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Os guardadores de carros e a apropriação de espaço na cidade de Maputo, Moçambique

Car guarding and the appropriation of space in Maputo City, Mozambique

Los cuidadores de vehículos y la apropiación del espacio en la cuidad de Maputo, Mozambique

Resumo

A produção do espaço urbano na cidade de Maputo é resultado de uma ação combinada dos dois circuitos da economia urbana. É a partir do circuito inferior que as famílias precariamente incluídas no sistema capitalista se (re)produzem. O foco do artigo é entender como o desenvolvimento de determinadas atividades, como as de guardar carros, se tornam parte importante para a (re)produção social de segmentos da população deficientemente incluídas na dinâmica urbana. Procura-se igualmente, compreender como, a partir dos processos de apropriação de espaços, esboçam-se formas de (re)existência. Apreender-se-ão essas dinâmicas tendo como base teórico-metodológica a abordagem da produção dos “territórios do território”, associados aos dois circuitos da economia urbana. Os resultados da pesquisa mostram que os guardadores de carros produzem os seus territórios no território da cidade de Maputo como uma forma de sobrevivência. A partir da apropriação de frações de ruas ou avenidas, os guardadores de carros desenvolvem atividades do circuito inferior, evidenciando a importância deste na produção da cidade, principalmente em países da periferia.

Palavras-chave:
Economia urbana; Territorialidade; Guardadores de carros; Cidade de Maputo.

Abstract

The production of urban space in Maputo city is result of two combined circuits of the urban economy. Families precariously integrated in the capitalist system are (re)produced through the lower circuit. This article explores how the development of certain activities, such as car guarding, become an important part of the social (re)production of segments of the population that are weakly included in urban dynamics. Yet, through these activities workers appropriate spaces to outline new forms of (re)existence. I examine these dynamics based on the theoretical and methodological approach to the production of “territories of the territory” associated with two circuits of the urban economy. The data shows that, as livelihood strategy, the car guarding produce their own micro-territories within the territory of the Maputo city. This is possible through the appropriation of fractions of street and avenues, in which the car guarding produce lower circuit activities, highlighting its relevance on the production of the city in developing countries such as Mozambique.

Keywords:
Urban economy; Territoriality; Car guarding; Maputo city

Resumen

La producción del espacio urbano en la ciudad de Maputo es resultado de una acción combinada de dos circuitos de la economía urbana, Es, a partir del circuito inferior, que las familias precariamente incluidas en el sistema capitalista se (re)producen. El foco del artículo es comprender como el desarrollo de ciertas actividades, como las de cuidar los vehículos, se tornan parte importante para la (re)producción social de seguimientos de la populación deficientemente incluidas en la dinámica urbana. Se procura, igualmente, comprender como a partir de los procelosos de apropiación de los espacios se esbozan formas de (re)existencia. Con esas dinámicas se aprenderá teniendo como base teórica-metodológica la analice de la producción de los territorios del territorio, asociados a dos circuitos de la economía urbana. Los resultados de la pesquisa muestran que los cuidadores de vehículos producen sus territorios en el territorio de la ciudad de Maputo, como una forma de sobrevivencia. A partir de la apropiación de fracciones de las calles o avenidas, los cuidadores de vehículos desarrollan actividades del circuito inferior, evidenciado la importancia de la producción de la ciudad en países de la prefería.

Palabras-clave:
Economía urbana; Territorialidad; Cuidadores de vehículos; Cuidad de Maputo

Introdução

Em países periféricos como Moçambique, o processo de modernização resultou na sua precária integração. A sua incorporação foi deficiente e também seletiva, em função dos interesses que comandam as lógicas do capital internacional, fomentando formas de organização espacial e de integração socioeconômica ajustadas às condições locais e (re)produzidas pelo mesmo processo.

A história de domínio e ocupação de territórios africanos significou a extensão da modernidade a esses espaços. A sua inserção numa economia ocidental, própria de um tempo e espaço distante, forjou quase sempre duas lógicas, no mínimo combinantes, de produção de espaços. As mesmas não eram desassociadas, mas complementares e próprias de um modelo que, como referem Haesbaert (2012HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.) e Harvey (2006HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006., 2012HARVEY, D. O novo imperialismo. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012), não excluem, mas as coloca ao seu alcance (tanto no tempo assim como no espaço).

À margem do processo da modernização, surgiam, nos países da África subsaariana, formas e lógicas estranhas ou marginalizadas (Francisco; Paulo, 2006FRANCISCO, A. A. S.; PAULO, M. Impacto da economia informal na protecção social, pobreza e exclusão: a dimensão oculta da informalidade em Moçambique. Maputo: Cruzeiro do Sul/Centro de Estudos Africanos, 2006.; Abreu, 2007ABREU, A. P. Sector informal, microfinanças e empresariado nacional em Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos, n. 11-12|, p. 39-54, 2007. doi: https://doi.org/10.4000/cea.930.
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; Mosca, 2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009.). Essa leitura parece defender que essas formas não são resultantes dos vetores da modernização, o que não é corroborado por autores como Santos (2004SANTOS, M. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2. ed. São Paulo, 2004.), Charmes (1997CHARMES, J. O sector informal na África: um crescimento que não significa marginalização. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 64-69, 1997.) e Amaral (2005AMARAL, I. Importância do sector informal da economia urbana em países da África Subsariana. Finisterra, Lisboa, v. 15, n. 79, p. 53-72, 2005.), que o entendem como corolário da própria modernização ou, como defendem Latouche (2013LATOUCHE, S. A África pode contribuir para resolver a crise do ocidente? Espaço Plural, v. 14, n. 28, p. 175-197, 2013.) e Morgado (2011MORGADO, P. Estratégias de sobrevivência Songhay-Zarma (Níger): trajectórias económicas de uma outra modernidade. E-cadernos CES, n. 12, 2011. doi: https://doi.org/10.4000/eces.690.
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), ajustamento a uma precária inclusão. Independentemente da leitura que se adopte, as sequelas são os caminhos que permitem a (re)produção das famílias carentes em sociedades consideradas em desenvolvimento. O artigo procura entender como se processam essas formas de (re)produção, materializadas nos processos de apropriação de espaços por segmentos de população precariamente incluídas na dinâmica urbana.

O exercício que se pretende desenvolver neste artigo combina o processo de apropriação do espaço, a partir de territorialidades existentes no espaço urbano, com o desenvolvimento de atividades do circuito inferior, responsáveis por produzir dinâmicas próprias para a sobrevivência de determinadas famílias em espaços urbanos dos países periféricos. A partir das atividades concebidas pelos guardadores de carros na baixa da cidade de Maputo (Moçambique) pretendemos entender como a construção dos territórios do território (Fernandes, 2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302.) passa a ser uma forma de (re)existência das famílias carentes moçambicanas, ou seja, buscamos compreender como as atividades do circuito inferior se materializam nos espaços urbanos moçambicanos muitas vezes associados à produção de microterritórios (Heidrich, 2009HEIDRICH, A. L. Conflitos territoriais na estratégia de preservação da natureza. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (Org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular , 2009. p. 271-290.). Apreendemos essas dinâmicas tendo como base teórico-metodológica a abordagem da produção de territórios a partir da territorialidade (Sack, 2011SACK, R. D. O significado de territorialidade. In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (Org.). Territorialidades humanas e redes sociais. Florianópolis: Insular, 2011. p. 63-89.), associadas aos dois circuitos da economia (Santos, 2004SANTOS, M. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2. ed. São Paulo, 2004.). Tomaram-se entrevistas a sete guardadores de carros na baixa da cidade de Maputo (avenida Karl Marx, rua Consigliere Pedroso, rua da Imprensa e rua de Timor Leste), num período de cinco meses. Os resultados dessas entrevistas ajudaram a compreender como a produção de territórios fixos e fluxos (Mattos; Ribeiro, 1994MATTOS, R. B.; RIBEIRO, M. A. C. Territórios da prostituição nos espaços públicos da área central do Rio de Janeiro. Revista Geográfica, n. 120, p. 59-78, 1994. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/40992695 . Acesso em: 14 dez. 2021.
https://www.jstor.org/stable/40992695...
; Fernandes, 2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302., 2009FERNANDES, B. M. Sobre a tipologia dos territórios. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (Org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular: 2009. p. 197-215.) permitiu a produção de microterritórios ao serviço do circuito inferior e responsáveis por atender a determinado segmento populacional que se encontra precariamente incluído na produção da cidade de Maputo (Mapa 1).

Mapa 1 -
Localização da cidade de Maputo

O circuito inferior na cidade de Maputo

A teoria dos dois circuitos da economia urbana nos países em desenvolvimento foi concebida por Milton Santos, no livro O espaço dividido, publicado em 1979. Aí o autor desenvolve e aperfeiçoa a sua proposta teórica para entender como funcionava a dinâmica dos espaços urbanos. Santos (2004SANTOS, M. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2. ed. São Paulo, 2004.) considera que a dinâmica econômica nos países em desenvolvimento, e consequentemente a produção do espaço, pode ser apreendida a partir do funcionamento dos dois circuitos da economia, sendo que o Circuito Superior seria o resultado da modernização tecnológica e responsável pela difusão da lógica do capitalismo. O circuito inferior seria também o efeito da modernização tecnológica, mas destinada principalmente aos segmentos populacionais que se beneficiam parcialmente da modernização ou estão precariamente incluídas nela.

A abordagem apresentada por Santos (2004SANTOS, M. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2. ed. São Paulo, 2004.) parece adequada para entender a produção do espaço urbano em cidades africanas como Maputo, dominada por formas de organização do espaço que se reproduzem à margem ou mesmo ao largo da modernização (Francisco; Paulo, 2006FRANCISCO, A. A. S.; PAULO, M. Impacto da economia informal na protecção social, pobreza e exclusão: a dimensão oculta da informalidade em Moçambique. Maputo: Cruzeiro do Sul/Centro de Estudos Africanos, 2006.; Abreu, 2007ABREU, A. P. Sector informal, microfinanças e empresariado nacional em Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos, n. 11-12|, p. 39-54, 2007. doi: https://doi.org/10.4000/cea.930.
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; Mosca, 2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009.). Santos (2004SANTOS, M. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2. ed. São Paulo, 2004.) demonstra que era preciso compreender a produção do espaço urbano dos países periféricos não como um processo estranho à modernização, mas como resultado dela.

Esta abordagem de interpretação da produção das cidades periféricas ampara a compreensão da dinâmica do capitalismo, que para David Harvey (2006HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006., 2012HARVEY, D. O novo imperialismo. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012) é um sistema inteligente e que precisa continuamente de espaços por onde continuar a obter a mais-valia. A estratégia obriga o sistema a não excluir determinados espaços, mas a incluí-los, debilmente, para que o possa incorporar de tempos em tempo. A lógica de funcionamento foi perfeitamente captada por Milton Santos, que na sua publicação reconheceu que a sua anterior abordagem estava equivocada. Santos (2004SANTOS, M. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2. ed. São Paulo, 2004.) defendeu que naquela interpretação da produção do espaço urbano nos países periféricos, em que considerava existir duas lógicas diferenciadas e separadas, sendo uma a tradicional e a outra a moderna, não davam conta para assimilar a dinâmica da economia urbana, já que a lógica tradicional era, igualmente, resultado da lógica moderna, sendo por isso difícil de compreender separando-as, visto que a origem era a mesma, mas os efeitos se ajustavam espacialmente e temporalmente.

Analisando o funcionamento da economia nos espaços urbanos dos países periféricos (Charmes, 1997CHARMES, J. O sector informal na África: um crescimento que não significa marginalização. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 64-69, 1997.; Amaral, 2005AMARAL, I. Importância do sector informal da economia urbana em países da África Subsariana. Finisterra, Lisboa, v. 15, n. 79, p. 53-72, 2005.; Mosca, 2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009.; Morgado, 2011MORGADO, P. Estratégias de sobrevivência Songhay-Zarma (Níger): trajectórias económicas de uma outra modernidade. E-cadernos CES, n. 12, 2011. doi: https://doi.org/10.4000/eces.690.
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) constata-se uma dinâmica bastante diferente daquela que caracteriza os espaços urbanos ocidentais, onde se verifica predominantemente o funcionamento do circuito superior. Nas cidades dos países periféricos, proliferam atividades que (i) não dependem de um capital intensivo e nem de crédito institucional, (ii) o seu início não demanda alto capital, (iii) absorvem um número significativo de trabalhadores e sem contratos formais, (iv) apresentam uma organização ainda próxima da primitiva e (v) não demandam crédito institucional, podendo recorrer à solidariedade comunitária ou familiar. São atividades desenvolvidas para garantir a sua sobrevivência.

Essa forma de produção do espaço urbano em países periféricos condicionou o tipo de dinâmica econômica ajustada ao contexto socioespacial que foi chamado por alguns autores de economia da informalidade1 1 Mosca (2009, p. 5) entende por informalidade “todas as relações de natureza econômica, jurídica, sociais ou burocráticas que não estando reguladas parcialmente ou totalmente, existem e fazem parte das regras de funcionamento de uma sociedade e contribuem para que os padrões de reprodução da sociedade e economia persistam”. (Silva, 2002SILVA, T. C. Determinantes globais e locais na emergência de solidariedades sociais: o caso do sector informal nas áreas periurbanas da cidade de Maputo. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 75-89, 2002. doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1260.
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; Francisco; Paulo, 2006FRANCISCO, A. A. S.; PAULO, M. Impacto da economia informal na protecção social, pobreza e exclusão: a dimensão oculta da informalidade em Moçambique. Maputo: Cruzeiro do Sul/Centro de Estudos Africanos, 2006.; Abreu, 2007ABREU, A. P. Sector informal, microfinanças e empresariado nacional em Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos, n. 11-12|, p. 39-54, 2007. doi: https://doi.org/10.4000/cea.930.
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; Mosca, 2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009.) ou de economia de débrouille2 2 “O milagre da sobrevivência da África Subsaariana se resume numa única palavra: a economia de débrouille. Assim é chamado o conjunto de pequenas empresas e de artesãos que trabalham para a clientela popular [...] Teríamos desta forma um viveiro de ‘empresários de pés descalços’ vivendo da astúcia no centro do planeta dos excluídos graças ao desenvolvimento de uma atividade quase profissional. É o núcleo central do sector informal das análises da maior parte dos economistas” (Latouche, 2013, p. 176-177). (Latouche, 2013LATOUCHE, S. A África pode contribuir para resolver a crise do ocidente? Espaço Plural, v. 14, n. 28, p. 175-197, 2013.). O primeiro grupo de autores considera esse processo um mal para as sociedades, pois se desenvolve por um processo marginal, de luta constante para não se adequar ao formal e, consequentemente, à modernização. Autores como Amaral (2005AMARAL, I. Importância do sector informal da economia urbana em países da África Subsariana. Finisterra, Lisboa, v. 15, n. 79, p. 53-72, 2005.), Morgado (2011MORGADO, P. Estratégias de sobrevivência Songhay-Zarma (Níger): trajectórias económicas de uma outra modernidade. E-cadernos CES, n. 12, 2011. doi: https://doi.org/10.4000/eces.690.
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) e Latouche (2013LATOUCHE, S. A África pode contribuir para resolver a crise do ocidente? Espaço Plural, v. 14, n. 28, p. 175-197, 2013.) consideram ser essa a forma de produção do espaço urbano que se ajusta à realidade desses países, que resistem a um sistema que cria exclusão e desigualdades no acesso aos recursos e serviços disponíveis. São sociedades em que os laços de solidariedade resistem à invasão do individualismo.

A ideia de compreender a produção da cidade de Maputo a partir do circuito inferior é a forma mais adequada, pois permitirá apreender, a partir de um processo de modernização da cidade, que teve como uma das suas repercussões o surgimento da informalidade, que se atrela ao circuito inferior. Alguns estudos realizados em cidades moçambicanas, com destaque para a cidade de Maputo - cidade capital, demonstram a proliferação da informalidade a partir da introdução das Políticas de Reajustamento Estrutural (PRE), fomentadas pelas instituições de Breton Woods (Silva, 2002SILVA, T. C. Determinantes globais e locais na emergência de solidariedades sociais: o caso do sector informal nas áreas periurbanas da cidade de Maputo. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 75-89, 2002. doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1260.
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; Francisco e Paulo, 2006FRANCISCO, A. A. S.; PAULO, M. Impacto da economia informal na protecção social, pobreza e exclusão: a dimensão oculta da informalidade em Moçambique. Maputo: Cruzeiro do Sul/Centro de Estudos Africanos, 2006.; Paulo; Rosário; Tvedten, 2007PAULO, M.; ROSÁRIO, C.; TVEDTEN, I. “Xiculungo”: relações sociais da pobreza urbana em Maputo, Moçambique. CMI Relatório. [S.l.]: Austral Cowi/UEM/CMI, 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/12623289/Xiculungo_Rela%C3%A7%C3%B5es_Sociais_da_Pobreza_Urbana_em_Maputo_Mo%C3%A7ambique . Acesso em: 14 dez. 2021.
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; Abreu, 2007ABREU, A. P. Sector informal, microfinanças e empresariado nacional em Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos, n. 11-12|, p. 39-54, 2007. doi: https://doi.org/10.4000/cea.930.
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; Mosca, 2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009.). Os estudos evidenciam que a crise econômica vivenciada nos anos 1980, que consequentemente conduziu a adopção de políticas neoliberais, contribuiu para o despoletar dessa forma de sobrevivência como parte de um processo de organização socioeconômica.

O avanço da informalidade da economia, que significou a implantação e consolidação do circuito inferior, está associado aos vectores da modernização. É importante realçar que, apesar de consideramos a década de 1980 um marco importante da massificação da informalidade no país, principalmente nos espaços urbanos, um estudo da CMI (2013CMI. CHR. MICHELSEN INSTITUTE. Resumo de política II: género, classe e espaço em Maputo, Moçambique. CMI Resumo, v. 12, n. 7, p. 1-4, 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.cmi.no/publications/file/5041-genero-classe-e-espaco-em-maputo-mocambique.pdf . Acesso em: 14 dez. 2021.
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) apresenta um percurso histórico com início na década de 1960, quando o processo de povoamento de portugueses no país se intensificou e se consolidava a política do Estado português. Este resgate histórico demonstra que a modernização tecnológica, transplantada por Portugal a Moçambique, foi responsável pelo introito do circuito inferior, com implicações no nível da produção do espaço urbano, ou seja, produzindo o espaço dual trabalhado por Araújo (1999ARAÚJO, M. G. M. A cidade de Maputo. Espaços contrastantes: do urbano ao rural. Finisterra, Lisboa, v. 34, n. 67/68, p. 175-190, 1999., 2003ARAÚJO, M. G. M. Os espaços urbanos em Moçambique. Geousp - Espaço e Tempo, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 165-182, 2003. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2003.123846.
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).

As formas de (re)existência adoptadas por um segmento populacional precariamente incluído na modernização do Estado moçambicano foram, durante muito tempo (logo após a independência e durante a década de 1980), combatidas por ser consideradas como os males da sociedade e contrárias ao processo de modernização em curso. A esse respeito, Francisco e Paulo (2006FRANCISCO, A. A. S.; PAULO, M. Impacto da economia informal na protecção social, pobreza e exclusão: a dimensão oculta da informalidade em Moçambique. Maputo: Cruzeiro do Sul/Centro de Estudos Africanos, 2006., p. 28) referem que, “em muitos casos, na primeira década da independência,3 3 Moçambique tornou-se independente em 1975. a informalidade assumiu como uma informalidade oculta, não tolerada e fortemente reprimida, o que na linguagem vulgar se diz cadonga”.

Mais tarde, com a adopção das políticas neoliberais, que de certa forma implicaram uma reforma econômica severa, com impactos profundos no nível do emprego (formal), formas de sobrevivências, ajustadas ao novo modelo econômico passaram a ser toleradas, mesmo consideradas contrárias ao processo de modernização (Silva, 2002SILVA, T. C. Determinantes globais e locais na emergência de solidariedades sociais: o caso do sector informal nas áreas periurbanas da cidade de Maputo. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 75-89, 2002. doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1260.
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; Francisco; Paulo, 2006FRANCISCO, A. A. S.; PAULO, M. Impacto da economia informal na protecção social, pobreza e exclusão: a dimensão oculta da informalidade em Moçambique. Maputo: Cruzeiro do Sul/Centro de Estudos Africanos, 2006.; Paulo; Rosário; Tvedten, 2007PAULO, M.; ROSÁRIO, C.; TVEDTEN, I. “Xiculungo”: relações sociais da pobreza urbana em Maputo, Moçambique. CMI Relatório. [S.l.]: Austral Cowi/UEM/CMI, 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/12623289/Xiculungo_Rela%C3%A7%C3%B5es_Sociais_da_Pobreza_Urbana_em_Maputo_Mo%C3%A7ambique . Acesso em: 14 dez. 2021.
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; Abreu, 2007ABREU, A. P. Sector informal, microfinanças e empresariado nacional em Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos, n. 11-12|, p. 39-54, 2007. doi: https://doi.org/10.4000/cea.930.
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; Mosca, 2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009.).

Ao longo do tempo, atividades do circuito inferior foram se consolidando, refletindo-se nas formas de produção do espaço urbano, consideradas informais pelas autoridades municipais, todavia mostrando-se incapazes de contê-la. Essa forma de produção e apropriação da cidade, tolerada, mas considerada não regulamentada (não prevista na lei) e/ou não licenciada (não autorizada), foi ganhando alicerces e se ajustando ao circuito superior. A necessidade de colocar a cidade de Maputo na rota da mais-valia internacional não foi capaz de eliminar, ou mesmo, de reduzir significativamente a influência do circuito inferior na produção do espaço. As duas formas de organização do espaço passaram a conviver e se interalimentando, em prol de um processo que sobrevive na cidade de Maputo graças à convivência “pacifica”4 4 Mosca (2009, p. 15) afirma que a informalidade vive do “formal”, sendo esta parte importante para a reprodução daquela. Para o autor, “[...] as informalidades maiores, mais graves e com as piores consequências, encontram-se dentro do sistema ‘formal’ da economia e da administração”. entre os dois circuitos da economia.

Não seria possível entender o funcionamento do circuito inferior da economia urbana na cidade de Maputo sem a compreensão da lógica de funcionamento do circuito superior. Em outras palavras, é necessário que o circuito superior exista para garantir a comparência do circuito inferior, ou vice-versa. O circuito superior, construído socialmente como o caminho a ser trilhado, tem o apoio do Estado, reproduzindo-se, sempre que necessário, sobre o circuito inferior.

Para entender esse funcionamento, seria interessante compreender a organização do espaço urbano moçambicano, com ênfase em Maputo. Araújo (1999ARAÚJO, M. G. M. A cidade de Maputo. Espaços contrastantes: do urbano ao rural. Finisterra, Lisboa, v. 34, n. 67/68, p. 175-190, 1999., 2003ARAÚJO, M. G. M. Os espaços urbanos em Moçambique. Geousp - Espaço e Tempo, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 165-182, 2003. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2003.123846.
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) já demonstrava o caráter dual da cidade e dos espaços urbanos moçambicanos. Analisando a organização dos espaços urbanos moçambicanos, Araújo (2003ARAÚJO, M. G. M. Os espaços urbanos em Moçambique. Geousp - Espaço e Tempo, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 165-182, 2003. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2003.123846.
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) evidenciou que o processo histórico de sua produção criava, sempre, uma periferia, daí que as cidades moçambicanas eram duais (Mapa 1). Num primeiro momento, resultante da colonização, as cidades eram constituídas por dois anéis, sendo a área central, considerada de cidade de cimento, com todas as características que uma cidade ocidental deveria ter. Em volta desse anel se constituía a cidade de caniço (suburbana), produzida de acordo com as formas e lógicas locais, mas sendo parte da construção do espaço urbano total que não poderia sobreviver sem o anel precariamente inserido.

O alcance da independência, que também significou a abertura do primeiro anel à população nativa, permitiu produzir um espaço urbano que mantinha a estrutura e a forma anterior, mas com (acréscimo de) novos conteúdos, resultantes de novos processos e possíveis novas funções. Essa nova realidade socioeconômica e política permitiu o surgimento de um novo anel, designado por Araújo (2003ARAÚJO, M. G. M. Os espaços urbanos em Moçambique. Geousp - Espaço e Tempo, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 165-182, 2003. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2003.123846.
https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892....
) área periurbana, localizado a seguir à área suburbana. A produção do espaço urbano, dividido, mas integrado, acomodava o funcionamento do circuito inferior que ia se apossando da cidade, tendo em conta a sua articulação com o circuito superior.

As formas de produção da cidade de Maputo iam sendo dominadas pelo circuito inferior, mas diferenciando-se, em termos de sua atuação, em cada um desses anéis. Na cidade de cimento, é evidente uma mistura do funcionamento dos dois circuitos, com maior atuação do poder público, favorável ao circuito superior, sempre que os seus interesses são colocados em questão. Nos outros dois anéis, muitas vezes (re)produzidos à moda local, apresentam-se dominados pelo circuito inferior e com fraca participação do poder público. Essas realidades, bem desenvolvidas por Araújo (1999ARAÚJO, M. G. M. A cidade de Maputo. Espaços contrastantes: do urbano ao rural. Finisterra, Lisboa, v. 34, n. 67/68, p. 175-190, 1999., 2003) em termos de organização socioespacial, foram igualmente captadas pelo estudo da CMI (2013CMI. CHR. MICHELSEN INSTITUTE. Resumo de política II: género, classe e espaço em Maputo, Moçambique. CMI Resumo, v. 12, n. 7, p. 1-4, 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.cmi.no/publications/file/5041-genero-classe-e-espaco-em-maputo-mocambique.pdf . Acesso em: 14 dez. 2021.
https://www.cmi.no/publications/file/504...
, p. 3):

[...] analisando as estratégias espaciais de homens e mulheres nos bairros 25 de Junho e Inhagoia5 5 Bairros periféricos da cidade de Maputo, localizados no 2º anel (Araújo, 1999). as pessoas tendem a separar-se em uma de três áreas da cidade: a rica e em geral inatingível “cidade”; o congestionado e febril mas economicamente favorável espaço “suburbano”; e os bairros “peri-urbanos” com uma mistura de pessoas pobres e pessoas em melhor situação - que aí permanecem ou porque não podem permitir-se mais nada ou porque pretendem uma vida mais calma.

Essa forma de produzir e compreender a cidade transforma o anel central na “verdadeira cidade”, o espaço de oportunidades. É o espaço onde se concentra a maior parte das atividades econômicas dos dois circuitos da economia urbana. Essa concentração espacial conduz ao aumento da densidade populacional durante o dia e a sua redução, drástica, durante a noite. Ter acesso a essa parte da cidade pode significar a abertura às mais diversas formas de sobrevivência. A territorialização nesses espaços é fundamental, pois permitirá garantir a sua reprodução social. A convivência dos dois circuitos vai funcionando até o limite em que o circuito inferior chocar com o superior. Garantir que esse limite não seja alcançado pode significar a sobrevivência das atividades do circuito inferior. A sua apropriação permite delimitar os seus espaços de influência não só com os membros do mesmo circuito, mas também com a área de atuação do circuito superior.

Os guardadores de carros e a produção dos seus territórios

De acordo com Raffestin (1993RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.), o território é a prisão construída pelos homens, sendo o espaço anterior ao território, logo, a prisão inicial. Para Souza (2007SOUZA, M. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Org.). Geografia: conceitos e temas. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 77-116.), o território é delimitado pelas relações de poder. Nesses termos, o território seria o resultado da ação humana em determinado espaço, que o ator ou o grupo de atores o “reserva” para si e para as suas necessidades.

Discutindo a produção do território, em que se apoia na abordagem de Gottmann (1973GOTTMANN, J. The significance of territory. Charlottesville, VA: The University Press of Virginia, 1973.), cujas ideias corroboram a de Raffestin (1993RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.), Fernandes (2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302.) compreende que a produção do território é sempre a sua fragmentação com a finalidade de lhe garantir a existência. É interessante compreender essa fragmentação do espaço como uma necessidade humana e sendo dinâmica.

A engenhosidade adoptada para garantir um determinado espaço para o seu domínio pode ser entendida como a territorialidade que culmina com a produção do território. Sack (2011SACK, R. D. O significado de territorialidade. In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (Org.). Territorialidades humanas e redes sociais. Florianópolis: Insular, 2011. p. 63-89., p. 76) entende a territorialidade como sendo “a tentativa, por um indivíduo ou grupo, de afetar, influenciar, ou controlar pessoas, fenômenos e relações, ao delimitar e assegurar seu controle sobre certas áreas geográficas”. O controle de certas áreas geográficas envolve, sim, a fragmentação do espaço, que pode significar o seu controle por longos períodos de tempo ou por curtos períodos de tempo e periodicamente.6 6 Ver o trabalho de Mattos e Ribeiro (1994).

A proposta de Fernandes (2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302.) para entender a dinâmica territorial parece ser ajustada à realidade da cidade de Maputo, onde surgem os territórios do território. Para compreendermos os territórios do território, precisamos entender que não estamos a tratar apenas do território de governança ou o território Uno (Fernandes, 2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302., 2009FERNANDES, B. M. Sobre a tipologia dos territórios. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (Org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular: 2009. p. 197-215.), mas dos diferentes usos do território (Santos, 1994SANTOS, M. O retorno do território. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A.; SILVEIRA, M. L. (Org.). Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 15-20., 2011SANTOS, M. O dinheiro e o território. In: SANTOS, M. et al. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011. p. 13-21.) que vão ocorrendo no território de governança.

Fernandes (2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302.) refere que o território de governança pode conter outros territórios, que ele denomina territórios de propriedade individual ou coletiva, mostrando que podem atender a diferentes lógicas de produção. Ao discutir a sua produção nos vários níveis escalares, que acabam incorporando outras dimensões, Fernandes (2009FERNANDES, B. M. Sobre a tipologia dos territórios. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (Org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular: 2009. p. 197-215., 2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302.) demonstra que existem três tipos de territórios, nomeadamente (i) o território de governança, que inclui os territórios nacionais, os de província, os de distritos, os de município, (ii) o território formado pelas propriedades privadas capitalistas e privadas não capitalistas e (iii) o “formado por diferentes espaços que são controlados por relações de poder. Esses são territórios fluxos ou móveis controlados, por diferentes sujeitos e são produzidos nos territórios fixos do primeiro e do segundo território” (Fernandes, 2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302., p. 283).

A abordagem apresentada por Fernandes (2008FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do Território. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. (Org.). Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular , 2008. p. 273-302., 2009FERNANDES, B. M. Sobre a tipologia dos territórios. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (Org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular: 2009. p. 197-215.) parece mais ajustada à realidade que se pretende estudar, onde compreende-se a existência do primeiro território, neste caso, a Cidade de Maputo. Igualmente concebe-se a (re)existência de territórios que se (re)produzem no primeiro território, evidenciando formas de apropriação de partes do território de governança para permitir a sobrevivência de determinados seguimentos da população, neste caso, os guardadores de carros.

A produção de diferentes territórios no território de governança não entra em conflito com o primeiro território, pois este é aceite por todos os intervenientes na produção dos outros territórios. Isto é, não está em causa a soberania do primeiro território, mas sim as diferentes territorialidades que se desenharão nele, por forma a responder aos diferentes interesses de quem os produz.

Sack (2011SACK, R. D. O significado de territorialidade. In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (Org.). Territorialidades humanas e redes sociais. Florianópolis: Insular, 2011. p. 63-89.) adverte que não nos preocuparmos apenas com o que a territorialidade é, mas também com o que ela sugere. Para o autor, precisamos evidenciar os seus efeitos lógicos da territorialidade e os seus significantes, a partir da compreensão de que: (i) a territorialidade deve envolver uma forma de classificação por área, (ii) deve conter uma forma de comunicação, que pode envolver um marco ou sinal, e (iii) deve envolver uma tentativa de impor o controle sobre o acesso à área e às coisas dentro dela ou a coisas fora dela pela restrição das de dentro. Dos conteúdos da territorialidade é possível compreender que, para o nosso caso, deverá haver uma classificação por área, com limites que balizam a sua extensão e uma tentativa de controlar o seu uso ou a sua restrição.

A produção da Cidade de Maputo está intimamente relacionada com a existência e o funcionamento do circuito inferior da economia urbana, discutido no ponto anterior. É o circuito inferior da economia que se materializa com a produção de territórios que permitem o desenvolvimento de atividades que garantem a sobrevivência de quem os (re)produz. Uma das atividades que se desenvolveu nos anos 1990 foi o serviço de guardar carros. Na mesma década, a cidade enfrentou o problema da insegurança física e social, resultando na elevação do índice de criminalidade (Silva, 2002SILVA, T. C. Determinantes globais e locais na emergência de solidariedades sociais: o caso do sector informal nas áreas periurbanas da cidade de Maputo. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 75-89, 2002. doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1260.
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), o que poderá ter permitido o advento dessa atividade.

A baixa da cidade de Maputo é uma área que concentra a maior parte das atividades do circuito superior, levando consigo uma maior presença de pessoas durante o dia. Esse facto é igualmente responsável pelo surgimento de atividades do circuito inferior que muitas vezes dependem da existência do circuito superior e da forma como esse circuito produz a cidade.

A concentração de diferentes atividades, principalmente as do sector terciário, incluindo as atividades do sector público, conduzem a um maior fluxo de pessoas, muitas delas com carros particulares, que se tornou num meio de escapar ao deficiente sistema de transporte público existente na grande Maputo (que inclui as cidades de Maputo e Matola). O acentuado índice de criminalidade e de roubos, já destacado por Silva (2002SILVA, T. C. Determinantes globais e locais na emergência de solidariedades sociais: o caso do sector informal nas áreas periurbanas da cidade de Maputo. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 75-89, 2002. doi: https://doi.org/10.4000/rccs.1260.
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), afetou igualmente a baixa da cidade, onde os acessórios das viaturas eram frequentemente roubados e colocados no circuito inferior.

A incapacidade do município de garantir a segurança dos veículos estacionados na cidade de cimento abriu oportunidades de trabalho no circuito inferior. Serviço de segurança às viaturas acompanhado de lavagem consolidou-se como atividade do circuito inferior materializada na apropriação das ruas e avenidas da baixa da cidade. Mesmo sem licença para funcionar, foi tolerado pelo município na perspectiva de Morgado (2011MORGADO, P. Estratégias de sobrevivência Songhay-Zarma (Níger): trajectórias económicas de uma outra modernidade. E-cadernos CES, n. 12, 2011. doi: https://doi.org/10.4000/eces.690.
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, p. 62), para alcançar a “tão almejada paz social fazer[endo] vista grossa a algumas das atividades econômicas que se desenrolam no plano informal”.

Para realizar essa atividade, era necessário que cada guardador de carros garantisse um espaço do qual pudesse ser responsável pela segurança das viaturas ali parqueadas. Os primeiros guardadores de carros foram ocupando algumas fracções das ruas e avenidas da baixa da cidade. Essa ocupação garantia a apropriação do espaço, transformando-se no guardador fundador. A atividade estava no seu início e existiam várias oportunidades, dada a fraca ocupação das ruas e das avenidas da baixa da cidade. Com o passar do tempo, as principais ruas e avenidas foram ocupadas pelos fundadores, oferecendo os serviços de segurança e de lavagem de viaturas.

A produção dos territórios de cada guardador de carros era garantida pela presença contínua e pela confiança obtida dos seus clientes. A presença diária e o convívio com os colegas legitimavam, num primeiro momento, a “propriedade” do espaço. Esses elementos de legitimação do espaço não eram suficientes para garantir continuamente os territórios, já que com o tempo a possibilidade de invasão do espaço por novos agentes que quisessem oferecer o mesmo serviço ameaçaria a sua “soberania”. Era necessário garantir ininterruptamente o apoio dos seus clientes, bem como de instituições públicas que pudessem oferecer segurança àquela atividade.

A preocupação com a segurança das viaturas “obrigava” aos clientes a estabelecerem uma relação de confiança, em que o cliente sabe quem é o encarregado pela segurança da sua viatura e o guardador sabe que tem responsabilidade por qualquer dano na viatura. A confiança era fundamental, tanto para o cliente como para o prestador de serviço, dado que o cliente precisava de alguém de confiança que guardasse o seu carro e o prestador precisava que o cliente o reconhecesse como o único responsável pela segurança da sua viatura, fortalecendo a posse daquele espaço. Sendo assim, os novos concorrentes ou prestadores de serviço para iniciarem a sua atividade deveriam passar por uma apresentação feita pelos mais antigos, transmitindo segurança ao cliente. Essa estratégia permitia manter uma certa fidelidade entre o cliente e o prestador de serviço, garantindo a primazia e possessão do território.

A construção da confiança entre o cliente e o prestador do serviço assumia-se como uma forma de controle de quem pode fazer parte daquela atividade, ou melhor, de quem pode prestar o serviço no seu território. Tratando-se de segurança, os novos guardadores precisavam ser de confiança e ingressavam como estagiários, onde por algum tempo iam aprendendo como desenvolver a atividade. Todos os sete entrevistados informaram que a confiança é a base para a aceitação ou não de um novo guardador. Identificaram-se duas formas de ingresso na atividade, nomeadamente: (i) ocupante inicial, quando o tomou o mesmo encontrava-se desocupado, sem guardador, tornando-se no fundador; e (ii) como estagiário (nessa modalidade, a confiança é fundamental, podendo chegar à situação de ser atribuída uma fração do espaço para a sua gestão ou dividindo a ocupação e administração do território com o fundador ou o mais antigo). A maior parte dos guardadores que ingressaram como estagiários, com o tempo, passaram a ser os donos, principalmente por um alegado roubo de acessórios de viaturas pelo responsável do território. O roubo era denunciado à polícia, o que conduzia à fuga do antigo proprietário do território, abrindo vaga.

Os novos ocupantes do território quase sempre enfrentavam resistência dos colegas mais antigos, que iam engranzando barreiras à sua ocupação. Possivelmente porque pretendiam estender as suas áreas de domínio, colocando-os sob sua regência.7 7 Ser estagiário significa não ter ainda condições para manter clientes fixos. Os valores obtidos diariamente são apresentados ao dono do território, que no final os reparte ao seu ajudante, sem nenhum critério predefinido. Há situações em que o responsável pelo território, o fundador daquele território, já não pratica aquela actividade, mas mantém o domínio do território, indicando quem pode ou não trabalhar ali e definindo as taxas mensais de pagamento. Contudo, essas estratégias fracassavam, pois os novos rapidamente se informavam das dinâmicas locais e passavam a controlar os territórios conquistados.

Outra estratégia para a manutenção dos territórios é o apoio da Polícia da República de Moçambique (PRM). O apoio é fundamental, pois “legitima” a atividade dos guardadores de carros. A incapacidade de garantir a segurança das viaturas, tanto pela PRM como pela Polícia Municipal, permite o desenvolvimento da atividade. Como forma de garantir maior conforto aos donos das viaturas, a PRM tem o registro de todos os guardadores de carros que funcionam na baixa da cidade. Essa ação funciona também como uma estratégia dos guardadores para controlarem quem pode ou não desenvolver a atividade nos seus territórios, já que o não cadastramento é um impeditivo no ofício, podendo alcançar o extremo de ser acusado de larápio.8 8 Durante o trabalho de campo deparamos-nos com uma situação em que um intruso apareceu tentando desenvolver aquela actividade e rapidamente foi identificado e expulso do local, acusado de ladrão.

Aqui na baixa da cidade há muitos ladrões e a PRM, assim como a polícia municipal, não conseguem controlar, porque quando eles passam os ladrões se escondem e depois voltam a roubar (Entrevistado S.).

É difícil. Nós estamos aqui para ajudar. Nós evitamos os roubos e os donos das viaturas nos apoiam com algo [...] (Entrevistado J.).

Os nossos nomes estão cadastrados na 1ª Esquadra. Ninguém pode vir aqui e ocupar o espaço. Não há como, porque nós nos conhecemos e se você for novo quando roubarem um acessório de uma viatura você irá responder na 1ª Esquadra. Mas quando for o meu caso, nós iremos para a 1ª Esquadra, eles irão ver o meu nome e dirão que não roubei, porque sou de confiança (Entrevistado A1.).

Os intendentes dos territórios do território sabem das suas responsabilidades e dos desafios que enfrentam na garantia da segurança dos veículos. Quando apercebem que não estão em condições de controlar todo o seu território, eles estão abertos a novas admissões, sob a égide de confiança. Manter a confiança com os seus clientes significa manter a inviolabilidades das viaturas, o que reforça a sua presença no espaço, a partir da aceitação da PRM, assim como da polícia municipal, que não encontra, por enquanto, motivos para o encerramento da atividade.

Os guardadores de carros sabem que o espaço é da edilidade municipal e que apenas estão ali porque oferecem um serviço que é importante para o município e fundamental para os seus clientes. Têm a consciência de que a disputa territorial que pode acontecer naquelas fracções de espaço é apenas entre os territórios do território, e não com o território de governança.

Não tenho nenhum problema neste espaço. O Conselho Municipal não tem conhecimento de que este espaço é meu, mas os meus colegas, os meus clientes sabem que o espaço é meu e podem me defender. Todos me viram a crescer aqui, onde uma das pessoas que vive próximo do meu trabalho sabe onde eu vivo e até conhece o meu apelido (Entrevistado A2.). Ouvi dizer que em janeiro9 9 Essa entrevista foi concedida em fins de novembro de 2019. iríamos perder o local para o Conselho Municipal, mas isso não vai acontecer porque eu trabalho aqui há muito tempo e nós controla os ladrões [...] o espaço não é meu, é do Conselho Municipal, nós estamos a ajudar o Conselho Municipal a controlar, porque se não fosse a nossa presença os gatunos iriam aumentar muito (Entrevistado H.).

Quem são os guardadores de carros?

Os guardadores de carros são, na sua maioria, jovens, com idade entre os 19 e 42 anos, vivendo com uma parceira. São provenientes das províncias do Sul de Moçambique. Cinco dos sete que entrevistamos têm família e pelo menos um filho (Quadro 1).

Quadro 1-
Características sociodemográficas dos guardadores de carros

Para todos os entrevistados, essa não era a atividade do seu sonho, mas uma forma de garantir o seu sustento. Abonam que se trata de uma atividade transitória, mesmo para os três entrevistados com mais tempo (12, 15 e 19 anos). Todos acreditam que terão uma oportunidade para abrir um novo negócio que ofereça maior segurança, já que o não licenciamento os coloca numa situação de vulnerabilidade. Alguns dos entrevistados apostam na carta de condução como um escape, no futuro, para serem motoristas de “chapa 100”.10 10 São viaturas que fazem o transporte público na Grande Maputo. Os donos das viaturas contratam motoristas, conhecidos como chapeiros, para desenvolver essa atividade e, a partir de contratos informais e verbais, definem as responsabilidades de cada um. É uma atividade que se mostra muito rentável para os motoristas, havendo relatos de situações em que eles conseguiram acumular dinheiro e compraram as suas viaturas e as colocaram a fazer o transporte público. Outros pretendem abrir uma lojinha para o conserto de celulares. Há quem pensa apenas em encontrar uma atividade que seja mais rentável e segura.

Todos eles têm em comum o abandono da escola ainda muito cedo, sem conseguirem adquirir conhecimentos necessários para se empregarem em atividades formais ou que exigem um mínimo de instrução. Os que tentaram se manter na escola por mais anos (até o 8º ano), viram-se forçados a abandoná-la dados os custos associados à sua manutenção, quer por eles ou pelos encarregados de educação. Como alternativa de sobrevivência, já que os espaços rurais de proveniência não ofereciam opções viáveis, migraram para a Grande Maputo à procura de oportunidades. Algumas das oportunidades encontradas não eram rentáveis e foram abandonando ao longo do tempo até se fixarem nessa atividade.

A atividade permite aos guardadores de carros conseguirem o sustento necessário à sobrevivência da sua família. É uma atividade que os permite obter rendimentos diários, bem como mensais. Os rendimentos diários são garantidos graças ao pagamento diário pelo estacionamento e lavagem da viatura. Em média, por cada carro que estaciona no seu território, é cobrado um valor que varia de 5,00 Mts11 11 De acordo com a taxa de câmbio do Banco de Moçambique em 20 de julho de 2020, R$ 1 equivalia a 13,10 Mts. a 15,00 Mts.12 12 Os valores não são definidos com antecedência. Dependem do tempo de estacionamento e da generosidade do cliente. Há situações reportadas pelos entrevistados de clientes que não pagam, alegando que eles não têm licença para o exercício daquela atividade. Como forma de aumentar os valores a receber por cada viatura parqueada, os guardadores oferecem como opção o serviço de lavagem. Nesse serviço, os valores variam dependendo do tipo de carro e da capacidade de barganha. De modo geral, os valores oscilam de 50,00 Mts a 150,00 Mts.13 13 Esses valores são acordados quando o cliente opta pelo serviço de lavagem de carro. Geralmente, quando o cliente aceita esse serviço, o valor acordado não implica o acréscimo do serviço de segurança da viatura. A aceitação desse serviço é sempre mais-valia para o guardador de carro, pois arrecada mais dinheiro. Em dias bons, os guardadores conseguem amealhar 500,00 Mts.14 14 Isso acontece quando aumenta o número de clientes flexíveis, que parqueiam a sua viatura por curto período de tempo, visto que, quando o número de clientes fixos ocupa todas as manhãs, o ganho diário baixa significativamente, podendo haver dias em que regressam à casa sem nenhum dinheiro.

O rendimento mensal é proveniente daqueles clientes que desenvolvem as suas atividades na baixa da cidade. Como esse grupo parqueia o carro nos cinco dias da semana, então é estabelecido um contrato verbal, em que os clientes pagam ao final de 30 dias uma quantia que varia de 300,00 Mts a 600,00 Mts. O valor mensal estabelecido nesse tipo de contrato varia de acordo com a capacidade de barganha e dos serviços escolhidos, como a lavagem diária do carro ou em alguns dias da semana.

Importa referir que os serviços oferecidos pelos guardadores são a segurança do carro e a sua lavagem. Isso significa que os guardadores não reservam o espaço para os seus clientes fixos. Cabe ao cliente chegar mais cedo para garantir um espaço, visto que o acordo não inclui a privatização do espaço, serviço que é da inteira responsabilidade do município.

O funcionamento dessa atividade se assemelha às atividades do circuito superior, onde tem hora de entrada e de saída. As atividades do circuito superior geralmente iniciam às 7h30 e encerram às 15h3o, seguindo o horário do sector público ou prolongando até as 17h, o horário para algumas atividades do sector privado. Sendo assim, os guardadores devem estar no seu posto de trabalho antes das 7h30 para organizar o estacionamento. Normalmente, terminam as suas atividades às 16h, podendo prolongar até as 17h30, altura em que muitas das instituições que funcionam na baixa da cidade encerram as suas atividades. Sendo assim, temos um movimento pendular idêntico ao dos funcionários do circuito superior.

Seguindo essa tendência, observa-se que os guardadores de carros trabalham de segunda a sexta-feira. São poucos os casos em que trabalham aos finais de semana e, na baixa da cidade. Aos finais de semana o número de atividades em funcionamento na baixa da cidade reduz significativamente. Durante esses dias, o espaço pode ser apropriado por outros guardadores de carros. Há situações em que os guardadores de carros, aos finais de semana, desenvolvem a mesma atividade, mas na avenida da Marginal (praia da Costa do Sol, na cidade de Maputo), que se torna bastante movimentada.

Para o início da atividade os guardadores não precisam de grande investimento, pois os meios necessários são um balde de água e pano. A água é obtida nas proximidades, podendo pagar 10,00 Mts por cada balde de água ou, em dias de chuva, aproveitam as águas paradas que se prolongam por alguns dias. O trabalho não exige formação, muito menos obtenção de crédito. O mais importante é ter disposição para o efeito e garantir um espaço.

A atividade já permitiu a obtenção de grandes ganhos como a compra de terreno para a construção da casa própria. Há exemplos de guardadores de carros que conseguiram construir a casa própria, obter uma licença para conduzir. Os nossos entrevistados relataram que conhecem colegas que terão conseguido construir a casa própria (com dois quartos) e a compra de uma viatura (usada). Esses ganhos servem de motivação e de (re)existência para escapar das armadilhas da pobreza.

Os guardadores de carros solicitaram a regularização das suas atividades, como forma de reduzir a sua vulnerabilidade. No início as autoridades municipais se mostraram favoráveis ao pedido, mas com o passar do tempo as intenções morreram e, mais tarde, o Conselho Municipal introduziu o serviço de parquímetro na baixa da cidade, que poderá colocar em causa a (re)produção dos guardadores de carros. Esta nova opção de serviço cobra valores mais altos e vai “expulsando” os guardadores de carros de suas áreas de ocupação. A edificação de parques de estacionamento, assim como a gestão do estacionamento pela edilidade, a partir dos parquímetros, desterritorializará os territórios dos guardadores de carros.

Para não concluir

A partir do exemplo dos guardadores de carros na cidade de Maputo, é possível compreender como as atividades do circuito inferior (re)inventam formas alternativas de produção da cidade. Essas formas diferenciadas materializam-se principalmente com a apropriação de partes da cidade por agentes que desenvolvem atividades do circuito inferior como forma de garantir a sua sobrevivência.

Compreender que, para as cidades dos países periféricos, as dinâmicas urbanas passam principalmente pela ação das atividades do circuito inferior não significa descartar o papel preponderante do circuito superior, pois tem sido esse circuito que alimenta o inferior, e a sua existência garante a sobrevivência do outro. São duas partes de um processo que dinamizam os espaços urbanos com vista a atender à produção capitalista do espaço.

A cidade de Maputo, dual, resultante de um processo histórico que sacralizou formas espaciais diferenciadas, é reflexo de um movimento de produção do espaço que atende a interesses externos, a partir do circuito superior, mas também de processos de inclusão precária, refletidos nas formas de (re)existência aos vectores de exclusão.

Para que os guardadores de carros (re)existam, é preciso que haja um campo fértil, como a concentração de atividades do circuito superior e a “passividade” do poder público. A produção desigual da cidade de Maputo permitiu que esse tipo de atividade, cuja atuação necessita de produzir territórios, fosse possível no anel central (cidade de cimento), que é um espaço condensado (quantitativa e qualitativamente) dos seus conteúdos. A existência desses dois circuitos, que se interligam e se reproduzem um sobre o outro, é mantida por uma relação dissimétrica, que tem como base o seu ajustamento ao interesse do capital. É essa dinâmica urbana, associada às territorialidades urbanas, a base para a compreensão da produção do espaço urbano em países da periferia.

Esta abordagem teórica de compreensão da produção do espaço urbano em países periféricos parece ser útil para compreender a produção dos territórios do território em cidades onde as atividades do circuito inferior parecem devorar a dinâmica urbana e se posicionam como um manancial de estoques de possibilidades diferenciadas de produzir uma urbe.

Referências

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  • 1
    Mosca (2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009., p. 5) entende por informalidade “todas as relações de natureza econômica, jurídica, sociais ou burocráticas que não estando reguladas parcialmente ou totalmente, existem e fazem parte das regras de funcionamento de uma sociedade e contribuem para que os padrões de reprodução da sociedade e economia persistam”.
  • 2
    “O milagre da sobrevivência da África Subsaariana se resume numa única palavra: a economia de débrouille. Assim é chamado o conjunto de pequenas empresas e de artesãos que trabalham para a clientela popular [...] Teríamos desta forma um viveiro de ‘empresários de pés descalços’ vivendo da astúcia no centro do planeta dos excluídos graças ao desenvolvimento de uma atividade quase profissional. É o núcleo central do sector informal das análises da maior parte dos economistas” (Latouche, 2013LATOUCHE, S. A África pode contribuir para resolver a crise do ocidente? Espaço Plural, v. 14, n. 28, p. 175-197, 2013., p. 176-177).
  • 3
    Moçambique tornou-se independente em 1975.
  • 4
    Mosca (2009MOSCA, J. Pobreza, economia “informal”, informalidades e desenvolvimento. In: CONFERÊNCIA DINÂMICAS DA POBREZA E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÔMICA EM MOÇAMBIQUE, 2., 22-23 abr. 2009, Maputo. Conference Paper N. 34, Maputo, 2009., p. 15) afirma que a informalidade vive do “formal”, sendo esta parte importante para a reprodução daquela. Para o autor, “[...] as informalidades maiores, mais graves e com as piores consequências, encontram-se dentro do sistema ‘formal’ da economia e da administração”.
  • 5
    Bairros periféricos da cidade de Maputo, localizados no 2º anel (Araújo, 1999ARAÚJO, M. G. M. A cidade de Maputo. Espaços contrastantes: do urbano ao rural. Finisterra, Lisboa, v. 34, n. 67/68, p. 175-190, 1999.).
  • 6
    Ver o trabalho de Mattos e Ribeiro (1994MATTOS, R. B.; RIBEIRO, M. A. C. Territórios da prostituição nos espaços públicos da área central do Rio de Janeiro. Revista Geográfica, n. 120, p. 59-78, 1994. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/40992695 . Acesso em: 14 dez. 2021.
    https://www.jstor.org/stable/40992695...
    ).
  • 7
    Ser estagiário significa não ter ainda condições para manter clientes fixos. Os valores obtidos diariamente são apresentados ao dono do território, que no final os reparte ao seu ajudante, sem nenhum critério predefinido. Há situações em que o responsável pelo território, o fundador daquele território, já não pratica aquela actividade, mas mantém o domínio do território, indicando quem pode ou não trabalhar ali e definindo as taxas mensais de pagamento.
  • 8
    Durante o trabalho de campo deparamos-nos com uma situação em que um intruso apareceu tentando desenvolver aquela actividade e rapidamente foi identificado e expulso do local, acusado de ladrão.
  • 9
    Essa entrevista foi concedida em fins de novembro de 2019.
  • 10
    São viaturas que fazem o transporte público na Grande Maputo. Os donos das viaturas contratam motoristas, conhecidos como chapeiros, para desenvolver essa atividade e, a partir de contratos informais e verbais, definem as responsabilidades de cada um. É uma atividade que se mostra muito rentável para os motoristas, havendo relatos de situações em que eles conseguiram acumular dinheiro e compraram as suas viaturas e as colocaram a fazer o transporte público.
  • 11
    De acordo com a taxa de câmbio do Banco de Moçambique em 20 de julho de 2020, R$ 1 equivalia a 13,10 Mts.
  • 12
    Os valores não são definidos com antecedência. Dependem do tempo de estacionamento e da generosidade do cliente. Há situações reportadas pelos entrevistados de clientes que não pagam, alegando que eles não têm licença para o exercício daquela atividade.
  • 13
    Esses valores são acordados quando o cliente opta pelo serviço de lavagem de carro. Geralmente, quando o cliente aceita esse serviço, o valor acordado não implica o acréscimo do serviço de segurança da viatura. A aceitação desse serviço é sempre mais-valia para o guardador de carro, pois arrecada mais dinheiro.
  • 14
    Isso acontece quando aumenta o número de clientes flexíveis, que parqueiam a sua viatura por curto período de tempo, visto que, quando o número de clientes fixos ocupa todas as manhãs, o ganho diário baixa significativamente, podendo haver dias em que regressam à casa sem nenhum dinheiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2020
  • Aceito
    10 Dez 2021
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