu do reconhecimento das marcas que estavam dentro dos afrodiaspóricos, a partir dos sons. Nesse sentido, o reggae foi um estilo criado para engrossar as fileiras antirracistas na música. O reggae veio com a obrigação artística de refletir o seu tempo, a luta contra o colonialismo. Não há como tocar uma música de corpos tão marcados sem se colocar na trincheira. Na realidade social afro-jamaicana, a música cumpriu essa incumbência de ser o baluarte de (re)conexão da sua herança ancestral com o dilema do que é ser negro nas periferias das Américas no século XX.

A combinação de elementos rítmicos das matrizes africana e indígena foi o fio condutor das novas sonoridades que, como já pontuado mais acima, não deixou de absorver também contribuições do Ocidente e dos grandes centros econômicos. Os músicos do reggae utilizavam a matriz africana na música em comum acordo com o desenvolvimento da tradição de ensino europeu. Essa hibridez musical levou à produção de músicas que em suas bases romperam com as diretrizes estéticas de padrão ocidental, visto que os sistemas instrumentais harmônicos e dissonantes estavam alinhados ao movimento estrutural das claves rítmicas. O reggae é um estilo que buscou expressar a diversidade dentro do contexto musical pautado no Ocidente, onde a universalização de um padrão único tornou-se a regra. Umas das coisas mais revolucionárias desse estilo é que ele produz sons que ensinam as pessoas a se comunicarem para além de suas diferenças (IFÁ, 2018IFÁ: bate-papo: Instrumental Sesc Brasil. Entrevista com a banda IFÁ no programa Instrumental Sesc Brasil. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (38 min). Publicado no canal Instrumental Sesc Brasil. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lRtTSUvg-Hk . Acesso em: 20 nov. 2019.
https://www.youtube.com/watch?v=lRtTSUvg...
).

Para Leite (2017)LEITE, L. Rumpilezzinho laboratório musical de jovens: relatos de uma experiência. Salvador: Instituto Rumpilezz, 2017., a influência das claves rítmicas nas músicas das diásporas negras nas Américas foi a marca mais salutar das heranças ancestrais das matrizes africanas para os afrodiaspóricos. Segundo o autor, as claves são pequenas partículas rítmicas, que funcionam como assinaturas sonoras, ou seja, um desenho rítmico mínimo que orienta o movimento dos sons de uma música. Assim, os estilos afrodiaspóricos que eclodiram nas Américas, tal qual o reggae jamaicano, trazem em sua substancialidade o reconhecimento de uma experiência ancestral, que foi ativada pela música através da utilização dessas claves.

A partir daí emerge na cultura musical jamaicana uma forma estética que coloca no centro do desenvolvimento dos sons o grave. Isso organizou diretamente a maneira com que os afro-jamaicanos compuseram suas músicas, sem perder o contato com as músicas que chegavam de fora pelas rádios e pelos portos, mas aplicando a elas o método de utilização das claves rítmicas conduzidas pelo grave.

Quando a indústria fonográfica europeia reconheceu o reggae como uma potência musical, os afro-jamaicanos não deixaram de criar estratégias para manutenção da sua proposta estética, foram diversas as negociações e tensões em torno deste estilo musical. White (2011)WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011. salienta que, mesmo com o reconhecimento da qualidade das músicas produzidas pelo reggae, o seu processo de internacionalização só ocorreu a partir do momento em que algumas personalidades do centro passaram a legitimar o estilo e a tocar as suas músicas. Nesse momento, o centro se rendeu à pujança dos estilos vindos da periferia. Porém, esse processo de reconhecimento do reggae e de outros gêneros da música popular das periferias não trouxe só a satisfação de adentrar as fronteiras dos grandes centros econômicos do mundo, ele colocou para os artistas da periferia uma necessidade de aprender a negociar com a proposta de mercantilização presente de forma marcante na indústria fonográfica.

Assim, se apressadamente poderíamos entender a internacionalização do reggae como algo que aconteceu imerso em um cenário de facilidades, um olhar cuidadoso revela o contrário, pois evidencia um processo mergulhado em condições que trouxeram uma série de dificuldades para lidar com novas questões, trazidas pela indústria do entretenimento em massa, acostumada a lidar com um padrão estético ocidental. Para Alleyne (1994)ALLEYNE, M. Positive vibration?: capitalist textual hegemony and Bob Marley. Caribbean Studies, Río Piedras, v. 27, n. 3/4, p. 224-241, 1994., esse encontro da hegemonia econômica ocidental com os compromissos criativos inevitavelmente é um elemento fundamental para definir o processo de internacionalização do reggae. Segundo o autor, a indústria fonográfica dos centros impõe aos estilos processos de regressão a seu conteúdo estético.

As grandes gravadoras com as quais os proeminentes artistas do reggae têm sido associados são capazes de exercer o poder de decisão final em relação ao foco estilístico e à representação da imagem estética. Esta posição não ignora a colaboração consciente dos artistas nesse processo ou tentativas de alguns deles de subverter e apropriar os recursos de um sistema que busca controlá-los. O que o título enfatiza é o controle ocidental da capital através do qual os artistas de reggae devem buscar acesso ao discurso global, e suas consequências criativas e culturais para o processo de negociação através do ambiente predatório da indústria fonográfica. (Alleyne, 1998ALLEYNE, M. “Babylon makes the rules”: the politics of reggae crossover. Social and Economic Studies, [s. l.], v. 47, n. 1, p. 65-77, 1998., p. 65-66, tradução minha).

As formulações e preocupações de Alleyne fazem todo sentido, na medida em que realmente o reggae jamaicano em seu processo de internacionalização passou por diversos cenários de coação para que se adequasse à indústria fonográfica. Esses processos correspondiam tanto à construção de um imaginário correspondente às expectativas preconizadas pelo público do Ocidente como à necessidade de criar um astro da música, enquanto representante do gênero reggae. Rita Marley (2004)MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004. aponta que as recomendações da gravadora Jad Record, em uma das idas dos The Wailers para os Estados Unidos, correspondiam a esconder, dentre outras coisas, a existência dela como esposa de Bob Marley.

Quando chegamos a Nova York surgiu mais um problema, já que a gravadora recomendava que a gente não revelasse aos fãs que Bob era casado. Como alguém poderia ser um marido devotado e ainda assim vender discos? Eu não sabia nada disso até que li uma entrevista em um jornal. Os jornais perguntavam: “Bob, ouvimos falar que você é casado. É verdade que você é casado com Rita?”, e ele respondeu: “Ah! não! Ela é minha irmã!”. (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004., p. 89).

No entanto, as diretrizes das gravadoras referentes à internacionalização não se restringiam a recomendações relativas à criação de uma imagem adequada para os artistas, elas investiram de forma marcante sobre a estética do reggae. Segundo Alleyne (1998)ALLEYNE, M. “Babylon makes the rules”: the politics of reggae crossover. Social and Economic Studies, [s. l.], v. 47, n. 1, p. 65-77, 1998., o movimento de internacionalização de um estilo musical periférico para compor o mercado mainstream nos centros correspondeu a um processo intenso de pressões e negociações dos produtores com os artistas do reggae.

As consequências mais nocivas desse crossover do reggae estavam presentes nas intervenções propostas pelas gravadoras, que deveriam ser aplicadas na integridade textual e especificidade cultural do estilo para garantir uma relação alternativa com os ganhos econômicos e criativos de interface com a indústria de entretenimento. Os principais representantes do reggae nesse processo de internacionalização do estilo foram: Bob Marley, Peter Tosh, Bunny Wailer, que compunham a banda jamaicana The Wailers, e Jimmy Cliff.

As pressões exercidas pela indústria fonográfica para adequação das suas composições ao formato ideal do mercado consumido de massa eram frequentes. Danny Simso, proprietário da editora Cayman Music, um dos responsáveis por internacionalizar os The Wailers, chegou a deixar claro em entrevista que exercia pressão sobre Bob Marley para diminuir o conteúdo político de suas músicas.

Conforme o próprio Sims se gabara para uma repórter do Village Voice pouco antes do julgamento, “eu desencorajava Bob de fazer essa coisa revolucionária. Eu sou um sujeito comercial. Quero vender música pra garotinha de treze anos, não para marmanjo de arma em punho”. (White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., p. 358).

Nesse sentido, também nos pontua Alleyne (1998)ALLEYNE, M. “Babylon makes the rules”: the politics of reggae crossover. Social and Economic Studies, [s. l.], v. 47, n. 1, p. 65-77, 1998., essa não era uma prática restrita a Sims e sua produtora Cayman Music, ela se estendia também sobre a agência da Island Records, através da ação de seu proprietário Blackwell. Essas ações foram bastante incidentes sobre a figura de Bob Marley, uma vez que para Blackwell “Marley era a única figura na Jamaica remotamente capaz de ter um impacto duradouro na música popular propriamente dita, o único com carisma para levar adiante seu talento atípico” (White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., p. 232). Essa centralidade dada a Bob Marley levou inclusive à mudança do nome da banda de The Wailers para Bob Marley and The Wailers.

Esse foco da indústria fonográfica dado à internacionalização de Bob Marley, aliado às as interferências no processo criativo das músicas, foram os principais fatores que inclusive levaram à saída de Peter Tosh e Bunny Wailer da banda.

Quando Chris Blackwell assumiu seu posto, continuou a dar algum destaque para Bob. Isso causou uma boa quantidade de atritos e confusões com os outros dois membros da banda. Para eles, era como se estivessem perdendo Bob para o todo-poderoso e implacável universo da indústria musical internacional. Ao fim da primeira turnê bem-sucedida dos Wailers, Bunny anunciou que nunca mais embarcaria em um avião na vida. Embora também tivesse suas restrições, Peter se mostrou um pouco mais compreensivo e nunca deixou seu rancor por Bob tornar-se evidente. Quando o contrato de três discos com Irland terminou, Bunny e Peter decidiram que não teriam nenhuma relação com Blackwell, turnês e shows promocionais. Eles mesmos queriam decidir quem ganharia isso ou aquilo - desejavam ter controle total. (Marley, 2004MARLEY, R. No woman no cry: minha vida com Bob Marley. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004., p. 141-142).

A estratégia utilizada inicialmente pelos dois músicos - Peter Tosh e Bunny Wailer - foi de retornar à indústria fonográfica alternativa nas periferias no trânsito entre as Américas e África. Peter chegou inclusive a lançar seu próprio selo, mas logo voltou a gravar pelos estúdios maiores, mas sem assinar contratos que lhe aprisionassem em sua criação (Costa, 2019COSTA, A. Você não vai ajudar a cantar essas canções de liberdade? (“Won’t you help to sing these songs of freedom?”): o reggae como pulsões sonoras de resistência. 2019. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Federal da Bahia, Salvador, 2019.; Costa; Catalan, 2020COSTA, A.; CATALAN, L. B. O emergir da música popular e suas interfaces com a indústria fonográfica. Caderno CRH, Salvador, v. 32, p. 517-535, 2020.).

No entanto, de forma geral, essa também não foi uma tarefa fácil para esses empresários da música, uma vez que não estavam lidando apenas com os músicos e suas ambições de ascensão social; esses músicos eram rastas das yard jamaicanas. Como já salientado anteriormente, os músicos do reggae eram intelectuais orgânicos da música da diáspora negra no Atlântico. Esses cantores e instrumentistas não encaravam a música meramente como uma expressão artística, mas como um instrumento estético sonoro engajado em lutas políticas dos seus cotidianos afrodiaspóricos. As suas músicas e seus ideais estavam entrelaçados com as lutas do povo periférico negro no mundo. Como formula White (2011)WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., os The Wailers eram um exemplo bem marcante da transgressão que representavam os artistas do reggae.

[…] os Wailers eram algo mais que uma fábrica de sucessos rejuvenescida, mais uma vez divertindo a galera da pesada que gostava de arejar a cuca e transar com as namoradas no sacolejo maluco do Skank em seus quartinhos apinhados de baratas lá em Dungle. Esses “irmãos” estavam trazendo os primeiros vislumbres de uma mudança fundamental na atitude jamaicana com relação à música. Liderados por Marley, eles estavam se expandido num sentido orgânico, apontando seu impoluto dreadrock para o mundo exterior, desafiante em sua crença doida de que o reggae rasta não era paroquial, não eram cânticos para os párias da favela - que era, sim, uma música que poderia interpretar, explicar e contestar a torpeza moral e a opressão racial do planeta. (White, 2011WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011., p. 232).

Diante dessa adversidade, as pressões da indústria fonográfica sobre o reggae não encontraram um campo aberto para estandardização de suas obras. As intervenções dos empresários com os artistas do reggae eram negociadas. Embora seja notória em vários momentos essa influência externa do mercado sobre as criações do estilo jamaicano, podemos também perceber que há um refluxo em meio aos interesses do mercado nas composições.

Os artistas do reggae, volta e meia, se utilizavam de formas de negociações para abrir concessões em alguns pontos de suas composições para que outros elementos de cunho político pudessem passar sem ser percebidos. A estratégia criada pelos músicos rastas, dentre eles Bob Marley, correspondeu a um processo de aceitação das influências da indústria cultural, mas ficando o reggae circunscrito a um gênero underground, o que lhe garantia manter em certa medida a sua identidade de música outsider e sua forma/conteúdo político.

O reggae, a partir da estratégia adotada, desse modo, conseguiu sobrepor fronteiras que o levaram a alcançar um público muito superior aos seus anseios periféricos. O estilo conseguiu que sua estratégia de resistência fosse ouvida pelos negros e negras, e por sujeitos subalternizados, espalhados pelo mundo. O encontro dessas pulsões sonoras com sujeitos, que de alguma forma são marcados pela diáspora negra, possibilitou ao reggae fazer parte da indústria de massa, mas sem ser necessariamente subsumido pelos seus interesses. A existência da internacionalização do reggae possibilitou que o mundo dos povos diaspóricos pudesse olhar para África e se identificar, ajudando a cantar as canções de liberdade, e foi marcada por uma afirmação de um estilo musical com estética híbrida e diferenciada do padrão ocidental.

Considerações finais

O reggae apresentou ao mundo, a partir de suas músicas, um diálogo intercultural, mobilizando, através das interações musicais com diferentes estilos e gêneros de diversos territórios e matrizes étnicas, a riqueza de produzir o soerguimento dos afrodiaspóricos. Isso sem precisar necessariamente essencializar a sua reafricanização, tampouco negar a riqueza da existência do Outro.

Diante desse processo de construção do reggae como um gênero/estilo dentro de um espaço de diálogo e formas de singularização, as diferenças estabelecidas entre ele e outros estilos não se construíram a partir dessa imagem de assepsia, criada pelos processos de classificação ocidental. Pelo contrário, o que nos apontam as evidências do cotidiano de formação das personalidades musicais responsáveis pelo processo criativo do reggae é que o seu dia a dia era recheado de contatos musicais com estilos e ritmos dos mais diversos.

Essa interface de contato com a diversidade de sons do mundo nos cotidianos desses jovens foi o combustível que alimentou as engrenagens do estilo, como uma expressão da descolonização dos gêneros musicais, da re(existência). Mesmo as tensões que emergiram com a internacionalização do reggae, que se deram por uma tentativa de colonizar o estilo musical, não conseguiram adequar a pulsão sonora jamaicana a um padrão estético ocidental.

Portanto, o reggae pode ser compreendido aqui como uma música popular, por ter suas bases estéticas mobilizadas, por um lado, pela relacionalidade entre as diversas culturas sonoras no mundo, por outro, por trazer em suas sonoridades a vivência de uma população que busca (re)existir, pela música, às agruras da colonialidade. Desse modo, o reggae se constitui como um estilo musical que contrapõe uma acepção universalista do modelo estético ocidental, criando uma estética que se conforma pelos diálogos entre os múltiplos saberes.

Referências

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  • WHITE, T. Queimando tudo: a biografia completa de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record, 2011.
  • 1
    Correspondem as sonoridades produzidas pelos(as) negros(as) que compunham o quilombo Maroons, um dos primeiros quilombos das Américas, situado nas planícies agrícolas da Jamaica. Podemos citar como exemplo o burru, estilo musical dono de um ritmo cadenciado tocado entre os maroons e originário de países africanos.
  • 2
    O mentos é um gênero musical que tem relação direta com as práticas de trabalho na ilha caribenha.
  • 3
    O ska é um gênero musical que surgiu pela primeira vez nos estúdios da Jamaica entre os anos de 1959 e 1961, desenvolvendo-se a partir do mentos, anterior a ele. É caracterizado por uma linha de walking bass, ritmos acentuados da guitarra ou do piano no tempo fraco, e, por vezes, riffs jazzísticos nos metais.
  • 4
    Rocksteady era um estilo de música popular jamaicano surgido na década de 1960. Se diferencia do ska por conter a metade da velocidade, com o trombone substituído pelo piano e pelo baixo proeminente. As letras desse estilo são voltadas a temas sociais, com ênfase na consciência política.
  • 5
    As rodas nayambing são espaços ritualísticos dos rastafáris, onde eles tocam tambores e fumam ganja (maconha) para se conectarem espiritualmente com o divino.
  • 6
    Os Estados semi-independentes configuram territórios nacionais que passaram por processos de dominação administrativa pelo regime colonial, e conquistaram sua independência administrativa. Contudo, essa conquista não configurou o fim do colonialismo e das suas formas de subalternização, mas um processo de atualização dessas formas de subordinação.
  • 7
    Essas canções são peculiares da região oeste da Jamaica. Cantadas por coros amadores, construídas como ladainhas, com o chamado e o chamado-resposta, junto com as repetições de pequenos fraseados musicais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2021
  • Aceito
    14 Fev 2022
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