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A publicação de periódicos de humanidades e ciências sociais no período técnico-científico-informacional

A revista Geousp: espaço e tempo, em seus 26 anos de existência, já conheceu diferentes momentos. Quando de seu lançamento, em 1997, a publicação de artigos em periódicos era muito importante, mas diferentemente do que se tem agora, quando publicações desse tipo estão no topo da medição e da qualificação da produção acadêmica dos pesquisadores. Até meados dos anos 1990, as métricas para pesquisadores do universo acadêmico eram outras, mais qualitativas, e o “impacto” das publicações não era tão aferido matematicamente, aliás, nem se falava tanto em métricas da produção acadêmica. O mesmo não valia para revistas do mundo dos negócios, como já apontava o minucioso estudo de Dubois e Reeb (2000DUBOIS, F., REEB, D. Ranking the International Business Journals. J Int Bus Stud 31, 689-704 (2000). https://doi.org/10.1057/palgrave.jibs.8490929
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), e talvez esse segmento de publicações (e medições) tenha afetado bastante o universo da divulgação do conhecimento científico.

Até meados da década de 2000 ou pouco depois, a maioria das publicações em periódicos científicos era impressa, o que impunha ao editor deter noções de um conjunto de especificidades e dificuldades inerentes, como o trabalho mais moroso, a periodicidade média com que se publicava a maioria dos artigos, menos artigos por número, acesso mais difícil a essas publicações... e o acúmulo de centenas de volumes em papel em algum depósito, por anos, devido à falta de transporte aos lugares de maior interesse.

De fato, o momento que atravessemos atualmente guarda poucos paralelos com o passado das publicações em periódicos especializados. Na medida em que toda a atividade dos pesquisadores, inclusive daqueles em processo de formação, passou a ser mensurada por publicações de artigos em revistas com maior ou menor indexação, passamos a assistir à instalação de uma nova lógica na divulgação da produção acadêmica. Desde que as bases eletrônicas de periódicos científicos foram sendo lançadas, começou a crescer exponencialmente a publicação de artigos em meio digital e se passou a falar, aí sim, em métricas de produção que definem a qualificação do profissional acadêmico e justificam seu êxito em progredir na carreira ou mesmo o fato de lograr ingressar numa instituição de ensino e pesquisa, mormente as públicas, no caso brasileiro.

Nesse processo, também passamos a conhecer a segmentação de um “mercado emergente” de publicações em bases digitais, algumas gigantescas editoras mundiais privadas, outras oriundas de instituições públicas, porém pagas e muito caras, como apontou Dorfman fazendo menção ao “Plano S”, que é voltado ao estímulo à ciência pública no âmbito Conselho Europeu de Pesquisa:

Ainda que busque a ciência pública, o Plano S prevê o pagamento de taxas. Que taxas? Taxas pagas pelos autores para publicar e pelos leitores para acessar os artigos, remunerando os serviços editoriais. E quanto custa publicar? Um exemplo extremo é o da prestigiosa revista Nature, que avaliou o acesso aberto a um artigo em € 9.500, mais de R$ 50.000 (Dorfman, 2022DORFMAN, A. Editorial: circuito superior e circuito inferior na publicação de periódicos científicos. Geousp, v. 26, n. 1, e-195555, abr. 2022. ISSN 2179-0892. Available at: https://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/195555. doi: https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2022.195555.pt
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, p. 2).

Mas é preciso lembrar que a importância desse tipo de publicação varia conforme a área do conhecimento. Nas ciências médicas e biológicas, elas são particularmente importantes e servem igualmente como medida de qualidade do pesquisador de modo mais objetivo que nas ciências sociais e humanidades. Isso pode valer também para outras ciências ditas “duras” e, com algumas gradações, para ciências aplicadas como direito ou economia e suas ramificações.

Nas ciências sociais de um modo geral, as publicações têm sempre o compromisso e a obrigação de trazer abordagens mais completas e raramente apresentam apenas resultados pontuais de uma pesquisa ou “ensaio de laboratório” como é possível verificar na medicina, por exemplo, onde um artigo pode ser dividido entre sete, oito ou mais autores, para um texto de três páginas e com redação minimalista. Isso se torna um grande problema quando essas produções específicas passam a ser o parâmetro de avaliação, por exemplo, numa universidade que reúne grande diversidade de profissionais e áreas, e a avaliação/medição não distingue os conteúdos e o tipo de esforço implicado nos artigos de cada área para qualificar seus pesquisadores. Não se trata de afirmar que um é mais fácil que o outro, mas sim de que um projeto de pesquisa numa área pode render 20 artigos envolvendo 40 pesquisadores e, em outra, um projeto igualmente financiado e promissor pode render quatro artigos para poucos ou mesmo um pesquisador.

Essas são algumas implicações do deslocamento na produção de artigos em periódicos digitais para o centro da arena da produção científica, em qualquer área de conhecimento, indistintamente. Mas gostaria de chamar atenção para outros aspectos que tangem às publicações científicas no Brasil na área de humanidades e de ciências sociais.

A disparada da produção de conhecimento e sua documentação e registro começam a ganhar um volume inédito, particularmente com sua convergência com as tecnologias da informação e a conformação de um novo momento histórico, o período técnico-científico-informacional, como definiu Milton Santos (1994SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994.). Assim, rapidamente as grandes editoras desse segmento específico passaram a conformar um cenário global de publicações científicas, como a Elsevier, que é proprietária da Scopus e da Science Direct, entre outras (e que, por sua vez, pertence à corporação RELX Group), a Pearson, a MEDLINE e sua PubMed, a Taylor & Francis e a Routledge, a Thomson Reuters, o JSTOR, a Springer Nature, e a Oxford University Press, para citar algumas das maiores e mais importantes editoras presentes no Global 50 Ranking of the International Publishing Industry 2021, variando o valor dessas empresas entre US$ 1 e US$ 6 bilhões (Wischenbart; Fleischhacker, 2021WISCHENBART, R., FLEISCHHACKER, M. A. Global 50 Ranking of the International Publishing Industry 2021. Ruediger Wischenbart Content and Consulting 2021. Available at https://leanderwattig.com/store/the-global-50-world-publishing-ranking-rwcc-2021/
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) - lembrando que alguns desses nomes são instituições ou empresas de origem pública e que algumas marcas privadas atuam num amplo espectro de publicações.

Algumas dessa marcas detêm uma gama de títulos de periódicos, alguns journals podendo ser de sua propriedade ou acolhendo-os em suas plataformas e oferecendo acesso mediante diferentes formas de pagamento, entre elas, a assinatura de suas bases para as universidades. De todo modo, estão sempre envolvidas altas somas, particularmente para pesquisadores e instituições do Terceiro Mundo.

Aí entra a especificidade brasileira na produção desse campo. No Brasil, foi se disseminando o uso da plataforma de código aberto open journal system (OJS) em todo o país e em diferentes áreas do conhecimento, mas ela foi mais largamente adotada nas ciências sociais e nas humanidades. E é na geografia que os índices são mais altos, com estimativas de 90% ou mais dos periódicos atualmente em funcionamento. Também temos uma iniciativa da maior importância que é a Scientific Electronic Library Online (Scielo) , ou Biblioteca Eletrônica Científica On-line, da qual a Geousp tem honra de participar e que tem na Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal (Redalyc) um paralelo de iniciativa mexicana que procura dar maior inserção e visibilidade à produção científica na América Latina. Essas são as maiores bases de periódicos dedicadas a divulgar o conhecimento produzido em línguas portuguesa e espanhola.

Algo a lamentar na especificidade da divulgação da produção científica brasileira é que revistas que se valem apenas da plataforma OJS não podem receber financiamento do CNPq, o maior financiador do país, ainda que estejam classificadas no topo do Qualis/Capes. Antes, havia a compensação de que, ao menos, as revistas indexadas na base Scielo poderiam pleitear financiamento, porém, agora, é preciso que se estejam também na Scopus, na PubMed ou em outras estrangeiras de grande porte como as mencionadas. Mas ainda é possível estar indexado na Scielo e na Redalyc conjuntamente e concorrer a financiamento público nos editais do CNPq. No entanto, fica a pergunta: até quando as grandes desse mercado global não serão condição sine qua non para o financiamento das revistas brasileiras?

Por fim, uma última consideração sobre a publicação científica no Brasil, que é a alienação de parte da comunidade acadêmica sobre como se faz uma revista especializada no período técnico-científico-informacional (Santos, 1994SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994.). Em que pese tal produção ter se tornado o centro das medições e do “sucesso” da carreira na pesquisa acadêmica, grande parte daqueles que decidem como deve operar um periódico, ou que simplesmente atuam como docentes pesquisadores não envolvidos na produção de uma revista científica, desconhecem a realidade dos heroicos editores de revistas dos milhares de departamentos, faculdades e programas de pós-graduação pelo país, particularmente nas áreas de humanidades e ciências sociais, posto que não recebem a mesma forma de incentivo institucional que as demais áreas de conhecimento. E nos parece que esse fato se liga às políticas de internacionalização das universidades brasileiras, pois como publicar em países que não aceitam teorias sociais não aderentes às explicações das realidades do Primeiro Mundo?

O fato anterior, porém, é que ainda se imagina que a produção de um periódico hoje se resume a receber um texto de um colega, reunir um número mínimo de colaborações, enviar para a gráfica, imprimir e distribuir. Esse processo desapareceu há décadas, mas, para os não envolvidos, é disso que se trata. Não se leva em conta que, em alguns casos, chega-se a uma centena de submissões por ano e, em outros, elas não atingem o suficiente para um número; ignora-se a necessidade de participação de profissionais para trabalhar como editores de artigos específicos; não se imagina como é a árdua tarefa de encontrar avaliadores de qualidade para cada tema e subárea dos textos submetidos para avaliação...

Resulta, assim, um grande paradoxo na divulgação científica brasileira e nos países latinoamericanos de modo geral. A publicação de artigos é muito expressiva, pois é preciso publicar sempre, desde o aluno da iniciação científica da graduação ao professor titular no ápice da carreira, mas a faina do periódico continua a ser desconhecida, desprezada e obstaculizada. Ignora-se que a maior parte do conhecimento científico produzido no Brasil, de grande qualidade, tem origem nas instituições públicas. Faltam incentivos de todos os lados, e não só pelo não financiamento do Estado aos periódicos bem qualificados.

Também não se geram incentivos simples, quase normativos, como a valorização dos docentes que assumem editar os periódicos, participando de fóruns, buscando recursos, elaborando fórmulas para manter o funcionamento normal de uma revista - como é o caso da “conquista” de um corpo editorial permanente. Mas isso não basta; é preciso também estimular aqueles que promovem a qualidade de cada artigo e, portanto, de cada periódico: os pareceristas. Dizemos “incentivos quase normativos” pois, nos anos em que fui editor da Geousp, constatei, ao lado de vários outros editores das ciências sociais, a falta de uma política para incentivar a prática da avaliação por pares. E essa política poderia começar pela valorização dos profissionais que aceitam colaborar, posto que é uma etapa fundamental da produção do artigo que, aí sim, nutrirá de fato as métricas de cada pesquisador, de cada docente de universidade. Não é por falta de compensação financeira que um profissional se nega a emitir um parecer, pelo não reconhecimento institucional da parte da própria universidade.

Em função disso, como foi amplamente abordado num fórum de humanidades promovido pela Scielo em 2021, estamos numa crise nesse métier das publicações em periódicos, pois é cada vez menor o número de pareceristas dispostos a ler artigos e fazer uma apreciação demorada e cuidadosa, sem a qual fica comprometida a qualidade da publicação. E, claro, entre o editor-chefe e o parecerista ad hoc, há uma série de outras tarefas igualmente cumpridas por profissionais, professores pesquisadores, e igualmente ignoradas, apesar de serem peças fundamentais nessa divisão acadêmica do trabalho científico.

Infelizmente, ainda se buscam soluções inspiradas em realidades muito distantes, de países que dispõem de muito mais recursos (financeiros, técnicos e organizacionais), que propõem, por exemplo, a adoção da chamada open science, ou ciência aberta (ver, por exemplo, Martins, 2020MARTINS, H. C. A importância da Ciência Aberta (Open Science) na pesquisa em Administração. Revista de Administração Contemporânea [online]. 2020, v. 24, n. 1 [Acessado 27 Outubro 2022] , pp. 01-02. Available at: https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2020190380 >. Epub 20 Dez 2019. ISSN 1982-7849. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2020190380.
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), que pode até apresentar caminhos interessantes, mas que exigem mais recursos financeiros e humanos, o que significaria excluir mais da metade dos periódicos hoje em funcionamento no Brasil, se se tornasse obrigatória em cada um dos itens que a compõem. É preciso que nos voltemos mais às nossas especificidades para incentivar e fomentar as inciativas que partem das próprias instituições de ensino e pesquisa públicas buscando fortalecê-las, e não desestimulá-las ou desanimá-las.

* * *

Para encerrar este editorial, gostaria de agradecer a todos professores do Departamento de Geografia (FFLCH/USP) que tanto me apoiaram com ideias e ações efetivas, bem como aos de outros departamentos de outras universidades brasileiras e estrangeiras que também aceitaram colaborar com a revista, inclusive pertencendo à equipe editorial, e sempre me incentivaram a continuar e melhorar o projeto editorial da Geousp ao longo dos nove anos em que estive incumbido do papel de editor-chefe.

Também foram e continuam sendo muito importantes a participação dos estagiários, a incansável ajuda dos pós-graduandos do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana e do Programa de Pós-graduação em Geografia Física e o total apoio dos coordenadores que assumiram o Programa de Pós-graduação em Geografia Humana nesse período. A chegada voluntária de Thiago Muniz como funcionário da universidade para trabalhar exclusivamente na revista, assim como a colaboração de todos os funcionários do SIBi-USP e depois AGUIA, nas pessoas de André Serradas e de Elisabeth Dudziak, que sempre nos deram um importante apoio técnico. E uma menção especial à Confraria de Textos, a incansável editora de textos, cujo labor vem conferindo uma qualidade primorosa aos artigos publicados desde que sou o editor, amplamente reconhecida pelos autores e com quem aprendo muito sobre publicações e sobre nossa língua materna.

Concluo deixando meus votos de uma feliz travessia neste mundo das publicações na área da geografia para a professora Paula C. Strina Juliasz, que doravante assume o papel de editora-chefe da Geousp.

References

Editado por

Editor do artigo:

Edilson Alves Pereira Júnior

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2022
  • Aceito
    25 Jul 2022
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