Acessibilidade / Reportar erro

Entre a permanência e a transferência da CEAGESP: notas críticas a partir da (re)produção do espaço de São Paulo

Resumo

Nas últimas décadas, a localização do Entreposto da Companhia de Abastecimento Geral do Estado de São Paulo (CEAGESP) na capital paulista tornou-se objeto de discussão crescente diante das transformações gerais dessa metrópole. Este artigo propõe uma reflexão a partir de elementos subjacentes ao ensejo da transferência do armazém, apontando que a compreensão adequada de seus termos necessita da perspectiva da produção do espaço de São Paulo. Assim, apresenta-se o cruzamento de dois níveis capaz de apresentar o sentido da (re)produção da metrópole paulista na atualidade. O primeiro está circunscrito às imediações da Companhia frente a processos emergentes na Vila Leopoldina; enquanto o segundo se refere à produção de um novo perímetro capaz de alocar investimentos urbanos do porte exigido para tal transferência. Por fim, este entrelaçamento é interpretado no âmago da repercussão das contradições exacerbadas do capital na produção do espaço metropolitano paulistano.

Palavras-Chave:
metrópole; urbanização crítica; CEAGESP; São Paulo; Rodoanel Mário Covas

Abstract

In recent decades, a possible transfer of the Agricultural Supply Center (CEAGESP) in the city of São Paulo, Brazil, has been the focus of discussion within the scope of the general transformations of the metropolis of São Paulo. This article aims to reflect on the underlying elements favoring such a transfer and sustains that an adequate understanding of its terms requires the perspective of the reproduction of the space of this metropolis. To do that, an analysis is presented by the crossing of two levels. The first is restricted to emerging processes in the surroundings of the Center in Vila Leopoldina, while the second concerns the production of a new metropolitan perimeter capable of allocating urban investments large enough for such a transfer. Finally, this interweaving is interpreted at the core of the repercussion of the capital’s exacerbated contradictions within the production of the São Paulo metropolitan space.

Keywords:
metropolis; critical urbanization; CEAGESP; São Paulo; Mário Covas Beltway

Resumen

En las últimas décadas, la ubicación del Centro de Abastecimiento en São Paulo (CEAGESP) en la capital paulista se convirtió en objeto de discusión creciente frente a las transformaciones generales de esta metrópoli. Este artículo propone una reflexión de los elementos subyacentes a la oportunidad de la transferencia del almacén, señalando que la comprensión adecuada de sus términos necesita la perspectiva de la reproducción del espacio de esa región. Así, presentamos el cruce de dos niveles para ilustrar la reproducción total da metrópoli. El primero se circunscribe en los alrededores del Centro, frente a procesos emergentes en Vila Leopoldina; mientras el segundo se refiere a la producción de un nuevo perímetro capaz de asignar inversiones urbanas del tamaño requerido para dicha transferencia. Finalmente, este entrelazamiento se interpreta en el centro de la repercusión de las contradicciones exacerbadas del capital en la reproducción del espacio metropolitano de São Paulo.

Palabras-clave:
metrópoli; urbanización crítica; CEAGESP; São Paulo; Anillo Vial Mário Covas

Introdução

Compreender as transformações da metrópole de São Paulo na contemporaneidade exige o reconhecimento das diretrizes de um movimento global de reestruturação urbana que o atualiza aos termos mais gerais da realização da reprodução das relações sociais capitalistas. Nesse sentido, decifrá-las envolve incorporar momentos de um percurso intelectual e teórico no qual os estilhaços da realidade urbana possam ser adequadamente apreendidos: trata-se de reconhecer as entradas analíticas que a produção do espaço oferece ao desvendamento da realidade social em suas contradições essenciais.

Os fundamentos e desdobramentos deste argumento são inúmeros. A partir de uma gama de autores, a exemplo de Henri Lefebvre (2013LEFEBVRE, Henri. La producción del espacio. Madrid: Capitán Swing, 2013.) e David Harvey (2013HARVEY, Harvey. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.), tal perspectiva foi ganhando maiores contornos com o reconhecimento de que a reprodução do capitalismo, em suas contradições essenciais, não se fez sem a produção de um espaço adequado a suas abstrações reais. As contradições do capital, entrelaçadas a contradições próprias ao espaço, seriam fundamentos basilares ao entendimento da reprodução social do século XX e XXI. Isso permitiu reconhecer que as forças produtivas imanentes ao capital se fazem para além do processo produtivo estrito; trata-se do espaço produzido atuante como e com forças produtivas sociais do capital, sendo-lhes condição e produto de sua reprodução. Assim, compreender a reprodução social capitalista implica considerar a territorialização específica necessária à reposição de seus termos, da qual a metrópole constitui um momento particular potente que nos permite alcançar a generalidade das determinações sociais contemporâneas por trás de recortes e tensões metropolitanas.

São nos marcos do acirramento das contradições próprias à formação capitalista que devemos, portanto, compreender a reprodução do espaço da metrópole de São Paulo. A compreensão de um movimento crítico e abstrato do valor se realizando não apenas na, mas através da cidade propriamente, admitida como mercadoria, é, inclusive, uma exigência dos tempos atuais diante das tensões deflagradas pela atualização econômica da metrópole. Nestes termos, o processo de urbanização em São Paulo se efetiva necessariamente de forma crítica, argumento desenvolvido por Damiani (2008DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008.) que descortina a potência desse urbano tomado pelo econômico em suas determinações críticas através dessa urbanização.

O momento atual traz, portanto, uma série de recortes e particularidades próprios à reprodução da metrópole de São Paulo capazes de revelar os termos dessa urbanização em seu processo crítico. Inúmeros fragmentos possíveis de um movimento que pretende o deslocamento de moradores e de usos, mobilizando parcelas deste território para a realização de negócios urbanos, cada vez mais intrincados a capitais financeiros e fictícios. Para este texto, partimos de uma leitura a respeito do movimento que procura direcionar o Entreposto da Companhia de Abastecimento Geral do Estado de São Paulo (CEAGESPCEAGESP. Mudança da CEAGESP vai muito além de encontrar um endereço novo. 24 jun. 2015. Disponível em: Disponível em: https://ceagesp.gov.br/comunicacao/noticias/mudanca-da-ceagesp-vai-muito-alem-de-encontrar-um-endereco-novo/ . Acesso em: 10 fev. 2020.
https://ceagesp.gov.br/comunicacao/notic...
), hoje localizado no bairro da Vila Leopoldina, para outro perímetro da metrópole de São Paulo, ainda em discussão. Mesmo que a mudança do terminal não se tenha confirmado, as determinações em torno dessa operação ensejada são reveladoras do movimento geral da reprodução em curso deste território metropolitano.

Neste artigo, traçamos primeiramente aspectos gerais a respeito do impasse da transferência da CEAGESP, buscando em seguida interpretá-los a luz dos fundamentos próprios à reprodução do espaço da metrópole de hoje. Por conseguinte, o texto segue com uma discussão a respeito das novas condições estabelecidas no bairro da Vila Leopoldina, resultado do novo lugar que a urbanização de São Paulo o projeta. A alteração do lugar da Vila Leopoldina no interior desta urbanização se atrela tanto ao processo de enfraquecimento de sua condição industrial quanto à proximidade com a centralidade moderna do vetor sudoeste de São Paulo1 1 Importante ressaltar preliminarmente que as transformações de São Paulo, na condição de cidade mundial ao final do século passado, exigiram a necessária produção de espaço adequado à nova economia urbana que se estabelecia. O eixo sudoeste de São Paulo consolidou-se como a centralidade produzida por esse novo movimento, nos termos da produção de uma nova inserção funcional na metrópole, na condição de um “eixo empresarial” atualizado à virada do século XX para o XXI. A respeito dessas transformações, Carlos (2007) apresenta com riqueza fundamentos e desdobramentos da produção dessa moderna centralidade em São Paulo. , elementos que fazem dela um território estratégico para a incorporação imobiliária residencial voltada a estratos de média e alta renda. Por fim, incitamos a reflexão de que o impasse da localização da CEAGESP, além de se reportar às transformações em suas mediações, conduzidas pelo fim em si mesmo através da produção do espaço em busca de valorização, também se refere ao redimensionamento espacial intensivo e extensivo na qual a implementação do Rodoanel Mário Covas lhe é momento essencial. Trata-se da consolidação de um perímetro urbano estratégico em larga escala da metrópole, acionado na realização de inúmeros negócios urbanos potenciais, a exemplo da implantação futura de uma Central de Abastecimento moderna. O argumento sinaliza que a mobilização da metrópole para negócios urbanos adquire novas escalas e camadas no interior da crítica reprodução econômica e, portanto, social, através da urbanização em curso.

Entre anúncios e recuos sobre a transferência da CEAGESP em São Paulo

Ao final de 2019, Gustavo Junqueira, responsável à época da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, celebrava o acordo realizado entre os governos estadual e federal para o encerramento das operações da CEAGESP na Vila Leopoldina. Sendo uma das maiores Companhias de abastecimento do mundo, o secretário chamava atenção para a impossibilidade de a atual estrutura comportar suas demandas de fluxos, tanto de pessoas quanto de mercadorias e veículos. A isto se somaria a impossibilidade de expansão de suas atividades na estrutura atual e dificuldades de acesso logístico ao Entreposto. Sinteticamente, por fim, alega que, além dessas razões, a sua saída do centro expandido de São Paulo poderá resultar em uma redução de preços dos produtos, beneficiando comerciantes e consumidores (Junqueira, 2019JUNQUEIRA, Gustavo Diniz. Modernização do abastecimento alimentar. Agroanalysis, Rio de Janeiro, v. 39, n. 11, 2019.).

O discurso de Junqueira, ainda que passível de problematizações de várias ordens, traz elementos que se insinuam há mais de duas décadas a respeito de uma reestruturação da Vila Leopoldina com a retirada da CEAGESP de sua localização atual. Os argumentos de Junqueira, permeados pela euforia liberal da privatização da Companhia,2 2 A possível privatização da Companhia ganha contornos com a sua federalização em 1997, momento em que a inserem no Plano Nacional de Desestatização (PND). Após anos de suspensão dos planos de sua privatização, em 2019, com João Dória, como governador de SP, e Jair Bolsonaro, presidente, criava-se um momento propício para acordo celebrado por Junqueira em relação a sua entrega à iniciativa privada. No entanto, após discordâncias entre o ex-governador e o ex-presidente, a propalada privatização foi mais uma vez suspensa. trazem elementos que estão em voga no discurso e no ensejo da retirada de sua infraestrutura na Vila Leopoldina. Esses elementos por muito estiveram presentes em enunciados do governo municipal, estadual e federal e apontam para um dado relevante da modernização em curso e pretendida da metrópole de São Paulo.

Em 2002, havia trâmites relativamente avançados para que essa operação fosse concebida. O projeto contemplava, além da transformação da CEAGESP em Central Integrada de Abastecimento de São Paulo (CIASP), estudos para sua transferência nas mediações do Trecho Oeste do Rodoanel Mário Covas (COSTA, 2006COSTA, Rene. Impactos sobre remanescentes de mata atlântica na zona oeste da Grande São Paulo: um estudo de caso da mata da Fazenda TIZO. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Física, Universidade de São Paulo, 2006.), o primeiro a ser inaugurado. Próxima à confluência com a Rodovia Raposo Tavares, situava-se a gleba sob a propriedade da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU), que seria destinada a receber as instalações da nova companhia de abastecimento (Figura 1). Em agosto de 2003, a CDHU assinou o termo de concessão a título precário e gratuito à Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo (CODASP). No entanto, diante de um contexto de pressões de moradores, dificuldades legais para desmatar os remanescentes de Mata Atlântica e desinteresse de instâncias privadas na construção do CIASP, o processo não se efetuou (Costa, 2006COSTA, Rene. Impactos sobre remanescentes de mata atlântica na zona oeste da Grande São Paulo: um estudo de caso da mata da Fazenda TIZO. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Física, Universidade de São Paulo, 2006.) e a gleba foi institucionalizada na forma de Parque Urbano em 2006, chamado de Parque TIZO3 3 O Parque Urbano de conservação ambiental TIZO foi instituído através do decreto estadual nº 50.597 de 27 de março de 2006. Em 5 de março de 2013, o decreto nº 59.259 altera o seu nome para Parque Jequitibá. .

Figura 1.
Localização da CEAGESP e da área destinada para sua transferência em 2002.

Em alguma medida, a conjuntura política macro pode ter contribuído para a não concretização da transferência da CEAGESP pois em 2003 Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do país e alterou algumas projeções em relação a privatizações.

Gomes (2007GOMES, Sueli de Castro. O território de trabalho dos carregadores piauienses no Terminal da CEAGESP: modernização, mobilização e migração. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2007.) alega que, até um certo momento, motivações político-ideológicas seriam decisivas nos rumos do Entreposto pois foi durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que a privatização da Central surgiu com força e fomentou a especulação da mudança de suas instalações, potencializada com o anseio explícito do mercado imobiliário. Haveria, contudo, uma guinada em outra direção a partir de 2002, com a entrada de Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), no governo federal, impactando no direcionamento da CEAGESP e cessando, ao menos momentaneamente, o ensejo da privatização da Central e a mudança de suas infraestruturas para o então recém-construído trecho oeste do Rodoanel.

Muito embora o esforço para a transferência do Entreposto tenha aparentemente perdido fôlego após 2004, sobretudo pela inviabilidade da operação envolvendo a área cogitada inicialmente, em anos mais recentes essa questão veio à tona e a reposicionou a um lugar de destaque, a exemplo do discurso de Gustavo Junqueira. Desde março de 2015, mesmo com a sua retirada do Plano Nacional de Desestatização sob os governos do PT (Partido dos Trabalhadores), a ânsia em relação a sua transferência da Vila Leopoldina se tornou explicitamente um dos objetivos da gestão municipal de São Paulo, compondo uma ação estratégica e um momento necessário à reestruturação da metrópole. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, um dos quadros importantes do PT, alegou, em março de 2015, que a transferência do Entreposto na Vila Leopoldina conformava um “projeto incontornável” pois não se faria “sentido que um terreno com aquele valor imobiliário, com aquele potencial de desenvolvimento ficar sendo ocupado por um entreposto, que pode estar num lugar melhor, liberando área para o desenvolvimento urbano” (Macedo, 2015MACEDO, Letícia. Haddad quer que novo bairro na Ceagesp tenha “várias faixas de renda”. G1 São Paulo. 31 mar. 2015. Disponível em: Disponível em: http://glo.bo/1xTr0We . Acesso em 30 nov. 2018.
http://glo.bo/1xTr0We...
). Cerca de três meses depois, em junho, a prefeitura assina o acordo de transferência, em que se anuncia como parceira em relação à mudança de localidade e na condução de novos usos à área. (Macedo, 2015MACEDO, Letícia. Haddad quer que novo bairro na Ceagesp tenha “várias faixas de renda”. G1 São Paulo. 31 mar. 2015. Disponível em: Disponível em: http://glo.bo/1xTr0We . Acesso em 30 nov. 2018.
http://glo.bo/1xTr0We...
).

Ainda que não se tenha operado efetivamente a transferência desde 2015, observa-se que as orientações político-ideológicas a respeito da privatização ou não do Entreposto não são decisivas ao ponto de suprimir as pressões objetivas que recaem sobre a localização da CEAGESP. Na realidade, a observação de Fernando Haddad em relação ao “valor imobiliário” potencial da área atual do Entreposto encontra respaldo nos termos da (re)produção do espaço metropolitano de São Paulo, materializados tanto em seu entorno mais imediato, o bairro Vila Leopoldina, quanto às novas áreas capazes de receber suas as estruturadas atualizadas da CEAGESP. As condições estabelecidas em meados do século XX para a formação do bairro se alteram de modo significativo diante das exigências críticas postas no interior da urbanização de São Paulo. Para os fins de nossa exposição, seguem apontamentos em relação às novas determinações que atravessam o Entreposto a partir da Vila Leopoldina.

Vila Leopoldina: transformações diante da metropolização

O bairro da Vila Leopoldina apresenta uma desigualdade têmporo-espacial resultante dos momentos distintos em que foi incorporada à (re)produção da metrópole. De modo geral, inúmeras transformações atuais no bairro são resultado de processos que o reposicionam no interior da metropolização de São Paulo. Os próximos parágrafos apresentam elementos nessa direção que dialogam com o propósito deste texto.

Em sua discussão a propósito dos arredores de São Paulo na virada do século XIX para o XX, Langenbuch (1971LANGENBUCH. Juergen Richard. A estruturação da Grande São Paulo: um estudo de geografia urbana. Rio de Janeiro: IBGE, 1971.) identifica os primeiros arruamentos na Vila Leopoldina, extremamente modestos, em 1914, a exemplo de tantos outros com baixa densidade construtiva e desconectados espacialmente da “cidade propriamente consolidada”, e assim permanecem até a planta de São Paulo de 1922 (Langenbuch, 1971LANGENBUCH. Juergen Richard. A estruturação da Grande São Paulo: um estudo de geografia urbana. Rio de Janeiro: IBGE, 1971., p. 132). Como bem pontua o autor, a formação desses loteamentos, mesmo afastados, inseria-se na lógica de uma especulação imobiliária que já previa o movimento da urbanização pois se anunciava que “a cidade não tardaria a alcançar o local” (Langenbuch, 1971LANGENBUCH. Juergen Richard. A estruturação da Grande São Paulo: um estudo de geografia urbana. Rio de Janeiro: IBGE, 1971., p. 83).

Neste momento, dois elementos marcam a produção deste espaço na metrópole: a presença da ferrovia sorocabana e as várzeas dos rios Tietê e Pinheiros. Enquanto aquela constitui-se em um fator que contribuiu para uma ocupação mais efetiva, sobretudo após a abertura da estação de trem da Vila Leopoldina em 1931, estas constituíram-se em dificuldades para arruamento e usos propriamente urbanos, sendo marcadas por ocupação mais dispersa e irregular quanto mais se aproximava dos rios, sobretudo o Pinheiros, até a primeira metade do século XX.

Rodrigues (2013RODRIGUES, Lígia Rocha. Territórios invisíveis na Vila Leopoldina: Permanência, ruptura e resistência na cidade. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2013.) menciona que o projeto pioneiro de loteamento da área foi delineado em 1894 pela Richter & Company, cujo reconhecimento formal se estabeleceu 30 anos depois, em 1924. Apesar deste hiato de tempo, o processo indica a “demarcação de uma reserva de área para exploração futura que se manteve durante décadas” (Rodrigues, 2013RODRIGUES, Lígia Rocha. Territórios invisíveis na Vila Leopoldina: Permanência, ruptura e resistência na cidade. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2013., p. 100). A implantação viária do loteamento se fez de modo parcial em um primeiro momento, contemplando as áreas mais altas a leste e, portanto, mais distantes das várzeas do Rio Pinheiros. No entanto, essas áreas já possuíam um traçado concebido, vislumbrado com a adequação das várzeas à expansão urbana, operação essa que, realizada a partir dos anos 1950, altera significativamente o lugar da Vila Leopoldina na metrópole como um todo.

Como chama atenção Seabra (1987SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os meandros dos rios nos meandros do poder - Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1987.), a retificação do leito dos rios Tietê e Pinheiros permitiu constituir o aumento da força produtiva através da posterior implantação das Marginais. A apropriação racional das várzeas com a retificação dos rios redimensionou o lugar do bairro na metropolização em curso, produzindo, assim, bairros como a Vila Leopoldina, capazes de acondicionar partes do desenvolvimento industrial à época.

(...) o que de mais significativo este processo indica é que as várzeas, embora tendo uma existência natural, insisto, por isso sujeita a cheias episódicas, já nos anos trinta deixavam de ser ‘o pior terreno da cidade’. Processos de expansão da própria cidade já se haviam alcançado e as haviam englobado. Nos anos trinta, a cidade crescia muito para além Tietê, as terras ao longo do Pinheiros estavam sendo objeto de inúmeras e complexas transações. (Seabra, 1987SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os meandros dos rios nos meandros do poder - Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1987., p 101).

Diante deste quadro, há um processo de intensificação da Vila Leopoldina com o uso residencial, já iniciado antes mesmo da retificação nas áreas mais altas e próximo à Sorocabana, e também o espraiamento de indústrias, situado sobretudo com a inserção dos terrenos das várzeas retificadas. Após a retificação do Pinheiros, o anúncio da implantação da Marginal adjacente ao rio aprofunda o sentido da produção do novo lugar ocupado pelo bairro no contexto da metropolização em processo nos anos 1950.4 4 Langenbuch, a respeito da indústria que se expande na urbanização de São Paulo em meados do século XX, apresenta uma relação com o novo padrão de circulação rodoviário, atualizando a lógica da localização industrial. Dessa forma, segundo o autor, as autoestradas “passaram a desempenhar uma relação às indústrias o papel de fator locacional anteriormente desempenhado pelas ferrovias” (Langenbuch, 1971, p. 213). Essa transformação já estava concebida em certo grau por Prestes Maia em seu Plano de Avenidas em 1930, que previa o “aproveitamento dos valles para arterias rápidas, com separação dos trafegos local e de passagem” (Maia, 1930, p.116). Mais especificamente, junto às marginais se projetava a produção de um espaço capaz de constituir-se como zona industrial, promovendo assim a reestruturação exigida pela São Paulo moderna através da incorporação das várzeas do Tietê e Pinheiros. A respeito dessa questão, alega: “Não possuimos, como as velhas cidades européas, fortificações e muralhas que proporcionem rings espaçosos pela simples demolição. Em troca deu-nos a natureza os dous rios que banham a cidade, dos quaes é mistér tirar o melhor partido” (Maia, 1930, p.126).

A Vila Leopoldina é incorporada de forma mais orgânica à metrópole neste momento em que a urbanização de São Paulo anuncia a produção de lugares associados a uma nova plataforma logística, o que preconiza novas escalas de mobilização da riqueza através da produção de seu espaço. Podemos, portanto, compreender a abertura da Marginal Pinheiros no interior da produção espacial da metrópole no âmago de uma atualização às diretrizes da reprodução econômica atualizadas àquele momento. É o redimensionamento do bairro que condiciona, no decorrer da década de 1960, as ações para a implantação da Centro Estadual de Abastecimento (CEASA) na Vila Leopoldina em São Paulo, futuramente transformado na CEAGESP5 5 A CEASA em São Paulo, instalada em 1966, ao fundir com a Companhia de Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (CAGESP) em 1969, deu origem à CEAGESP. .

Diante da magnitude do processo de urbanização de São Paulo, as infraestruturas utilizadas como Central de Abastecimento de São Paulo desde a década de 1930, tendo o Mercado Municipal como principal elo, não acompanham a projeção que a metropolização implicaria. Isto significa que a atualização do espaço da metrópole através de vias expressas lhes seriam concernentes na medida em que uma nova escala urbana se estabelecia envolvendo espaços de fluxos de outra ordem, inclusive àqueles envoltos à distribuição e abastecimento alimentar. Assim, um sistema de abastecimento mais complexo e robusto é instalado na Vila Leopoldina em 1966 com a CEASA, não apenas apropriando-se da condição industrial-logística do bairro, mas também reforçando-a. Em estudo comparativo do montante comercializado entre a Central de abastecimento nos períodos 1960 a 1965 e 1968 a 1972, La Corte (1976LA CORTE, Judith de. Abastecimento da cidade de São Paulo em produtos hortifrutícolas: problemas e métodos de um estudo. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 52, p. 30-54, 1976., p. 36) identificou um aumento total para a maioria dos produtos, indicativo das estruturas mais modernas e amplas do então criado CEASA em comparação com o Entreposto da Cantareira, associado ao incremento populacional do período.6 6 Outro aspecto a se destacar é a uniformidade de distribuição de alguns produtos perecíveis, fato que a existência da CEASA contribuiu em grande medida (La Corte, 1976, p. 40).

Ao compreender a instalação da CEAGESP no interior desse movimento de reprodução do espaço da metrópole, é possível descortinar e articular com mais propriedade os processos deflagrados em relação a sua situação geográfica atual. É preciso pontuar que há uma ressignificação permanente desses espaços acumulados no cerne da urbanização de São Paulo, a qual se estabelece no âmbito das reestruturações territoriais e da profunda mobilização da riqueza ampliada na reprodução deste espaço metropolitano. Neste ponto, como enfatiza Martins (2010MARTINS, Flavia Elaine Silva. A (re)produção da escala metropolitana: um estudo sobre a abertura de capitais nas incorporadoras e sobre o endividamento imobiliário urbano em São Paulo. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.), a produção de situações geográficas no interior da metrópole constitui-se através de um processo contínuo no âmago de sua urbanização.

Não existe localização em si, existe uma forma sucessiva, por acumulação, de ir se produzindo o espaço, de forma que as intervenções na abertura de ruas, no nivelamento de terrenos e de obras de infra-estruturas serão sempre revividas quando novos empreendimentos aparecerem, de forma que investimentos anteriores passam a compor obras atuais. É por meio da reunião e intensificação de investimentos, públicos e privados, que se formam centralidade, que por sua vez reiteram as rendas por melhor localização. (Martins, 2010MARTINS, Flavia Elaine Silva. A (re)produção da escala metropolitana: um estudo sobre a abertura de capitais nas incorporadoras e sobre o endividamento imobiliário urbano em São Paulo. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010., p. 53).

A observação de Martins é relevante pois contribui para a compreensão do movimento global da metrópole imersa em novos conteúdos no decorrer do final do século XX. Duas transformações importantes a salientar que ressoam na Vila Leopoldina: a saída de plantas industriais da capital paulista e a produção de uma nova centralidade relativa às atividades modernas do setor financeiro e de serviços. No cerne desta questão analisada por Carlos (2007CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: FFLCH/USP, 2007.), a produção de novas centralidades na metrópole repercute das mais diferentes formas e intensidades em inúmeras direções da metrópole. A Vila Leopoldina se consolida como uma área de importante incremento imobiliário residencial voltado às rendas médias e médias-altas, em certa medida potencializado pela sua proximidade ao eixo corporativo e de serviços materializados na direção Faria Lima -Berrini. Assim, as transformações sugeridas no bairro são, em certo grau, indicativos de desdobramentos referentes à centralidade urbana atualizada no eixo Sudoeste de São Paulo (Pádua, 2011PÁDUA, Rafael Faleiros. Produção e consumo do lugar: espaços de desindustrialização na reprodução da metrópole. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011. ). Não menos importante a considerar é a sua condição passada de bairro industrial, o qual se torna estratégico à expansão imobiliária nas proximidades da centralidade moderna Faria Lima-Berrini e de regiões residenciais de alta renda, como Alto de Pinheiros e Alto da Lapa (Figura 2).

Figura 2.
Vila Leopoldina em relação à Centralidade Sudoeste.

Rodrigues (2013RODRIGUES, Lígia Rocha. Territórios invisíveis na Vila Leopoldina: Permanência, ruptura e resistência na cidade. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2013.) salienta que a estratégia predominante do setor imobiliário no bairro tem sido a captação de terrenos de galpões industriais, mas o remembramento de terrenos vem se tornando prática cada vez mais recorrente. Ao realizar uma síntese cartográfica a respeito da atuação do setor imobiliário no bairro, a autora observa que, embora em anos mais recentes a verticalização tenha alcançado proximidades do Entreposto, este atua como relativa barreira à expansão imobiliária, ainda que sua presença não descaracterize “o vetor que acompanha o curso do rio canalizado” (Rodrigues, 2013RODRIGUES, Lígia Rocha. Territórios invisíveis na Vila Leopoldina: Permanência, ruptura e resistência na cidade. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2013., p. 195).

Sugere-se, a esse respeito, um tensionamento referente ao lugar ocupado pela CEAGESP no interior do próprio bairro. No decorrer da consolidação de suas operações, podia-se observar que a CEAGESP indicava uma centralidade que “transborda(va) a delimitação do terreno destinado a seus fins oficiais, pois ela envolve(ia) uma série de serviços e atividades que foram sendo criadas, mobilizadas e reorganizadas conforme o mercado exigia e exige para a sua ampliação e reprodução” (Gomes, 2007GOMES, Sueli de Castro. O território de trabalho dos carregadores piauienses no Terminal da CEAGESP: modernização, mobilização e migração. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2007., p. 100)7 7 Importante apontar que em torno da instalação da CEAGESP havia a busca de trabalho em suas mediações, resultando em um atrativo para o morador-trabalhador de São Paulo que conseguia, dentro de suas possibilidades, se inserir no circuito econômico da mercadoria alimento. Portanto, a CEAGESP implica mobilidade do trabalho cuja materialidade se apresenta em comunidades, conjuntos habitacionais, albergues, associação de catadores que possuem grandes vínculos com atividades relativas ao funcionamento do Entreposto, como revela a pesquisa de Gomes (2007). . Mais de seis décadas após a implantação do Entreposto, no entanto, a reprodução do espaço de São Paulo apresenta conteúdos novos que alcançam as mediações da Vila Leopoldina. Na perspectiva de Pereira (2017PEREIRA, Sérgio Aparecido Rodrigues. Vila Leopoldina e Ceagesp: urb“animosidades”. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 203.03, 2017. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6570
https://vitruvius.com.br/revistas/read/m...
),

A centralidade urbana criada a partir da instalação da Central de Abastecimento no local, foi superada pela nova centralidade residencial e de serviços criada nos últimos 15 anos. O bairro se modernizou e com o aumento da densidade, pela verticalização, passou a conviver com problemas como falta de estacionamentos nas ruas de comércio, maior número de linhas de ônibus em ruas estreitas e aumento de tráfego de veículos. (Pereira, 2017PEREIRA, Sérgio Aparecido Rodrigues. Vila Leopoldina e Ceagesp: urb“animosidades”. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 203.03, 2017. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6570
https://vitruvius.com.br/revistas/read/m...
).

Ainda que seja possível relativizar a “superação” da centralidade da CEAGESP defendida por Pereira (2017PEREIRA, Sérgio Aparecido Rodrigues. Vila Leopoldina e Ceagesp: urb“animosidades”. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 203.03, 2017. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6570
https://vitruvius.com.br/revistas/read/m...
), é possível dizer que o movimento é certamente do seu tensionamento. De 1970 a 2010, dentre os seis bairros que compõem a região da Lapa (Barra Funda, Jaguará, Jaguaré, Lapa, Perdizes e Vila Leopoldina), a Vila Leopoldina foi a que apresentou o maior incremento relativo populacional, com aumento de 54,33% (Pereira, 2017PEREIRA, Sérgio Aparecido Rodrigues. Vila Leopoldina e Ceagesp: urb“animosidades”. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 203.03, 2017. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6570
https://vitruvius.com.br/revistas/read/m...
). Em relação à edificação, entre esses anos a Vila Leopoldina recebeu 8.502 unidades residenciais, com predominância de apartamentos de 3 a 4 dormitórios (Pereira, 2017PEREIRA, Sérgio Aparecido Rodrigues. Vila Leopoldina e Ceagesp: urb“animosidades”. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 203.03, 2017. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6570
https://vitruvius.com.br/revistas/read/m...
).8 8 Rodrigues (2013, p. 209) apresentou alguns perfis de condomínios cujos apartamentos chegam a superar a dimensão de 250 m² e valor de mercado de mais de R$ 2.500.000,00. Nos termos de Pádua (2011PÁDUA, Rafael Faleiros. Produção e consumo do lugar: espaços de desindustrialização na reprodução da metrópole. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011. ), desde a década de 1990 observa-se no bairro um processo de condominização crescente, processo este que alavanca, com certas nuances, o morar sugerido pela metrópole nos dias de hoje às classes de maiores rendas. No caso em questão, grandes empreendimentos imobiliários voltados à classe média alta, promovidos diante de um discurso ideológico a propósito de estilo de vida, qualidade de vida, bosques privativos, segurança urbana, entre outros, passaram a compor a dinâmica presente do bairro.

Isso posto, é possível compreender os conflitos profundos que se estabelecem entre usos estabelecidos durante décadas pela centralidade do Entreposto e aqueles presentes nas ações do mercado imobiliário como desdobramentos da (re)produção geral do espaço metropolitano na atualidade. Assim, os impasses em relação à saída da CEAGESP da Vila Leopoldina rementem às condições gerais da urbanização de São Paulo, entre elas repercussões da centralidade do eixo sudoeste alavancando o potencial habitacional de médio e alto padrão no bairro. No entanto, essas condições gerais relativas à reprodução espacial metropolitana também apresentam outras camadas: as novas situações geográficas derivadas da implantação do Rodoanel, que produz um perímetro para novos produtos e negócios urbanos capaz de alocar o Entreposto.

A incorporação de fragmentos da metrópole ao movimento de reprodução do imobiliário em São Paulo envolve, hoje, escalas crescentes e complexas de realização de modo que a mobilização do espaço metropolitano envolve novas proporções. É por essa razão que a possível transferência da CEAGESP, tão desejada e prenunciada por entusiastas do mercado, indica uma metrópole posta à realização dos negócios a uma nova escala capaz de condicionar as estruturas da Companhia. Assim, a questão é atravessada pela realização imobiliária em larga escala e a mobilização econômica potencial da metrópole em novas condições. Sem ambas as dimensões não seria possível compreender adequadamente a articulação à transferência do Entreposto, movimento condicionado pelo momento da reprodução do espaço, no interior do que Damiani (2008DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008.) descreve como urbanização crítica. Caminhemos à seção final do texto para expor algumas notas a esse respeito.

Produção do espaço e reprodução crítica: aproximações a partir de São Paulo

Conforme exposto nas páginas anteriores, as discussões em torno da transferência do Terminal da CEAGESP transcorrem há mais de 20 anos sem se ter alcançado um denominador comum. Apesar de não haver um desfecho exato a esse respeito, os discursos técnicos e oficiais desde o início apontam que as mediações do Rodoanel Mário Covas seriam o perímetro ideal a receber as infraestruturas do Entreposto.

Em anúncio em 2015 da Coordenadoria de Comunicação e Marketing (CODCO) da própria CEAGESP (2015CEAGESP. Mudança da CEAGESP vai muito além de encontrar um endereço novo. 24 jun. 2015. Disponível em: Disponível em: https://ceagesp.gov.br/comunicacao/noticias/mudanca-da-ceagesp-vai-muito-alem-de-encontrar-um-endereco-novo/ . Acesso em: 10 fev. 2020.
https://ceagesp.gov.br/comunicacao/notic...
), a transferência do Entreposto em São Paulo se torna não apenas palpável mas desejável diante das condições estabelecidas:

A direção da Companhia considera fundamental a concreta discussão da transferência do ETSP, localizado na Vila Leopoldina, em São Paulo, para outro lugar que atenda as atuais necessidades do comércio atacadista de frutas, legumes, verduras, pescados e flores, pois as dimensões atuais do mercado - inaugurado em 1969 - já não comportam o volume das operações que são realizadas. Diariamente, circulam pelo local 50 mil pessoas e cerca de 12 mil veículos. Como a estrutura viária é antiga, sem que haja espaço interno adequado para manobras dos caminhões, quando há maior movimentação ocorrem congestionamentos (CEAGESP, 2015CEAGESP. Mudança da CEAGESP vai muito além de encontrar um endereço novo. 24 jun. 2015. Disponível em: Disponível em: https://ceagesp.gov.br/comunicacao/noticias/mudanca-da-ceagesp-vai-muito-alem-de-encontrar-um-endereco-novo/ . Acesso em: 10 fev. 2020.
https://ceagesp.gov.br/comunicacao/notic...
).

Um ponto relevante a destacar é que as pressões em relação ao deslocamento do Entreposto de Abastecimento, além do exposto, também revelam elementos sob os quais a discussão adquire um novo nível: aquele relativo à concorrência na qual a realização da mercadoria-chave da CEAGESP se encontra. Há um acirramento entre unidades de comercialização de alimentos que incorporou certa fatia do mercado da CEAGESP desde o decorrer da década de 1990. Gomes, por exemplo, cita a redução do número de empregos destinados aos carregadores, uma face das “consequências da diminuição de centralidade do Terminal no abastecimento alimentar ao longo do tempo” (Gomes, 2007GOMES, Sueli de Castro. O território de trabalho dos carregadores piauienses no Terminal da CEAGESP: modernização, mobilização e migração. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2007., p. 167). Isto decorre, em certa medida, da opção oferecida pelas grandes redes de hipermercados, que apresentam elevado poder de reestruturação através de grandes redes logísticas de distribuição.

No âmago das transformações anunciadas neste texto a propósito da localização indefinida da CEAGESP, queremos chamar atenção que há outras camadas de processos que não se apresentam de forma tão evidente nos processos e fragmentos urbanos de per si. Para uma compreensão mais adequada, é relevante a consideração de uma totalidade metropolitana em constituição, da redefinição do território urbano economizado nos termos de Damiani, processo que pode ser lido a partir da construção do Anel Viário Metropolitano atualizando as condições espaciais da metropolização de São Paulo. A esse respeito, na leitura de Damiani, o Rodoanel Mário Covas

nos fornece a imagem do perímetro urbano metropolitano que foi desenhado e está se implementando, formando um grande anel de valorização econômica do espaço. Ele determina um contexto e uma imagem espaciais da totalidade sobre a produção do espaço urbano e, imediatamente, ele alavanca um processo de expropriação social, próprio à acumulação primitiva do espaço, que forja o espaço de valorização. (Damiani, 2008DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008., p. 250).

O anúncio quanto à possibilidade de transferência da CEAGESP é decifrado de modo mais adequado através do movimento destacado por Damiani pois a produção do espaço de São Paulo, com a abertura de uma perimetral do porte do Rodoanel, envolve a criação de condições para que essa operação logística seja projetada de forma mais concreta. A presença da CEAGESP na Vila Leopoldina apresenta uma particularidade notória, haja vista as funções desempenhadas pelo Entreposto bem como a centralidade derivada de suas atividades. Apesar de ser exposto como um enclave ao desenvolvimento urbano local, sua transferência se mostra complexa, dadas as funções que exerce no cerne dessa urbanização, inclusive ao se considerar a manifestação da mobilidade do trabalho contida na instalação e dinâmica do Entreposto através de comunidades em seu entorno, cuja tentativa de remoção já é sugerida oficialmente.9 9 A esse respeito, destaca-se o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Vila Leopoldina - Vila Lobos, aprovado na câmara em 2021, buscando requalificar e reestruturar uma área contígua à CEAGESP de aproximadamente 300 mil m². Dentre as inúmeras diretrizes formais do Projeto, destaca-se o incentivo à construção de Habitação de Interesse Social (HIS) para os moradores de comunidades das medições, em especial a da Linha e a do Nove. No entanto, já se apresentam movimentos de moradores contrários à construção de HIS’s na área, justificando-se como uma reivindicação contra a “degradação” do bairro. Isso anuncia alguns dos termos dos conflitos que se darão em meio às transformações socioespaciais nas mediações da CEAGESP. A esse respeito, ver Quintella (2020). No entanto, a reprodução espacial metropolitana contemporânea envolve a constituição de um espaço próprio à equação logística pretendida, elemento notório em inúmeros discursos que apontam para virtudes de as mediações do Rodoanel receber uma infraestrutura do porte da Companhia.

No âmago desse processo, a implantação do Rodoanel Mário Covas não se apresenta trivial às novas condições estabelecidas. Uma primeira aproximação pode levar em conta que ela implica a produção de um capital fixo de grande monta na metrópole, estabelecendo, inextricavelmente, a ampliação de um espaço posto à reprodução econômica em suas exigências constantemente renovadas em novos patamares. Isso pode aparecer como um processo que amplia a superfície urbana, “estendendo a área urbana de forma específica, de maneira a permitir as condições exigidas pelas grandes firmas em matéria de espaço geográfico” (Santos, 2012SANTOS, Milton Santos. Por uma economia política da cidade - O caso de São Paulo. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2012., p. 46). Tal movimento, no sentido de redefinição dos contornos do domínio urbano, estabeleceria o suporte necessário à crescente circulação em uma economia de fluxos (Santos, 2012) ao grande capital, cujos condicionantes produzem novas feições do espraiamento urbano.

Considerando o uso do espaço urbano por grandes capitais, a produção espacial das condições atualizadas da economia contemporânea estaria atrelada à produção do que Silveira (2011SILVEIRA, Márcio Rogério. Geografia da Circulação, Transportes e Logística: construção epistemológica e perspectivas. In: SILVEIRA, Márcio Rogério (org.). Circulação, transportes e logística - Diferentes perspectivas. São Paulo: Outras Expressões, 2011. p. 21-68.) e Silva Junior (2009SILVA Junior, Roberto França da. Circulação e logística territorial: a instância do espaço e circulação corporativa. Tese (Doutorado) -Programa de Pós-Graduação em Geografa, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2009.) chamam de logística territorial.10 10 Para Silva Junior (2009, p. 263), “a logística territorial (...) é uma ação no território, a partir de agentes corporativos, que detém uma inteligência sobre o território, utilizando sistemas de engenharia públicos e privados, bem como todos os demais componentes da circulação, técnicos e normativos”. Neste sentido, seriam notórios os esforços de uma racionalização cada vez mais apurada dos processos produtivos e de distribuição que se alicerçam através de novos nichos de ativos imobilizados em terrenos e instalações, sob os quais a implantação do Rodoanel aparece como um elemento relevante à produção do espaço metropolitano. Todavia, o anel viário em questão não sinaliza apenas para uma circulação física de mercadorias e capitais, mas para o aprofundamento da cidade como mercadoria, no sentido de corroborar decisivamente para novas restruturações e novos negócios urbanos. Em outras palavras, insistimos neste texto que a construção do Rodoanel não pode ser compreendida como uma questão meramente fisio e tecnocrática voltada a tráfego e fluxo pois se atrela à potência de proporções significativas da metrópole serem mobilizadas para a produção de novos ativos imobiliários, bem como para ampliação de perspectivas de ganhos frente à produção de novas condições locacionais na metrópole de São Paulo. Em suma, trata-se, logo, de associar a sua implantação inextricavelmente ao movimento exponencial da reprodução da metrópole que aciona sua condição de mobilizar a riqueza social capitalista frente às contradições essenciais a esta formação social.

Nesses termos, a restruturação potencial de São Paulo em processo, que admite a constituição de um novo anel de negócios imobiliários em uma nova escala metropolitana, conforme sinaliza Damiani (2008DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008.), envolve uma simultaneidade de momentos que estão amarrados à circulação de grandes proporções de riqueza socialmente produzida e altamente financeirizada (Botelho, 2012BOTELHO, Adriano. Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado: algumas notas sobre a dinâmica do urbano contemporâneo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 14, n. 28, p. 297-315, 2012.), calcada profundamente na propriedade privada da terra, mobilização esta que se revela particularmente pertinente em um momento que a acumulação propriamente se tornaria problemática. Criticamente, a urbanização segue o curso conduzida pela atualização que a produção do espaço promove à reprodução social capitalista, com suas contradições amplificadas. Desse ponto de vista, defendemos que a contradição mais elementar do capital, a saber, aquela relativa a sua crise de valorização, estaria contida na urbanização não mais como uma forma contingente e temporária, mas como um momento essencial da expansão urbana propriamente. Por essa razão, este artigo sugere que a produção de um território urbano permanentemente redefinido em razão das virtudes positivas do capital, no sentido de sua mobilização para a acumulação, embora relevante no decurso da modernização, já não seria a determinação do processo em curso, dadas prováveis repercussões da dessubstancialização do capital na reprodução social contemporânea, e logo, na produção do espaço da metrópole de São Paulo.11 11 A respeito desse processo de dessubstancialização do capital, Kurz (2019) circunscreve-o no desenvolvimento da contradição essencial do processo de valorização do valor: a redução relativa do trabalho variável (propriamente produtivo de mais-valia) frente ao capital constante em âmbito da produção geral capitalista. A desvinculação entre trabalho e dinheiro seria um desdobramento dessa contradição e se expressaria de forma cada vez mais crônica através da crescente financeirização com o qual a reprodução geral do capital hoje se entrelaça, na qual o peso do capital fictício lhe é um marco essencial. Os apontamentos neste texto sugerem que a produção do espaço, atravessada por complexos processos de financeirização da terra e do imobiliário, não estaria alheia a essa determinação nos dias atuais, sendo o ritmo e a dimensão das reestruturações urbanas um relevante desdobramento nesse sentido.

A esse respeito, podemos chamar atenção para um aspecto, entre outros possíveis, da dessubstancialização que adquire concreção na produção do espaço de São Paulo. É preciso reconhecer o peso do entrelaçamento entre propriedade privada e financeirização, logo, do capital fictício que adquire uma proporção cada vez mais significativa na produção do espaço frente às dificuldades de valorização no aspecto da reprodução global do capital. Neste sentido, o reconhecimento de uma gama de instrumentos financeiros que iluminam “o poder crescente das finanças de se apropriar de rendimentos oriundos da reestruturação das metrópoles” (Sanfelici, 2013SANFELICI, Daniel. Financeirização e a produção do espaço urbano no Brasil: uma contribuição ao debate. Revista EURE, v. 39, n. 118, p. 27-46, 2013., p. 36) pode ser compreendido no âmbito da relevância crescente do capital fictício na produção do espaço urbano. Harvey (2013HARVEY, Harvey. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 449) insiste que quanto mais capital excedente em circulação, “maior será a probabilidade de a terra ser absorvida na estrutura da circulação do capital em geral”. Considerando os indicativos de um limite interno à produção substancial de mais-valia na proporção do capital em circulação (Kurz, 2019KURZ, Robert. A ascensão do dinheiro aos céus: os limites estruturais da valorização do capital, o capitalismo de cassino e a crise financeira global. Geografares, n. 28, p. 55-115, 2019.) e a condenação crescente do trabalho futuro em função da própria terra (Harvey, 2013HARVEY, Harvey. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.), o movimento de produção do espaço urbano se localiza neste acirramento da contradição essencial da reprodução geral. Botelho (2016BOTELHO, Maurílio Lima. Renda da terra e capitalização em David Harvey. Notas sobre o caráter especulativo da propriedade imobiliária. Espaço e Economia, ano IV, n. 8, p. 1-21, 2016. https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.2273
https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.2...
) argumenta nesta direção:

A propriedade da terra poderia (...) ser descrita nos termos mais adequados como uma forma de capital a juros. Melhor dizendo: já que remete à antecipação de ganhos de longo prazo, que podem vir a ser produzidos ou nunca ser realizados, a propriedade da terra é a base mesma do capital fictício - a materialização monetária no presente de recursos, valores, que sequer existem ainda, amparado apenas na expectativa de sua realização futura. (Botelho, 2016BOTELHO, Maurílio Lima. Renda da terra e capitalização em David Harvey. Notas sobre o caráter especulativo da propriedade imobiliária. Espaço e Economia, ano IV, n. 8, p. 1-21, 2016. https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.2273
https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.2...
, p. 11).

A mobilização da terra urbana em escalas crescentes na produção do espaço urbano seria uma das repercussões relevantes da crise do capital no âmbito da urbanização da metrópole de São Paulo. A produção e intensificação de fronteiras urbanas, sendo a implantação do Rodoanel um momento relevante nesse sentido, anuncia um momento crítico cuja propriedade privada deve ser mobilizada, ao menos potencialmente, em patamares cada vez mais exacerbados, intensiva e extensivamente na produção do espaço metropolitano. Tal fenômeno pode ser compreendido no cerne da crise do trabalho ao se considerar o recrudescimento do trabalho produtivo em relação ao capital geral frente ao quadro do desenvolvimento das forças produtivas atuais.

Portanto, a dessubstancialização do capital não se apresenta como processo contingente, mas imanente e abrangente, e o momento atual exige reflexões a respeito da produção do espaço no interior dos limites alcançados pelo movimento abstrato do fim em si mesmo. Por essa razão, é preciso destacar que, nas condições contemporâneas, processos envoltos à (re)produção do espaço de São Paulo em relação à constituição de frentes urbanas das mais diversas naturezas - seja residencial, corporativas, logísticas, entre outras -, já não seriam a devida expressão adequada de um escape, mesmo que temporário, à crise de valorização do capital. A questão central que insistimos neste texto não seria a (re)produção do espaço, diante das determinações críticas da reprodução geral capitalista atual, um meio de uma alavancagem exponencial de acumulação, mas a expressão da crise de acumulação em processo. Seria uma forma de expressar a crise do capital em seus termos atualizados, conforme salienta Anselmo Alfredo:

(...) não se trata apenas de produzir um espaço que realize o mundo da mercadoria, mas, no âmbito da financeirização do capital, da expansão do capital fictício, na expressão de Marx, de o espaço repor, como representação, a ausência da alteridade da relação entre forma e conteúdo, onde, mesmo o trabalho, enquanto força de trabalho, como um momento material da abstração, perde centralidade nesta reprodução. (2013ALFREDO, Anselmo. Crítica à economia política do desenvolvimento e do espaço. São Paulo: Editora Annablume; FAPESP, 2013., p. 65).

Desse modo, refletir a respeito do nível intensivo e extensivo que o território de São Paulo potencialmente pode ser mobilizado economicamente hoje envolve considerar o caráter crítico desse processo. Por essa razão, a implantação do Rodoanel Mário Covas em São Paulo não deve ser entendida apenas em sua condição estrita de meio de circulação, mas na produção de novo perímetro de mobilização de terras que amplifica em um grau extraordinário a potência de exploração de territórios urbanos, cujo entrelaçamento entre capital financeiro e fictício são difíceis de quantificar dada sua presença massiva na produção do espaço urbano. A indicação é de que esse movimento se atrela sobretudo ao que remete sua crise substancial. A projeção de totalidade metropolitana se amplia estrategicamente, inserindo novas possibilidades de investimentos como possível escape a esse movimento crítico à produção do espaço de São Paulo. Como chama atenção Damiani, a concepção do anel viário em questão anuncia “uma noção de conjunto da área metropolitana a irrigar, economicamente” (2008DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008., p. 247).

Considerações Finais

A metrópole de São Paulo, constituindo-se perante a produção do espaço permanentemente ancorada nas abstrações da forma valor, se faz por arranjos espaciais que seriam expressões de uma crise que não deve ser compreendida como contingencial, mas expressa de forma cada vez mais profunda dadas as contradições internas do capital em sua operacionalidade. Nesse sentido, a exposição de Damiani (2008DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008., p. 234) a propósito dessa urbanização como crítica, imersa às diretrizes gerais do capital, revela-a como a “reiteração e atualização” do capital em sua reprodução como sujeito. Não sem razão, o desvelamento dessa realidade metropolitana deve ser necessariamente conduzir ao entendimento de um movimento incessante de reprodução de seu território que se aprofunda em relação aos fundamentos desta economia, a capitalista. Diante desses marcos, não se pode compreender a reprodução do espaço da metrópole de São Paulo como um quadro estático e momentâneo; é preciso pontuar que “altera-se o tempo todo o estado geral do urbano economizado” (Damiani, 2008DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008., p. 237).

Assim, sugerimos neste texto que os fundamentos trazidos pela atualização deste território urbano podem ser expostos e enriquecidos por momentos da metrópole que se associam enormemente aos novos patamares de circulação da riqueza sugerida pela implantação do Rodoanel Mário Covas. Por isso, enfatizou-se que os impasses relacionados à transferência da CEAGESP para um novo perímetro de São Paulo, nas medições do Rodoanel, revelam-se nas novas condições geográficas no interior da metrópole que se gestam desde sua concepção, um pretenso ajuste espacial visando fornecer as bases de uma crítica realização desta economia conjugada com a logística empresarial: seriam, assim, as condições tributárias de uma logística territorial atualizadas através da metrópole. Assim, a relatividade dos lugares reconduzida pela reprodução metropolitana em curso abre oportunidades a novos ativos imobiliários e a transformações de centralidades, em constituição ou já estabelecidas, amplificando as crises sociais, as mais variadas, contidas na urbanização. A problemática na qual se insere a situação geográfica do Entreposto da CEAGEP, tanto a presente quanto a futura, envolve, assim, os novos termos que se anunciam a partir da (re)produção do espaço de São Paulo, cuja potência a varrer usos e moradores adquire novas escalas.

References

  • ALFREDO, Anselmo. Crítica à economia política do desenvolvimento e do espaço. São Paulo: Editora Annablume; FAPESP, 2013.
  • BOTELHO, Adriano. Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado: algumas notas sobre a dinâmica do urbano contemporâneo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 14, n. 28, p. 297-315, 2012.
  • BOTELHO, Maurílio Lima. Renda da terra e capitalização em David Harvey. Notas sobre o caráter especulativo da propriedade imobiliária. Espaço e Economia, ano IV, n. 8, p. 1-21, 2016. https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.2273
    » https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.2273
  • CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: FFLCH/USP, 2007.
  • CEAGESP. Mudança da CEAGESP vai muito além de encontrar um endereço novo. 24 jun. 2015. Disponível em: Disponível em: https://ceagesp.gov.br/comunicacao/noticias/mudanca-da-ceagesp-vai-muito-alem-de-encontrar-um-endereco-novo/ Acesso em: 10 fev. 2020.
    » https://ceagesp.gov.br/comunicacao/noticias/mudanca-da-ceagesp-vai-muito-alem-de-encontrar-um-endereco-novo/
  • COSTA, Rene. Impactos sobre remanescentes de mata atlântica na zona oeste da Grande São Paulo: um estudo de caso da mata da Fazenda TIZO. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Geografia Física, Universidade de São Paulo, 2006.
  • DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e geografia: observações de método. elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008.
  • GOMES, Sueli de Castro. O território de trabalho dos carregadores piauienses no Terminal da CEAGESP: modernização, mobilização e migração. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2007.
  • HARVEY, Harvey. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • KURZ, Robert. A ascensão do dinheiro aos céus: os limites estruturais da valorização do capital, o capitalismo de cassino e a crise financeira global. Geografares, n. 28, p. 55-115, 2019.
  • LA CORTE, Judith de. Abastecimento da cidade de São Paulo em produtos hortifrutícolas: problemas e métodos de um estudo. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 52, p. 30-54, 1976.
  • LANGENBUCH. Juergen Richard. A estruturação da Grande São Paulo: um estudo de geografia urbana. Rio de Janeiro: IBGE, 1971.
  • LEFEBVRE, Henri. La producción del espacio. Madrid: Capitán Swing, 2013.
  • JUNQUEIRA, Gustavo Diniz. Modernização do abastecimento alimentar. Agroanalysis, Rio de Janeiro, v. 39, n. 11, 2019.
  • MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um plano de avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1930.
  • MARTINS, Flavia Elaine Silva. A (re)produção da escala metropolitana: um estudo sobre a abertura de capitais nas incorporadoras e sobre o endividamento imobiliário urbano em São Paulo. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.
  • MACEDO, Letícia. Haddad quer que novo bairro na Ceagesp tenha “várias faixas de renda”. G1 São Paulo. 31 mar. 2015. Disponível em: Disponível em: http://glo.bo/1xTr0We Acesso em 30 nov. 2018.
    » http://glo.bo/1xTr0We
  • PÁDUA, Rafael Faleiros. Produção e consumo do lugar: espaços de desindustrialização na reprodução da metrópole. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.
  • PEREIRA, Sérgio Aparecido Rodrigues. Vila Leopoldina e Ceagesp: urb“animosidades”. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 203.03, 2017. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6570
    » https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6570
  • QUINTELLA, Sérgio. Na Zona Oeste, moradores de condomínios se unem contra habitação popular. Veja São Paulo. 14 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.vejasp.abril.com.br/cidades/vila-leopoldina-habitacao-popular-polemica/ Acesso em 18 jun. 2022.
    » http://www.vejasp.abril.com.br/cidades/vila-leopoldina-habitacao-popular-polemica/
  • RODRIGUES, Lígia Rocha. Territórios invisíveis na Vila Leopoldina: Permanência, ruptura e resistência na cidade. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2013.
  • SANFELICI, Daniel. Financeirização e a produção do espaço urbano no Brasil: uma contribuição ao debate. Revista EURE, v. 39, n. 118, p. 27-46, 2013.
  • SANTOS, Milton Santos. Por uma economia política da cidade - O caso de São Paulo. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2012.
  • SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os meandros dos rios nos meandros do poder - Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1987.
  • SILVA Junior, Roberto França da. Circulação e logística territorial: a instância do espaço e circulação corporativa. Tese (Doutorado) -Programa de Pós-Graduação em Geografa, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2009.
  • SILVEIRA, Márcio Rogério. Geografia da Circulação, Transportes e Logística: construção epistemológica e perspectivas. In: SILVEIRA, Márcio Rogério (org.). Circulação, transportes e logística - Diferentes perspectivas. São Paulo: Outras Expressões, 2011. p. 21-68.
  • 1
    Importante ressaltar preliminarmente que as transformações de São Paulo, na condição de cidade mundial ao final do século passado, exigiram a necessária produção de espaço adequado à nova economia urbana que se estabelecia. O eixo sudoeste de São Paulo consolidou-se como a centralidade produzida por esse novo movimento, nos termos da produção de uma nova inserção funcional na metrópole, na condição de um “eixo empresarial” atualizado à virada do século XX para o XXI. A respeito dessas transformações, Carlos (2007CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: FFLCH/USP, 2007.) apresenta com riqueza fundamentos e desdobramentos da produção dessa moderna centralidade em São Paulo.
  • 2
    A possível privatização da Companhia ganha contornos com a sua federalização em 1997, momento em que a inserem no Plano Nacional de Desestatização (PND). Após anos de suspensão dos planos de sua privatização, em 2019, com João Dória, como governador de SP, e Jair Bolsonaro, presidente, criava-se um momento propício para acordo celebrado por Junqueira em relação a sua entrega à iniciativa privada. No entanto, após discordâncias entre o ex-governador e o ex-presidente, a propalada privatização foi mais uma vez suspensa.
  • 3
    O Parque Urbano de conservação ambiental TIZO foi instituído através do decreto estadual nº 50.597 de 27 de março de 2006. Em 5 de março de 2013, o decreto nº 59.259 altera o seu nome para Parque Jequitibá.
  • 4
    Langenbuch, a respeito da indústria que se expande na urbanização de São Paulo em meados do século XX, apresenta uma relação com o novo padrão de circulação rodoviário, atualizando a lógica da localização industrial. Dessa forma, segundo o autor, as autoestradas “passaram a desempenhar uma relação às indústrias o papel de fator locacional anteriormente desempenhado pelas ferrovias” (Langenbuch, 1971LANGENBUCH. Juergen Richard. A estruturação da Grande São Paulo: um estudo de geografia urbana. Rio de Janeiro: IBGE, 1971., p. 213). Essa transformação já estava concebida em certo grau por Prestes Maia em seu Plano de Avenidas em 1930, que previa o “aproveitamento dos valles para arterias rápidas, com separação dos trafegos local e de passagem” (Maia, 1930MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um plano de avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1930., p.116). Mais especificamente, junto às marginais se projetava a produção de um espaço capaz de constituir-se como zona industrial, promovendo assim a reestruturação exigida pela São Paulo moderna através da incorporação das várzeas do Tietê e Pinheiros. A respeito dessa questão, alega: “Não possuimos, como as velhas cidades européas, fortificações e muralhas que proporcionem rings espaçosos pela simples demolição. Em troca deu-nos a natureza os dous rios que banham a cidade, dos quaes é mistér tirar o melhor partido” (Maia, 1930MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um plano de avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1930., p.126).
  • 5
    A CEASA em São Paulo, instalada em 1966, ao fundir com a Companhia de Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (CAGESP) em 1969, deu origem à CEAGESP.
  • 6
    Outro aspecto a se destacar é a uniformidade de distribuição de alguns produtos perecíveis, fato que a existência da CEASA contribuiu em grande medida (La Corte, 1976LA CORTE, Judith de. Abastecimento da cidade de São Paulo em produtos hortifrutícolas: problemas e métodos de um estudo. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 52, p. 30-54, 1976., p. 40).
  • 7
    Importante apontar que em torno da instalação da CEAGESP havia a busca de trabalho em suas mediações, resultando em um atrativo para o morador-trabalhador de São Paulo que conseguia, dentro de suas possibilidades, se inserir no circuito econômico da mercadoria alimento. Portanto, a CEAGESP implica mobilidade do trabalho cuja materialidade se apresenta em comunidades, conjuntos habitacionais, albergues, associação de catadores que possuem grandes vínculos com atividades relativas ao funcionamento do Entreposto, como revela a pesquisa de Gomes (2007GOMES, Sueli de Castro. O território de trabalho dos carregadores piauienses no Terminal da CEAGESP: modernização, mobilização e migração. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2007.).
  • 8
    Rodrigues (2013RODRIGUES, Lígia Rocha. Territórios invisíveis na Vila Leopoldina: Permanência, ruptura e resistência na cidade. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2013., p. 209) apresentou alguns perfis de condomínios cujos apartamentos chegam a superar a dimensão de 250 m² e valor de mercado de mais de R$ 2.500.000,00.
  • 9
    A esse respeito, destaca-se o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Vila Leopoldina - Vila Lobos, aprovado na câmara em 2021, buscando requalificar e reestruturar uma área contígua à CEAGESP de aproximadamente 300 mil m². Dentre as inúmeras diretrizes formais do Projeto, destaca-se o incentivo à construção de Habitação de Interesse Social (HIS) para os moradores de comunidades das medições, em especial a da Linha e a do Nove. No entanto, já se apresentam movimentos de moradores contrários à construção de HIS’s na área, justificando-se como uma reivindicação contra a “degradação” do bairro. Isso anuncia alguns dos termos dos conflitos que se darão em meio às transformações socioespaciais nas mediações da CEAGESP. A esse respeito, ver Quintella (2020QUINTELLA, Sérgio. Na Zona Oeste, moradores de condomínios se unem contra habitação popular. Veja São Paulo. 14 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.vejasp.abril.com.br/cidades/vila-leopoldina-habitacao-popular-polemica/ . Acesso em 18 jun. 2022.
    http://www.vejasp.abril.com.br/cidades/v...
    ).
  • 10
    Para Silva Junior (2009SILVA Junior, Roberto França da. Circulação e logística territorial: a instância do espaço e circulação corporativa. Tese (Doutorado) -Programa de Pós-Graduação em Geografa, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2009., p. 263), “a logística territorial (...) é uma ação no território, a partir de agentes corporativos, que detém uma inteligência sobre o território, utilizando sistemas de engenharia públicos e privados, bem como todos os demais componentes da circulação, técnicos e normativos”.
  • 11
    A respeito desse processo de dessubstancialização do capital, Kurz (2019KURZ, Robert. A ascensão do dinheiro aos céus: os limites estruturais da valorização do capital, o capitalismo de cassino e a crise financeira global. Geografares, n. 28, p. 55-115, 2019.) circunscreve-o no desenvolvimento da contradição essencial do processo de valorização do valor: a redução relativa do trabalho variável (propriamente produtivo de mais-valia) frente ao capital constante em âmbito da produção geral capitalista. A desvinculação entre trabalho e dinheiro seria um desdobramento dessa contradição e se expressaria de forma cada vez mais crônica através da crescente financeirização com o qual a reprodução geral do capital hoje se entrelaça, na qual o peso do capital fictício lhe é um marco essencial. Os apontamentos neste texto sugerem que a produção do espaço, atravessada por complexos processos de financeirização da terra e do imobiliário, não estaria alheia a essa determinação nos dias atuais, sendo o ritmo e a dimensão das reestruturações urbanas um relevante desdobramento nesse sentido.

Editado por

Editor do artigo:

César Simoni Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2023
  • Aceito
    29 Set 2023
Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Cidade Universitária, São Paulo , SP - Brasil. Cep: 05339-970, Tels: 3091-3769 / 3091-0297 / 3091-0296 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistageousp@usp.br