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Notas sobre diferenciação espacial

Resumo

Diferenciação espacial é o resultado da ação combinada de processos naturais e sociais que produziu uma superfície terrestre fragmentada, irregular, complexa e mutável, porém articulada. A superfície terrestre pode assim ser vista como um caleidoscópio, possibilitando diferentes leituras. Os termos paisagem, região, território, lugar e rede revelam essa diversidade de leituras a respeito da diferenciação espacial. Esta não se constitui num conceito chave da Geografia, mas na motivação, no olhar com que o geógrafo analisa a ação humana sobre a superfície terrestre. Temporalidade e espacialidade estão presentes na diferenciação espacial. A desigualdade espacial é o lado perverso da diferenciação espacial e deve, assim, ser eliminada. Uma diferenciação espacial socialista constitui um possível caminho para o futuro, garantindo diferenças nos modos de ver, sentir, pensar, conhecer, comunicar e agir dos seres humanos, diferentes e simultaneamente iguais entre si.

Palavras-chave:
Diferenciação espacial; Mosaico; Caleidoscópio; Temporalidade; Espacialidade.

Abstract

Spatial differentiation is the result of the combined action of natural and social processes that produced a fragmented, irregular, complex, and unstable, although articulated, earth's surface. The earth's surface can thus be seen as a kaleidoscope, open to different interpretations. Geographical terms such as landscape, region, territory, place, and network reveal different readings on spatial differentiation. The latter, however, does not constitute a key concept inside geography's literature but interfere in geographers’ motivation and their perspective analyzing human action on earth's surface. Temporality and spatiality are present in spatial differentiation. Spatial inequality is the perverse side of spatial differentiation and must therefore be eliminated. A socialist spatial differentiation is a possible trail to the future, ensuring that differences in the ways of seeing, feeling, thinking, knowing, communicating, and acting continue to exist.

Keywords:
Spatial Differentiation; Mosaic; Kaleidoscope; Temporality; Spaciality

Resumen

La Diferenciación Espacial es el resultado de la acción conjunta de procesos naturales y sociales que ha producido una superficie terrestre fragmentada, irregular, compleja y mutable, aunque articulada. De este modo, la superficie terrestre puede ser vista como un caleidoscopio, en el cuál diferentes lecturas son posibles. Los términos paisaje, región, territorio, lugar y red revelan tal diversidad de lecturas respecto a la diferenciación espacial. Esta, en sí misma, no constituye un concepto clave de la Geografía, no obstante, funciona como la motivación, la visión con la cual el geógrafo analiza la acción humana sobre la superficie terrestre. Temporalidad y espacialidad están presentes en la diferenciación espacial. La desigualdad espacial es el lado perverso de la diferanciación espacial y debe, por lo tanto, ser eliminada. Una diferenciación espacial socialista se constituye en un camino posible para el futuro, garantizando diferencias en los modos de ver, sentir, pensar, conocer, y comunicarse de los seres humanos, los cuales son, simultáneamente, diferentes e iguales entre sí.

Palabras clave:
Diferenciación Espacial; Mosaico; Caleidoscopio; Temporalidad; Espacialidad.

Natureza, significado e exemplos

Em 1989, o geógrafo Denis CosgroveCOSGROVE, D. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998[1989]. p. 92-123. publicou um artigo cuja primeira parte do título dizia “a geografia está em toda parte”. Referia-se à diferenciação espacial, isto é, a superfície terrestre é recoberta por inúmeros mosaicos complexos, irregulares, mutáveis e articulados entre si. Esses mosaicos ora se recobrem plenamente, ora estão parcialmente superpostos e ora, ainda, justapostos. Esse complexo arranjo espacial dos mosaicos permite-nos conceber um caleidoscópio, metáfora da diferenciação espacial. Como em um caleidoscópio, ao alterar o ângulo de nosso olhar, alteramos aquilo que se vê. Podemos olhar a superfície terrestre observando a geomorfologia ou a geografia urbana ou agrária, ou ainda as regiões geográficas. É o nosso olhar que selecionará aquilo que iremos ver. A superfície terrestre e sua metáfora são assim sujeitos à polivocalidade, múltiplas vozes, múltiplos olhares. Mas em cada um a diferenciação espacial será evidenciada.

A diferenciação espacial é o resultado de um longo e complexo processo que combinadamente reúne a ação da natureza e a ação humana, produzindo diferentes formas espaciais, a paisagem, os diversos usos da terra, os fluxos e, em breve, a organização do espaço, manifestação dos processos da natureza e da ação humana.

A diferenciação espacial, contudo, não deve ser considerada um conceito-chave da geografia. Estes são o espaço, a paisagem, a região, o território, o lugar e a rede. A diferenciação espacial é, em realidade, a motivação que atrai o geógrafo, curioso em tornar inteligível a ação humana sobre a superfície terrestre. Essa motivação aponta para a ideia de que a diferenciação espacial é, simultaneamente, reflexo, meio e condição. Reflexo do resultado da ação combinada da natureza e da sociedade. Meio no qual a vida econômica, política e social flui. Condição de reprodução da própria diferenciação espacial, mas também condição de mudanças. A diferenciação espacial é, então, mais do que a motivação do geógrafo, mas a razão de ser das ciências da natureza e ciências sociais. Sem ela as contradições não existiriam, assim como a própria vida sobre a superfície terrestre. Esta seria uma planície isotrópica, sem diferenciações, algo que nem na ficção científica é admissível.

Os exemplos a seguir apontam algumas diferenciações espaciais. A natureza é exemplar, seja na escala global, regional ou local. Expressões e termos como região equatorial e região polar, planalto, encosta e planície, ou ainda igarapé, várzea e furo denotam formas que a natureza criou. Mas a ação humana é mais pródiga ainda em criar diferenciações espaciais explicitadas na representação geográfica, isto é, mapas e esquemas. Um mapa de densidades demográficas é um exemplo. Nele está sintetizado o resultado diferenciado da ação humana. Do mesmo modo um mapa mostrando o uso agrícola da terra, a concentração espacial das indústrias ou das interações espaciais entre as cidades exibe as diversas manifestações da diferenciação espacial. Um mapa relativo à segregação residencial pode revelar profunda desigualdade espacial manifesta pela coexistência na mesma cidade de condomínios exclusivos, favelas, cortiços e conjuntos habitacionais. Imagine-se, ainda, mapas com a distribuição espacial dos templos neopentecostais, de um lado, e a distribuição das residências daqueles que cometeram os chamados “crimes de colarinho branco”. A diferenciação espacial está presente também no imaginário social, a exemplo dos lugares de maior afetividade, topofilia, e os de menor, topofobia, ou ainda nos espaços sagrados e espaços profanos. A geografia está em toda parte.

A geografia regional fornece eloquentes exemplos de diferenciação espacial. As regiões geográficas resultam de uma complexa combinação de ações da natureza e sociedade, A paisagem regional de cada região expressa claramente a diferenciação espacial. Vejam-se, por exemplo, as diferenças entre a Campanha Gaúcha e as regiões de colonização alemã e italiana no Rio Grande do Sul. Ou as diferenças entre o Recôncavo Baiano, a zona, a Chapada Diamantina ou o oeste baiano. Ou ainda, entre Zona da Mata, agreste, brejo e sertão em Pernambuco. A diferenciação espacial está em toda parte.

Temporalidade e espacialidade na diferenciação espacial

A diferenciação espacial, assim como qualquer produto da natureza e da ação humana, exibe, simultaneamente uma temporalidade e uma espacialidade. Estas são vistas como manifestação do tempo e do espaço, isto é, do movimento e processo, de um lado, e da pausa e forma, de outro. Ambas, temporalidade e espacialidade, constituem uma unidade e, assim, são inter-relacionadas, mas dispõem, cada uma, de relativa autonomia, podendo ser consideradas separadamente. A temporalidade se expressa na criação, no desenvolvimento e na transformação, enquanto a espacialidade na localização, na escala, no arranjo espacial e nas interações espaciais.

A diferenciação espacial é uma criação em dado contexto e por determinados agentes sociais. O contexto envolve um dado ambiente temporal, genius tempori, no qual emergem condições favoráveis para a criação de processos e formas espaciais. Envolve também condições locais, genius loci, lugares propícios para a criação. A criação é, na prática, produto de agentes sociais de toda ordem, distintos entre si no que tange aos interesses e meios para a criação, assim como no que se refere ao poder, capital, trabalho e à participação de cada um nos conflitos sociais que emergem. A diferenciação espacial exibe um desenvolvimento expresso em períodos, nos quais combinações distintas de mesmos atributos sociais emergem, definindo cada período. O desenvolvimento não pode ser considerado uma metáfora da biologia, pois não se dá linearmente, havendo regressão, resistência e refuncionalização, mas também marginalização. A diferenciação espacial exibe áreas e lugares refuncionalizados, com formas espaciais criadas em tempos distintos e áreas e lugares marginalizados. A transformação é, aparentemente, o final da temporalidade, mas o produto dessa transformação constitui, em realidade, o início de nova temporalidade, de nova (re)criação, via de regra, com novos agentes sociais atuando em outros genius tempori e genius loci. A diferenciação espacial apresenta, assim, várias formas espaciais dotadas de tempos distintos. Como afirma David LowenthalLOWENTHAL, D. Past time, present place. landscape and memory. Geographical Review, v. 65, n. 1, p. 1-36, 1975. doi: https://doi.org/10.2307/213831
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, o passado está no presente. Em outros termos, a diferenciação espacial é complexa e o geógrafo deve estar atento à temporalidade que ela exibe.

A espacialidade constitui-se em temáticas mais consideradas pelo geógrafo do que a temporalidade. A tradição empiricista do geógrafo assim o permite. Dos elementos que constituem o cerne da espacialidade, a localização é o ponto de partida para sua análise: localização segundo as coordenadas geográficas fornece a diferenciação espacial imediata. O sítio é o conceito que constitui a localização absoluta, expresso não apenas pelas coordenadas, mas também por sua geomorfologia, produto da natureza, mas também pelos aportes da ação humana. A localização relativa remete o geógrafo à acessibilidade da localização, num entroncamento de vias ou em grande cruzamento de vias. O conceito de posição geográfica emerge da localização relativa. A relação de uma localização face às outras, em termos de amenidades ou status social, define a localização relacional. Assim, localização absoluta, relativa e relacional, termos inspirados em David Harvey, constituem termos básicos para a análise da localização. Há que considerar, no estudo da diferenciação espacial, as localizações abandonadas ou marginalizadas e o significado a elas atribuído por diferentes grupos sociais. Lugar da retórica ou lugar vernacular, lugar sagrado, deslugar, são outras possibilidades. A localização, fundamental para o estudo da diferenciação espacial, tem sido deixada de lado ou reduzida a um plano inferior. Em parte, devido a suas origens com base na perspectiva econômica neoclássica, calcada na teoria do valor utilidade e na lei dos rendimentos decrescentes. Mas isso não diminui a importância da localização para o geógrafo, que pode repensá-la numa perspectiva crítica.

A escala, este termo polissêmico, é outro elemento da espacialidade. Na geografia, considera-se que devemos ir além da escala cartográfica, tendo em conta as escalas dimensional, espacial e conceitual. A primeira reporta-se à divisão dos objetos construídos, envolvendo cumprimento, largura e altura. Monumentos e templos grandiosos mudam a paisagem e denotam poder e prestígio. Uma grande siderúrgica integrada, por outro lado, exibe economias internas de escala. Pequenas e médias indústrias juntas beneficiam-se de economias externas de escala, criando vantagens para cada uma. A escala manifesta-se ainda em sua dimensão espacial de atuação. Local, regional, nacional e global constituem áreas de atuação diferenciadas com distintos significados econômicos, sociais e políticos.

Se a localização define um local, o arranjo espacial, por outro lado, define um padrão espacial, aquilo que é repetitivo. Constitui o arranjo espacial uma possibilidade de teorização na qual a morfologia do objeto e sua distribuição são evidenciadas. Há inúmeros arranjos espaciais, cada um dotado de uma lógica locacional que denota tanto as relações sociedade-natureza, como o progresso técnico e as relações sociais. Concentração ou dispersão espacial, padrão linear como em um tabuleiro de xadrez ou sem padrão identificável, são possibilidades de arranjos espaciais, objeto para pesquisas acadêmicas e para políticas públicas. Semelhantemente à localização e à escala, estão inseridos na diferenciação espacial.

As interações espaciais, finalmente, articulam as localizações e os arranjos espaciais, viabilizando a diferenciação espacial. Regiões funcionais são criadas e a difusão espacial de inovação efetivadas. Pessoas, mercadorias, capital, informação, mas também epidemias circulam espacialmente, acumulação de capital e poder político manifestam-se via interações espaciais. As interações são, assim, parte integrante da diferenciação espacial. Sem elas, esta não poderia existir. As interações espaciais podem ser analisadas considerando itens que circulam, os meios de circulação, intensidade, direção, frequência e itinerários entre as localizações envolvidas na interação. Temática importante para o estudo da diferenciação espacial, as interações não podem ser deixadas à margem das pesquisas, considerando diferentes indicadores e procedimentos operacionais. E há muitos questionamentos não respondidos. As pesquisas sobre interações espaciais podem também incluir o passado e o presente, envolvendo a criação, o desenvolvimento e as transformações ocorridas nas interações espaciais e na diferenciação espacial das áreas analisadas.

Duas questões sobre a diferenciação espacial

A diferenciação espacial está longe de se constituir em tema isento de questionamento. Estes aparecem por diferentes razões, seja de natureza teórica, seja de natureza epistemológica. Neste texto, discutimos brevemente duas questões consideradas importantes, aquela relativa às dicotomias e à unicidade.

Questão da dicotomia

Se a temporalidade e a espacialidade constituem questões a ser explicitadas e clarificadas, as dicotomias constituem sério problema que tem afetado os estudos geográficos, aparecendo neles muitas vezes de modo implícito. Há dicotomias que opõem a geografia física à geografia humana e a geografia regional à geografia que procura de modo sistemático analisar temas relativos à espacialidade. Há dicotomias envolvendo o urbano e o rural e outras mais. Com isso, bloqueamos o desenvolvimento da geografia. Note-se que a dicotomia não é um dado da realidade, mas uma construção intelectual equivocada, na qual somos incapazes de ver a unidade na diversidade e esta como parte integrante da unidade. Não se considera, quando se adota a ideia de dicotomia, que processos e formas estão em geral inter-relacionados, cada um adquirindo características do outro, mas, ao mesmo tempo, tendo cada qual relativa autonomia. Inter-relações e relativa autonomia não produzem dicotomias, mas indicam, repita-se, a unidade na diversidade e vice-versa. O equívoco não tem suas raízes na especialização profissional mas, ao contrário, na precária formação de profissionais em geografia. A unidade na diversidade deve abrir mentes para estudos abrangendo temas que são vistos como dicotômicos.

As dicotomias que assolam o pensamento de muitos geógrafos podem ser desconstruídas ao se considerar a proposição de Brian Berry em seu artigo de 1964BERRY, B. J. L. Approaches to regional analysis: a synthesis. Annals of the Association of American Geographers, v. 54, n. 1, p. 2-11, 1964. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2569459 . Acesso em: 14 dez. 2021.
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sobre análise regional. Nesse texto, publicado em pleno apogeu da denominada geografia teorético-quantitativa, Berry propõe uma matriz geográfica como meio para extirpar a ideia de dicotomia em geografia. Há três tipos de matrizes que o geógrafo pode utilizar. A primeira é a matriz temática, na qual dois temas são inter-relacionados, como educação (linha) e renda (coluna). A segunda é a matriz de conexões entre lugares, utilizada em estudos relativos a interações espaciais. A terceira é a matriz geográfica, em cujas linhas estão os lugares e em cujas colunas, os indicadores. Pode conter um número muito grande de lugares e inumeráveis indicadores. É por meio da leitura da matriz, ao longo das colunas ou ao longo das linhas, que se estabelece a distinção entre geografia sistemática (colunas) e regional (linhas): a leitura ao longo das colunas mostra que indicadores covariam espacialmente, dando a ver padrões espaciais e abrindo caminho para a teorização. A leitura ao longo das linhas, por outro lado, mostra a combinação de indicadores num mesmo lugar e, como dois ou mais lugares que apresentam combinações semelhantes formam tipos ou regiões, nesse caso, é como se fossem espacialmente contíguas. A análise da matriz revela que a geografia sistemática é encontrada ao longo das colunas e a geografia regional, ao longo das linhas. Assim, a matriz geográfica constitui um meio pelo qual as dicotomias são desconstruídas. E se a matriz geográfica é uma representação da superfície terrestre, então as dicotomias são desconstruídas. Tudo depende do olhar do pesquisador, interessado, seja na geografia sistemática, seja na geografia regional.

Questão da unicidade

Em 1953, Fred SchaeferSCHAEFER, F. K. Excepcionalismo em geografia: um estudo metodológico. Boletim de Geografia Teorética, v. 7, n. 13, p. 5-37, 1977. publicou um artigo que se constitui num marco na história do pensamento geográfico, estabelecendo a ruptura entre a geografia tradicional e as geografias que se seguiram, a começar pela denominada geografia teorético-quantitativa. Trata-se do texto sobre o excepcionalismo em geografia, no qual o autor, professor na universidade de Iowa, critica a visão corrente entre geógrafos e enfatizada por Richard Hartshorne em seu livro The nature of geography, de 1939HARTSHORNE, R. The nature of geography: a critical survey of current thought in the light of the past. Annals of the Association of American Geographers, v. 29, n. 3, p. 173-412, 1939. doi: https://doi.org/10.2307/2561063.
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. Schaefer critica Hartshorne, que afirma que a geografia estuda fenômenos únicos, que não se repetem, e que a geografia tem um único princípio, o de que não tem princípios, leis ou teoria. Trata-se da tese da unicidade (uniqueness). Com isso, o estudo da diferenciação espacial seria o estudo de lugares únicos.

A unicidade constitui um grande equívoco e presta um enorme desserviço à geografia, a despeito de que no final do século XIX já se distinguiriam as ciências nomotéticas, à procura de leis, e as ciências idiográficas, que estudariam aqueles fenômenos únicos. O debate entre Hartshorne e Schaefer foi de mão única, dado que este faleceu antes mesmo de que seu texto tivesse sido publicado. Mas a revolução teorético-quantitativa foi um poderoso, embora não exclusivo, meio para minimizar a tese da unicidade. Contudo, também contribuiu para tornar pouco ou nada importante o tema da diferenciação.

A questão da unicidade pode ser discutida ao se considerarem as contribuições do materialismo histórico e dialético, de Karel KosikKOSIK, K. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderio Toríbio. Milão: Bompiani, 1965., em A dialética do concreto e, sobretudo, de Georg LukácsLUKÁCS, G. Introdução a uma estética marxista: sobre a particularidade como categoria da estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. em Introdução a uma estética marxista: sobre a particularidade como categoria da estética. Ambos os autores argumentam que a realidade pode ser compreendida por meio das categorias do universal, particular e singular, que constituem uma unidade na diversidade. O universal diz respeito aos processos gerais, que se repetem, enquanto o particular é uma manifestação do universal, na qual os processos gerais adquirem especificidades gerando classes, tipos e, acrescentaríamos, regiões. Assim, se considerarmos os felinos como universal, os tigres, as onças, os leopardos e os gatos seriam vistos como particulares, isto é, são felinos, mas apresentam características específicas. Se os gatos podem ser vistos como expressão do universal, uma específica gata doméstica, de estimação, pode ser vista como singular, pois apresenta as características comuns aos gatos mas apresenta outras derivadas das especificidades que só ela apresenta. Esta gata não é única, mas singular e, ao mesmo tempo, particular e universal. E é por intermédio do singular que particular e o universal materializam-se, tornam-se um fenômeno. Do mesmo modo a Nigéria ou a Bolívia são expressões singulares do subdesenvolvimento, o particular, e, ao mesmo tempo, do capitalismo, o universal. É nessa perspectiva que um dado lugar sobre a superfície terrestre, identificado primeiramente por suas coordenadas geográficas, não é único, mas singular, particular e universal. Assim, a pequena cidade fluminense de Quissamã não pode ser considerada única, mas singular, dotada de características próprias e, simultaneamente, particular, pois encontra-se na decadente região canavieira do norte fluminense. Mas ela é também universal, pois exibe características de muitas pequenas cidades brasileiras. Os lugares não são únicos.

A adoção da perspectiva do universal, particular e singular abre à geografia uma ampla porta para a teorização, libertando-se da perspectiva da unicidade que apenas possibilita a contemplação do único, aquilo que se esgota em si mesmo. O único, aliás, afirmou Max Weber, excede-se em provas. Nesse sentido, a diferenciação espacial adquire novo significado e estimula o geógrafo a estudos de caso e estudos comparativos, isto é, estudo de uma singularidade e estudo de duas ou mais singularidades.

À guisa de conclusão

A diferenciação espacial é parte integrante da vida humana, de sua diversidade. Efetiva os diferentes modos de ver, sentir, pensar, conhecer, comunicar e agir, mas também de sofrer, lutar e vencer. Não deve ser eliminada, pois isso seria a negação da natureza do ser humano. É a desigualdade espacial, o lado perverso da diferenciação espacial, que deve ser eliminada. O geógrafo pode concorrer para isso tornando-se um ativista, e não apenas ativista, mas um geógrafo ativista que conhece a fundo a diferenciação espacial. Quem sabe o geógrafo não contribuirá para o mais importante projeto da geografia, o de criar uma diferenciação espacial socialista, na qual todos sejamos irmãos.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Aceito
    15 Dez 2021
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