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Do Quadrilátero Ferrífero ao Quadrilátero Aquífero: territorialidades conflitantes na produção de um espaço social extensivo à Região Metropolitana de Belo Horizonte-MG

From the Iron Ore Quadrangle to the Aquifer Quadrangle: conflicting territorialities in the production of a social space in the extension of the Metropolitan Region of Belo Horizonte City, Brazil

Del Cuadrilátero de Hierro al Cuadrilátero Acuífero: territorialidades en conflicto en la producción de un espacio social articulado a la Región Metropolitana de Belo Horizonte, Brazil

Resumo

O objetivo desta discussão é compreender processos que levaram à conformação de uma região popular e tecnicamente reconhecida como o Quadrilátero Ferrífero, situada no entorno da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Metodologicamente, os levantamentos e as análises verificaram que, historicamente, a produção desse espaço regional deu prioridade ao desenvolvimento da atividade minerária, sobretudo pela atuação de capitais transnacionais ou estrangeiros. Em termos de organização do capital e de fluxos de mais valor estabelecidos nessa escala, o espaço regional do Quadrilátero Ferrífero encontra-se hierarquizado em relação a Belo Horizonte, principal centralidade da RMBH. Por outro lado, nota-se que a quase totalidade dos mananciais que abastecem essa região estão no Quadrilátero, em locais crescentemente afetados pela mineração. Nesse cenário, apontam-se a necessidade e a urgência de que essa área seja progressivamente reconhecida como um Quadrilátero Aquífero, pautado em lógicas de conservação ambiental e de reprodução da vida.

Palavras-chave:
Quadrilátero Ferrífero; Quadrilátero Aquífero; Produção do espaço; Representações de espaços; Urbanização extensiva

Abstract

The discussions presented here search to comprehend the processes that led to the conformation of a region popularly and technically known as the Iron Ore Quadrangle, located around the Metropolitan Region of Belo Horizonte City, Brazil. Methodologically, the surveys and analysis identified that the production of this regional space has been historically shaped by the development of mining activities, mainly through the operations of transnational and international capital. In terms of capital organization and surplus-value flows, the region of the Iron Ore Quadrangle is hierarchized by the centrality of the Metropolitan Region of Belo Horizonte City. On the other hand, it is noted that the aquifers that supply this area are mainly located in the Iron Ore Quadrangle, progressively impacted by the mining activities. Therefore, it is necessary and urgent for the region be known as an aquifer region, under the precepts of environmental conservation and social reproduction.

Keywords:
Iron Ore Quadrangle; Aquifer Quadrangle; Production of space; Representations of space; Extended urbanization

Resumen

Las discusiones aquí presentadas tienen como objetivo comprender los procesos que llevaron a la formación de una región reconocida popular y técnicamente como el Cuadrángulo de Hierro, ubicada en los alrededores de la Región Metropolitana de la ciudad de Belo Horizonte, Brasil. Metodológicamente, las encuestas y análisis identificaron que la producción de este espacio regional priorizó históricamente el desarrollo de la actividad minera, sobre todo a través de la acción del capital transnacional y extranjero. El espacio regional del Cuadrilátero de Hierro, en términos de organización de capital y flujos de plusvalía establecidos en esta escala, es jerárquico desde Belo Horizonte, la principal centralidad de la RMBH. Por otro lado, se observa que casi la totalidad de los manantiales que abastecen a esta región están ubicados en el Cuadrilátero, en zonas cada vez más impactadas por la minería. Ante este escenario, se señala la necesidad y urgencia de que esta área sea reconocida progresivamente como un Cuadrilátero Acuífero, bajo los preceptos de la conservación ambiental y reproducción de la vida.

Palabras clave:
Cuadrilátero de Hierro; Cuadrilátero Acuífero; Producción del espacio; Representaciones del espacio; Urbanización extendida

Introdução

As questões que ensejam esses debates têm como objeto o Quadrilátero Ferrífero como territorialidade fundamental. Marcado por processos minerários históricos, em escalas de produção cada vez significativas, as múltiplas relações e processos que o conformam se dão a partir das jazidas ali localizadas.

Sem uma institucionalidade político-administrativa oficial, a delimitação do Quadrilátero é social e geograficamente reconhecida a partir do conjunto de vales e serras cujo formato em mapa revela essa geometria. Consequentemente, o adjetivo ferrífero qualifica as formações geológicas que contêm tais recursos em quantidade relevante.

A produção desse espaço regional, intrinsecamente vinculada à mineração, tende a sobrepor essa atividade econômica a todo um conjunto de demandas fundamentais à reprodução social, tanto da região como de seu entorno. Entre essas sobreposições, é aqui destacada a conservação dos principais mananciais que abastecem a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), também conformados a partir das serras do Quadrilátero.

Apreendendo essa territorialidade do prisma das águas ali presentes, se impõem outros elementos de natureza territorial. Isso se deve à demanda de preservação ou conservação de áreas de recarga hídrica, conformadoras de corpos d’água superficiais e subterrâneos, que se desdobra em instrumentos de planejamento urbano e regional, bem como num conjunto de estruturas e processos de captação, tratamento e distribuição de águas.

A ampliação indefinida da atividade minerária, somada ao aumento da demanda hídrica, aponta a emergência de um conflito que envolve diretamente a RMBH, cujas relações com o Quadrilátero se dão tanto no âmbito da economia minerária quanto no da dependência das águas provenientes dali.

Diante disso, trata-se de compreender como a atividade minerária estabelecida no Quadrilátero Ferrífero estrutura esse espaço regional, considerando a conformação de complexos de grande porte, a extração de produtos (ouro, minério de ferro e bauxita, entre outros) e a atuação do capital na região. Complementarmente, pretende-se mapear as principais bacias hidrográficas ligadas ao abastecimento da RMBH, para entender como essas áreas são efetiva ou potencialmente afetadas pela atividade minerária. Considerando as relações estabelecidas com o território metropolitano, propõe-se analisar tais processos como extensões da urbanização da RMBH.

Tais abordagens são justificadas pela busca por outras lógicas de produção e conservação do espaço, sobretudo no que tange à produção de águas como elemento fundamental para a própria reprodução social desse território, contrapostas a lógicas prioritariamente voltadas à exploração minerária intensiva.

Para a consecução desses objetivos, a metodologia proposta baseou-se no modo como determinadas representações sobre o espaço do Quadrilátero Ferrífero têm sido estabelecidas, sobretudo desde o início do século XX. Nessas representações, nota-se uma ênfase sistemática na presença de jazidas minerárias em detrimento de outros elementos (como as recargas hídricas ligadas às cangas de minério, por exemplo).

O desenvolvimento dessas abordagens teve como base teorias de Lefebvre (2012LEFEBVRE, H. The Production of Space. Malden, MA: Blackwell, 2012. ) relativas às representações de espaços, nas quais relações hegemônicas de produção tendem a se impor sobre essas representações, condicionando a própria produção do espaço ao longo do tempo. Procedeu-se a essa leitura sobre um levantamento e um mapeamento de dados e informações desse território, na perspectiva de suas jazidas, complexos minerários, delimitações geográficas, recursos hídricos e concentrações urbanas.

Depois, foram analisadas múltiplas articulações globais, nacionais e regionais estabelecidas nesse território. Essas articulações foram apreendidas pela magnitude da extração minerária na região, o que envolve compreender capitais envolvidos, processos produtivos principais e relações com diferentes instâncias estatais e sociais. A partir das já citadas bases de dados, essas análises foram desenvolvidas por meio de conceitos de Brenner (1998BRENNER, N. Between Fixity and Motion: Accumulation, Territorial Organization and the Historical Geography of Spatial Scales. Environment and Planning D: Society and Space, Thousand Oaks, v. 16, n.4, p. 459-481, 1998. doi: https://doi.org/10.1068%2Fd160459.
https://doi.org/https://doi.org/10.1068%...
, 2019BRENNER, N. New Urban Spaces: Urban Theory and the Scale Question. New York: Oxford University Press, 2019.) sobre organizações territoriais e processos de acumulação ligados às escalas espaciais.

Por fim, as leituras do Quadrilátero Ferrífero como parte de uma rede urbana hierarquizada por Belo Horizonte e pelo território da RMBH foram feitas com base em Monte-Mór (2006MONTE-MÓR, R. L. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Texto para discussão n. 281, Belo Horizonte: Cedeplar-UFMG, 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20281.pdf . Acesso em: 6 ago. 2021.
http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td...
), pautado sobretudo no conceito de urbanização extensiva.

Esses debates procuram, por um lado, mostrar como determinadas estruturas produtivas estão estrategicamente distribuídas nos territórios da RMBH e do Quadrilátero, promovendo fluxos e agregações de valor em determinados locais. Por outro, discutir conflitos (ainda em estágios intermediários) ligados à sobreposição entre a produção minerária do Quadrilátero Ferrífero e a produção de águas para o abastecimento da RMBH.

Dessa discussão, espera-se uma representação espacial em que elementos relativos à conservação e à produção de águas se apresentam em primeiro plano (conformando um Quadrilátero Aquífero), contra a leitura predominantemente economicista hoje consolidada.

Representações do espaço do Quadrilátero Ferrífero

Considerando que o Quadrilátero Ferrífero não constitui um território formalmente estabelecido, este tópico dedica-se a compreender como se configurou a delimitação correspondente a essa espacialidade e como se consolidou ali um viés predominantemente exploratório.

As teorias da produção do espaço, desenvolvidas por Lefebvre (2012LEFEBVRE, H. The Production of Space. Malden, MA: Blackwell, 2012. ), foram abordadas como base teórica fundamental para a interpretação desses processos. Nesse arcabouço teórico, o autor discute como um modo de produção hegemônico ligado às especificidades de um ambiente e do corpo social que o habita e conforma produz uma espacialidade forjada por uma classe social ou um sistema dominante. Na leitura de Lefebvre (2012LEFEBVRE, H. The Production of Space. Malden, MA: Blackwell, 2012. ), a produção social do espaço se estabelece por uma tríade formada por prática social, representações de espaços e espaços de representação. Nesse sentido, a prática espacial é aquela diretamente ligada ao conjunto de relações de produção e reprodução de uma dada formação social. Quando se diz que tais relações, intrinsecamente sociais, se aplicam a localizações e conjuntos espaciais, forma-se uma ideia de continuidade e coesão, mesmo que carregada de incompletudes e contradições. Nesse contexto, a prática espacial compreende também um conjunto de lógicas, que conformam o espaço como objeto de ciclos de extração, processamentos, trocas, fluxos e consumos diversos. É claro que essas lógicas não são estabelecidas homogeneamente no território, variando em função das diversas especializações funcionais e da própria divisão do trabalho e da produção de mercadorias.

As representações do espaço, por sua vez, são “amarradas às relações de produção”, bem como à ordem imposta por essas relações, determinantes na produção de conhecimento, signos e códigos (Lefebvre, 2012LEFEBVRE, H. The Production of Space. Malden, MA: Blackwell, 2012. , p. 33).

De alguma maneira, os espaços de representação compreendem subjetividades ligadas à vida social, ou seja, desdobramentos às vezes controlados, às vezes não, da prática social e das representações de espaços.

Num primeiro diálogo sobre esse referencial, aplicado ao contexto em estudo, entende-se que a prática espacial estabelecida a partir do conjunto de transições para o período republicano brasileiro condiciona, fundamentalmente, a atual espacialidade do Quadrilátero Ferrífero.

Há que reconhecer a existência de estruturas pretéritas, como redes de caminhos e nucleações urbanas que, agregadas ao relevo e à hidrografia, ensejaram outros ciclos socioespaciais na região. Tais ciclos foram pautados por extrações minerárias em fundos de vale, encostas e galerias, bem como em experiências siderúrgicas isoladas (Souza, 2015SOUZA, L. A. Produção rígida, acumulação flexível: comandos globais e processos urbano-regionais ligados aos circuitos mínero-siderúrgicos do Alto Paraopeba, Minas Gerais. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.).

Há uma discussão sobre o ordenamento temporal da tríade de Lefebvre (2012LEFEBVRE, H. The Production of Space. Malden, MA: Blackwell, 2012. ), ou seja, qual dos elementos dessa tríade deve ser prioritariamente abordado para apreender dada espacialidade. Lefebvre (2012LEFEBVRE, H. The Production of Space. Malden, MA: Blackwell, 2012. ) ressalta que, como toda prática social, a prática espacial é imediatamente vivenciada, antes de sua conceituação. Nesse trecho de sua obra, ele destaca que a prevalência do concebido sobre o vivido tende a reduzir o papel da prática, aqui entendida como algo sem mediação de códigos, normas, mapas ou planos, entre outros.

No caso brasileiro e, mais especificamente, do Quadrilátero Ferrífero, tal prática se estabelece sobre concepções de espaços previamente postas. A consolidação e expansão do sistema capitalista no ocidente ensejou um conjunto de normas, lógicas e regimes de acumulação em que países centrais (sobretudo a Inglaterra) imprimiram tais processos em países periféricos, como o Brasil.

Nesse diálogo, uma lógica de representação externa e impositiva se conforma, ao mesmo tempo que estruturas internas de poder, dotadas de práticas sociais e espaciais próprias e relativamente consolidadas, incorporam essas imposições, forjando novas representações de espaços.

É possível dizer que uma concepção hegemônica de espaço se impôs ao país, estabelecendo bases para uma nação capitalista, moderna, periférica, dotada de recursos, mas dependente de capitais estrangeiros e prioritariamente pautada na exploração de recursos naturais e de força de trabalho.

Além do sistema fundiário (concentrado e de acesso desigual) e das relações entre o capital e a força de trabalho, ligadas à abolição tardia do regime escravocrata e à manutenção de relações históricas de exploração e baixa remuneração, é importante observar como se deu a extração mineraria nessa transição. Considerando que a produção industrial no Brasil era bastante incipiente nos primórdios do período republicano, ou seja, nas duas últimas décadas do século XIX, a extração minerária, somada ao acesso à terra e às relações de trabalho, compôs uma base fundamental para um primeiro ciclo de acumulação capitalista no Brasil. No que concerne à mineração, é importante destacar que ciclos pretéritos, promovidos pela coroa portuguesa por meio de trocas comerciais desiguais com a Inglaterra, viabilizaram uma acumulação de capital dinheiro (predominantemente ouro) em favor do Estado inglês. Os ciclos produtivos até então estabelecidos, no entanto, haviam ocorrido no Brasil sobre bases coloniais.

Nesses processos que incorporam riquezas minerárias sobre base capitalista, há que considerar, primeiramente, o aspecto locacional e a imobilidade das jazidas. Para que o recurso minerário seja acessado, processado e homogeneizado a ponto de ser socialmente reconhecido como mercadoria dotada de valor, valor de uso e valor de troca, deve-se alcançar determinado território como objeto daquele determinado ciclo exploratório.

Essa situação se aplica à conformação do Brasil moderno, forjado ao longo do século XIX. Como área historicamente dedicada à mineração, base da produção de mercadorias para o sistema capitalista que se implantava à época, o Quadrilátero Ferrífero foi um importante suporte.

Mesmo havendo uma relativa imprecisão sobre sua origem, atribui-se a denominação “Quadrilátero Ferrífero” ao Geólogo Luis Felippe Gonzaga de Campos que, sob a coordenação do Diretor do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil no início do século XX, Orville Adalbert Derby, teria sido designado para produzir mapas e informações acuradas sobre a área. Uma das mais importantes representações cartográficas desse processo está na Figura 1.

Figura 1
Mapa atribuído a Gonzaga de Campos, publicado em 1910, delimitando “uma parte do Distrito do Minério de Ferro da porção oriental de Minas Gerais”

Na Figura 1, é possível identificar elementos constituintes do polígono atualmente reconhecido como Quadrilátero Ferrífero. Entre esses, notam-se na imagem indicações dos limites norte (Serra do Curral), oeste (Serra da Moeda), sul (Serras de Ouro Branco e Ouro Preto), bem como uma diagonal na direção centro-nordeste, que corresponderia às serras do Gandarela e do Caraça.

Nesse estudo, Derby (2010DERBY, O. A. The iron ores of Brazil. Revista Escola de Minas, Ouro Preto, v. 63, n. 3, p. 473-479, 2010. doi: https://doi.org/10.1590/S0370-44672010000300008.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) ressalta que os resultados apresentados à época seriam provavelmente parciais, pois as jazidas do “Distrito do Minério de Ferro” estariam presentes também em outras áreas a norte, nordeste e sudeste, e a representação então obtida corresponderia a algo entre a metade e dois terços da área total. As características de um “quadrilátero”, no entanto, já são percebidas nesse mapa, bem como o Rio das Velhas, representado na porção central do polígono, na direção sul-norte, e o rio Paraopeba, a oeste, externo à área demarcada.

A expressão Quadrilátero Ferrífero teria sido publicada pela primeira vez por Dorr II et al. (1957DORR II, J. V. N. et al. Revisão da estratigrafia pré-cambriana do Quadrilátero Ferrífero. Brasil: DNPM, 1957.). Na Figura 2, há uma imagem desse estudo cujos limites se assemelham àqueles recorrentemente trabalhados na atualidade.

Figura 2
Mapa mostrando as quadrículas no Quadrilátero Ferrífero

Nessa figura, percebe-se que além da área anteriormente delimitada por Gonzaga de Campos, é feita uma extensão do polígono a oeste, contornando a Serra do Itatiaiuçu, bem como são delimitadas duas áreas adicionais a nordeste, correspondentes às jazidas situadas no município de Itabira, fundamentais à criação da companhia Vale do Rio Doce no ano de 1942.

Além de contribuir com o processo histórico de delimitação da área, tais representações mostram, sobretudo na primeira figura, a prevalência de jazidas minerárias sobre os demais elementos. As indicações de jazidas de “minério de ferro maciço” (em tradução nossa) e de complexos cristalinos e graníticos, numa hierarquia de representação superior às nucleações urbanas, indica que o viés minerário compunha o rol de prioridades à época.

Pensando na vinculação das representações de espaços às estruturas de Estado, na segunda figura chama atenção o apoio de uma instituição estatal estrangeira, o United States Geological Survey. Identifica-se o papel do Estado na representação de determinada espacialidade que, no entanto, fica em outro território nacional. Os ciclos de viés economicista que se impuseram à região nas décadas seguintes tiveram a assinatura de um governo. Porém, como no ciclo anterior, que levou à adaptação da atividade minerária em bases capitalistas, houve outro conjunto de práticas (sociais e espaciais) hegemônicas, coordenado pelos EUA (que substituíram a Inglaterra como nação dominante).

Ao longo do século XX, nota-se uma intensificação da atividade minerária, acentuada nas duas primeiras décadas dos anos 2000 (Souza, 2015SOUZA, L. A. Produção rígida, acumulação flexível: comandos globais e processos urbano-regionais ligados aos circuitos mínero-siderúrgicos do Alto Paraopeba, Minas Gerais. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.). O viés economicista e prioritariamente voltado à mineração, portanto, vigora até hoje. Em termos de delimitações e representações, é também importante contextualizar, em tempos mais recentes, o Projeto Geologia do Quadrilátero Ferrífero, conduzido pela Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas (Codemig, 2005CODEMIG. COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Projeto geologia do Quadrilátero Ferrífero: integração e correção cartográfica em SIG. Belo Horizonte: Gerência de Desenvolvimento Mineral da Companhia de Desenvolvimento Econômico do Estado de Minas Gerais, 2005.). Um dos propósitos do projeto foi integrar, em metodologias e escalas compatíveis, diversos mapeamentos geológicos realizados ao longo da segunda metade do século XX.

Numa plataforma digital que apresenta esse e outros projetos geológicos em curso no estado de Minas Gerais (Codemig, 2021CODEMIG. COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Portal da Geologia de Minas Gerais. Belo Horizonte: CODEMIG, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.portalgeologia.com.br/index.php/sobre-o-projeto /. Acesso em: 5 jul. 2021.
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), chama a atenção o fato de o principal público-alvo seja um hipotético investidor, reforçando a diretriz de que o Quadrilátero Ferrífero tem sido prioritariamente tratado como uma região em contínuo processo de preparação para a atração de investimentos, sobretudo de caráter extrativo minerário.

Articulações interescalares na produção do espaço regional do Quadrilátero Ferrífero

Com a intensificação da atividade minerária ao longo do último século, verifica-se que o território regional do Quadrilátero Ferrífero tem sido produzido por meio de um conjunto de ações prioritariamente advindas de fontes e processos externos. Ao se tornar mercadorias a serviço do capitalismo como sistema, os recursos minerários transformam-se em objetos cujo objetivo primordial é ampliar sucessivamente a produção para viabilizar a acumulação de mais valor em quantidades cada vez maiores.

Considerando que as distâncias entre os detentores de capital (historicamente preparados para extrair e produzir tais mercadorias) e o lugar onde se encontram as jazidas são marcadas por fronteiras intranacionais e internacionais, tem-se aqui uma questão intrinsecamente territorial e de escala geográfica. Relações de poder ligadas a esse espaço social envolvem questões como organização do capital, atuação do Estado como ator produtor ou regulador, propriedade pública ou privada das jazidas e das mercadorias produzidas, emprego de força de trabalho e, em determinados locais, organização da população local frente a processos estabelecidos.

A apreensão da espacialidade atual do Quadrilátero Ferrífero leva-nos a um resgate do próprio conceito de região, conforme trabalhado por Jessop (2018JESSOP, B. Dinâmica do regionalismo e do globalismo: uma perspectiva de economia política crítica. In: BRANDÃO, C. A.; FERNÁNDEZ, V. R.; RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). Escalas espaciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina . Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles , 2018. p. 43-70.). De acordo com o autor, a região não deve ser meramente atrelada a unidades administrativas sobre fronteiras nacionais, pois suas características fundamentais variam conforme “legados históricos e sua incorporação em diferentes tipos de contextos econômicos, políticos e sociais” (Jessop, 2018JESSOP, B. Dinâmica do regionalismo e do globalismo: uma perspectiva de economia política crítica. In: BRANDÃO, C. A.; FERNÁNDEZ, V. R.; RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). Escalas espaciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina . Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles , 2018. p. 43-70., p. 47).

Considerando que essa abordagem destaca especificidades para a apreensão de regiões distintas, é possível também interpretá-la sob a ótica de dinâmicas estabelecidas em contextos e momentos diversos de uma mesma região. Isso confere à própria delimitação regional um relativo dinamismo sob a ótica espaço-temporal.

É possível apreender a área em estudo de um prisma pretérito, colonial, articulada por caminhos que interligavam os principais núcleos urbanos daquele período histórico, ou seja, Ouro Preto, Mariana e Sabará que, inclusive, abrigavam manifestações de poder do Estado e da Igreja Católica à época.

Ao longo do século XX, as explorações minerárias, embora já atreladas a capitais públicos e privados, constituíram uma espacialidade cujas barreiras físicas e limitações tecnológicas mantiveram um relativo isolamento em relação a Belo Horizonte, principal nucleação urbana do entorno.

Uma leitura da região na atualidade deve considerar, além das delimitações físicas e políticas, uma profusão de fluxos, zonas de influência e localizações estratégicas de estruturas e processos.

Ao trabalharmos essas questões e contemplarmos elementos e processos espaciais na constituição dessa região, aborda-se aqui o conceito de articulações interescalares, debatido por Limonad (2014LIMONAD, E. Estado, espaço e escala no Brasil, subsídios para a reflexão. Scripta Nova, Barcelona, v. 18, n. 493 (41), p.1-19, 1 nov. 2014.). No contexto brasileiro, o ator fundamental de tais articulações é a figura do Estado, que recebe demandas e imposições do capital e, por meio de um conjunto de normas e regulamentos, somados a ações diretas ou indiretas para prover infraestruturas, medeia as condições gerais para o estabelecimento de processos produtivos (Limonad, 2014LIMONAD, E. Estado, espaço e escala no Brasil, subsídios para a reflexão. Scripta Nova, Barcelona, v. 18, n. 493 (41), p.1-19, 1 nov. 2014.).

O termo articulações interescalares remete a uma sobreposição de atores sociais que, nas diferentes dimensões atreladas à produção do espaço, transformam e são simultaneamente transformados em diferentes escalas. Por um lado, essas transformações gozam de relativa homogeneidade em termos normativos (sobretudo em escala intranacional). Por outro, a concentração e a especialização do capital em determinadas atividades econômicas (algo presente no contexto da mineração) concorre para hierarquizar o território transformado. A fragmentação, por sua vez, liga-se principalmente à própria noção de propriedade capitalista que, na mineração, envolve uma série de especificidades.

Martínez (2021MARTÍNEZ, E. J. C. Notas metodológicas en las postulaciones teóricas de Henri Lefebvre. Geousp, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 1-19, 2021. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2021.166111.
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) afirma que esse processo de homogeneização, hierarquização e fragmentação produz não apenas o solo, mas também o subsolo e o sobressolo. No contexto do Quadrilátero Ferrífero, se verifica tal amplitude. Se a leitura partir da organização do capital minerário, grandes empresas do setor estruturam suas operações desde um centro de comando estrategicamente localizado, com o suporte de unidades corporativas, logísticas e financeiras internacionalmente distribuídas em função dos principais fluxos de mercadorias, serviços e do próprio mais valor gerado. As áreas especificamente dedicadas à exploração mineral, no caso dessas principais empresas do setor, situam-se em diferentes continentes.

Essa estruturação só é possível numa produção que envolve o sobressolo citado por Martínez (2021MARTÍNEZ, E. J. C. Notas metodológicas en las postulaciones teóricas de Henri Lefebvre. Geousp, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 1-19, 2021. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2021.166111.
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), cuja hierarquização é diretamente ligada aos fluxos informacionais territorialmente estabelecidos. Estendendo este debate para a produção do solo e do subsolo, discute-se a propriedade das jazidas e das mercadorias produzidas que, nesse contexto, se articula ao conceito de reescalonamento de Estado. Tanto Swyngedouw (2018SWYNGEDOUW, E. Globalização ou glocalização? Redes, territórios e reescalonamento. In: BRANDÃO, C. A.; FERNÁNDEZ, V. R.; RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). Escalas espaciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina . Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles , 2018. p. 71-106.) quanto Brenner (2018bBRENNER, N. Perguntas abertas sobre o reescalonamento de Estado. In: BRANDÃO, C. A.; FERNÁNDEZ, V. R.; RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). Escalas espaciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018b. p. 107-139.) discutem a questão da perspectiva regulatória pela qual o Estado, sobretudo em escala nacional, reduz progressivamente sua atuação direta na economia e na prestação de serviços de interesse público.

Sob tal premissa, o Estado tende progressivamente a atuar como um grande regulador de processos ligados às relações entre capital, trabalho e espaço social nas mais diversas escalas geográficas. Brenner (2018bBRENNER, N. Perguntas abertas sobre o reescalonamento de Estado. In: BRANDÃO, C. A.; FERNÁNDEZ, V. R.; RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). Escalas espaciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2018b. p. 107-139., p. 108) reforça que essas mudanças se verificam nas diferentes “dimensões geográficas do poder do Estado”.

Aplicando esses debates ao contexto da mineração e da siderurgia brasileiras, com repercussões diretas e indiretas na produção do espaço do Quadrilátero Ferrífero, entende-se que esse processo de reescalonamento se consolidou em diferentes momentos da década de 1990. No início desses anos, o Brasil vivia seus ciclos iniciais referentes ao fim do período militar, datado de 1985, da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da primeira eleição presidencial após um hiato de 29 anos, em 1989.

Juntamente com diretrizes internacionais pautadas na ampla privatização de empresas e na concessão de serviços públicos ao capital privado, no Brasil deve-se somar um imaginário coletivo que classificava a produção industrial estatal como algo predominantemente obsoleto e ineficiente. Na linguagem capitalista, a dependência exclusiva de capitais públicos prejudicava a interface dessa produção industrial com as lógicas de captação de investimentos via sistema financeiro.

A indústria siderúrgica compunha um setor produtivo facilmente identificado com essa imagem, sobretudo pelo fato de que algumas unidades, como a Aço Minas Gerais S/A - Açominas, instalada na região do Quadrilátero Ferrífero, iniciou suas operações em 1986 produzindo apenas barras semiacabadas de aço, com baixo valor agregado e condições comerciais desfavoráveis (Greco; Coutinho, 2002GRECO, A. M. F.; COUTINHO, C. S. Açominas: um exemplo polêmico de privatização. SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA, 10., 2002, Diamantina. Anais... Diamantina: Cedeplar-UFMG, 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2002/textos/D49.PDF . Acesso em: 6 ago. 2021.
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).

O mesmo cenário se aplicava, embora menos, às Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais S. A. (Usiminas) e à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) que, com a Açominas, foram privatizadas em outubro de 1991 e abril e setembro de 1993, respectivamente. Além da Açominas, cuja inserção estatal no Quadrilátero Ferrífero representava a intenção de ampliar, por meio da siderurgia, a agregação de valor à exploração minerária, a Usiminas e a CSN também tinham vínculos produtivos diretos com a região.

A primeira siderúrgica, situada no município de Ipatinga e, portanto, no Vale do Aço, teve sua localização diretamente ligada ao acesso, por via férrea, ao minério advindo do Quadrilátero Ferrífero e das minas situadas no município de Itabira.

A CSN, por sua vez, tinha na Mina de Casa de Pedra, pertencente à empresa e situada no município de Congonhas (inserido no polígono do Quadrilátero), sua principal fonte de minério de ferro, com uma ferrovia diretamente ligada à Usina Presidente Vargas, no município de Volta Redonda.

Sendo o sistema ferroviário o principal modal de ligação entre minas, siderúrgicas e portos brasileiros, a concessão da malha atrelada à Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) - ao capital privado, ocorrida entre 1995 e 1997, desempenhou importante papel no processo de reescalomento do Estado na região. De uma malha única, a RFFSA foi fracionada em malhas distintas, passíveis de incorporação por diferentes grupos.

No Quadrilátero Ferrífero, a própria especialização do transporte ferroviário, que demanda composições técnicas específicas para viabilizar suas operações, restringiu ainda mais os tipos de fluxos que, nessa região, tornaram-se predominantemente destinados à produção mínero-siderúrgica e à exportação de minérios de baixo valor agregado.

Porém a principal ação relativa ao reescalonamento de Estado nos processos minerários liga-se à privatização da companhia Vale do Rio Doce em 1997, que transferiu para o capital privado as principais concessões minerárias da região estudada e, consequentemente, as principais minas que, nas décadas seguintes, seriam transformadas em complexos minerários.

É importante destacar que as normatizações sobre a propriedade dos recursos minerários no Brasil, bem como as condições para a transformação dessas jazidas em mercadorias, nem sempre se deram linearmente. Em síntese, entende-se que entre 1891, ano da primeira Constituição republicana, e 1988, após o período de redemocratização, os debates foram permeados pelas distinções ou não entre a propriedade do solo e do subsolo, bem como pela abertura ou restrição da exploração minerária para empresas, sobretudo estrangeiras.

Considerando o presente contexto, atrelado à Constituição vigente (Brasil, 1988BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Assembleia Nacional Constituinte, 1988.), os recursos minerais (solo e subsolo) compõem o patrimônio da União, havendo distinções entre a propriedade do solo e do subsolo. A grande particularidade desse processo liga-se ao Código da Mineração nacional e sua regulamentação (Brasil, 1967BRASIL. República Federativa do Brasil. Decreto-Lei n. 227, de 28 de fevereiro de 1967. Dá nova redação ao Decreto-Lei n. 1.985, de 29 de janeiro de 1940. (Código de Minas). Brasília: Presidência da República , 1967., 2018BRASIL. República Federativa do Brasil. Decreto n. 9.406, de 12 de junho de 2018. Regulamenta o Decreto-Lei n. 227, de 28 de fevereiro de 1967, a Lei n. 6.567, de 24 de setembro de 1978, a Lei n. 7.805, de 18 de julho de 1989, e a Lei n. 13.575, de 26 de dezembro de 2017. Brasília: Presidência da República, 2018.), na qual o recurso minerário é passível de titulação própria, que confere direitos sobre delimitações territoriais específicas (correspondentes à localização das jazidas previamente mapeadas). Tais títulos se desdobram em autorização de pesquisas e concessão de lavras que garantem a seus detentores a concessão para explorar essas áreas.

Uma especificidade constante na Constituição Federal (Brasil, 1988BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Assembleia Nacional Constituinte, 1988.), no entanto, garante ao concessionário a propriedade do produto da lavra. A transformação da jazida em produto, ou seja, em mercadoria, torna o concessionário proprietário do recurso, devidamente inserido nos ciclos de produção e acumulação capitalistas.

Como ex-empresa estatal detentora dos principais títulos minerários do Quadrilátero Ferrífero e de outras importantes áreas minerárias do Brasil, a companhia Vale do Rio Doce manteve, até 1997, um certo caráter público e estratégico na exploração minerária das principais áreas. A privatização de uma empresa dessa magnitude (tanto em termos de direitos minerários quanto de operações em curso à época), somada às demais diretrizes e regulamentos, condiciona a atividade a uma lógica sob a qual o principal propósito é maximizar a produção minerária anualmente.

Evidentemente, essas questões repercutem na produção do espaço regional do Quadrilátero Ferrífero, cuja configuração atual é representada na Figura 3.

A conformação de complexos minerários, associada ao conjunto de infraestruturas e às áreas de maior adensamento populacional, conformaram os objetos principais apreendidos nessa etapa do trabalho.

Figura 3
Estruturas minerárias, Quadrilátero Ferrífero e RMBH

Na Figura 3, destaca-se a abrangência dos complexos minerários instalados nos principais limites do Quadrilátero (correspondente às serras que o conformam). À exceção de áreas a sudeste (de difícil acesso, no entorno de áreas ambiental e culturalmente preservadas nos municípios de Ouro Preto e Mariana) e de uma porção territorial a leste, correspondente ao Parque Nacional da Serra do Gandarela e à Reserva Particular do Patrimônio Natural do Santuário do Caraça, a extensão cada vez maior dos complexos atinge níveis de continuidade relevantes sobre as principais serras que delimitam o polígono.

A magnitude das áreas voltadas à extração ferrífera também chama atenção, pois mostra a retirada de grandes volumes de uma mercadoria com baixo valor agregado, gerando significativas mudanças na conformação do território.

Entre as áreas mais relevantes, destacamos o Complexo Minerário de Vargem Grande, operado pela Vale S. A. (2020VALE S. A. Relatório anual, de acordo com a seção 13 ou 15(d) da lei de mercado de capitais de 1934: para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2019. Rio de Janeiro: Vale S. A., 2020.), a Mina de Casa de Pedra, controlada pela CSN (2021CSN. COMPANHIA SIDERÚRGICA NACIONAL. Relato Integrado 2020. São Paulo: CSN, 2021. ), e o Complexo de Germano, vinculado à Samarco Mineração S. A. (2020SAMARCO MINERAÇÃO S. A. Relatório bienal 2018-2019. Belo Horizonte: Samarco Mineração S. A., 2020.) e onde fica a Barragem de Fundão, colapsada em 2015. Outra área que sofreu impacto significativo foi a Barragem I da Mina de Córrego do Feijão, rompida em 2019. Sob operação da empresa Vale S. A. (2020VALE S. A. Relatório anual, de acordo com a seção 13 ou 15(d) da lei de mercado de capitais de 1934: para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2019. Rio de Janeiro: Vale S. A., 2020.), essa área compõe o Complexo Paraopeba.

Outro aspecto destacado na figura é a prevalência de operações ligadas à empresa Vale S. A. no espaço regional analisado. Com base no aparato normativo vigente, cujo direito minerário envolve um conjunto de processos específicos da propriedade do solo, identifica-se a relevância dessa empresa (bem como das demais mineradoras) na produção do território em escala regional. É importante observar, nessa leitura, que a propriedade do solo no entorno das minas também precisa estar vinculada a tais empresas, de modo a viabilizar os processos direta ou indiretamente relacionados à transformação das jazidas em mercadoria.

O Quadrilátero como extensão do urbano da RMBH

Discutir o fenômeno em curso no Quadrilátero Ferrífero como algo intrinsecamente urbano compõe o rol de desafios aqui estabelecidos. No que diz respeito às articulações interescalares discutidas acima, verificou-se como um conjunto de normas e atores externos é determinante na produção daquele espaço social. Mas também é fundamental compreender como a mineração como atividade principal condiciona e é condicionada pela urbanização em curso.

Brenner (2018aBRENNER, N. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2018a. ) destaca, nesse sentido, que o conceito de urbanização deve ser objeto de profunda revisão. Segundo o autor, o processo não se relaciona apenas ao crescimento de núcleos urbanos e de regiões mais ou menos polarizadas por esses núcleos. Há também uma produção irregular e desigual de tecidos urbanos, formados pela incorporação e pela aceleração de relações socioespaciais direta ou indiretamente envolvidas na produção de bens e serviços no território.

Mais atrelada à indústria, essa produção de tecidos urbanos envolve, além da produção industrial propriamente dita, processos extrativos, circulação de mercadorias e pessoas e a própria reprodução social das regiões direta ou indiretamente implicadas.

Monte-Mór (2006MONTE-MÓR, R. L. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Texto para discussão n. 281, Belo Horizonte: Cedeplar-UFMG, 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20281.pdf . Acesso em: 6 ago. 2021.
http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td...
) chama esse processo de urbanização extensiva, entendida como o conjunto de produções e reproduções sociais que se estendem a partir e além das aglomerações urbanas. Esse conjunto envolve temporalidades diferentes e sobrepostas no espaço social, resultantes de múltiplas interações urbano-industriais e acrescidas de padrões sociais, políticos, culturais e econômicos tipicamente ligados “à pólis e à civitas” (Monte-Mór, 2006MONTE-MÓR, R. L. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Texto para discussão n. 281, Belo Horizonte: Cedeplar-UFMG, 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20281.pdf . Acesso em: 6 ago. 2021.
http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td...
, p. 10).

Além dos aspectos citados por Monte-Mór (2006MONTE-MÓR, R. L. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Texto para discussão n. 281, Belo Horizonte: Cedeplar-UFMG, 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20281.pdf . Acesso em: 6 ago. 2021.
http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td...
), Brenner (2018aBRENNER, N. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2018a. , p. 35) ressalta que estes “alongamentos desiguais do tecido urbano” são formados por padrões de investimento, lógicas de parcelamento, ocupação e uso do solo e redes de infraestruturas em geral. Apesar de continuar se manifestando na expansão de nucleações urbanas, sobretudo aquelas de maior porte, a urbanização contemporânea se estende a áreas menos adensadas. Segundo Brenner (2018aBRENNER, N. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2018a. ), redes de infraestruturas (aqui incluídas as redes informacionais) têm concorrido para conectar tais áreas aos principais centros urbanos.

No espaço regional do Quadrilátero Ferrífero, há uma série de relações que fazem com que, sob o prisma dos processos urbanos, essa espacialidade se estabeleça extensivamente e articulada à RMBH. A localização dos principais escritórios administrativos das empresas mineradoras atuantes no Quadrilátero em Belo Horizonte e Nova Lima reforça as relações supracitadas (Souza, 2015SOUZA, L. A. Produção rígida, acumulação flexível: comandos globais e processos urbano-regionais ligados aos circuitos mínero-siderúrgicos do Alto Paraopeba, Minas Gerais. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015., 2017SOUZA, L. A. Entre o mundo e Mariana: o circuito minerário global e suas repercussões sobre a tragédia de Bento Rodrigues, MG, Brasil. Revista da Anpege, Rio Claro, v. 13, n. 21, p. 5-41, 2017. doi: https://doi.org/10.5418/RA2017.1321.0001.
https://doi.org/https://doi.org/10.5418/...
).

Essa configuração territorial promove fluxos e agregações de valor em determinados locais. Estruturas de comando da produção, mesmo quando instaladas em pontos externos à RMBH, usam o território metropolitano como suporte para coordenar a produção minerária e siderúrgica instalada em áreas circundantes, bem como para direcionar as mercadorias produzidas para centros consumidores no Brasil e principalmente no exterior.

Isso gera uma hierarquização do território regional do Quadrilátero Ferrífero, polarizado a partir da RMBH, sob matrizes cada vez mais atreladas ao processo de urbanização do território.

Se a urbanização como processo se estende sobre a produção mínero-siderúrgica do Quadrilátero Ferrífero por polos estrategicamente instalados na RMBH, há outro elemento fundamental para a reprodução social que condiciona o território em sentido contrário - a conservação e produção de águas.

Numa perspectiva urbana inserida num contexto capitalista, devem-se conceber as águas como elemento fundamental das condições gerais de produção. Nesse aspecto, pode-se considerar uma primeira visão sobre a disponibilidade hídrica, às vezes imprecisamente tratada coma disponível em larga escala para um suporte quase infinito do processo produtivo e da reprodução social em seu todo.

Outra abordagem recorrente liga-se ao entendimento da água como elemento fundamental à própria reprodução da vida, bem como à alta demanda hídrica dos processos minerários e siderúrgicos do Quadrilátero Ferrífero. Abordada no âmbito da produção tanto de mercadorias quanto de espaços, a água é, na mais básica das acepções, a mais fundamental matéria-prima de todos os processos.

Diante disso, destaca-se aqui uma sobreposição espacial significativa entre minas e complexos minerários e as principais bacias hidrográficas que abastecem a RMBH. Em certa medida, o tema foi historicamente encoberto pelos ganhos advindos do crescimento da atividade minerária ao longo das décadas. Em caráter preliminar, Souza (2015SOUZA, L. A. Produção rígida, acumulação flexível: comandos globais e processos urbano-regionais ligados aos circuitos mínero-siderúrgicos do Alto Paraopeba, Minas Gerais. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.) apontou essa sobreposição indicando a necessidade de mapeamentos complementares.

A ruptura das barragens de Fundão, no município de Mariana em 2015, e de Córrego do Feijão, no município de Brumadinho em 2019, levou o assunto para a margem, na medida em que o impacto de tais colapsos praticamente inviabilizou o potencial hídrico de cursos d’água das bacias hidrográficas dos Rios Doce e Paraopeba. Mesmo ciente da complexidade dessas investigações, que se desdobram e demandam estudos próprios, buscou-se aqui compreender como a sobreposição entre águas e mineração se dá nos contextos atuais da RMBH e do Quadrilátero Ferrífero.

A emergência da questão das águas do Quadrilátero Ferrífero como parte do conjunto de processos que conformam o território da RMBH demanda um mapeamento complementar. Isso reforça a necessidade de uma abordagem dinâmica desse espaço regional, cuja amplitude pode ser ajustada conforme o conjunto de variáveis adotadas para apreendê-lo.

Com base nisso, acrescentaram-se às delimitações regionais da RMBH e do Quadrilátero Ferrífero as principais bacias hidrográficas que abastecem essas regiões. No que concerne às estruturas minerárias, foram representadas barragens de rejeitos minerários, graduadas em função de seu volume em milhões de metros cúbicos (Figura 4).

Figura 4
Barragens de rejeitos, bacias hidrográficas e reservatórios no Quadrilátero Ferrífero e na RMBH

A sobreposição entre as principais bacias hidrográficas destinadas ao abastecimento de águas da RMBH e as estruturas minerárias instaladas no Quadrilátero Ferrífero é significativa. Um conflito imediato, tanto potencial quanto real, emerge dessa sobreposição, uma vez que a possibilidade de novas rupturas de barragens de rejeitos pode ter repercussões graves no abastecimento hídrico metropolitano. Se se considerar que a atual configuração do setor minerário, tanto em termos normativos como produtivos, tem entre seus princípios o incentivo ao aumento contínuo da produção, entende-se que expansões sucessivas tensionarão ainda mais os mananciais existentes.

Forma-se aí um conjunto de territorialidades potencialmente conflitantes entre si. A centralidade principal da RMBH, em certa medida, ao se apropriar de parte dos fluxos de mais valor gerados a partir da atividade minerária do Quadrilátero Ferrífero, contribui para a manutenção dessas condições (mesmo que por inércia social, política e econômica). Por outro lado, essa mesma centralidade, ao ter sua existência potencialmente ameaçada pelo crescimento desmesurado da mineração, tende a se posicionar em prol de um maior controle sobre essas atividades.

No bojo da produção do território, são ensejados conflitos entre atores sociais que compõem esse mesmo espaço social. É importante destacar que determinados atores, mesmo quando fundamentais à produção do território, não o habitam integralmente. Isso se aplica a uma fração do capital minerário, cujo comando é predominantemente externo às minas propriamente ditas.

Numa escala mais próxima, esse conflito tende a se dar até mesmo entre diferentes setores do capital que empreendem ações significativas de produção e transformação da espacialidade em estudo. A aproximação de um limite de disponibilidade hídrica em escala regional aponta um possível choque entre capital minerário e capital imobiliário, cujos eixos de expansão territorial se mostram próximos e conflitantes, principalmente no entorno das Serras do Curral e da Moeda. Nesse cenário, há uma atuação potencialmente ambígua do capital financeiro, que pode financiar estruturas e infraestruturas ligadas tanto ao capital minerário quanto ao imobiliário.

Sob um prisma social ampliado, enxerga-se uma construção, ainda em seus estágios iniciais, acerca da região do Quadrilátero. Num histórico no qual a mineração tem se sobreposto às demais atividades e possibilidades, é necessário construir outra territorialidade. As relações empenhadas passam pelo reconhecimento das águas como elemento fundamental para as relações que compõem esse território, bem como para a produção social dessa espacialidade na escala regional.

Numa perspectiva de construção de subjetividades, que dialogam com o conceito de espaços de representação (Lefebvre, 2012LEFEBVRE, H. The Production of Space. Malden, MA: Blackwell, 2012. ), tem-se buscado o reconhecimento progressivo dessa territorialidade como um Quadrilátero Aquífero. Ainda incipiente, essa designação tem sido apresentada em diálogos diversos com uma parcela da sociedade que vivencia, trabalha e pesquisa a região. Em termos institucionais, considera-se que os debates atualmente empreendidos pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Velhas, 2019CBH VELHAS. COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO DAS VELHAS. Reunião conjunta dos Subcomitês dos Ribeirões Arrudas e Onça - 12/12/2019. Ata de reunião. Belo Horizonte: CBH Velhas, 2019. ) têm contribuído não apenas para formalizá-lo, mas para incluí-lo como pauta técnica e política no estado de Minas Gerais.

Entende-se que esse processo dialoga com o conceito de transdução, proposto por Lefebvre (1996LEFEBVRE, H. Writings on Cities. Malden, MA: Blackwell , 1996.) e debatido por Martínez (2021MARTÍNEZ, E. J. C. Notas metodológicas en las postulaciones teóricas de Henri Lefebvre. Geousp, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 1-19, 2021. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2021.166111.
https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
). Nessa perspectiva, a transdução é diferente da indução e da dedução, pois permite construir virtualidades por meio do diálogo entre o real e o possível, aplicável à construção de outra territorialidade regional.

Sob o prisma do urbano, essa transdução se mostra possível. O econômico global, distante, condiciona o Quadrilátero, cujo contraponto pelas águas, próximas, torna-se condição para a própria vida da RMBH.

O aspecto econômico se apresenta como um relevante desafio, uma vez que suas imposições históricas colocam a mineração como o único caminho possível para a produção do espaço social do Quadrilátero.

A isso se soma o aspecto político administrativo, cuja atribuição constitucional sobre matérias relativas ao parcelamento, à ocupação e ao uso do solo é imputada aos municípios (Brasil, 1988BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Assembleia Nacional Constituinte, 1988.). Quando confrontadas com a demanda do capital minerário, externa a esses territórios municipais e dotada de mais capacidade de organização e acumulação, as administrações municipais tendem a não ser capazes de dar respostas efetivas ao iminente conflito entre a produção minerária e de águas. Mesmo nessa esfera, há conflitos decorrentes da sobreposição de decretos estaduais que, desde a década de 1980, têm procurado controlar o adensamento e as atividades extrativas em áreas classificadas como de proteção especial, situadas nas bacias hidrográficas dos rios Paraopeba e das Velhas (Minas Gerais, 1980MINAS GERAIS. Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Decreto n. 20.792, de 8 de setembro de 1980. Define área de proteção especial, situada nos municípios de Mateus Leme, Igarapé e Itaúna, para fins de preservação de mananciais. Belo Horizonte: ALMG , 1980., 1982MINAS GERAIS. Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Decreto n. 22.327, de 3 setembro de 1982. Define como de interesse especial, para proteção de manancial, terrenos localizados na sub-bacia do Córrego dos Fechos, município de Nova Lima. Belo Horizonte: ALMG , 1982., 1988MINAS GERAIS. Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Decreto n. 27.928, de 15 de março de 1988. Define área de proteção especial, situada nos municípios de Rio Manso, Crucilândia, Brumadinho, Bonfim e Itatiaiuçu, para fins de preservação de mananciais. Belo Horizonte: ALMG, 1988.).

A organização da sociedade civil se apresenta como um caminho possível nessa busca pelo entendimento da região como um Quadrilátero Aquífero. Para além das marcas dos colapsos das barragens, sensíveis ao cotidiano de parte relevante do corpo social metropolitano, o entendimento da sobreposição entre as jazidas e os aquíferos tem levado a um processo de mobilização política potencialmente capaz de transformar a realidade dessa região como um todo.

Considerações e apontamentos

Esta abordagem se fundamenta em debates sobre duas lógicas de produção do território mutuamente conflitantes. A territorialidade minerária, historicamente estabelecida no Quadrilátero Ferrífero, é sustentada por um conjunto de fatores, sobretudo de natureza geológica, econômica e normativa, com desdobramentos nos campos político e social.

Por um lado, as formações geológicas do Quadrilátero são a razão principal da atividade minerária na região e, por outro, são fundamentais para a conformação de mananciais. Essa questão é, por si só, geradora de conflitos, pois o estabelecimento de processos minerários no território estudado tende a comprometer diretamente um conjunto de fontes hídricas.

Se a esses aspectos se somarem as particularidades que levam à inserção periférica do Brasil no capitalismo global, a atividade minerária desempenha um importante papel econômico.

Acresce-se a tendência a que tais áreas se ampliem para além dos limites atuais. Se o próprio ato de minerar tem impacto nos mananciais do Quadrilátero, a lógica de expansão contínua e sem uma delimitação rigorosa na escala regional pode levar a uma maior sobreposição dos complexos minerários aos mananciais existentes.

Quando se discute aqui uma possível ausência de limites territoriais em áreas onde possa ou não haver mineração, é mister ressaltar a existência de unidades de conservação e áreas de proteção na região estudada. No entanto, faltam instrumentos efetivos que ampliem as condições de preservação e conservação das áreas de recarga hídrica (onde ficam os principais complexos minerários).

A isso se soma uma lógica, de certa forma consolidada no Brasil, pautada na produção de mercadorias primárias, de alto impacto e retorno em curto prazo, em detrimento de uma perspectiva mais abrangente. E importa ainda observar que as águas são determinantes para os processos em curso na região e no entorno, bem como para o abastecimento de um contingente populacional expressivo.

No aspecto normativo, levantamentos e análises mostram que o arcabouço legal vigente cria condições para a mineração em larga escala. Isso se deve a um conjunto de interfaces que colocam o recurso minerário no limite entre um bem estratégico para o Estado brasileiro e uma mercadoria a ser largamente produzida para fins de acumulação capitalista. A partir do momento em que o Estado, por meio de diferentes governos, viabiliza o aumento desmesurado da mineração, tal estratégia fortalece a lógica pela qual o principal propósito da extração do recurso minerário é transformá-lo em mercadoria.

Essa força produtiva se impõe a outro conjunto de normas, que procura conservar os mananciais da região do Quadrilátero. Os instrumentos de caráter conservacionista e preservacionista, tais como o estabelecimento de áreas de proteção especial para fins de abastecimento, são comumente interpretados como entraves às lógicas convencionais de desenvolvimento. Isso se deve, em larga medida, a um padrão cultural que se baseia em lógicas historicamente pautadas na extração direta de recursos naturais como fonte crucial para a acumulação.

Nesse contexto, é importante que as águas sejam compreendidas como um elemento da própria produção. Para além da ideia de prestação de serviços ambientais, mais comumente atribuída ao ambiente que à sociedade, defende-se aqui a importância de que, demandando ações socialmente organizadas, os processos de conservação e preservação das águas devem ser entendidos e incorporados como componentes da produção social do espaço. Sendo o ato de produzir intrinsecamente territorial, a noção de um Quadrilátero Aquífero toma forma e se fortalece.

Por fim, cabe aqui uma palavra sobre as relações entre a RMBH e a região estudada. Em processos de coordenação da produção maximizados por redes de infraestruturas informacionais, núcleos corporativos predominantemente situados na RMBH regem as unidades minerárias e siderúrgicas instaladas no Quadrilátero e em seu entorno.

A sobreposição das jazidas aos principais aquíferos que abastecem a RMBH criam uma atmosfera de embate entre a exploração minerária e a conservação das águas, na qual o reconhecimento da região como um Quadrilátero Aquífero envolve um amplo processo de mobilização e reconstrução. Há que produzir outras lógicas de representação de espaços, destacando elementos relativos à conservação e produção de águas nessa escala, bem como práticas espaciais sob lógicas ambientais e de reprodução da vida.

A produção de novas subjetividades (que compõem o campo dos espaços de representação) deve ultrapassar o economicismo pautado na exploração intensiva, até aqui apontado como o único caminho possível para tal espacialidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    07 Out 2021
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