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O gênero da humilhação. Afetos, relações e complexos emocionais

The gender of humiliation. Affects, relationships and emotional complexes

Resumo

Este texto se propõe discutir os modos como se faz gênero por meio de práticas e sentimentos de humilhação e sobre a humilhação como uma categoria pertinente para a discussão sobre as relações de gênero. Humilhação será pensada como um ato e simultaneamente como uma emoção que se desdobra em e se constitui por meio de outros múltiplos atos e emoções que podem ser distinguíveis entre si e receber diferentes nomes. Utilizo como exemplos casos etnográficos sobre relacionamentos afetivos e sobre experiências subjetivas em que a humilhação atua para denotar hierarquias, sem ser configurada moralmente pelos agentes, de antemão, como violência.

Palavras-chave:
humilhação; emoções; gênero; antropologia

Abstract

In this text I discuss the ways in which gender is made through practices and feelings of humiliation. Also discuss humiliation as a relevant category for the debate about gender relations. Humiliation will be thought of as an act and simultaneously as an emotion that unfolds in and is constituted by other multiple acts and emotions that can be distinguished from each other and given different names. I use as examples ethnographic cases about affective relationships and subjective experiences in which humiliation acts to denote hierarchies, without being morally configured, previously, as violence.

Keywords:
humiliation; emotions; gender; anthropology

Este texto1 1 Para a elaboração deste artigo, agradeço a leitura e sugestões de meus orientandos, todos integrantes do Núcleo de Estudos em Coros, Gênero e Sexualidade (NuSEX) do PPGAS/MN e agradeço a leitura e sugestões das ou dos pareceristas anônimos, que muito contribuíram para melhorar os argumentos. se propõe discutir humilhação e gênero. Seria mais eloquente dizer que se propõe discutir os modos como se faz gênero por meio de práticas e sentimentos de humilhação ou como a humilhação é uma categoria pertinente para a discussão sobre as relações de gênero. Humilhação ao longo destas páginas será pensada como um ato e simultaneamente como uma emoção que se desdobra em e se constitui por meio de outros múltiplos atos e emoções que podem ser distinguíveis entre si e receber diferentes nomes. Já William Ian Miller (1993)MILLER, W. I. Humiliation. New York: Cornell University, 1993. alertava sobre a necessidade de diferenciar humilhação de vergonha e de constrangimento e Maria Claudia Coelho (2001COELHO, M. C. Sobre agradecimentos e desagrados: trocas materiais, relações hierárquicas e sentimentos. In: VELHO, G.; KUSCHNIR, K. (org.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. p. 265-292., 2010COELHO, M. C. Narrativas da violência: a dimensão micro-política das emoções. Mana, v. 16, n. 2, p. 268-285, 2010., 2012COELHO, M. C. Gênero, emoções e vitimização: percepções sobre a violência urbana no Rio de Janeiro. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 10, p. 10-36, 2012.), ao longo de suas pesquisas, tem argumentado a importância de observar as emoções como “dinâmicas” ou como “complexos”, de modo a perceber como elas se articulam umas às outras sendo menos produtivo analisá-las isoladamente. Somo-me também ao espirito da fenomenologia realista, especialmente a Aurel Kolnai que me é enormemente inspirador. Em seus três ensaios sobre sentimentos hostis - nojo, soberba e ódio - escritos em alemão na década de 1930, o autor delimitou os fenômenos a estudar em contraste com outros similares com o fim de interpretar seus rasgos principais, descrevê-los, elaborar taxonomias e tipologias e analisá-los até as últimas consequências. Daí compreendemos as relações e diferenças entre nojo, angústia/ansiedade e medo ou entre ódio e raiva (ou as relações entre ódio e amor).2 2 Na introdução da tradução dessa obra ao espanhol, a filósofa Ingrid Vendrell Ferran (2013, p. 9, tradução minha) explica que essa atitude fenomenológica é conhecida como “redução eidética”, que “consiste em analisar um fenômeno da experiência, identificando suas caraterísticas essenciais frente a fenômenos similares, descrevendo-os e estudando-os até chegar a captar os momentos constitutivos do mesmo”. A tese de Kolnai é que as “qualidades anímicas podem derivar-se umas das outras ou originar-se a partir de sua combinação. Assim, podem alguns sentimentos surgir a partir da mistura de outros sentimentos” (Vendrell Ferran, 2013VENDRELL FERRAN, I. Aurel Kolnai: fenomenologia de los sentimentos hostiles. In: KOLNAI, A. Asco, soberbia, odio: fenomenologia de los sentimientos hostiles. Madrid: Encuentro, 2013. p. 7-32., p. 11, tradução minha).

O material a partir do qual farei minha argumentação é amplo e múltiplo: por um lado, páginas extraídas de meus diários de campo da época em que pesquisava a produção de filmes pornográficos.3 3 Fiz trabalho de campo entre 2006 e 2008, defendi minha tese em 2009 e publiquei seus resultados em julho do ano seguinte (Díaz-Benítez, 2010). Entre 2011 e 2012 fiz etnografia em uma produtora de filmes de humilhação ou de humiliation porn. Essa é uma categoria específica que no mundo do fetiche se desdobra em muitas outras: sex slave, kink, punishment, bestial porn, taboo, crash e rape, entre outras. Desse empreendimento desdobrei duas publicações (Díaz-Benítez, 2012, 2015). Essa pesquisa marcou um momento decisivo em meu interesse pessoal pela humilhação. Mas, sem dúvida, meus interesses sobre essa categoria são anteriores e atravessam tanto minhas inquietações prévias sobre gênero e sexualidade, como aquelas relativas a classe e raça que trabalhei na graduação e no mestrado. O curso que ministrei em 2017 no PPGAS/MN denominado “Nojo, repúdio e humilhação no fazer social” junto de meu colega Kaciano Gadelha, foi fundamental para organizar melhor minhas ideias. Em poucas palavras, penso as emoções recém-mencionadas como estando profundamente sujeitas por hierarquias de gênero, classe, raça e sexualidade. Meu objetivo tem sido pensar a humilhação como um dispositivo para ler a atuação de diversos marcadores sociais da diferença. Essa ideia, certamente, está longe de ser original e em minha trajetória pessoal teve inspiração direta de Frantz Fanon (1968) em Os condenados da terra e em sua explicitação das emoções derivadas da humilhação racial e seus efeitos psíquicos. Especificamente dados que nunca trabalhei e que dizem respeito a situações íntimas ou a momentos marcantes da vida de algumas atrizes, ou a questões que aconteceram com elas após seus trânsitos pelo universo do pornô e que eu conheço porque mantenho proximidade até hoje. Outro material aqui presente diz respeito a experiências etnográficas de outras antropólogas e a notícias de jornal.

Nas páginas seguintes transitarei entre diferentes experiências e temáticas, tentando manter como fio condutor atos e sentimentos de humilhação, nem sempre oferecendo o mesmo peso argumentativo a cada uma delas. Várias histórias que trago falam a respeito de mulheres que têm sentido ou vivido experiências de humilhação por parte de homens. Com isso, não estarei argumentando que humilhação ou violência, em todas as formas que elas possam assumir, são atos que homens exercem contra ou sobre mulheres, tirando delas todo tipo de agência ou qualquer tipo de participação na configuração desses atos. Penso aqui a humilhação (e noções próximas tais qual vergonha, constrangimento, violência) como atos relacionais (ver Gregori 1993GREGORI, M. F. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Anpocs: Paz e Terra, 1993.; Debert; Gregory, 2008DEBERT, G. G.; GREGORY, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 165-185, 2008.) e como formas de comunicação (Coelho, 2001COELHO, M. C. Sobre agradecimentos e desagrados: trocas materiais, relações hierárquicas e sentimentos. In: VELHO, G.; KUSCHNIR, K. (org.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. p. 265-292.). Mas me preocupam profundamente os efeitos desses atos relacionais e meus dados assim como os dados etnográficos das pessoas que cito neste artigo dizem respeito a mulheres em sofrimento, ora por eventos críticos (Das, 1996DAS, V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. New Delhi: Oxford University Press, 1996.), ora por arranjos mais perenes do cotidiano, vividos nas mãos de maridos, namorados e afins. Se humilhação é uma temática fundamental para pensar o quanto ela se constrói de modo relacional, também é um lugar fundamental para perceber que esse modo relacional não raramente é vitalmente hierárquico e que seus efeitos, na maior parte das vezes, trabalham na diminuição ou aniquilação de corpos femininos.

Falo de humilhação e não de violência. Não duvido que em muitas das narrativas que trago aqui a palavra “humilhação” possa ser substituída por “violência” sem que isso altere gravemente a descrição dos fatos. Mas opto por humilhação para denotar o quanto se trata de uma emoção que se desdobra em outras múltiplas, que simultaneamente é construída por essa multiplicidade e que possibilita esticar os sentidos do que entendemos por violência, projetando-se como uma categoria útil para a análise de gênero. Sobre essa relação entre humilhação e violência voltarei ao final do texto.

Elas gostam?

Perguntaram-me inúmeras vezes sobre as atrizes da pornografia em relação a seu ofício. Sempre recebi uma série de questões e curiosidades sobre os prazeres das mulheres dessas redes: suspeitas sobre suas “reais” intenções e desejos; imaginações sobre possíveis mundos de tristeza, drogas ou pobreza em que elas estariam imersas e que as levaria às redes do sexo. Sobre os homens, fossem heterossexuais ou homossexuais, nunca houve tais questionamentos. Para eles e mais ainda para as travestis, o prazer pelo sexo estava colocado de antemão. Assim, para mim, revelar que muitas das mulheres, de fato, gostavam, foi um movimento liberador no sentido de argumentar a favor dos prazeres, e discorrer (de um modo ativista, inclusive) sobre o quanto as normas e regulações de gênero e sexualidade cercam vidas e sujeitos e impedem o exercício dos desejos, de modos de subjetivação e, inclusive, da humanidade. Mas tenho compreendido aos poucos que resistir à norma é uma dinâmica de enorme complexidade que pode levar os sujeitos a experiências e sensações de grande felicidade, como pode acarretar o peso e os efeitos do confronto4 4 Ver Sedgwick (2007) e Mason (2002). e do passo do tempo, o qual não vem, geralmente, para deixar sujeitos e subjetividades necessariamente no mesmo lugar. Então não posso responder hoje o “elas gostam?” sem pensar no passo do tempo ou no quanto a vivência subjetiva das normas (e da transgressão) se atrela ao tempo, e sem pensar o quanto certas experiências assumem pesos diferenciados para homens e mulheres, e, inclusive, o quanto o próprio tempo é generificado se pensarmos nos efeitos que ele traz sobre os sujeitos.5 5 Sobre tempo e gênero ler Das (2011) e Fernandes (2018).

Após defender minha tese de doutorado percebi que eu tinha ficado com uma série de anotações em meus cadernos de campo às quais não dei atenção naquele momento. Eram notas sobre os espancamentos que a Laura6 6 Todos os nomes próprios são fictícios para proteger as identidades. sofria de seu namorado, sobre o desaparecimento da Anne e os boatos de sua morte, sobre o corpo queimado da Michelle que um de seus colegas de trabalho, também ator, reconheceu no Instituto de Medicina Legal. Havia notícias sobre a Natália, que expulsa definitivamente de sua casa materna e descartada pelas produtoras pornôs e após alguns fracassos sentimentais, foi vista pauperizada andando por aí e ganhando a vida “chupando paus” por poucos reais. Também tinha longas notas sobre a Cris, uma das mais bonitas e cobiçadas atrizes da metade dos anos 2000, que engordou pouco mais de 40 quilos, intencionalmente, para não ser mais reconhecida e poder ter uma vida normal, trabalhando hoje como caixa em um comércio de uma cidade de mediano porte. Tinha anotações também sobre os múltiplos divórcios da Naomi, que insistia sempre em não casar com alguém das redes do sexo, como quase todo mundo fazia, porque essa era uma estratégia de sair do meio. Em outra anotação sobre a Natália, comento que o início de sua saída do mercado pornô e de sua “decadência” social se deu após ter feito filmes com animais. Um dia ela me disse que preferia ter sexo com cachorros a tê-lo com homens, porque enquanto os cachorros amavam incondicionalmente, os homens eram “um monte de nojento que sempre me maltratou”. Percebi em minha pesquisa que o sexo com animais é visto como espúrio, ilegítimo, antinatural, horroroso e proibido de um modo geral. Mesmo assim, existe uma dimensão em que tal ato se torna aceito socialmente para os homens: iniciação sexual, a vida na roça, certas brincadeiras associadas a masculinidade. É uma aceitação não livre de certa zombaria ou constrangimento, mas ainda uma aceitação. Já quando se trata de mulheres outras são as narrativas: elas são coitadas, são doentes, são necessitadas ou solitárias. Ser solitária se desdobra em outras razões: é velha, é feia, não é atrativa para ninguém. Por que uma mulher transaria com um cachorro havendo tantos homens disponíveis por aí? “Porque tem um problema”, é a resposta que mais escutei, e a ideia da solidão vinha para adicionar alguns significados de gênero à questão.

As histórias que acabo de narrar: o desaparecimento da Anne, a morte da Michelle, os espancamentos da Laura pelo seu namorado, a vergonha da Cris de ser reconhecida, a tristeza da Naomi porque nenhum homem a levava a sério, e o nojo aos homens que a Natália sentia podem acontecer - e de fato acontecem - a diversas mulheres no mundo afora. Mas o fato de elas serem mulheres que trabalham com o sexo possui um peso específico. O que está por detrás é o enunciado de que elas sofrem porque são ou porque foram putas.

Enquanto Jean Carlo apertava a garganta da Laura para estrangulá-la, lhe gritava “piranha, vou te matar”. Sempre que ficava zangado pelo motivo que fosse lhe recordava aos berros que ela tinha sido uma garota de programa. Ela me disse que da última vez viu tanto ódio nos olhos dele que soube que devia fugir para salvar sua vida. Assim que ele dormiu meio zonzo pelo álcool que tinha bebido, ela correu com as roupas rasgadas escadas abaixo e pediu auxílio ao porteiro, que lhe emprestou dinheiro para um táxi. Atravessou Guarulhos e chegou à casa de sua mãe, que chorou ao ver o corpo de sua filha todo cheio das marcas do espancamento recente. Em certo momento de sua narrativa, Laura me disse: “Olha, até certo ponto a culpa é minha, pois eu não tinha necessidade nenhuma de virar garota de programa e menos ainda atriz pornô.” “A culpa é minha” não dizia somente respeito a merecer maus tratos físicos e psicológicos de parte de seu par, mas a algo maior: expressava a consciência de se ter transgredido normas morais e de gênero que a faziam merecedora de punição. Laura organizava seu pensamento em função de causa e efeito: “Eu fiz, porém eu mereço.” Acreditando que merecia ou que esse era seu “destino” devido a um ato realizado previamente, as manifestações de humilhação se configuravam como um ato relacional. Mas se há uma construção social hegemônica dos papéis e expectativas de gênero, esse tipo de construção relacional desigual é quase um devir.

Laura tinha consciência de até onde conseguia aguentar. Interpretava as agressões sofridas em graus de maior ou menor intensidade. Não poucas vezes relatou para mim as “agressões menores” em termos de humilhação e as “maiores” como violência. Assim, enquanto a violência era algo que tensionava os limites de sua aceitação, mesmo acreditando que era merecedora, a humilhação entre ela e Jean Carlo tinha se tornado um código de interação, uma forma reconhecida por ambos de existir como casal, uma maquete trabalhada pelos dois como uma causa e também um efeito da escolha que ela fez em algum momento de sua vida de se afastar do caminho reto prezado para as mulheres. Viver a humilhação se tornou também o modo como ela mitigava suas culpas e negociava um tanto de perdão. Demorou muito tempo, longas conversas com sua irmã e muita terapia para ela começar a entender que se submeter a essas experiências que lhe causavam dor não era um caminho necessário para a construção de seu arrependimento, mas até aí, a humilhação tinha ganhado significados relevantes nos territórios de sua psique.

Cris decidiu engordar em um impulso de desprendimento do si-mesma que até aquele momento conhecia. Esse corpo esbelto do qual ela tanto se gabava e que tinha lhe possibilitado uma carreira de destaque nas redes do sexo era justamente o corpo que depois lhe causou nojo, arrependimento e depressão. Para ela, era preciso sair dele, era necessário desmanchá-lo. Cris não se converteu a nenhuma igreja protestante, como várias de suas amigas. Contudo, sua narrativa estava cheia de metáforas sobre sacrifício e castigo. Quando em um momento de sua história olhou para trás e sentiu vergonha, ela sentiu que a vergonha se localizava em seu corpo, pois ele era a materialização de sua sexualidade. Se era preciso mudar de vida, era preciso mudar de endereço, de ocupação, mas, sobretudo, era preciso que não ficassem rastros daquele corpo que para ela se tornou repugnante. Cris disse se sentir humilhada cada vez que alguém a reconhecia na rua. Essa humilhação ante a interação com terceiros se converteu na fase pública de sua vergonha, que se somou a uma dimensão subjetiva cujo enunciado claro foi: esse corpo não mais me pertence. Se tornar uma mulher obesa contribuiria para a construção de uma nova autopercepção, um mecanismo de continuar procurando uma chance de vida. Por meio da obesidade não seria facilmente reconhecida, diminuiria as possibilidades de se sentir humilhada pelo seu passado e, ainda, ela imaginava que se manteria afastada do desejo masculino. Assim, ela poderia se reconstruir como outro tipo de mulher, sendo essa sua forma íntima e pessoal de repensar e de refazer seu gênero.

As emoções que estou descrevendo são profundamente generificadas: culpa e arrependimento, quando associadas a sexualidade, assumem contornos diferenciados e marcados pelo gênero. Isso, obviamente, não quer dizer que só as mulheres ou os sujeitos associados ao feminino sintam culpa ou se sintam humilhados por experiências sexuais que tentam deixar no passado, mas significa sim que os dispositivos dessas emoções são diversos e os efeitos nas vidas, também. Há uma forma, em chave feminina, de experimentar essas emoções. É por isso que hoje em dia quando alguém que conhece minha pesquisa me pergunta se elas gostam, eu digo que isso depende do momento. Situações satisfatórias que marcam os sujeitos positivamente no plano dos desejos e do conhecimento sensorial, se analisadas numa perspectiva do passo do tempo, podem ser narradas em termos de dor, vergonha ou arrependimento. Em poucas palavras, as questões sociais que permeiam a construção do arrependimento são diversas quando pensadas em termos de gênero. Em se tratando de sexualidade, tenho percebido que as mulheres se arrependem mais facilmente por desejos ou por práticas que realizam e os homens mais facilmente quando essas mesmas práticas configuram um crime ou quando esse crime é descoberto e sujeito a punição ora pelo Estado, ora por algum outro tribunal da moral.

Quando a ex-namorada do goleiro Bruno foi assassinada de um modo brutal e teve seus restos devorados por cachorros, a mídia fez questão de lembrar-nos que ela tinha sido atriz pornô. Mais do que uma descrição, essa informação atuava como uma acusação por meio da qual se criava um prestígio pontual para a vítima: quem tinha morrido não era alguém inocente, mas uma mulher maculada por sua vida sexual. Assim, se equilibrariam as forças entre sua morte e seu passado, e muito da culpa de seu destino fatal sobraria para ela. Foi isso que aconteceu após a morte da Michelle e da Anne. Eu escutei entre os conhecidos do meio que elas sabiam que isso podia lhes acontecer, que essas meninas do sexo perdem a linha, fazem tudo por dinheiro e acabam namorando caras perigosos, e que mesmo sabendo que eles são perigosos elas acabavam incorrendo em infidelidades que despertavam a raiva daqueles que terminavam por assassiná-las. Essas histórias já conhecemos: às mulheres é adjudicada a culpa, em grande medida e grande parte das vezes, pelos abusos cometidos contra elas, por humilhações públicas, pela raiva de seus algozes, por estupros, espancamentos e pelas suas mortes.

Mas, para além de culpa e de arrependimento, Cris revela sentir nojo de si mesma. O nojo, como emoção “marcadora de status” (Miller, 1997MILLER, W. I. The anatomy of disgust. Cambridge: Harvard University Press, 1997.), organiza uma separação hierárquica entre aquele que o sente e aquilo que o produz. Isto é, estamos acostumados a sentir nojo por outro, outrem, ou por um objeto que tem a qualidade de despertar em nós tal emoção. Então, quando revelamos sentir nojo de nós mesmos, que tipo de deslocamento semântico estaríamos efetuando? Como configuramos uma relação em que somos o sujeito da causa e simultaneamente do sentir? O nojo, se pensado como nojo físico, é uma emoção que se manifesta com uma forte reação corporal (Kolnai, 2013KOLNAI, A. Asco, soberbia, odio: fenomenologia de los sentimientos hostiles. Madrid: Encuentro, 2013.), e que se coloca como resposta diante de um estímulo do presente. Mas existe um outro nojo também mencionado pelo autor, o moral, que bem pode ser presentista ou como no caso da saciedade pode emaranhar a experiência fenomenológica do tempo. Da mão de Kolnai quero sugerir que nos desfazermos do nojo de nós mesmos implicaria um deslocamento do presente em direção ao passado e ao futuro. Com expressões como “um dia me enxerguei e queria não ser eu” ou “este corpo não é meu”, esse nojo se configura como um movimento de saída de si. A metáfora da viagem astral, em que algo essencial do corpo se separa e o olha desde cima, ou aquela figura muito explorada no cinema sobre o ato da morte em que a “alma” se desprende de um corpo que sempre fica embaixo, são boas para o que aqui desejo expressar. O nojo de si mesmo traduz um estranhamento do corpo, um deslocamento que implica uma percepção desde fora daquilo que é sentido adentro, uma recusa a esse corpo presente e ao sujeito que ele encarna. E o deslocamento é tanto espacial como temporal. Isto é, aquele que se desloca e olha a si mesmo desde cima, o faz com uma série de representações de si em base a seu próprio passado: o que foi que eu me tornei? Por que fiz isso? Como cheguei até aqui?, carregando, simultaneamente, a esperança de que é possível voltar a ser, no futuro, aquele ser anterior ao sujeito do nojo presentificado.7 7 Falando a respeito do senso de vulnerabilidade do humilhado, Jack Katz (2013, p. 235) diz: “Ao se sentir humilhada, a pessoa muitas vezes tenta vislumbrar um futuro no qual a desgraça terá se desvanecido, mas, enquanto está se sentindo humilhada, se dá conta de que não consegue. Ela tenta abolir o sentimento insuportavelmente penoso recorrendo ao saber popular: ‘o tempo cura todo’ […] ‘vou me mudar e meus novos colegas não saberão nada sobre meu passado’. Apesar da certeza de que essas afirmações fazem sentido, a pessoa que se sente humilhada se depara com evidências inegáveis de que elas não funcionam: a humilhação continua.” Mesmo Cris tendo mudado sua aparência de modo profundo, a cada novo reconhecimento que alguém faz de sua pessoa, a humilhação ameaça atravessar eternamente a biografia. Esse tipo de nojo não se percebe e constrói no self sem trazer consigo o desencadeamento de outras emoções: já mencionei culpa, e arrependimento, ao que podemos somar angústia e autocompaixão, existindo como micropolíticas ( Rezende; Coelho, 2010REZENDE, C. B.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.) na relação consigo mesmo.

O nojo de nós mesmos implica uma relação sensorial de reconhecimento de que algo em nosso corpo possui essa qualidade de nojento, mas as causas podem ser tanto morais como físicas ou, no caso da Cris, a causa seria moral e a resposta, física ou, então, causas e respostas são simultaneamente morais e físicas.

Quero retomar a figura da saciedade. Esta

se apresenta unicamente quando aquela vivência constante é prazerosa, originariamente ou por si, então, não tanto o objeto como o prazer em si mesmo é o que se torna nojento […] Aqui se faz vivível outra vez a relação do nojo com uma vitalidade unilateralmente exagerada, que se movimenta indefinidamente, por assim dizer, em um recinto ilimitado. A sensação do nojo nos impede “afogar-nos” em um prazer. Não podemos dizer, simplesmente, que este prazer cesse de sê-lo; se faz unicamente tolo, confuso […]. (Kolnai, 2013KOLNAI, A. Asco, soberbia, odio: fenomenologia de los sentimientos hostiles. Madrid: Encuentro, 2013., p. 72, tradução minha).

O característico da saciedade é certa perda da sensação do tempo, certa nota de intemporalidade, de algo que gira sobre si, de algo estéril, de um eterno estado de saciedade de si mesmo. (Kolnai, 2013KOLNAI, A. Asco, soberbia, odio: fenomenologia de los sentimientos hostiles. Madrid: Encuentro, 2013., p. 73, tradução minha).

Faço o exercício de pensar a saciedade como um tipo de nojo moral em relação a práticas sexuais com o fim de confrontá-la com uma leitura de gênero por meio da experiência das mulheres que venho mencionando. Meus dados etnográficos não me permitem assegurar que o nojo da Cris tenha se dado a razão de saciedade pelo excesso de experiências sexuais. Pelo que conheço de sua história acredito que tenha mais a ver com a valoração de tipo moral que passou a dar a essas práticas, e menos pela sua quantidade. Mas utilizo esta digressão ao redor da saciedade para pensar o quanto ela mesma é profundamente marcada por expectativas e imperativos de gênero: o excesso de experiências sexuais pode vir a marcar, mais provavelmente, emoções de nojo moral ou físico para as mulheres. E tal excesso pode manifestar-se em termos de culpa. Contudo, o excesso não é necessariamente relevante para a configuração da culpa, pois o mero “saber sexual” pode se tornar, em experiências especificas, um dispositivo de culpa e/ou de acusação por parte de diferentes atores sociais, os parceiros das mulheres, por exemplo, funcionando como um aparato coercitivo sobre elas (Rangel, 2016RANGEL, I. Esse nu tem endereço: o caráter humilhante da nudez e da sexualidade feminina em duas escolas públicas. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.; Vance, 1984VANCE, C. Pleasure and danger: exploring female sexuality. New York: Routledge, 1984.).

Durante boa parte de seu relacionamento, Laura sentia dois tipos de medo. Um em relação à fase agressiva de seu namorado, outro em relação à possibilidade de não ser amada e ficar só. No fundo, mesmo sabendo que ele era “esquentado”, “ciumento” e “bomba-relógio”, negociava sua angústia porque a ele estava unida por um sentimento de gratidão. Laura era grata de que Jean Carlo a amasse apesar de ela ter sido a mulher que foi, e em nome dessa gratidão possibilitava os devires da humilhação. A gratidão inferioriza aquele que a sente, tem um “gosto de servidão” (Simmel, 1964 apud Coelho 2001COELHO, M. C. Sobre agradecimentos e desagrados: trocas materiais, relações hierárquicas e sentimentos. In: VELHO, G.; KUSCHNIR, K. (org.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. p. 265-292., p. 274), é uma emoção que denota uma hierarquia e a partir da qual se negocia o poder de forma miúda na intimidade. Estabeleceu-se entre eles uma troca em que ele dava amor e ela retribuía com tolerância, paciência, esperança de que ele melhorasse, enfim, gratidão, emoção que se tornou essencial na gramática emocional que envolvia o casal e que realizou o que Rezende e Coelho (2010)REZENDE, C. B.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. chamam de “trabalho micropolítico das emoções”. Criou-se ali uma relação entre a dádiva do amor, a gratidão que ela sentia e a humilhação. Sair desse ciclo somente foi possível quando ela, tal qual me manifestou, começou a “reconstruir sua autoestima”, e para isso foi necessário não mais se sentir grata. A estima é como a esperança: puxa pro futuro, possibilita olhar para o amanhã.

O que me interessa expressar é como amor, culpa, arrependimento, vergonha, nojo, saciedade e gratidão são emoções axiologicamente distintas da humilhação, mas que ao mesmo tempo é por meio delas que a humilhação ganha vida nas experiências até aqui narradas. Eis o que Coelho tem denominado de “dinâmicas ou complexos emocionais”, ou, então, uma evidência, diria Kolnai, de como uma emoção é sempre construída e sentida em relação a outras.

A fase pública da humilhação

Uma das entrevistadas de Isabela Rangel (2016)RANGEL, I. Esse nu tem endereço: o caráter humilhante da nudez e da sexualidade feminina em duas escolas públicas. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016., que fez dissertação em antropologia sobre “pornografia de vingança”, lhe disse: “Olha, vazou a foto, a culpa é minha.” Tratava-se de uma adolescente, filha de pais evangélicos, que viveu a experiência de exposição de sua imagem na internet na qual penetrava a si mesma com um legume de forma fálica. Na escola em que estudava, ela passou a ser apelidada com o nome daquele legume. Os efeitos na vida daquela menina foram imediatos: zombaria e reprovação de seus colegas, estigmatização entre os membros da escola e da igreja que frequentava a família, castigo e punição por parte de seus pais e um monte de tristeza e solidão. O abandono escolar veio na sequência e sua vida como a conhecia até aquele momento se viu fragmentada.

As notas de jornal sobre o fenômeno da vingança que tenho recolhido trazem histórias diversas de mulheres e meninas que após a exposição via internet de imagens de cunho sexual entram em um estado de vergonha, afastamento do mundo, depressão e, em alguns casos, tentam suicídio.8 8 São numerosos os exemplos e as matérias de jornal. No Brasil ficaram conhecidos os casos das adolescentes de 15 e 17 anos, do Rio Grande do Sul e do Piauí, que em 2013 cometeram suicídio após o vazamento de suas fotografias em internet. Ver Perez (2013); ver também Varella e Soprana (2016). A depressão, relatam algumas delas, pode durar anos e a reconstrução de seus mundos vai se fazendo em meio à luta pelo esquecimento, o afeto familiar, o refazer da autoestima, terapias, remédios e muito tempo. A vergonha passa a pesar profundamente na constituição de suas subjetividades após suas vidas serem fragilizadas diante de eventos que ocasionaram espécie de rompimento com o mundo.

No âmbito da guerra entre Índia e Paquistão e os mecanismos de sobrevivência das mulheres na Partição, Veena Das (1996DAS, V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. New Delhi: Oxford University Press, 1996., 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007.) chama de eventos críticos aqueles que trazem consigo uma ruptura, aquilo que emaranha a capacidade de entender ou aquilo que rompe o mapeamento moral e afetivo e trunca a capacidade de habitar o mundo. São extraordinários porque transformam o mundo em algo inabitável. Lendo os depoimentos das moças que têm passado pela experiência da pornografia de vingança com todos os efeitos de irrupção radical em suas vidas, lembrei de Veena Das. Isso porque o efeito daquela irrupção mudou instantaneamente suas formas de relação com seus mundos, com seus cotidianos, com as pessoas do dia a dia, com a forma como elas interpretam a si mesmas e com os modos como se projetam para o futuro. O ato momentâneo da exposição deixou sequelas nas expectativas do desejo e na fabulação sobre si mesmas. Suas escolas se tornaram inabitáveis, suas casas, as redes de amizades, os amigos do Facebook, as igrejas e até suas próprias habitações. A exposição pública passa a ser vivida no privado, mudando suas etiquetas e posições de sujeito. O que vem depois é o ato de refazer o mundo no plano do ordinário, no cotidiano, nesse território de pequenos atos em um trabalho com o tempo, nesse ato afetivo que significa reorganizar a experiência, reabitando o mundo numa zona de incertezas. Essas análises mencionam que as meninas raramente voltam a suas escolas, algumas delas não voltam por um bom tempo a nenhuma escola, e apontam como se desfazem e se refazem, também, as formas de se relacionar afetivamente com novos pares.

Uma leitura de gênero para as experiências de exposição de imagens sexuais na internet importa não só porque a maioria das pessoas expostas são mulheres, mas porque ali intervém uma série de dispositivos, atos e emoções generificadas e relacionais.9 9 A maioria das vezes em que um homem é submetido a esse tipo de humilhação está relacionada a situações em que ele é colocado no lugar do feminino: aquelas envolvendo clientes de michês ou de travestis, por exemplo. Por um lado, temos o ato de causar dor e sofrimento, o que tem sido socialmente construído e interpretado como um traço imanente das relações de amor dentro de um casal. Temos aprendido que quanto mais difícil for um relacionamento, mais intenso e vital ele é, ou mais verdadeiro. Aprendemos que um relacionamento sem conflitos é morno e desinteressante.10 10 Em tese de doutorado intitulada Yseut et Wîs: une lecture junguienne des personnages féminins dans Le Roman de Wîs et Râmîn et dans les romans de Tristan o filólogo, psicanalista e doutor em Letras Medievais, Leonardo Hincapié Giraldo (2014), elabora a hipótese de que a relação de amor e sofrimento retratada na legenda de Tristão e Isolda tem funcionado como fórmula narrativa ao longo dos séculos para a mitologia, a literatura e indústrias mais contemporâneas como cinema e novelas de televisão. O autor defende que essa forma de percepção do amor passou a existir socialmente como um arquétipo, como um modo de pensamento e representação que estabelece nossas experiências e persiste como um inconsciente coletivo. Assim, nossa visão sobre o amor que é dor responde a essa gramática do arquétipo e do subconsciente. Rezende e Coelho (2010), em sua explicação sobre como têm sido trabalhadas as emoções nas ciências sociais, lembram da abordagem historicista que destacaria o caráter histórico das mesmas por meio da recuperação de genealogias de categorias emotivas para denotar como se manifestam na atualidade ou têm sido reatualizadas ao longo do tempo. O trabalho de Viveiros de Castro e Benzaquen de Araújo (1977) sobre o amor a partir de Romeu e Julieta de Shakespeare é uma manifestação da abordagem historicista. Hincapié Giraldo (2014) vê em Romeu e Julieta uma versão romanceada da legenda de Tristão e Isolda. Falta-me competência teórica para seguir por ora o caminho de argumentação dos arquétipos para entender interpretações históricas e efetivas na nossa sociedade sobre o amor. Mas deixo aqui registrada a minha suspeita de que talvez seja possível colocar em diálogo uma abordagem historicista das emoções com aquilo que John Gagnon (2006) tem chamado de “roteiro intrapsíquico”. Para além dessa ideia, autores como Dennis de Rougemont (1988) analisam o romance de Tristão e Isolda como a primeira manifestação do amor a configurar um imaginário ocidental até nossos dias. Trata-se de um amor que se prolonga para além da morte e que se caracteriza pelo sofrimento dos amantes e a impossibilidade de viverem juntos devido a obstáculos indissolúveis. De algum modo, o sofrimento faz esse amor sublime. Para Rougemont, Tristão e Isolda não se amam, o que eles amam é o amor e o próprio fato de amar. O conflito se estabelece em nossa pele como um dispositivo erótico, romântico e épico que pode tomar diversos contornos e intensidades dentro de cenas e de queixas (Gregori, 1993GREGORI, M. F. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Anpocs: Paz e Terra, 1993.), e que se intensifica no universo que Carolina Ferreira (2012)FERREIRA, C. B. de C. Desejos regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes. 2012. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. pesquisou de pessoas adictas ao amor ou “pessoas que amam demais”. O que quero dizer é que essa ideia da importância da dor no amor é reproduzida na nossa sociedade, tem peso nos modos como assumimos os relacionamentos e faz sentido na hora de viver o final dos mesmos. Daí a relação com a noção de vingança. Em vários desses casos, tais imagens se configuram como vingança devido aos atos que aqueles homens cometem contra suas companheiras após o final de seus namoros.

Encontro presente outra emoção-chave para ler gênero e relacionamentos: a confiança. Entende-se que a confiança é imanente às relações de amor, procuramos confiar para poder construir um casal. É verdade que a confiança é algo que se constrói com o tempo, mas também é verdade que nas expectativas do afeto e do erotismo, ou do tesão que leva a transas descompromissadas, ou inclusive anônimas e momentâneas, somos capazes de negociar a confiança com bastante flexibilidade. Mas a pergunta que levanto é se existe um viés de gênero embutido nas formas como experimentamos a confiança: mulheres e homens confiam igual? Eu acredito que não. Faço essa asseveração, que em princípio pode parecer um tanto essencialista, pensando no que há de mais construtivista em nossas condutas afetivas e sexuais. John Gagnon tem argumentado que na nossa cultura existem prescrições específicas para homens e para mulheres relativas a suas condutas sociais e afetivas, havendo uma relação entre conduta de gênero e conduta sexual. O autor diz:

Os padrões apropriados de conduta reprodutiva, sexual e de gênero são produto, todos eles, de situações culturais específicas e todos podem ser vistos como exemplos de condutas socialmente roteirizadas. As sociedades ocidentais têm hoje um sistema de aprendizagem sexual e de gênero em que roteiros diferenciados conforme o gênero são aprendidos antes dos roteiros sexuais, mas em que estes se originam, em parte, em tais roteiros de gênero previamente aprendidos. (Gagnon, 2006GAGNON, J. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2006., p. 218).

Se digo aqui que homens e mulheres confiam de modos diferenciados é porque acredito que possamos ler a confiança como um roteiro de gênero. Nessa linha de raciocínio, deveria ter mencionado atrás que emoções como culpa e arrependimento também são roteirizadas. A manifestação feminina da confiança em não poucas ocasiões é interpretada como “descontrole emocional”, como produto de “vulnerabilidade afetiva”, como asneira de mulheres que “se jogam” sem método e no piloto automático em relações de amor em que se apaixonam e confiam antecipadamente, inclusive sem que o parceiro tenha se configurado como merecedor desse sentimento. Essa visão, obviamente, também coloca sobre elas a responsabilidade pelos atos constrangedores e humilhantes que são feitos com suas imagens.

Mulheres e homens rompem os pactos de confiança por igual? Também acredito que não. Talvez esse seja o motivo pelo qual os sujeitos principais da vingança sejam justamente elas: fotografias consentidas que foram tiradas em um contexto e momento de confiança são submetidas à exposição e escárnio em um ato que rompe com o pacto e que transforma esse consentimento em abuso.11 11 E porque a nudez masculina tem menos chances de ser usada pelas mulheres como motivo de vingança. Não seria a nudez em si o que causaria vergonha, mas as qualidades do corpo: malformado, obeso, ou, no maior dos casos, quando há algum rasgo que ameace a sua masculinidade, como o pênis pequeno. Isabela Rangel (2016, p. 85) menciona em sua dissertação que algo da vergonha da exposição de imagens femininas é passada aos homens: “Para os rapazes, a um só tempo, o prestígio do reforço à virilidade, mais comumente ressaltado pelos colegas e, em pequena escala, uma percepção de imaturidade, devido à exposição indevida da intimidade de alguém. ‘Isso não é coisa de homem’ é uma das frases ditas por moças e rapazes nas poucas críticas feitas à prática de ‘vazamento’ de imagem.”

Os limites imprecisos entre consentimento e abuso permeiam as narrativas que fazem com que frequentemente as mulheres sejam culpabilizadas pelos atos de cunho sexual que lhes ocasiona sofrimento e humilhação. Por que essas meninas tirariam fotos nuas? Por que enviaram para os rapazes? Eu poderia argumentar, como já disse, que pela confiança, porque em certo momento da interação acharam que esse era um ato adequado. Mas também podemos pensar que todos nossos relacionamentos afetivos e sexuais estão construídos num patamar que integra prazer e perigo, e que essa dupla é constitutiva das sexualidades femininas. Sobre isso Carole Vance falou já nos anos 1980, e várias outras feministas têm feito eco a essa ponderação.

Na pesquisa que realizei sobre filmes de fetiches extremos eu observei como em meio às práticas sexuais, mesmo se tratando de atos consentidos, era possível atravessar os limites do consentimento ao abuso. Embora se tratasse de transações faladas e discutidas, era impossível prever ou antecipar completamente seus limites. Às vezes, o limite era imposto pela dor, pelo medo, pelo nojo ou por aquilo que esses atos evocavam na memória dos sujeitos. Assim, consentimento e abuso passavam a existir num mesmo contínuo cuja linha divisora era extremadamente frágil. Se ali falei de uma situação em que tocar esses limites possui grande valor comercial e por isso é procurada pela indústria do fetiche, eu venho argumentando que essas situações integram o horizonte de nossas relações íntimas, inclusive com aquelas pessoas pelas quais sentimos amor, e às vezes justamente o amor é aquilo que dá nome e forma à fragilidade das fronteiras, o amor é provavelmente o sentimento que mais permite a passagem do abuso ao consentimento. Consentimos até certo ponto e nem sempre dizer não ou chega dá um fim a esses atos. Chamei esse instante de cruzamento de fronteiras de fissura e acredito que tanto nossas relações afetivas como as eróticas são potencialmente fissuradas. Isso tem a ver com as experiências de que venho falando. Laura e Cris se sentem culpáveis por um passado que ameaça atravessar as suas biografias uma e outra vez. No Rio de Janeiro ficou bem conhecida a história da Bia, que viveu a experiência de um estupro coletivo, e muito se falou de sua participação consentida no ato, pois ela estaria inicialmente a fim da brincadeira de sedução e namorara um de seus algozes, era alegado. Seu possível não, não quero mais, ou chega não é tomado obrigatoriamente como um enunciado que marca exemplarmente um limite porque em meio a uma situação de fronteiras borradas e diante da velocidade em que esse borramento acontece, enunciados como aquele não possuem o efeito de limitador. Às mulheres, repito, é adjudicada a obrigação de contenção dos impulsos sexuais masculinos, fonte de perigo, assim como de conter a própria sexualidade que pode incitar os homens a atuar (Vance, 1984VANCE, C. Pleasure and danger: exploring female sexuality. New York: Routledge, 1984.).

Nos casos de vingança podemos pensar que a fissura se constrói no momento da exposição, no momento em que as imagens vazam (Rangel, 2016RANGEL, I. Esse nu tem endereço: o caráter humilhante da nudez e da sexualidade feminina em duas escolas públicas. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.). As fotografias foram consentidas porque elas faziam parte do jogo erótico, se ajustavam a esses roteiros de prazer e sedução, mas o vazamento é o ato em que a violência se configura. O problema dessa fissura é que ela é reiterada uma e outra vez e a cada ato de exposição se repete a fissura, fazendo com que o ato do abuso não seja mais exclusivo daquele sujeito a quem algum dia se ofereceu algum consentimento.

Aquelas outras experiências em que a exposição não é cometida por homens, mas por outras mulheres, também nos informam sobre os modos de regulação do gênero que se exerce de modo intra. Trata-se geralmente de imagens em que uma garota é espancada por outra ou em que uma delas exibe imagens de nudez da colega retirada de seu celular ou do celular de algum rapaz com o qual a primeira se relacionou. A humilhação entre mulheres em situações como essas atua como mais uma forma de exercer um controle de gênero e de sexualidade. Em alguns casos atua como um controle de gênero e de sexualidade geracional. Por exemplo, quando são as “novinhas gostosas” que se tornam os sujeitos do escárnio de outras mulheres, pois elas habitam uma zona em que colocam em risco o status normativo da mulher, ameaçando os ganhos eróticos das mais velhas, podendo seduzir seus maridos, ficando grávidas facilmente, causando nervoso, desestabilizando (Fernandes, 2017FERNANDES, C. Figuras de causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.).

Por sua vez, também sabemos que as imagens de violência entre mulheres são submetidas a uma grande espetacularização, o que evidencia a construção de um tipo de prazer dirigido a atos corporais e à erotização da violência quando acontece entre mulheres. A viralização nas mídias de imagens de espancamentos entre garotas pode ser interpretada como uma manifestação dos modos com que a dupla violência/mulher configura um tipo de fenômeno social atrativo que convida ao voyeurismo. Nessas brigas há a evocação de um masculino que brilha por sua presença mesmo corporalmente ausente: o homem não participa do atrito, mas o ocasiona, sendo em nome de seu amor ou de sua participação em um relacionamento que a disputa toma lugar. Assim, esses confrontos e manifestações de feminilidades agressivas, com todo seu conjunto de enunciados humilhativos, reforçam certos padrões de masculinidade e lhe oferecem um estatuto social.

Cenas como as recém-mencionadas me levam a pensar na construção social do que poderíamos chamar de prazer pelo vexame. Não é à toa que damos grandes risadas por ver a imagem de alguém sofrendo um acidente do qual a pessoa pode sair machucada, mas não necessariamente ferida. Proliferam vídeos e memes sobre alguém que sofre uma queda, sendo cotidianamente reproduzidos pelas mídias sociais. Existe um mercado ao redor dos vexames dos outros, e prova disso são as famosas videocacetadas que ocupam diversos horários de nossos canais de televisão e que fazem sucesso no YouTube. É nessa gramática do vexame, das brigas, dos escândalos e das pequenas humilhações dos outros que consiste o sucesso das cenas mais virais de programas como Big Brother, Are You the One?, De Férias com o Ex, ou Super Shore - os quais não por acaso reiteram as brigas femininas geralmente “por macho” combinadas com o sensacionalista, o morboso, o sexo e o excesso (geralmente de bebida e de “transgressões a normas de comportamento”). No fundo, a espetacularização de atos de violência, humilhação e vexame tem o potencial de transformar esses atos em triviais. O fato de que a combinação desses atos de rebaixamento com sexo e humor seja altamente explorada pela indústria cultural nos leva a pensar na configuração de um prazer pelo trivial, e essa trivialização é também uma forma de assimilação do humano.12 12 O fascínio que brigas e humilhações públicas gera na sociedade diz respeito à construção social de outro prazer específico relativo à ostentação da derrota de um diante do exercício do poder ou do abuso do outro. Nesses casos, enunciados sobre impotência e sobre punição se fazem presentes na configuração de estéticas da humilhação. Acredito que a explosão da violência punitivista em que vivemos, a qual em certas contingências sociais favorece ideias como aquela de que bandido bom é bandido morto, o apoio a penas capitais, a linchamentos ou a esquadrões da morte, pode simultaneamente criar um espaço de introjeção subjetiva em que a punição é levada ao território dos pequenos atos no cotidiano ou à punição de si mesmo como mecanismo de autocontrole ou de mitigar as culpas e o arrependimento, o que ganha contornos relevantes se somado a uma introjeção da moral cristã sobre o suplício como forma de elevação. Como sociedade e como sujeitos, somos construídos a partir dessas metanarrativas. A humilhação é uma metanarrativa que possui espaços profundos em nosso psiquismo, me atrevo a dizer, e que se encarna em nossos atos e emoções como um prenunciamento de uma vida possível.

A humilhação habita nossas vidas como uma forma de assimilação do humano possibilitada por nosso modo social e histórico de perceber o mundo e os sujeitos por meio de hierarquias. A apreensão das hierarquias pode nos levar a desejar a aniquilação do outro em sua versão mais funesta, ou pode nos levar a desejar a permanência desse outro sempre e quando se mantenha em seu lugar. Já argumentei em outro artigo a reiteração do prazer pela hierarquia (Díaz-Benítez, 2015DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, v. 21, n. 1, p. 65-90, 2015.), mas naquele momento me interessava discutir a erotização da mesma. Aqui pretendo pensar na existência desse prazer para além do deleite erótico: testemunhar o exercício da hierarquia - um patrão que coloca a um empregado em seu lugar, um homem negro que é linchado e amarrado a um poste de modo pedagógico, um jovem cuja testa é tatuada com a palavra “ladrão”, uma mulher obesa que “tem a ousadia” de posar em biquíni e na sequência é submetida a escárnio, entre outros muitos exemplos - parecessem evidenciar o quanto percebemos as existências e classificamos a humanidade a partir de exercícios de rebaixamento.

Obviamente, testemunhar a revolta do humilhado também constitui um prazer social especialmente para aqueles que não ostentam o poder mais hegemônico, que têm menores dificuldades de dividir seus privilégios de raça, gênero, classe e sexualidade ou que leem criticamente a desigualdade social. Já aprendemos com Foucault (1976)FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1976. o quanto a norma carrega sua própria capacidade de resistência ou o quanto a citação da norma possibilita os deslocamentos da mesma em prol de mudança e de transgressões (Butler, 2004BUTLER, J. Undoing gender. London: Routledge, 2004.); o “de cima” humilha e o “de baixo” escracha, e o escracho público do humilhador como forma de revide também movimenta emoções de satisfação e justiça social.

Autores como Kolnai (2013)KOLNAI, A. Asco, soberbia, odio: fenomenologia de los sentimientos hostiles. Madrid: Encuentro, 2013. e Miller (1997)MILLER, W. I. The anatomy of disgust. Cambridge: Harvard University Press, 1997. chamam a atenção à proximidade entre as estruturas do nojo e do desejo. Para eles, ambas as emoções estariam compostas pela dupla rechaço/fascínio. Esses conteúdos complexos e por vezes paradoxais insistem em que aquilo que pode causar repulsa, simultaneamente tem a capacidade de causar atração. Não pretendo fazer uma analogia direta entre os conteúdos do nojo/desejo com a humilhação, mas a partir dos últimos exemplos mencionados quero chamar a atenção para o quanto as nossas emoções frente a atos de humilhação dizem respeito aos modos como nossa sensibilidade moral consegue combinar repulsa, humor e atração com certa cadência e emaranhamento dos limites, sendo este o efeito da humilhação quando vira espetáculo.

Humilhação x violência

Para uma pesquisa recentemente por mim iniciada, tenho recolhido notícias de jornal e de sites de movimentos sociais sobre os casos de mulheres que tiveram seus rostos atacados com ácido. Os depoimentos das mulheres falam a respeito da perda de controle de si, de sentirem essa vivência como uma sensação extracorpórea, como uma dor perpétua ou castigo que se colou a elas sem direito a redenção. A cada nova cirurgia plástica reinicia-se uma promessa que não se cumpre. “Preferiria estar morta”, “este é pior castigo que a morte”, “ele me fez isso para que eu nunca mais me relacione com ninguém”, dizem essas mulheres. Para aquelas que não ousam sair de casa ou que não podem sair porque a luz do sol afeta fatalmente cicatrizes que ainda não se curaram é delegado o lugar do monstro: as sombras, o encerramento, o afastamento do mundo. Esse tipo de experiências extremas revela a humilhação em seu sentido mais forte, como o desnudamento do humano, como uma desqualificação que atua no âmbito moral, simbólico e psicológico, afetando num sentido mais complexo o que significa ser humano. No fundo, diz Avishai Margalit (1998)MARGALIT, A. The decent society. Cambridge: Harvard University Press, 1998., a humilhação transparece a significação de que a pessoa é sub-humana, isto é, um humano incompleto, como se faltassem partes ou aspectos importantes daquilo que o torna humano num sentido mais amplo. Situações-limite como essas têm a potencialidade de desfazer a humilhação como uma emoção e torná-la um estatuto do ser, um estado social permanente que está para além da temporalidade presentificando-se o tempo todo e extrapolando suas vidas e suas relações. Como é possível se constituir como sujeito frente à sensação de perda de si? Exposição de fotografias sexuais, espetacularização e banalização do estupro, introjeção da humilhação como roteiro devido àquilo que se é (ou aquilo que se foi), e ataque com ácido, no final das contas são formas de fazer sujeitos. Tem como efeito mudar o carácter do outro, atuam numa ordem hierárquica de gênero.

Diversos analistas das práticas de humilhação a descrevem como um movimento de rebaixamento ou inferiorização (Katz, 2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284.; Lindner, 2001LINDNER, E. G. Humiliation and the human condition: mapping a minefield. Human Rights Review, v. 2, n. 2, p. 46-63, 2001.; Margalit, 1998MARGALIT, A. The decent society. Cambridge: Harvard University Press, 1998.; Miller, 1993MILLER, W. I. Humiliation. New York: Cornell University, 1993.; Nussbaun, 2006NUSSBAUN, M. El ocultamento de lo humano: repugnancia, vergüenza y ley. Buenos Aires: Katz, 2006.). Nesse ponto de vista, a humilhação estaria operando em um sentido vertical, denotando a criação de uma hierarquia: a humilhação, diz Jack Katz (2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284., p. 239), “põe para baixo; na humilhação você se sente subitamente diminuído, tão diminuído que o mundo inteiro parece olhá-lo de cima”. Para Katz a humilhação é um sentimento holista, “enterra o self ou provoca uma resistência interminável na medida em que ameaça tomar conta da pessoa” (Katz, 2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284., p. 235), “há nela uma profunda compreensão do poder dos outros de controlar a alma da pessoa” (Katz, 2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284., p. 234).

A humilhação pode tornar-se violência. E para que isso aconteça é preciso passar por um processo emocional específico, diz Katz, é necessário que a humilhação se torne ira, ou é necessário, como argumentam Simião (2006)SIMIÃO, D. S. Representando corpo e violência. A invenção da ‘violência doméstica’ em Timor-Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 61, p. 133-145, 2006. e Cardoso de Oliveira (2008)CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Existe violência sem agressão moral?. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67, p. 135-143, 2008., que a agressão seja, de fato, configurada moralmente como violência. Esses autores insistem na necessidade de desnaturalizar o que entendemos por violência,13 13 Empreendimento também realizado por Gregori (1993) e por Debert e Gregori (2008). a qual somente existe quando há um trabalho subjetivo moral que torna um ato (ora um ataque físico, ora um insulto ou um xingamento) em violência: “Um ato de uso de força, mesmo podendo ser sentido como agressão física por parte de quem o sofre, pode não ter maiores implicações no plano moral” (Simião, 2006SIMIÃO, D. S. Representando corpo e violência. A invenção da ‘violência doméstica’ em Timor-Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 61, p. 133-145, 2006., p. 135), ou seja, é necessário somar a dor física à dor moral (Simião, 2006SIMIÃO, D. S. Representando corpo e violência. A invenção da ‘violência doméstica’ em Timor-Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 61, p. 133-145, 2006., p. 139), e se for um insulto, é preciso que gere ressentimento em quem o recebe (Cardoso de Oliveira, 2008CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Existe violência sem agressão moral?. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67, p. 135-143, 2008.).

Disse páginas atrás que neste artigo meu objetivo era pensar ao redor da noção de humilhação e não de violência. Vários são os motivos. Por um lado, a constatação de que a própria noção de violência, quando associada a conjugalidades e âmbitos da intimidade, é um território em disputa em relação a processos de reivindicação de direitos, discursos e lugares de enunciação.14 14 Debert e Gregori (2008, p. 167) se perguntam: “Quais os desafios envolvidos no intercâmbio de expressões como violência contra a mulher (noção criada pelo movimento feminista a partir da década de 1960), violência conjugal (outra noção que especifica a violência contra a mulher no contexto das relações de conjugalidade), violência doméstica (incluindo manifestações de violência entre outros membros ou posições no núcleo doméstico - e que passou a estar em evidência nos anos de 1990), violência familiar (noção empregada atualmente no âmbito da atuação judiciária e consagrada pela recente Lei “Maria da Penha” como violência doméstica e familiar contra a mulher) ou violência de gênero (conceito mais recente empregado por feministas que não querem ser acusadas de essencialismo)?” Por outro, a confirmação etnográfica de que, nas experiências de vida aqui narradas, a humilhação é uma emoção que assume importantes contornos permitindo-nos ampliar a compreensão sobre os modos como, em situações de conflito, os sujeitos vivem e constituem emocionalmente suas existências. Daí derivo a ideia de que a humilhação opera como um roteiro relacional amplamente generificado que tem efeitos subjetivos que, por sua vez, não são de antemão configurados moralmente como violência por aquele que os vive. Isso me incentivou a realizar o exercício analítico de interpretar a humilhação em relação às dinâmicas emocionais (Coelho, 2001COELHO, M. C. Sobre agradecimentos e desagrados: trocas materiais, relações hierárquicas e sentimentos. In: VELHO, G.; KUSCHNIR, K. (org.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. p. 265-292., 2010COELHO, M. C. Narrativas da violência: a dimensão micro-política das emoções. Mana, v. 16, n. 2, p. 268-285, 2010., 2012COELHO, M. C. Gênero, emoções e vitimização: percepções sobre a violência urbana no Rio de Janeiro. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 10, p. 10-36, 2012.) que a constroem e acompanham.15 15 Uma parte da minha pesquisa sobre humilhação, não incluída neste artigo devido à falta de espaço, diz respeito a “pequenas brigas de casal”, isto é, atritos menores ou “cutucadas” diversas que recebem grande espaço nas situações do dia a dia. Ali fica mais palpável ainda a própria desnaturalização da violência e, inclusive, da humilhação. Os atos nunca foram narrados a mim (e acredito que nem configurados pelos sujeitos) em termos de violência e tampouco foram a mim narrados exclusivamente em termos de humilhação, mas sentidos como vexames, constrangimentos, vergonhas, magoas e ironias.

Voltemos a um caso etnográfico previamente narrado, da mão dos autores recém-mencionados, para melhor pensar as nuanças entre humilhação e violência. Em sua pesquisa sobre agressões corporais e a invenção da violência doméstica em Timor Leste, Simião (2006)SIMIÃO, D. S. Representando corpo e violência. A invenção da ‘violência doméstica’ em Timor-Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 61, p. 133-145, 2006. chama a atenção a contextos em que as agressões físicas podem ser pensadas como um dever social ou pedagógico por parte de quem as utiliza, e dessa forma são normalizadas e não imaginadas como situações de risco. Laura, já disse, vivia os espancamentos como uma consequência normal de seu passado e como uma moeda de troca possível devido ao tipo de mulher que ela foi. Sua união a Jean Carlo, sustentada por um complexo emocional de amor, culpa, arrependimento e gratidão, e o fato de trivializar a personalidade “esquentada” de seu namorado, faziam com que as agressões físicas ganhassem sentidos normais no cotidiano. Sua paciência, ao mesmo tempo em que garantia a permanência do casal, permitia que a humilhação fosse “passivamente adquirida” (Katz, 2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284., p. 234).16 16 Katz (2013) fala também a respeito da dissimulação ou da aparente indiferença que alguns sujeitos humilhados desenvolvem, até porque o reconhecimento da humilhação é, por si mesmo, humilhante. Mas há situações que atingem o alvo. A acumulação de atos a haviam levado à beira da humilhação. Se no tempo do dia a dia a humilhação foi incorporada com “uma consciência de impotência” (Katz, 2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284.), foi o instante da extrapolação que tornou a habitual impotência em um movimento de força. Em situações críticas que beiram o excesso, as emoções sofrem transformações velozes. Para Katz (2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284., p. 243), que analisa a dinâmica emocional envolvida em situações de assassinato, a humilhação sofre uma passagem em direção à ira e essa ira, por sua vez, enceguece em relação ao futuro, leva o iracundo a procurar uma saída, “procura um alvo para se extinguir”. Laura, como humilhada, não atingiu a ira quando se encontrou em uma experiência que extrapolava os espancamentos e xingamentos normalizados. Tampouco aceitou que sua humilhação naquele momento se tornasse difusa e a devolvesse a um retorno infinito de repetições. Sua humilhação se tornou medo e se amparou num halo de esperança e, assim como o iracundo que procura uma saída, ela conseguiu fugir. Dessa vez a humilhação não fez um movimento de cima para baixo afundando-a na sensação de impotência, nem de baixo pra cima como quando se torna ira, mas de dentro pra fora em direção a um futuro.

Simião (2006)SIMIÃO, D. S. Representando corpo e violência. A invenção da ‘violência doméstica’ em Timor-Leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, n. 61, p. 133-145, 2006. menciona que as agressões que resultam em sangramento ou em sequelas físicas visíveis tendem a ser menos toleradas pelas mulheres em Timor Leste, inclusive porque as leva a sentir vergonha ou a se sentirem insultadas, sendo desse complexo emocional que surge a sensação moral da humilhação. O que eu sei a partir da narrativa da Laura é que ela soube que, dessa vez, precisava correr para resguardar sua vida. É complicado dizer que ela vivia as agressões com consentimento, até porque o próprio consentimento é uma experiência desigual que também precisa de desnaturalização: há quem consente com liberdade, há quem consente em meio a constrangimentos dos mais diversos.17 17 Sobre disputas em torno da noção de consentimento, ver Lowenkron (2015). Foi necessária uma fissura (Díaz-Benítez, 2015DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, v. 21, n. 1, p. 65-90, 2015.) no acordo moral das transgressões conjugais para que a situação configurasse um risco. Só naquele momento foi violência.

Quando escrevi sobre fissuras, dizia que uma de suas características é a sua capacidade de se refazer rapidamente. Acredito que essa capacidade de refazimento - às vezes, de modo veloz -, a não dramaticidade em determinadas ocasiões do ato de se refazer, e sua descida ao cotidiano como forma de comunicação, permite que as emoções em torno daqueles confrontos tomem diversos nomes (não necessariamente violência), apelando ao amor, em função da permanência do casal e em relação a outras emoções como vergonha, culpa ou agradecimento - entre outras que já mencionei - que sustentam os marcos morais dos sujeitos. A capacidade de refazimento, acredito que seja uma pista para a interpretação das nuanças entre humilhação e violência.

Para finalizar, gostaria de trazer novamente Kolnai para pensar as relações e diferenças entre sentimentos e emoções e a partir daí interpretar quando, ao longo deste artigo, a humilhação se configurou como uma ou outra. Para o autor, as emoções são caracterizadas por três traços fundamentais: a intencionalidade, a base cognitiva e a corporalidade, enquanto os sentimentos abrangeriam uma classe mais extensa de fenômenos que afetam de diversos modos a experiência afetiva. Sentimentos como o ódio ou a vingança estariam mais próximos às atitudes afetivas e não necessariamente seriam respostas emocionais como, por exemplo, o nojo ou a vergonha. Emoções pertenceriam ao repertório essencial de reações humanas; sentimentos estariam mais sujeitos a fatores socioculturais e históricos. Assim, o ódio, por exemplo, não seria um sentimento reativo, pois o reino de seus objetos é sempre determinado pelos dados biográficos daquele que o sente ou por fatores históricos e socioculturais para aquilo que apreendemos que deve ser odiado. Se levarmos a sério essa colocação, poderíamos dizer que em alguns exemplos levantados ao longo do artigo, a humilhação foi resultado de um sentimento - tipo, aqueles internalizados historicamente sobre a desigualdade de gênero - e em outros se tratou de uma emoção reativa diante de um opróbio.

Neste texto tentei mostrar como a humilhação tem a capacidade de se tornar violência dependendo do tempo em que o ato é interpretado pelos sujeitos; tem a capacidade de se desfazer como emoção para se tornar um estatuto do ser - em casos extremos como aquele das mulheres atacadas com ácido - ou pode se tornar uma moeda de troca que os sujeitos manipulam com certa normalidade. Seja como for, a humilhação só tem abertura a partir de dinâmicas emocionais das mais variadas. No exemplo do ácido percebemos a produção da repulsa que produz um rosto que não pode mais ser olhado, conformando o complexo nojo, repulsa, humilhação, que recai na violência e no crime. Vários atos narrados ao longo destas páginas atuam como formas de estabilização da humilhação e são vividos como roteiros relacionais. Trata-se de emoções que denotam sempre relações, ora entre os sujeitos, ora entre a emoção e as situações (do presente, passado ou futuro) que ela mesma evoca.

Referências

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  • 1
    Para a elaboração deste artigo, agradeço a leitura e sugestões de meus orientandos, todos integrantes do Núcleo de Estudos em Coros, Gênero e Sexualidade (NuSEX) do PPGAS/MN e agradeço a leitura e sugestões das ou dos pareceristas anônimos, que muito contribuíram para melhorar os argumentos.
  • 2
    Na introdução da tradução dessa obra ao espanhol, a filósofa Ingrid Vendrell Ferran (2013VENDRELL FERRAN, I. Aurel Kolnai: fenomenologia de los sentimentos hostiles. In: KOLNAI, A. Asco, soberbia, odio: fenomenologia de los sentimientos hostiles. Madrid: Encuentro, 2013. p. 7-32., p. 9, tradução minha) explica que essa atitude fenomenológica é conhecida como “redução eidética”, que “consiste em analisar um fenômeno da experiência, identificando suas caraterísticas essenciais frente a fenômenos similares, descrevendo-os e estudando-os até chegar a captar os momentos constitutivos do mesmo”.
  • 3
    Fiz trabalho de campo entre 2006 e 2008, defendi minha tese em 2009 e publiquei seus resultados em julho do ano seguinte (Díaz-Benítez, 2010DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. Nas redes do sexo: os bastidores do pornô brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.). Entre 2011 e 2012 fiz etnografia em uma produtora de filmes de humilhação ou de humiliation porn. Essa é uma categoria específica que no mundo do fetiche se desdobra em muitas outras: sex slave, kink, punishment, bestial porn, taboo, crash e rape, entre outras. Desse empreendimento desdobrei duas publicações (Díaz-Benítez, 2012DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. Sexo com animais como prática extrema no pornô bizarro. Cadernos Pagu, n. 38, p. 241-279, 2012., 2015DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, v. 21, n. 1, p. 65-90, 2015.). Essa pesquisa marcou um momento decisivo em meu interesse pessoal pela humilhação. Mas, sem dúvida, meus interesses sobre essa categoria são anteriores e atravessam tanto minhas inquietações prévias sobre gênero e sexualidade, como aquelas relativas a classe e raça que trabalhei na graduação e no mestrado. O curso que ministrei em 2017 no PPGAS/MN denominado “Nojo, repúdio e humilhação no fazer social” junto de meu colega Kaciano Gadelha, foi fundamental para organizar melhor minhas ideias. Em poucas palavras, penso as emoções recém-mencionadas como estando profundamente sujeitas por hierarquias de gênero, classe, raça e sexualidade. Meu objetivo tem sido pensar a humilhação como um dispositivo para ler a atuação de diversos marcadores sociais da diferença. Essa ideia, certamente, está longe de ser original e em minha trajetória pessoal teve inspiração direta de Frantz Fanon (1968)FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. em Os condenados da terra e em sua explicitação das emoções derivadas da humilhação racial e seus efeitos psíquicos.
  • 4
    Ver Sedgwick (2007)SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, n. 28, p. 19-54, 2007. e Mason (2002)MASON, G. The spectacle of violence: homophobia, gender and knowledge. London: Routledge, 2002..
  • 5
    Sobre tempo e gênero ler Das (2011)DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, p. 9-41, 2011. e Fernandes (2018)FERNANDES, C. O tempo do cuidado: batalhas femininas por autonomia e mobilidade. In: RANGEL, E.; FERNANDES, C.; LIMA, F. (org.). (Des)Prazer da norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018. p. 297-320..
  • 6
    Todos os nomes próprios são fictícios para proteger as identidades.
  • 7
    Falando a respeito do senso de vulnerabilidade do humilhado, Jack Katz (2013KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284., p. 235) diz: “Ao se sentir humilhada, a pessoa muitas vezes tenta vislumbrar um futuro no qual a desgraça terá se desvanecido, mas, enquanto está se sentindo humilhada, se dá conta de que não consegue. Ela tenta abolir o sentimento insuportavelmente penoso recorrendo ao saber popular: ‘o tempo cura todo’ […] ‘vou me mudar e meus novos colegas não saberão nada sobre meu passado’. Apesar da certeza de que essas afirmações fazem sentido, a pessoa que se sente humilhada se depara com evidências inegáveis de que elas não funcionam: a humilhação continua.” Mesmo Cris tendo mudado sua aparência de modo profundo, a cada novo reconhecimento que alguém faz de sua pessoa, a humilhação ameaça atravessar eternamente a biografia.
  • 8
    São numerosos os exemplos e as matérias de jornal. No Brasil ficaram conhecidos os casos das adolescentes de 15 e 17 anos, do Rio Grande do Sul e do Piauí, que em 2013 cometeram suicídio após o vazamento de suas fotografias em internet. Ver Perez (2013)PEREZ, F. Vingança mortal. Isto É, 22 nov. 2013. Atualizado em: 21 jan. 2016. Disponível em: Disponível em: https://istoe.com.br/336016_VINGANCA+MORTAL/ . Acesso em: 30 maio 2018.
    https://istoe.com.br/336016_VINGANCA+MOR...
    ; ver também Varella e Soprana (2016)VARELLA, G.; SOPRANA, P. Pornografia de vingança: crime rápido, trauma permanente. Época, 16 fev. 2016. Atualizado em: 3 nov. 2016. Disponível em: Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/experiencias-digitais/noticia/2016/02/pornografia-de-vinganca-crime-rapido-trauma-permanentee.html . Acesso em: 30 maio 2018.
    https://epoca.globo.com/vida/experiencia...
    .
  • 9
    A maioria das vezes em que um homem é submetido a esse tipo de humilhação está relacionada a situações em que ele é colocado no lugar do feminino: aquelas envolvendo clientes de michês ou de travestis, por exemplo.
  • 10
    Em tese de doutorado intitulada Yseut et Wîs: une lecture junguienne des personnages féminins dans Le Roman de Wîs et Râmîn et dans les romans de Tristan o filólogo, psicanalista e doutor em Letras Medievais, Leonardo Hincapié Giraldo (2014)HINCAPIÉ GIRALDO, L. Yseut et Wîs: une lecture junguienne des personnages féminins dans Le Roman de Wîs et Râmîn et dans les romans de Tristan. 2014. Thèse (Doctorat en Littérature et Civilisation Françaises) - Université Paris 3-Sorbonne Nouvelle, Paris, 2014., elabora a hipótese de que a relação de amor e sofrimento retratada na legenda de Tristão e Isolda tem funcionado como fórmula narrativa ao longo dos séculos para a mitologia, a literatura e indústrias mais contemporâneas como cinema e novelas de televisão. O autor defende que essa forma de percepção do amor passou a existir socialmente como um arquétipo, como um modo de pensamento e representação que estabelece nossas experiências e persiste como um inconsciente coletivo. Assim, nossa visão sobre o amor que é dor responde a essa gramática do arquétipo e do subconsciente. Rezende e Coelho (2010)REZENDE, C. B.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010., em sua explicação sobre como têm sido trabalhadas as emoções nas ciências sociais, lembram da abordagem historicista que destacaria o caráter histórico das mesmas por meio da recuperação de genealogias de categorias emotivas para denotar como se manifestam na atualidade ou têm sido reatualizadas ao longo do tempo. O trabalho de Viveiros de Castro e Benzaquen de Araújo (1977)VIVEIROS DE CASTRO, E.; ARAÚJO, R. B. de. Romeu e Julieta e a origem do Estado. In: VELHO, G. (org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia e arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 130-169. sobre o amor a partir de Romeu e Julieta de Shakespeare é uma manifestação da abordagem historicista. Hincapié Giraldo (2014)HINCAPIÉ GIRALDO, L. Yseut et Wîs: une lecture junguienne des personnages féminins dans Le Roman de Wîs et Râmîn et dans les romans de Tristan. 2014. Thèse (Doctorat en Littérature et Civilisation Françaises) - Université Paris 3-Sorbonne Nouvelle, Paris, 2014. vê em Romeu e Julieta uma versão romanceada da legenda de Tristão e Isolda. Falta-me competência teórica para seguir por ora o caminho de argumentação dos arquétipos para entender interpretações históricas e efetivas na nossa sociedade sobre o amor. Mas deixo aqui registrada a minha suspeita de que talvez seja possível colocar em diálogo uma abordagem historicista das emoções com aquilo que John Gagnon (2006)GAGNON, J. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. tem chamado de “roteiro intrapsíquico”. Para além dessa ideia, autores como Dennis de Rougemont (1988)DE ROUGEMONT, D. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. analisam o romance de Tristão e Isolda como a primeira manifestação do amor a configurar um imaginário ocidental até nossos dias. Trata-se de um amor que se prolonga para além da morte e que se caracteriza pelo sofrimento dos amantes e a impossibilidade de viverem juntos devido a obstáculos indissolúveis. De algum modo, o sofrimento faz esse amor sublime. Para Rougemont, Tristão e Isolda não se amam, o que eles amam é o amor e o próprio fato de amar.
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    E porque a nudez masculina tem menos chances de ser usada pelas mulheres como motivo de vingança. Não seria a nudez em si o que causaria vergonha, mas as qualidades do corpo: malformado, obeso, ou, no maior dos casos, quando há algum rasgo que ameace a sua masculinidade, como o pênis pequeno. Isabela Rangel (2016RANGEL, I. Esse nu tem endereço: o caráter humilhante da nudez e da sexualidade feminina em duas escolas públicas. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016., p. 85) menciona em sua dissertação que algo da vergonha da exposição de imagens femininas é passada aos homens: “Para os rapazes, a um só tempo, o prestígio do reforço à virilidade, mais comumente ressaltado pelos colegas e, em pequena escala, uma percepção de imaturidade, devido à exposição indevida da intimidade de alguém. ‘Isso não é coisa de homem’ é uma das frases ditas por moças e rapazes nas poucas críticas feitas à prática de ‘vazamento’ de imagem.”
  • 12
    O fascínio que brigas e humilhações públicas gera na sociedade diz respeito à construção social de outro prazer específico relativo à ostentação da derrota de um diante do exercício do poder ou do abuso do outro. Nesses casos, enunciados sobre impotência e sobre punição se fazem presentes na configuração de estéticas da humilhação. Acredito que a explosão da violência punitivista em que vivemos, a qual em certas contingências sociais favorece ideias como aquela de que bandido bom é bandido morto, o apoio a penas capitais, a linchamentos ou a esquadrões da morte, pode simultaneamente criar um espaço de introjeção subjetiva em que a punição é levada ao território dos pequenos atos no cotidiano ou à punição de si mesmo como mecanismo de autocontrole ou de mitigar as culpas e o arrependimento, o que ganha contornos relevantes se somado a uma introjeção da moral cristã sobre o suplício como forma de elevação. Como sociedade e como sujeitos, somos construídos a partir dessas metanarrativas. A humilhação é uma metanarrativa que possui espaços profundos em nosso psiquismo, me atrevo a dizer, e que se encarna em nossos atos e emoções como um prenunciamento de uma vida possível.
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    Empreendimento também realizado por Gregori (1993)GREGORI, M. F. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Anpocs: Paz e Terra, 1993. e por Debert e Gregori (2008)DEBERT, G. G.; GREGORY, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 165-185, 2008..
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    Debert e Gregori (2008DEBERT, G. G.; GREGORY, M. F. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 165-185, 2008., p. 167) se perguntam: “Quais os desafios envolvidos no intercâmbio de expressões como violência contra a mulher (noção criada pelo movimento feminista a partir da década de 1960), violência conjugal (outra noção que especifica a violência contra a mulher no contexto das relações de conjugalidade), violência doméstica (incluindo manifestações de violência entre outros membros ou posições no núcleo doméstico - e que passou a estar em evidência nos anos de 1990), violência familiar (noção empregada atualmente no âmbito da atuação judiciária e consagrada pela recente Lei “Maria da Penha” como violência doméstica e familiar contra a mulher) ou violência de gênero (conceito mais recente empregado por feministas que não querem ser acusadas de essencialismo)?”
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    Uma parte da minha pesquisa sobre humilhação, não incluída neste artigo devido à falta de espaço, diz respeito a “pequenas brigas de casal”, isto é, atritos menores ou “cutucadas” diversas que recebem grande espaço nas situações do dia a dia. Ali fica mais palpável ainda a própria desnaturalização da violência e, inclusive, da humilhação. Os atos nunca foram narrados a mim (e acredito que nem configurados pelos sujeitos) em termos de violência e tampouco foram a mim narrados exclusivamente em termos de humilhação, mas sentidos como vexames, constrangimentos, vergonhas, magoas e ironias.
  • 16
    Katz (2013)KATZ, J. Massacre justo. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 211-284. fala também a respeito da dissimulação ou da aparente indiferença que alguns sujeitos humilhados desenvolvem, até porque o reconhecimento da humilhação é, por si mesmo, humilhante.
  • 17
    Sobre disputas em torno da noção de consentimento, ver Lowenkron (2015)LOWENKRON, L. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Cadernos Pagu, n. 45, p. 225-258, 2015..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2018
  • Aceito
    05 Fev 2019
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