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A cidade neoliberal no Brasil de uma perspectiva foucaultiana

The neoliberal city in Brazil according to a Foucauldian perspective

La ville néolibérale au Brésil selon une perspective foucaldienne

Resumo

O artigo aborda esquematicamente a ascensão do neoliberalismo no Brasil e traça uma proposta de “tipologia” das cidades que emergiram com o capitalismo - cidades despóticas, cidades disciplinares e cidades de controle - que permite revelar a penetração e instauração do neoliberalismo na vida cotidiana. Para tanto, baseou-se sobretudo, mas não só, nas análises críticas de Foucault ao neoliberalismo. O aporte pretendido no debate sobre a cidade neoliberal em voga é o de que o neoliberalismo não é uma radicalização do liberalismo econômico clássico - que por meio da financeirização e do “menos Estado” fragmenta e segrega a cidade -, mas sim uma nova forma de normalização social fundada num intervencionismo do Estado em seus vários níveis e, em consequência, na cidade, por meio da noção de meio e de norma.

Palavras-chave:
Cidade neoliberal; Neoliberalismo; Foucault; Brasil

Abstract

The article schematically addresses the rise of neoliberalism in Brazil, and then outlines a proposal for a “typology” of cities that emerged with capitalism - despotic cities, disciplinary cities and cities of control - which allows revealing the penetration and establishment of neoliberalism in everyday life, to this end, we base ourselves mainly, but not only, on the critical analyzes of Foucault’s neoliberalism. The contribution intended by the article in relation to the debate about the neoliberal city in vogue is that neoliberalism is not a radicalization of the classic economic liberalism that through financialization and the “less State” that fragments and segregates the city, but it is a new form of social normalization based on State interventionism at its various levels and, consequently, in the city, through the notion of means and norms.

Keywords:
Neoliberal city; Neoliberalism; Foucault; Brazil

Résumé

L’article aborde schématiquement la montée du néolibéralisme au Brésil, puis esquisse une proposition de “typologie” des villes qui ont émergé avec le capitalisme - villes despotiques, villes disciplinaires et villes de contrôle - qui permet de révéler la pénétration et l’implantation du néolibéralisme dans la vie quotidienne, à cette fin nous nous appuyons principalement, mais pas seulement, sur les analyses critiques du néolibéralisme de Foucault. L’apport voulu par l’article par rapport au débat sur la ville néolibérale en vogue est que le néolibéralisme n’est pas une radicalisation du libéralisme économique classique, qu’à travers la financiarisation et le “moins d’État” fragmente la ville, il est une nouvelle forme de normalisation sociale fondée sur l’interventionnisme de l’État à ses différents niveaux et, par conséquent, dans la ville, à travers la notion de milieu et de norme.

Mots-clés:
Ville néolibérale; Néolibéralisme; Foucault; Brésil.

Introdução

No artigo passamos em revista de maneira esquemática a ascensão do neoliberalismo no Brasil, para em seguida traçar uma proposta de “tipologia” das cidades que emergiram com a ascensão do capitalismo - cidades despóticas, cidades disciplinares e cidades de controle - que permite revelar a penetração e instauração do neoliberalismo na vida cotidiana. Assim, há um processo social que se instaura por meio da conquista das subjetividades a partir da noção de meio,1 1 Foucault define meio inspirado nas análises epistemológicas e genealógicas de Canguilhem sobre o “Vivente e seu meio”, no livro O conhecimento da vida, publicado em 1952, e em O normal e o patológico. Essa noção de meio nos usos que faz Foucault e na interpretação de Canguilhem, que não cabe aqui analisar em pormenor, ressoam supreendentemente a “mesologia”, uma perspectiva adotada, entre outros, em meados do século XIX, por Elisée Reclus, conceito não determinista e não finalista ou teológico e metafísico, diferenciando-se, nesse sentido, das concepções dominantes desenvolvidas por Newton, Lamarck e, por meio deles, seguida por parte considerável e dominante dos geógrafos do século XIX, em particular Vidal de La Blache, que tinham uma concepção “positivista e mecanista do meio” se apoiando, apesar de afirmações paradoxais, no determinismo ecológico de Haeckel, que pregava uma espécie de darwinismo social aplicado aos homens na concorrência com outras espécies, confundindo, desse modo, o meio e o environment (ou meio ambiente, aquilo que envolve). Reclus afirmava que “o homem é ele mesmo um meio para o homem”, ou seja, os meios são múltiplos e dão desenvolvimentos diferenciais; nesse particular, o que escrevia Reclus é próximo daquilo que escreveu mais de cinqüenta anos depois Canguilhem (1952, p. 192) “[...] o homem não escapa da lei geral dos viventes, o meio próprio do homem é o mundo da sua percepção, quer dizer, o campo de sua experiência pragmática onde suas ações são orientadas e reguladas por valores imanentes [...]”. O meio é interno e externo ao homem e às espécies, o meio acolhe e atravessa os organismos, os seres; em seu conhecimento, a ciência ela mesma tem um sentido na aventura da vida envolvendo o homem, portanto, não há um meio externo determinando o homem! Sobre todos esses pontos, consultar Pelletier (2016) e Canguilhem (1952). no qual a reprodução dos sujeitos conduz à incorporação consciente e inconsciente de práticas e discursos relativos ao neoliberalismo, ao mesmo tempo em que os campos da economia, do território e do espaço são penetrados por práticas neoliberais dominantes por meio de um ativismo estatal, ao contrário do que comumente se pensa. Isso nos parece fértil para pensar os desafios postos pela cidade neoliberal. Para Foucault (2004aFOUCAULT, M. Sécurité, territoire, population. Paris: Gallimard, 2014a., p. 22), o meio é a “ação à distância de um corpo sobre um outro corpo”, ele é o suporte e o elemento de circulação de uma ação e, antes mesmo que a noção, em sentidos os mais diversos, ora determinista da natureza sobre os organismos, ora na interação e reciprocidade organismo-natureza, apareça no fim século XVIII e início do século XIX, se desenha numa estrutura pragmática, nos diz Foucault, na maneira como os urbanistas tentavam no século XVII e XVIII pensar e modificar o espaço urbano

O neoliberalismo é o discurso dominante de nossa época e tem efeitos bem concretos na cidade, que pode vir a ser predominantemente neoliberal. É um modo de pensar, viver, um convencimento individual e coletivo que faz parecer consenso coletivo aquilo que emana da construção de uma norma social produzida por uma forma de dispositivo de governo (Foucault, 2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.) e um sistema de dominação (Bourdieu; Boltanski, 1976BOURDIEU, P.; BOLTANSKI, L. La production de l’idéologie dominante. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 2, n. 2-3, p. 3-73, jun. 1976. ), como também indicam Christian Laval (2018aLAVAL, C. Foucault, Bourdieu e la question neoliberal. Paris: La Découverte, 2018a., 2018bLAVAL, C. Entrevista à France Culture. Grande Table, 2a. Parte, 28 fev. 2018b.) e Dardot e Laval (2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.).

Desse modo, nos perguntamos: como essa “liberdade econômica”, que é uma máquina de exploração, pôde se difundir? Como pôde se tornar uma forma de dominação? E como ela tem um dos seus locus privilegiados no espaço urbano onde se partilham a renda e a remuneração do trabalho e do capital, em particular pela construção imobiliária e pelo controle de terras urbanas e pela captura da mais-valia por meio de equipamentos e infraestruturas públicas (Brandão, 2007BRANDÃO, C. Territórios & desenvolvimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.; Pereira, 2016PEREIRA, P. C. X. A reprodução do capital no setor imobiliário e a urbanização contemporânea: o que fica e o que muda. In: PEREIRA, P. C. X. (Org.). Reconfiguração das cidades contemporâneas: contradições e conflitos. São Paulo: FAUUSP, 2016. p. 125-143.)? Associada a essa problemática, está a questão da própria indústria e de seu papel na produção desses espaços, indústria que também é cada vez mais neoliberalizada e dependente de capitais financeiros (Zanotelli, 2019ZANOTELLI, C. L. Elementos preliminares sobre a “desindustrialização”, a financeirização e a geografia política da crise no Brasil. In: OLIVEIRA, F. G.; OLIVEIRA, L. D.; TUNES, R. H.; PESSANHA, R. M. Espaço e economia: geografia econômica e a economia política. Rio de Janeiro: Consequência , 2019. p. 511-551.).

Assim, como pensar alternativas à nova rodada neoliberal, que é irmã siamesa do conservadorismo mais profundo no Brasil de hoje? Estamos diante de uma cidade enredada em práticas e discursos predominantemente neoliberais, de uma indústria hegemonicamente submetida aos cânones do neoliberalismo e de um Estado, em suas diversas escalas, neoliberal, mas um neoliberalismo intervencionista, ou seja, o Estado para o neoliberalismo “conta”, mas deve deixar à “iniciativa” dita privada o exercício orientado da ação econômica para obter lucro e deve orientar os investimentos para prover de infraestrutura o território a fim de favorecer sua mercantilização.

Muitos têm abordado o tema da cidade neoliberal já há alguns anos, assim, numa concepção pós-crise de 2008, autores como Brenner, Peck e Theodor (2012BRENNER, N.; PECK, J.; THEODORE, N. Após a neoliberalização. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 14, n. 27, p. 15-39, jan./jun. 2012., p. 35) apresentam um debate sobre o conceito de neoliberalismo e de neoliberalização a partir de análises das experimentações regulatórias e a formação de regimes de normas transnacionais, os autores pensam que a “neoliberalização não é uma totalidade global que abarca tudo, mas sim um padrão de reestruturação desenvolvido de maneira desigual” e que ela é dependente de trajetórias dos lugares, das cidades, e, abre a possibilidade, de projetos regulatórios contraneoliberais. Num artigo anterior e na mesma linha, Theodor, Peck e Brenner (2009) tentam pensar as possibilidades que poderiam oferecer diferentes modos de regulação regiões urbanas diferentes, em termos de resistência ao neoliberalismo, demonstrando a diversidade como se dá a concretização do neoliberalismo no mundo. Analogamente, em artigo sobre a cidade neoliberal, Ana Clara Torres Ribeiro (2006TORRES RIBEIRO, A. T. A cidade neoliberal: crise societária e caminhos da ação. Observatório Social de América Latina, v. VII, n. 21, set./dez. 2006. Disponível em: Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/osal/20110408105720/3TorresRibeiro.pdf . Acesso em: 12 jun. 2020.
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) discute as crises societárias e como os ativismos enfrentam essa problema nas lutas pelo direito à cidade. Os aportes desses autores procuram pensar os diferentes processos das ações concretas do neoliberalismo nas cidades, bem como as possíveis reações a eles, sejam institucionais ou de ativismos sociais.

Brenner, em particular, conforme estabelece Gilles Pinson (2021PINSON, G. Neil Brenner, New Urban Spaces. Urban Theory and the Scale Question. Contester la Métropole, n. 28, 2021. doi: https://doi.org/10.4000/metropoles.8163.
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), tem uma contribuição original à teoria sobre o urbano na perspectiva de uma revalorização da análise do papel do Estado que favorece os investimentos em infraestruturas indispensáveis à circulação do capital, que são fornecidas pela urbanização, mas também pela organização em rede do espaço por meio da construção de equipamentos e de políticas de ordenamento territorial. Assim, para Brenner, a partir de Lefebvre, a urbanização generalizada e a estatização estão ligadas. As referências à importância do Estado, mesmo que num contexto de releitura da visão sobre o Estado dos anos 1960-70 por Lefebvre, me parece interessante e convergente para se pensar o papel do Estado no “novo neoliberalismo”, como o definem Dardot et al. (2021DARDOT, P.; GUÉGUEN, H.; LAVAL, C.; SAUVÊTRE, P. Le choix de la guerre civile: une autre histoire do néolibéralisme. Québec, CA: Lux, 2021.), pois, não se trata de dizer que o neoliberalismo dispensa o Estado, ao contrário, ele o instrumentaliza e ativa vários modos de controle e de normatização que favorecem a instauração da concorrência em todos os níveis, mas é “novo” porque mobiliza sem meias-verdades o aparato repressivo para favorecê-lo.

Assim, malgrado os aportes interessantes e as perspectivas complementares dos autores citados, nosso propósito aqui é pensar a cidade neoliberal na crise atual do capitalismo e, em particular, no Brasil, a partir de uma leitura outra, mas não exclusiva, muito menos excludente, antes complementar ou diversa em relação às invocadas. Procuramos fazer uma genealogia esquemática do neoliberalismo no caso do Brasil e mostrar como ele rima com o autoritarismo. Por outro lado, buscamos pensar o passado a partir do presente e, em seguida, usando principalmente o aporte foucaultiano, entre outros autores, analisamos a ordem neoliberal urbana.

Um esboço das rodadas de neoliberalização no Brasil

A característica principal das classes dominantes e de sua reprodução urbana e econômica é aquela de perpetuar seus “valores”. Deixar acontecer a “liberdade econômica” relativa regida por certas regras de “regulação” é uma das formas de tornar o sujeito ele mesmo escravo de suas ações. Essa ordem, no entanto, não é pura. Faz parte de um neoliberalismo econômico e político em que, em princípio, tudo poderia acontecer, mas dentro de certas margens, com certa regulação e um relativo controle à distância ou presencial nas zonas de tolerância do poder. Desse modo, assistimos à proliferação dos controles nas cidades - condomínios e loteamentos fechados, controle das ruas, praças e avenidas, de espaços públicos etc. (Zanotelli, 2011ZANOTELLI, C. L. Entre sociedade disciplinar e sociedade de controle: interrogações sobre o habitat enclausurado na cidade. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM GEOGRAFIA, 9., 8-12 out. 2011, Goiânia. Anais... Goiânia, 2011.). Contudo, ela é também associada à ordem disciplinar, à repressão e à “guerra urbana” (Souza, 2008SOUZA, M. L. Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.; Rolnik, 2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo , 2015.; Graham, 2016GRAHAM, S. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.; Mendonça, 2019MENDONÇA, M. J. A cidade como espaço de batalha urbicida. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019. ).

Temos, então, a combinação de uma sociedade do controle e de uma sociedade disciplinar que na atual quadra histórica se associam como forma de captura do poder de Estado e daqueles que evocam para si nas corporações estatais e paraestatais - em particular o Exército, as polícias e o aparelho judiciário - o fato de serem os representantes legítimos da violência. Mas esses processos se dão tanto dentro como fora do próprio Estado, por meio de agentes sociais que também ocupam posições intermediárias, estando ao mesmo tempo dentro e fora do espaço gerido pelos governos, como é o caso das milícias oriundas das polícias estatais. Os processos se dão também fora do Estado, por meio de grupos diversos que por meio de uma “racionalidade” dos interesses operam em acordo ou não com os agentes estatais no controle de mercadorias econômicas e políticas em rede no território e que constituem práticas de poder protoestatais (Misse, 2006MISSE, M. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lumes Juris, 2006.).

Esses processos, mais ou menos desregulados, articulam governamentalidades (Foucault, 2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.) via redes “sociais” que se inserem nas racionalidades neoliberais ditas legais que oferecem um campo para proliferação de disputas as mais variadas pelos interesses de cada um. Assim, a autoexploração, o tão em voga empresariamento de si mesmo, as “uberizações” diversas do mundo e em particular no Brasil têm levado a relações socioespaciais extremamente deletérias; a sociedade salarial é confrontada e se difunde por toda parte a luta de todos contra todos, em que cada um procura, aparentemente, seu próprio interesse e seu “direito de propriedade individual”, mesmo que seja para se endividar por muitos anos com empréstimos imobiliários ou na compra de lotes nas periferias, que são objeto de extorsão por parte de controladores de terras urbanas.

Assim, a questão é: como puderam as cidades no Brasil passar de um estertor de busca de uma “reforma urbana” a uma queda vertiginosa no abismo da violência social? Até 2013, ainda se faziam os balanços da “reforma urbana”, do Estatuto da Cidade, das políticas urbanas e das políticas públicas dos governos do Partido dos Trabalhadores (Maricato, 2011MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. São Paulo: Vozes, 2011.; Fernandes, 2013FERNANDES, E. Estatuto da cidade, mais de dez anos depois. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n. 1, p. 212-213, jan./jun. 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20/10-estatuto_da_cidade_edesio_fernandes.pdf . Acesso em: 12 jun. 2020.
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; Steinberger, 2013STEINBERGER, M. (Org.). Território, Estado e políticas públicas espaciais. Brasília: Ler, 2013. ). Mas, a partir de 2013 e das grandes manifestações de rua, no início dirigidas a questões da vida cotidiana urbana e depois instrumentalizadas pela horda furiosa dos neoliberais convertidos, tudo que era sólido pareceu se desmanchar no ar, aceleraram-se as mutações do Estado e da sociedade, as “regulações” se revelaram insuficientes para confrontar o golpe de Estado parlamentar-judiciário apoiado pelos militares das Forças Armadas e pela mídia hegemônica em 2016, e, em seguida, o advento da onda da extrema direita nas eleições de 2018 para a presidência e para o parlamento.

Parece-nos que as práticas neoliberais dominantes estavam em curso, como em outros países, no Brasil desde o início dos anos 1980 (crise da dívida, e o discurso de que “não há outra solução” por parte das elites políticas e econômicas da época) e até antes, nos anos 1970. Francisco de Oliveira (1995OLIVEIRA, F. Neoliberalismo à brasileira. In: GENTILI, P. (Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático . São Paulo: Paz e Terra , 1995. p. 24-28., p. 25) já indicava isso demonstrando que foi a ditadura que “começou o processo de dilapidação do Estado brasileiro” e que prosseguiu em seguida nos governos neoliberais dos anos 1980-90.

Deve-se atentar para o fato de que a ascensão internacional do neoliberalismo se dará a partir das crises de acumulação do capitalismo nos anos 1970, mas a mobilização de ideais neoliberais contra a intervenção do Estado e o Estado de bem-estar social já vinha sendo feita desde antes da Segunda Guerra Mundial (Foucault, 2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.).

Em particular, nas cidades, a espoliação urbana será acentuada nos anos 1980.2 2 A noção de espoliação data de bem antes do período atual e cresceu com a urbanização da sociedade; a este propósito, ver Kovarick (1979). Esse processo engendrou um pesadelo sem fim de violência social contra os “excluídos” e de uma violência sem fim na desestruturação de uma economia relativamente controlada pelo Estado que passou, por sua vez, a uma economia e a uma cidade controlada cada vez mais pelos interesses individuais e das classes dominantes, que querem se perpetuar no poder e na acumulação de riquezas.

Esse período já vinha sendo preparado desde as políticas urbanas e de planejamento neoliberais nos anos 1960-70. Foi um período no Brasil em que se retirou a estabilidade no emprego e se instaurou o financiamento da cidade via o FGTS, fundo pago pelo patronato sobre o salário dos trabalhadores e destinado ao financiamento de infraestrutura e de casas por meio do BNH. O sistema tinha uma forte intervenção do Estado e um projeto de industrialização e de certa autonomia geopolítica vis-à-vis dos EUA no governo do general Geisel, na segunda metade dos anos 1970. Mas, naquele momento, já estava em germe, nas classes dominantes, o desabrochar do neoliberalismo, que foi de certa maneira favorecido por um regime ditatorial, cujo sistema encontrou, no entanto, resistências no crescente proletariado urbano. À época, houve períodos de relativo investimento e de um relativo crescimento do emprego, porém mal remunerado e que serviu para a acumulação econômica e urbana capitalista (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo , 2003.).3 3 Para uma análise do neoliberalismo aplicado a outro país da América Latina, o Chile, onde é conhecido o “laboratório neoliberal” que resultou na associação da ditadura de Pinochet com os neoliberais, o que resultou em revoltas, protestos e contestações da primavera chilena de 2019, ler Hidalgo et al. (2016). A indústria relativamente protegida da concorrência internacional - mas assegurando monopólios que favoreceram contraditoriamente uma parcela das multinacionais aqui instaladas - entrará na seara dessa concorrência e dos projetos estratégicos neoliberais comandados pelos americanos e depois alemães e japoneses.

Assim, estavam lançados os elementos de uma ultraconcorrência pela sobrevivência e reprodução nas cidades dos anos 1970-80 nas metrópoles brasileiras. Essa longa maturação da iniquidade será explosiva com a penetração de maneira dominante do neoliberalismo nas altas esferas no período dos governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990. A explosão, nesse período, das formas de “des-regulação” dominantes pela violência social será generalizada e paulatinamente haverá uma metropolização da iniquidade em todos os recantos do Brasil, que se espraiará nos anos 2000, fundada numa concentração crescente de capital econômico e simbólico dos dominantes e das parcelas dominantes das classes médias que reproduzem as práticas da economia da concorrência.

Esse processo, na sua longa duração, na perspectiva urbana nacional, parece estar hoje atingindo seu ápice quando, além da violência da dominação de classe e da violência colonial ancestral, se sobrepôs outra forma de violência urbana e social - a dos mercados ilegais de drogas e do concomitante envolvimento de agentes do Estado nesses mecanismos e em outros de “venda de proteção” e de extorsão das populações dos bairros populares urbanos, que levarão a disputas pelo controle territorial - que proliferou pelo resto do território brasileiro dos anos 1980 até os dias atuais.

A regionalização e a nacionalização das formas de regulação do excedente econômico e social passaram para o modo da rapina (grandes combinações, transações obscuras nas privatizações das grandes empresas de Estado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso) que encontram seu eco nas rapinas e lutas por mercadorias políticas nas “periferias” das metrópoles, entre grupos em disputa pela repartição do butim relativo às ilegalidades de parcela do circuito das transações ilegais que são usadas como motivação para uma repressão e um controle crescente por parte das forças policiais dos “aglomerados de exclusão”. As ilegalidades dos circuitos superiores continuaram a proliferar sem comum medida e eram legitimadas por práticas e discursos dominantes que se fizeram passar por universais e de “livre concorrência”, do “livre mercado” e de uma pretendida “regulação econômica” pelas agências estatais ditas de “regulação” que, em verdade, pouco regulavam.

Assim, durante os anos 1990, as práticas neoliberais nas cidades supuseram o estímulo aos investimentos especulativos e das incorporações imobiliárias, o crescimento das infraestruturas no território nacional e a “integração” e submissão absoluta e relativa das frentes de colonização do Cerrado e da Amazônia ao coração industrial do país, a região concentrada.

No início dos anos 2000, a aliança de classes no poder sofre uma mutação, e novas formas de busca de consenso e de regulação são pautadas pelo poder político, procurando uma relativa coesão do corpo social e territorial. Mas essa tentativa se soldará por uma explosão dos descontentes com a partilha à margem dos excedentes e uma ultraexploração dos espaços do agronegócio e das commodities (Brandão, 2007BRANDÃO, C. Territórios & desenvolvimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.) - com nuances em relação aos períodos anteriores e com certa política industrial, em particular das empresas de engenharia e do setor de petróleo, e a fomentação de uma política de apoio a certa forma de soberania nacional em relação aos EUA. Houve também, como sabemos, um empoderamento de muitas categorias sociais que ficaram à margem do crescimento econômico anterior, e se assistiu, da mesma maneira, a um boom do circuito inferior integrado à sociedade de consumo e ao neoliberalismo tanto pelos discursos como pelas práticas. Da mesma forma, uma “nova ordem jurídica” emergiu das dezenas de fóruns, encontros e assembleias, e um relativo empoderamento permitiu colocar em evidência a desigualdade e o racismo no Brasil; dezenas de leis procuraram difundir e facilitar políticas públicas sociais, econômicas, rurais e urbanas que representaram certas conquistas sociais, mas essa legislação não é etérea e necessita de luta para sua implementação e respeito - o direito é algo a ser exercido, e não uma lei à espera de ser aplicada!

Paradoxalmente, a integração de largas parcelas dos setores dominados ao espaço socioeconômico, retirando milhões de pessoas da linha da miséria e da pobreza, permitiu, por sua vez, aumentar o consumo e difundir, insidiosamente, o discurso e as práticas neoliberais.

A proliferação da teologia neoliberal da prosperidade e dos interesses “calculadores” revela uma forma de inserção social que mereceria maior atenção dos estudiosos, inclusive comparando-a ao que estudou Max Weber sobre esse processo no desenvolvimento do capitalismo estadunidense no século XIX, que foi fundado, em parte, em práticas do cálculo “racional”. Mas o “espírito calculante”, a lógica econômica do interesse e do cálculo é “[...] indissociável da constituição do cosmos econômico onde ela se engendra, o cálculo estritamente utilitarista não pode explicar totalmente as práticas que estão imersas no não-econômico” (Bourdieu, 2000BOURDIEU, P. Les structures sociales de l’économie. Paris: Seuil, 2000., p. 21). Portanto, há um ilusio inclusive nas práticas econômicas e dos economistas, mas também religiosas e de outros campos sociais, que faz esquecer, que encobre o que há de artificial e de não econômico no jogo econômico, por exemplo os processos de distinção social e classificação e desclassificação social que os capitais econômicos permitem e instauram, favorecendo, dessa maneira, o aumento da acumulação de capitais simbólicos nas lutas de dominação.

No Brasil, no plano urbano, durante os anos 2000, se buscou desenvolver por um curto período uma certa “função social da propriedade e da cidade” (propriedade coletiva ou comum) que permitiu esperar (e o obteve inegavelmente em alguns casos) melhoras significativas, mesmo dentro da ordem neoliberal, da vida urbana. Talvez, de maneira mais exata pudéssemos falar de uma ordem socioliberal ou de uma “economia social de mercado” que associou aspectos sociais importantes à própria ordem neoliberal; no entanto, os tenores desta última - bancos e grandes corporações nacionais e transnacionais - puderam saquear a natureza e aproveitar-se do boom do consumo, das políticas públicas voltadas para a habitação e as infraestruturas e acumularam ganhos financeiros estratosféricos (Ferreira, 2015FERREIRA, F. C. Propriedade fundiária, os “vazios” urbanos e a organização do espaço urbano: o caso de Serra na Região Metropolitana da Grande Vitória - ES. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.; Pereira, 2016PEREIRA, P. C. X. A reprodução do capital no setor imobiliário e a urbanização contemporânea: o que fica e o que muda. In: PEREIRA, P. C. X. (Org.). Reconfiguração das cidades contemporâneas: contradições e conflitos. São Paulo: FAUUSP, 2016. p. 125-143., p. 132).

Em face de tantos paradoxos e tantas oposições irreconciliáveis, as coalizões no poder não resistiram às contradições crescentes nos modos anfíbios de governar, como o ornitorrinco (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo , 2003.).

Diante das contradições explosivas de todas essas ordens, vimos que, em período recente, o neoliberalismo rima também com ultraconservadorismo e a sociedade do controle/cidade de controle com a sociedade disciplinar/cidade disciplinar. Constatamos, assim, a ascensão ao poder nacional de representantes associados à extrema-direita de uma cidade que inclui todos os brasis, o Rio de Janeiro. Espaço de proliferação das rendas gerais do urbano e da economia financeirizada, também é e foi o espaço de proliferação das grandes obras, da Copa do Mundo, Olimpíada, da indústria do petróleo (Vainer et al., 2016VAINER, C.; BROUDEHOUX, A. M.; SANCHEZ, F.; OLIVEIRA, F. L. Os megaeventos e a cidade: perspectivas críticas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.). Por outro lado, foi onde proliferou, de maneira importante no rastro da acumulação financeira e produtiva, a economia do circuito ilegal (Misse, 2006MISSE, M. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lumes Juris, 2006.). O “ilegal” da ordem excludente é representado pelas milícias, ordem para além de pública se inscrevendo numa espécie de “comum” em que as regulações são protoestatais e os modos de governo informais são extremamente severos na luta pelas mercadorias e pelos serviços em circulação: síntese urbana da “regulação” pelo controle e pela disciplina da economia neoliberal intervindo, inclusive, na apropriação urbana por meio do controle de bairros com empreendimentos de habitação ou promovendo empreendimentos imobiliários (Mendonça, 2019MENDONÇA, M. J. A cidade como espaço de batalha urbicida. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019. ). No Rio de Janeiro, parte da população de zonas centrais foi deslocada para os empreendimentos do programa Minha Casa, Minha Vida, na zona oeste da cidade, justamente onde as milícias disputam território.4 4 Assim, as milícias do Rio de Janeiro parecem ser a síntese desse processo, e não é de estranhar que um próximo representante dessa forma despótica de controle urbano ocupe hoje a presidência do país - o ex-governador do Rio de Janeiro também faz parte desse campo político, tendo-se elegido com uma proposta de política de “guerra urbana” neofascista, uma “necropolítica” urbana que tem como alvo seres humanos, os “suspeitos”, designados para o abate por parte das forças de polícia nos bairros populares, ação que revela cotidianamente o terror produzido nesses lugares e os incontornáveis “efeitos colaterais” na morte de cidadãos. O que é por demais consternador é que parcela de seus eleitores o apoia e grita “viva a morte!” - juntamente com um grupo de neoliberais financistas e dos neoliberais do poder judiciário que defendem, ao mesmo tempo, a sociedade da disciplina e do controle e a criminalização da política e, por fim, o “utilitarismo” para a conquista de poder econômico para seu grupo. Assim, nasce uma nova classe de juristas, e se deslegitima uma forma de “contrato social” implícito na ordem neoliberal vigente, talvez abrindo a possibilidade de reflexão sobre uma ordem neoliberal em mutação. Setores que, na luta pelo poder, não hesitam em mesclar os controles e as coerções das sociedades ditatoriais.

Duas faces da mesma moeda, dois processos do mesmo caldo - ultradireita e neoliberalismo. Na realidade, há um acordo explicito de todas as correntes do neoliberalismo sobre o fato de se operem à soberania popular, que, segundo eles, poderia levar ao “totalitarismo”, por outro lado, defendem uma democracia que chamam de “liberal” com base na limitação dos poderes dos governos para evitar a intrusão das massas na ordem do mercado, isso pode ser verificado no fato de que todas essas correntes saudaram o golpe militar de Pinochet em 1973. Essa preferência por regimes autoritários face à democracia popular pode ser constatada no que escreveu Hayek em Direito, legislação e liberdade: “[...] uma democracia sem limites pode muito bem ser algo pior que governos limitados que não são democráticos” (Guéguen; Sauvêtre; Laval apud Entrevista de..., 2021ENTREVISTA DE Alexis Pelletier com Haud Guéguen, Pierre Sauvêtre e Christian Laval: a escolha da guerra civil. Uma outra história do neoliberalismo. Trad. C. Zanotelli. Geografares, v. 1, n. 32, p. 316-325, 2021. doi: https://doi.org/10.47456/geo.v1i32.36024.
https://doi.org/https://doi.org/10.47456...
, p. 318).

Hayek expressa, desse modo, a convicção neoliberal de que a democracia tem apenas um valor relativo, a democracia liberal é apenas uma opção, entre outros governos que são mais abertamente autoritários, como a ditadura.

O que se assiste no laboratório do Brasil é exatamente uma ordem neoliberal estimulando um Estado ultrarrepressor. O que, mutatis mutandi (nesse caso, neoliberalismo e neoconservadorismo são dialeticamente associados e contemporâneos), guardando as devidas heterogeneidades históricas em relação ao presente, nos remeteria à crise dos anos 1920-30 do sistema liberal. Como analisa Karl Polanyi (1983POLANYI, K. La grande transformation: aux origines politiques et économiques de notre temps. Paris: Gallimard, 1983[1944].[1944]) em A grande transformação, no fim da Segunda Guerra, o fantasma do capitalismo de mercado autorregulado e o fantasma de transformar o trabalho, a terra e a moeda em mercadorias fictícias foram fatores que concorreram para a grande catástrofe que foram o nazismo e o fascismo. Em suas palavras:

[...] o trabalho não é nada mais que os seres humanos eles mesmos com os quais cada sociedade é constituída, bem como a terra não é senão o meio natural no qual cada sociedade existe. Os incluir no mecanismo de mercado é subordinar às leis do mercado a substância mesma da sociedade (Polanyi, 1983POLANYI, K. La grande transformation: aux origines politiques et économiques de notre temps. Paris: Gallimard, 1983[1944].[1944], p. 106).

A ordem neoliberal urbana: entre disciplinas e controles urbanos

No que segue, procuro responder como chegamos aqui. Para isso, é preciso ir à raiz da ordem neoliberal e mostrar as governamentalidades que se propagaram no quadro do utilitarismo econômico e do empresariamento de si mesmo, que inclui os sujeitos de todas as classes sociais na forma da luta por “interesses próprios”, da “autorregulação de si” e da difusão da concorrência como modelo de vida (os sujeitos gerem sua própria vida no sentido do próprio neoliberalismo).

No Brasil, esse neoliberalismo se sobrepõe à sociedade disciplinar da sociedade liberal, aquela da coerção e do Estado de exceção, reativando e desdobrando o Estado policial-judiciário. A ordem neoliberal a um só tempo engendra, incentiva e apoia o neoliberalismo financista e rentista e a “liberdade de mercado”, mas também incentiva e propaga a lei do “olho por olho”, da sociedade pré-liberal e a disciplina da sociedade liberal. Assim, são reativados vários modos de sociedade e de cidade nos tempos contemporâneos. Aquilo que veio antes permanece sob a forma virtual e atualizável a qualquer instante, projetando o passado no presente, construindo uma ordem não evolutiva e marcada historicamente, ressignificando os processos econômicos. Sobre esses pontos, ver Foucault (2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.) e Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, G.; GATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie 2: Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.).

Essa ordem neoliberal do controle que reativa a ordem pré-liberal e liberal precedentes, mas com outros significados e com formação e sentidos diferentes - os modos de concorrência, o mercado e o sentido jurídico da ordem são diversos (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.) -, alicerçados na coerção, na violência da escravatura e na colonização, é re-atualizada permanentemente. Engenha-se, assim, a sobreposição das diferentes cidades que correspondem a esses diferentes períodos: a cidade do controle contemporâneo; a cidade disciplinar predominante no século XX e a cidade pré-liberal, escravocrata e autocrata dos séculos anteriores. Sobreposições e interações que social e espacialmente explicam a ordem intrincada social e espacial que estrutura a sociedade e as cidades brasileiras no presente.

O neoliberalismo aplicado à vida cotidiana

Christian Laval (2018aLAVAL, C. Foucault, Bourdieu e la question neoliberal. Paris: La Découverte, 2018a.) nos diz que Foucault (2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.) identificou os modos de funcionamento do início do neoliberalismo que instauraram a lógica da concorrência geral e o abandono gradual das políticas sociais implantadas na Europa no período pós-Segunda Guerra Mundial (como ocorre no Brasil com o abandono cada vez mais evidente da política de seguridade social que foi tardiamente consagrada na Constituição de 1988, mas que já estava em curso desde os anos 1940). Assim, o neoliberalismo confia ao mercado o papel de regular a sociedade, o mercado busca trazer para si o conjunto das relações sociais. Quanto a Bourdieu e Boltansky (1976BOURDIEU, P.; BOLTANSKI, L. La production de l’idéologie dominante. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 2, n. 2-3, p. 3-73, jun. 1976. ), eles abordaram a questão pelo modo como a ciência econômica dominante neoclássica e neomarginalista penetrou a formação das classes dominantes na França desde o início dos anos 1970 e se instaurou como corrente dominante.

Há uma convergência entre Foucault e Bourdieu, nos diz Laval, relativa à observação sobre a transformação interna do governo e do Estado, emergindo uma nova forma de governar o Estado (o neoliberalismo) que apresentava, assim, o mercado como a única perspectiva no horizonte social.

Laval nos diz que Foucault se interessou pelo utilitarismo que, desde o século XVIII, está na base das teorias econômicas e da lógica dos governos liberais. O utilitarismo se funda no governo dos indivíduos por meio do estímulo aos seus interesses próprios. Assim, o governo se infiltra na vida das pessoas e em suas motivações. Com tal propósito, serve-se da “liberdade” como meio de governar, procurando governar os indivíduos pela situação em que se encontram; pelo meio, pois eles seriam “livres” (Laval, 2018aLAVAL, C. Foucault, Bourdieu e la question neoliberal. Paris: La Découverte, 2018a.).

A noção de meio no sentido dado aqui na análise de Foucault é o de mercado, mas vai além dele, pois Foucault procura pensar em algo mais profundo que o interesse na questão do mercado e do trabalho como essências do mundo capitalista, demonstrando que havia já uma preparação em diferentes ordens de poderes de disciplinas que predispunham os indivíduos a se submeterem à exploração capitalista e que começaram a se desenvolver antes mesmo da imersão dominante no mundo da exploração do trabalho em massa. Os devires produtores dos homens se instauram por meio de dispositivos disciplinares (Taylan, 2015TAYLAN, F. Une histoire plus profonde du capitalisme. In: LAVAL, C.; PALTRINIERI, L.; FERHAT, T. Marx & Foucault: lectures, usages et confrontations . Paris: La Découverte , 2015. p. 19-28.). Antes mesmo do capitalismo dominante, a disciplina apreendida em diferentes instituições é já uma forma de preparação e submissão. Isso ajuda a compreender o meio como a forma de disciplina que se desenvolve nos conventos, prisões, hospitais e na segurança, e que adestram os corpos e os sujeitos. Esse adestramento será ativado pelo capitalismo, mas ele não se restringe, diz Foucault (2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.), à submissão à ideologia e à proeminência do capitalismo num primeiro momento. O que nos permite entender porque determinados processos são reativados e capturados pela própria eclosão do liberalismo e neoliberalismo. Assim, na nossa perspectiva, as cidades poderiam ser formas de organização que se relacionariam com essas construções históricas da submissão dos sujeitos pela disciplina e pelo controle.

Dessa maneira, os indivíduos, mais ou menos adestrados pelo longo trabalho de construção de uma subjetividade “racional” ligada aos modos de desenvolvimento da sociedade europeia e em particular às próprias “racionalidades religiosas”, são levados à construção do próprio utilitarismo e da ideia e prática do interesse individual e geridos como “populações”, como conjuntos a serem administrados em meios como as cidades (Foucault, 2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.). A partir desse ponto, são colocados em concorrência uns com os outros em nome da racionalidade e da “liberdade” do mercado, o que também tem seus efeitos práticos nas cidades ou na própria consideração das cidades como lugares de concorrência entre elas (guerras dos lugares). O mercado no liberalismo é o modelo de meio. Desse modo, à medida que o aspecto econômico invade a vida dos sujeitos, eles são estimulados a buscar as melhores escolas, os melhores hospitais privados etc.; colocam-se gradualmente em concorrência serviços que antes eram de domínio de governo do Estado, os indivíduos reagem às variáveis do meio, ou seja, começam a competir pelos melhores lugares, pelas melhores localizações, pelas melhores escolas, pelos melhores planos de saúde. Todos entram na lógica da concorrência, mesmo que não tenham consciência de que o fazem pela lógica do meio. Esse aspecto do neoliberalismo aplicado às cidades, ainda que Christian Laval não o debata, tem efeitos no espaço produzido e na busca de “distinção” social e “segurança”, por exemplo, nos condomínios fechados (Souza, 2008SOUZA, M. L. Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.; Zanotelli, 2011ZANOTELLI, C. L. Entre sociedade disciplinar e sociedade de controle: interrogações sobre o habitat enclausurado na cidade. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM GEOGRAFIA, 9., 8-12 out. 2011, Goiânia. Anais... Goiânia, 2011.).

Bourdieu (2000BOURDIEU, P. Les structures sociales de l’économie. Paris: Seuil, 2000.), por sua vez, trabalhou sobre os aspectos neoliberais no espaço produzido pelo estudo na França do acesso à habitação e de práticas individuais e institucionais que as supõem, colocando-as na perspectiva dos discursos neoliberais abstratos da economia pretensamente pura. Assim, colocam-se os indivíduos em concorrência por bens raros, e se rarefazem a “natureza”, os “bons lugares” etc. Mas as práticas nem sempre correspondem à teoria econômica da concorrência e são muito mais complexas, bem como a própria obra urbana não pode se resumir a esse aspecto neoliberal. Bourdieu (2000BOURDIEU, P. Les structures sociales de l’économie. Paris: Seuil, 2000., p. 22-23) escreveu que:

[...] a economia neoliberal, cuja lógica tende, hoje, a se impor ao mundo inteiro pelo intermediário de instâncias internacionais tais que o Banco Mundial e o FMI e os governos aos quais eles ditam, diretamente ou indiretamente, os seus princípios de “governança”, deve um certo número de suas características, pretensamente universais, ao fato que ela está imersa, embedded, numa sociedade particular, quer dizer enraizada num sistema de crenças e de valores, um ethos e uma visão moral do mundo, breve, um senso comum econômico, ligado, como tal, às estruturas sociais e às estruturas cognitivas de uma ordem particular. E é a esta economia particular que a teoria econômica neoclássica toma emprestado seus pressupostos fundamentais, que ela formaliza e racionaliza, constituindo-os, assim, em fundamentos de um modelo universal.

Esse ethos e essa imersão, que fazem a sociedade estar “embriagada” simbólica e praticamente pela ordem neoliberal, se fundam em dois postulados, que seus defensores pensam como propostas que seriam demonstradas: (a) que a economia “[...] é um domínio separado e governado por leis naturais e universais que os governos não devem contrariar por intervenções intempestivas” e (b) que: “o mercado é o meio ótimo para organizar a produção e as trocas de maneira eficaz e equitativa nas sociedades democráticas” (Bourdieu, 2000BOURDIEU, P. Les structures sociales de l’économie. Paris: Seuil, 2000., p. 23).

Estas asserções de Bourdieu demonstram o quão próximo ele está em suas análises do que pesquisou Foucault em relação aos aspectos relativos ao meio, em particular quando se refere a esse ethos de uma visão moral do mundo que “embriagou” a todos, pois nele estamos imersos.

Christian Laval diz que Foucault foi um dos primeiros a perceber as relações entre o meio (no sentido dado por ele daquilo que envolve e integra os sujeitos construindo as relações sem necessária deliberação) e as pessoas (Laval, 2018aLAVAL, C. Foucault, Bourdieu e la question neoliberal. Paris: La Découverte, 2018a.) a partir da relação meio-vivente das pesquisas de seu mestre, Canguilhem.

Por isso mesmo o neoliberalismo não é uma crença, uma “conversão”, uma “ideologia”. A crença talvez venha a emergir - e frequentemente emerge - com o trabalho - por sua vez, ideológico - das elites legitimadas pela ordem discursiva (Bourdieu; Boltanski, 1976BOURDIEU, P.; BOLTANSKI, L. La production de l’idéologie dominante. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 2, n. 2-3, p. 3-73, jun. 1976. ). Isso porque as pessoas entram numa lógica de escolha comercial sem serem necessariamente adeptas da lógica de mercado, sem tomar consciência de que agem assim. É isso que Laval dirá que é infame, pois nós todos somos levados a nos comportar dessa maneira, sem necessariamente aderir explicitamente ao neoliberalismo; isso se transforma, assim, no jogo normal de uma aparente realidade. Laval (2018bLAVAL, C. Entrevista à France Culture. Grande Table, 2a. Parte, 28 fev. 2018b.) dirá que o neoliberalismo é uma racionalidade partilhada tanto pela esquerda como pela direita, que aspiram a governar. Foucault (2004aFOUCAULT, M. Sécurité, territoire, population. Paris: Gallimard, 2014a., 2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b.) diz que o homem econômico é um indivíduo governável pelos interesses e pelos dispositivos “racionais” do meio.

Desse modo, a mutação pelo meio e no meio do liberalismo das sociedades - transformando-as em neoliberais - se apoiará numa provisória, parcial e relativa relação combinada dos regimes puramente disciplinares e coercitivos com as liberdades sempre sob a égide da segurança. Os governos vão reprimir o que consideram indivíduos mais perigosos, porém, por outro lado, criam zonas de relativa e reversível “tolerância” dos “costumes”, onde certas ilegalidades podem se instalar. Mas, como notamos, há uma mescla dos aspectos do “controle”, da “disciplina” e mesmo os mecanismos despóticos pré-liberais nas cidades brasileiras, pois se, por um lado, se “toleram” certas ilegalidades das classes dominantes e médias relativas aos “costumes”, os mesmos comportamentos são criminalizados nas classes dominadas, revelando todo o peso dos meios de dominação da sociedade brasileira. Podemos nos perguntar sobre a própria existência de uma sociedade disciplinar e de controle pura no Brasil, e mesmo em todos os lugares, isso porque as prisões brasileiras, mesmo durante os períodos “liberais” (disciplinares) e neoliberais (controle), são palco de exibição e repressão atroz dos corpos; as prisões não respeitam a integridade física dos prisioneiros. Nesse particular, estaríamos ainda no Período Colonial e Imperial de decisões autárquicas e soberanas, em que o Estado “deixa morrer” ou “faz matar”, ou então numa espécie de espaço de morte inspirado no “deixar morrer” e na luta pela sobrevida dentro dos campos de concentração nazistas (que tiveram seus precedentes em campos de concentração nas colônias europeias da África e nos campos de refugiados da guerra da Espanha e na França dos anos 1930), como bem os analisou Primo Levi (1987LEVI, P. Si c’est un homme. Paris: Robert Laffond, 1987[1958].[1958]) em Se isto é um homem. É possível pensar, da mesma maneira, que nas cidades brasileiras os três períodos (sociedade despótica, sociedade disciplinar e sociedade do controle) do ponto de vista das fases sucessivas e reversíveis são em muitos lugares ditos “periféricos”, lugares de morte e perigo para seus habitantes, submetidos à luta por controle territorial entre diferentes grupos despóticos. Isso pode ser associado àquilo que proferiu Foucault em seu curso publicado com o nome de Nascimento da biopolítica, a propósito de um dos elementos essenciais do neoliberalismo que acentua a “cultura do perigo” em todas as suas vertentes: “o lema do neoliberalismo é ‘viver perigosamente’. Quer dizer que os indivíduos são colocados incessantemente em situação de perigo, antes, eles são condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente, seu futuro, como sendo portadores de perigo” (Foucault, 2004bFOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2014b., p. 68).

O perigo da concorrência, o perigo da perda de emprego, o perigo da vida cotidiana, assim, a necessidade de regulação da sociedade liberal, é relativamente superada pelo estado permanente de concorrência e de insegurança. Esses processos estão presentes em todos os poros da sociedade e das cidades, de maneira disseminada e difusa. Essa insegurança econômica se transforma de maneira acentuada, no neoliberalismo, em insegurança social - redução por meio do Estado da seguridade social. Assim, há uma redução dessas garantias fundamentais que fazem parte das demandas das sociedades contemporâneas fundadas na busca de “segurança”.5 5 Sobre esse tema, ver Castel (2003).

Essa “cultura do perigo”, do “instável”, faz parte da panóplia da inoculação e da difusão do medo. Difunde-se hoje o medo de que a previdência quebre, o medo de que se perca o trabalho se não forem feitas as “reformas” neoliberais que já estão aí há anos e que foram aprofundadas pelo governo Temer e pelo atual governo Bolsonaro. Como escreveu Francisco de Oliveira (1995OLIVEIRA, F. Neoliberalismo à brasileira. In: GENTILI, P. (Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático . São Paulo: Paz e Terra , 1995. p. 24-28., p. 27), a mesma prática que as classes dominantes praticavam no início dos anos 1990: “fazia-se os trabalhadores não quererem tocar no salário, ter aumentos salariais, porque ingurgitaram a mentira, difundida pela imprensa venal e pelos intelectuais vendidos de plantão, de que - depois de quase vinte anos de altíssima inflação - seus salários fossem a causa da inflação”. Sobre o “medo” nas cidades e sua constituição histórica, podemos consultar Souza (2008SOUZA, M. L. Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.).

De fato, a sensação de perigo e de medo são construções sociais e estão relacionadas a demandas de mais proteção social e civil das sociedades contemporâneas, e são exploradas por certos movimentos políticos que procuram surfar na onda da insegurança econômica e em seu avatar, a corrupção, para acentuar ainda mais a insegurança econômica - como parece ser o caso do governo Bolsonaro.

Laval (2018bLAVAL, C. Entrevista à France Culture. Grande Table, 2a. Parte, 28 fev. 2018b.) diz que na abordagem de Bourdieu sobre o neoliberalismo predominam a noção de dominação e os efeitos práticos da invasão do espaço social6 6 Evidentemente, o conceito de espaço social em Bourdieu não deve ser confundido com o conceito de espaço utilizado na Geografia, em particular aquele defendido por Milton Santos. Porém, pelo que pensamos, o espaço social faria parte da conceituação que fez Santos (2002) quando disse que ele é “um conjunto indissociável de objetos e de sistema de ações [...]”, pois o espaço social ocupa um lugar no mundo das ações, no mundo concreto. O espaço social habita o mundo e habitar o mundo é também habitar o espaço (concreto e abstrato). pelo “nomos econômico”, destacando o “imperialismo econômico” que faz da mecânica econômica o alfa e ômega do “real”. Assim, Bourdieu sublinhou o efeito teórico de autoridade do campo dos “cientistas” e dos intelectuais orgânicos do capital que, como no Brasil dos anos 1990 e o de hoje, por meio dos mecanismos de legitimação simbólica de governo, associam o liberalismo e o neoliberalismo à ideia de “movimento” e à ideia de que “não podemos fazer de outra maneira”, erguendo o “pragmatismo como sendo o real”.

Esse pragmatismo, como demonstra Foucault, que pretende “mudança permanente” é também conservador ou mesmo ultraconservador, como se nota no caso do Brasil atual. Bourdieu e Boltansky dirão que o discurso da mudança permanente é na realidade que “tudo mude para que nada de fato mude”. Dessa forma, Laval (2018bLAVAL, C. Entrevista à France Culture. Grande Table, 2a. Parte, 28 fev. 2018b.) complementa dizendo que a razão do capital invadiu os universos sociais, culturais e simbólicos, automatizando os processos e tornando-os constitutivos do ethos do tempo-espaço.

Assim, generalizam-se as referências à “racionalidade”, à “eficácia” e à urgência de “avançar”, como vemos no Brasil atualmente, com a aprovação das desregulamentações do mínimo de controle sobre o campo econômico e a generalização de privatizações e desmontes os mais variados do papel do Estado, o que abre espaço para a concorrência de grupos predadores de forma legal ou ilegal. Mas Laval (2018bLAVAL, C. Entrevista à France Culture. Grande Table, 2a. Parte, 28 fev. 2018b.) pergunta: avançar para onde e em direção a quê? Que direção tomar? Para ele, no neoliberalismo, não se discutem mais os fins de um “projeto”, mas a “velocidade” das coisas (o “temos que reformar”, celeridade na aprovação das leis que alteram os regimes de previdência social etc.), instaurando-se o “governo econômico e social pelo mercado”.

Laval, por outro lado, diz que o interessante na leitura de Foucault é verificar como o poder das empresas busca tratar com as pessoas ou, ainda, analisar como seria a “condução das empresas em relação a conduções dos indivíduos”, revelando, desse modo, os dispositivos de governamentalidade (Laval, 2018bLAVAL, C. Entrevista à France Culture. Grande Table, 2a. Parte, 28 fev. 2018b.).

A interpelação dos sujeitos e o rebatimento dessa interpelação no foro pessoal e subjetivo, que tornam boa parte das pessoas, apesar delas próprias, cúmplices dos processos de dominação, nos interrogam para agir e pensar em como nos rebelarmos e sairmos dessa armadilha da subjetividade estimulada pelo neoliberalismo, buscando outras formas de subjetivação individuais e coletivas, com outras possibilidades que se abrem para sair desse estado de coisas. Por isso mesmo é preciso prestar atenção a práticas urbanas que permitam desenhar um alhures. Nesses termos, como sair do governo neoliberal e dos quadros do Estado neoliberal que, malgrado lutas que possam reorientar suas ações, instrumentalizam os espaços públicos tornando-os reféns do neoliberalismo urbano? Como sair da antinomia entre Estado e mercado ou entre público e privado?

Considerações finais

Este trabalho tentou demonstrar como a cidade neoliberal está associada a um tipo de governo que se neoliberalizou e encontra sua reativação nas subjetividades coletivas e individuais no espaço social. A análise do neoliberalismo revela que ele não é apenas uma ideologia, uma ordem discursiva superficial, mas um movimento de produção de uma cultura do perigo, da instabilidade fundada na “liberdade”, toda relativa, que busca ativar os interesses individuais que são colocados pela própria prática em concorrência. Assim, ele inocula uma ideia de “mais liberdade” e, complementarmente, um maior controle. O controle como princípio motor. Difundiu-se uma “fobia do Estado” nos tempos contemporâneos; busca-se um “Estado econômico” que seja radicalmente econômico a partir do ponto de vista da “liberdade econômica”. Essa contraposição ao Estado o torna, nos tempos presentes, frágil, e, desse modo, são ameaçados todos os serviços sociais e públicos que ele presta. O Estado se torna um colaborador do neoliberalismo e, ocupado pelos neoliberais, serve como desarticulador da intervenção econômica, mas, por outro lado, é meio de controle social, disciplina e coerção.

Portanto, as cidades se inscrevem no prolongamento do neoliberalismo e se produzem e reproduzem amplamente tanto por meio da produção stricto sensu como da produção do espaço urbano e da captura da renda, que lança seus tentáculos na produção coletiva, onde se sobrepõem o controle e a disciplina.

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  • 1
    Foucault define meio inspirado nas análises epistemológicas e genealógicas de Canguilhem sobre o “Vivente e seu meio”, no livro O conhecimento da vida, publicado em 1952, e em O normal e o patológico. Essa noção de meio nos usos que faz Foucault e na interpretação de Canguilhem, que não cabe aqui analisar em pormenor, ressoam supreendentemente a “mesologia”, uma perspectiva adotada, entre outros, em meados do século XIX, por Elisée Reclus, conceito não determinista e não finalista ou teológico e metafísico, diferenciando-se, nesse sentido, das concepções dominantes desenvolvidas por Newton, Lamarck e, por meio deles, seguida por parte considerável e dominante dos geógrafos do século XIX, em particular Vidal de La Blache, que tinham uma concepção “positivista e mecanista do meio” se apoiando, apesar de afirmações paradoxais, no determinismo ecológico de Haeckel, que pregava uma espécie de darwinismo social aplicado aos homens na concorrência com outras espécies, confundindo, desse modo, o meio e o environment (ou meio ambiente, aquilo que envolve). Reclus afirmava que “o homem é ele mesmo um meio para o homem”, ou seja, os meios são múltiplos e dão desenvolvimentos diferenciais; nesse particular, o que escrevia Reclus é próximo daquilo que escreveu mais de cinqüenta anos depois Canguilhem (1952CANGUILHEM, G. La connaissance de la vie. Paris: Hachette, 1952, p. 192) “[...] o homem não escapa da lei geral dos viventes, o meio próprio do homem é o mundo da sua percepção, quer dizer, o campo de sua experiência pragmática onde suas ações são orientadas e reguladas por valores imanentes [...]”. O meio é interno e externo ao homem e às espécies, o meio acolhe e atravessa os organismos, os seres; em seu conhecimento, a ciência ela mesma tem um sentido na aventura da vida envolvendo o homem, portanto, não há um meio externo determinando o homem! Sobre todos esses pontos, consultar Pelletier (2016PELLETIER, P. Pourquoi Elisée Reclus à choisie la géographie et non l’écologie. In: CHARTIER, D.; RODARY, E. Manifeste pour une géographie environnementale. Paris: SciencesPo, 2016. p. 103-124. Disponível em: Disponível em: https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-01322674 . Acesso em: 12 jun. 2021.
    https://halshs.archives-ouvertes.fr/hals...
    ) e Canguilhem (1952CANGUILHEM, G. La connaissance de la vie. Paris: Hachette, 1952).
  • 2
    A noção de espoliação data de bem antes do período atual e cresceu com a urbanização da sociedade; a este propósito, ver Kovarick (1979KOVARICK, L. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra , 1979.).
  • 3
    Para uma análise do neoliberalismo aplicado a outro país da América Latina, o Chile, onde é conhecido o “laboratório neoliberal” que resultou na associação da ditadura de Pinochet com os neoliberais, o que resultou em revoltas, protestos e contestações da primavera chilena de 2019, ler Hidalgo et al. (2016HIDALGO, R.; CAMUS, P.; PAULSEN-ESPINOZA, A.; OLEA, J.; ALVARADO, V. Extractivismo inmobiliario, expoliación de los bienes comunes y esquilmación del medio natural: el borde costero en la macrozona central de Chile en las postrimerías del neoliberalismo. Innsbruck, AT: Innsbrucker Geographische Studien, 2016. p. 251-270.).
  • 4
    Assim, as milícias do Rio de Janeiro parecem ser a síntese desse processo, e não é de estranhar que um próximo representante dessa forma despótica de controle urbano ocupe hoje a presidência do país - o ex-governador do Rio de Janeiro também faz parte desse campo político, tendo-se elegido com uma proposta de política de “guerra urbana” neofascista, uma “necropolítica” urbana que tem como alvo seres humanos, os “suspeitos”, designados para o abate por parte das forças de polícia nos bairros populares, ação que revela cotidianamente o terror produzido nesses lugares e os incontornáveis “efeitos colaterais” na morte de cidadãos. O que é por demais consternador é que parcela de seus eleitores o apoia e grita “viva a morte!” - juntamente com um grupo de neoliberais financistas e dos neoliberais do poder judiciário que defendem, ao mesmo tempo, a sociedade da disciplina e do controle e a criminalização da política e, por fim, o “utilitarismo” para a conquista de poder econômico para seu grupo. Assim, nasce uma nova classe de juristas, e se deslegitima uma forma de “contrato social” implícito na ordem neoliberal vigente, talvez abrindo a possibilidade de reflexão sobre uma ordem neoliberal em mutação. Setores que, na luta pelo poder, não hesitam em mesclar os controles e as coerções das sociedades ditatoriais.
  • 5
    Sobre esse tema, ver Castel (2003CASTEL, R. L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé? Paris: Seuil , 2003.).
  • 6
    Evidentemente, o conceito de espaço social em Bourdieu não deve ser confundido com o conceito de espaço utilizado na Geografia, em particular aquele defendido por Milton Santos. Porém, pelo que pensamos, o espaço social faria parte da conceituação que fez Santos (2002SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002.) quando disse que ele é “um conjunto indissociável de objetos e de sistema de ações [...]”, pois o espaço social ocupa um lugar no mundo das ações, no mundo concreto. O espaço social habita o mundo e habitar o mundo é também habitar o espaço (concreto e abstrato).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2020
  • Aceito
    22 Out 2021
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