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Crises, turismo e dinâmica dos meios de hospedagem em Natal/RN: concentração espacial

Resumo

Nas últimas décadas, verificou-se a ocorrência de crises (financeira e sanitária) que vêm afetando o turismo global. Além dessas crises de âmbito geral, o Brasil passou por uma crise institucional que também repercutiu no turismo, posto que acarretou a diminuição do poder de consumo da população. Tais crises repercutiram significativamente no destino Natal/RN. O objetivo deste artigo é discutir como as recentes crises se manifestaram no turismo de Natal a partir da evolução e da dinâmica espacial dos meios de hospedagem. Os procedimentos metodológicos adotados incluem pesquisa bibliográfica e documental e a realização de entrevistas. Discutiu-se a dinâmica dos meios de hospedagem em Natal associando-a aos fluxos turísticos, à geração de empregos e às crises periódicas. Por fim, concluiu-se que as crises reestruturaram o setor de hospedagem de Natal, e há uma tendência à concentração espacial em direção à Zona Sul, em especial ao bairro de Ponta Negra.

Palavras-chave:
Crises; Turismo; Meios de hospedagem; Reestruturação urbana; Natal/RN

Abstract

Over the last decades, financial and sanitary crises have affected global tourism. In addition to such general crises, Brazil went through an institutional crisis that had repercussions on tourism, since it led to a decrease in the population's consumption power. The tourism destination Natal/RN was heavily affected by these crises; therefore, the objective of the present study is to discuss how recent crises have impacted the tourism of the municipality through the analysis of the evolution and spatial dynamics of the hotels. The methodological procedures include bibliographic and documental research and interviews. The dynamics of lodging facilities in Natal was discussed, associated with tourist flows, job creation and periodic crises. The results demonstrate that the crises restructured the accommodation sector in Natal and there is a trend of spatial concentration towards the South Zone and the Ponta Negra neighborhood.

Keywords:
Crises; Tourism; Hotels; Urban Restructuring; Natal/RN

Resumen:

En las últimas décadas ha habido crisis (financiera y de salud) que han venido afectando al turismo global. Además de estas crisis generales, Brasil atravesó una crisis institucional que también repercutió en el turismo, ya que provocó una disminución del poder de consumo de la población. Tales crisis tuvieron un impacto significativo en el destino Natal/RN. Los procedimientos metodológicos adoptados incluyen investigación bibliográfica, documental y entrevistas. Se discutió la dinámica de los alojamientos en Natal, asociada a los flujos turísticos, la generación de empleo y las crisis periódicas. Finalmente, se concluyó que las crisis reestructuraron el sector de alojamiento en Natal y hay una tendencia de concentración espacial hacia la Zona Sur y, en particular, el barrio de Ponta Negra.

Palabras clave:
Crisis; Turismo; Hoteles; Reestructuración Urbana; Natal/RN

Introdução

Estudos apontam que as crises se manifestam periodicamente no processo de evolução do capitalismo, acarretando uma reestruturação espacial cuja intensidade se relaciona à magnitude e profundidade dessas crises. Harvey (2019HARVEY, D. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2019.) destaca o papel central do espaço na superação das crises, que se manifesta num “ajuste espacial”, implicando mudanças em sua forma/conteúdo.

O turismo, em particular, é uma atividade muito vulnerável a crises, sendo uma das primeiras a sofrer retração em função de problemas de ordem sanitária (epidemias), política (instabilidade política, guerra) ou social (violência e insegurança), entre outras.

Para que um destino turístico se consolide, é necessária uma demanda turística, bem como uma infraestrutura que comporte os visitantes. Além disso, os meios de hospedagem (MH) são cruciais para o desenvolvimento do turismo: são objetos geográficos no espaço que têm a função de alojar turistas nas localidades visitadas. Assim, considerando-se o conjunto das Atividades Características do Turismo (ACT), os MH nos destinos turísticos são fundamentais.

Nos anos 1980, com a operacionalização do megaprojeto turístico Parque das Dunas/Via Costeira,12 12 Sobre a implantação desse projeto, ver os trabalhos pioneiros de Cavalcanti (1993) e Cruz (1995). Natal começa a se destacar no Nordeste brasileiro como uma das destinações mais importantes e a ter um relevante papel na estruturação do turismo potiguar, uma vez que concentra a maior parte das ACT estaduais e redistribui os fluxos de visitantes para as demais localidades turísticas do Rio Grande do Norte (RN). É uma destinação turística nacional, e ao longo das últimas décadas foi capaz de atrair vários investimentos no setor de hospedagem, fato este que a capacitou para sediar jogos na Copa do Mundo da Fifa em 2014.

No entanto, a dinâmica recente do turismo potiguar também esteve vinculada às crises do contexto global e nacional. Entre as que incidem diretamente no setor de hospedagem em Natal, podem-se ressaltar a crise global motivada pelo setor financeiro-imobiliário (2007-2008), a crise nacional de ordem político-institucional que implicou o impeachment da presidente Dilma Rousseff (2015-2016) e, finalmente, a crise global de ordem sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 (2020-2021).

Além dessas crises, cumpre mencionar um evento local que repercutiu diretamente na atividade turística de Natal. Trata-se da construção de um novo aeroporto, no município de São Gonçalo do Amarante, Região Metropolitana de Natal, que implicou o encarecimento das passagens áreas para os viajantes que pretendem visitar Natal, incidindo negativamente no setor de hospedagem.

Para contribuir com o debate sobre a relação entre crises e turismo, este artigo discute como as recentes crises se manifestaram no turismo de Natal a partir da evolução e dinâmica espacial dos meios de hospedagem.

Procedimentos metodológicos

Natal se constitui num dos destinos turísticos mais representativos em nível nacional e proeminente do estado potiguar, contando com uma importante rede hoteleira. Assim, devido a sua centralidade turística, é o objeto empírico deste estudo. A Figura 1 mostra a localização da cidade, ressaltando a Via Costeira na estruturação do turismo natalense.

Figura 1 -
Localização de Natal/RN, com destaque para a Via Costeira

O marco do recorte temporal foi a crise financeira de 2008, em função da intensidade e magnitude de seus efeitos para o turismo potiguar. Desde a conclusão da primeira etapa do Programa de Desenvolvimento de Turismo no Nordeste (Prodetur I/RN), em 2002, até o desfecho da crise que afetou fortemente os mercados globais em 2008, o turismo potiguar vivia um momento de expansão, com a internacionalização dos fluxos turísticos e a entrada de redes hoteleiras internacionais. Essa crise foi o primeiro golpe sofrido pelo turismo em Natal, e se seguiram outros. Assim, o advento da crise imobiliário-financeira de 2008 foi um marco importante para o turismo potiguar e para o destino Natal. Os procedimentos metodológicos contaram com pesquisa bibliográfica e documental e entrevistas, discriminados a seguir:

  • Para obter informações sobre MH, consultou-se a Secretaria de Tributação da Prefeitura Municipal de Natal (Semut) (informação verbal).13 13 Informações fornecidas por representantes da Semut em Natal, em abril de 2022. A partir de informações obtidas previamente, foram consultados na Receita Federal dados de empreendimentos cuja atividade principal fosse hotel, apart-hotel ou pensões ou outros alojamentos, considerados essenciais para os fins deste estudo. Verificaram-se o nome do empreendimento, o nome fantasia, o ano de início das atividades, o ano de encerramento das atividades (quando era o caso) e o endereço. Se coletaram e trataram dados de 590 MH,14 14 Em alguns casos, abertura não implica necessariamente instalação de um novo empreendimento. Pode-se vender um MH e mudar apenas o proprietário e o CNPJ, ou seja, um MH foi encerrado e outro foi aberto, e não se alterou o número de MH. Assim, além do número de aberturas e encerramentos de empreendimentos, considerou-se também o total de MH existentes no tecido urbano de Natal. que serviram de base para as informações apresentadas aqui.

  • Consultaram-se ainda relatórios para apreender o volume de investimentos estrangeiros no RN na década de 2000, bem como o tomo III do Raio-X das Redes Hoteleiras (Goldner; Amazonas, 2007GOLDNER, L.; AMAZONAS, E. Raio-X das Redes Hoteleiras. São Paulo, 2007. v. III. Disponível em: Disponível em: https://www.raioxredeshoteleiras.com.br . Accessed on 14 abr.2022.
    https://www.raioxredeshoteleiras.com.br...
    ) para identificar as redes hoteleiras nacionais e internacionais que estavam instaladas em Natal no ano de 2006, momento anterior à crise de 2008.

  • Quanto aos empregos dos MH, foram consultados dados da Rais/Caged (Brasil, [s.d.]aBRASIL. Ministry of Economy. Relação Anual de Informações Sociais - Rais. [s.d.]a. Online database: https://bi.mte.gov.br/bgcaged/ . Accessed on 18 out. 2022.
    https://bi.mte.gov.br/bgcaged/...
    ) para identificar o número de pessoas empregadas no setor a partir de 2007.

  • No que tange ao fluxo turístico, consultaram-se estudos anteriores (Cruz, 1995CRUZ, R. C. A. Turismo e impacto em ambientes costeiros: projeto Parque das Dunas Via Costeira, Natal (RN). Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.; Fonseca, 2005FONSECA, M. A. P. Espaço, políticas de turismo e competitividade. Natal: Ed. UFRN, 2005. ; Furtado, 2005FURTADO, E. M. A onda do turismo na Cidade do Sol: a reconfiguração urbana de Natal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.), informações disponibilizadas pela Secretaria de Turismo do Rio Grande do Norte (Rio Grande do Norte, 2001RIO GRANDE DO NORTE. SECRETARIA ESTADUAL DE TURISMO - SETUR/RN. Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável do Polo Costa das Dunas. Natal, set. 2001. Online database: https://docplayer.com.br/5813442-Plano-de-desenvolvimento-integrado-do-turismo-sustentavel-do-polo-costa-das-dunas.html . Accessed on 18 out. 2022.
    https://docplayer.com.br/5813442-Plano-d...
    ) nos anuários estatísticos entre 2001 e 2007 e dados de desembarques domésticos e internacionais no aeroporto internacional de Natal entre 2003 e 2020, disponibilizados pelo Ministério do Turismo através dos anuários estatísticos.

  • Por fim, fizeram-se algumas entrevistas de caráter mais qualitativo com representantes de instituições turísticas de Natal: o presidente da Associação Brasileira da Indústria dos Hotéis no RN (Abih-RN), representantes da Emprotur/Natal e da Fecomércio e a gerente de qualidade do Hotel Sehrs, da cadeia catalã. Essas entrevistas transcorreram entre os meses de março e maio de 2022 e visavam compreender mais precisamente o impacto da pandemia da Covid-19 no setor de hospedagem em Natal.

Tais informações serviram de base para o presente estudo e foram organizadas de modo a exibir a evolução do turismo em Natal e o impacto das sucessivas crises no setor de hospedagem da capital potiguar.

As crises no capitalismo e o ajuste espacial

De acordo com Harvey (2020HARVEY, D. Os sentidos do mundo: textos essenciais. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 83), as “crises são as manifestações reais das contradições subjacentes ao processo capitalista de acumulação”. Portanto, elas ocorrem porque o modo de produção é contraditório e porque são necessárias à reprodução do capitalismo. Por isso são temporalmente cíclicas e têm implicações espaciais, uma vez que, como explica esse autor, o ajuste espacial é necessário a sua superação.

Harvey (2020HARVEY, D. Os sentidos do mundo: textos essenciais. São Paulo: Boitempo, 2020.) identifica três tipos de crise: a parcial, a de transposição e a global. Cada qual tem características próprias, mas um ponto em comum é que todas redefinem as relações socioespaciais nos locais que atingem.

Contribuindo para a discussão proposta por Harvey, Smith (1988SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. , p. 185) menciona a relevância das crises para a acumulação do capital:

[...] não importa o quão destruidoras e disfuncionais elas sejam, as crises podem ser agudamente funcionais para o capital. As fusões, encampações e falências, assim como a desvalorização geral (das mercadorias, da força de trabalho, da maquinaria, do dinheiro) e a destruição do capital (tanto do variável quanto do constante), que acompanham as crises, também preparam o terreno para nova fase de desenvolvimento capitalista.

Soja (1993SOJA, E. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria crítica social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993., p. 210), por sua vez, propõe o debate sobre como a forma urbana tem sido moldada pelas crises do capitalismo desde os primórdios da industrialização. Para ele, do século XX em diante, sobretudo a partir dos anos 1970, há reformulações constantes na estrutura urbana decorrentes das eventuais crises, que se manifestam em “uma sequência evolutiva de reestruturações parciais e seletivas” (Soja, 1993SOJA, E. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria crítica social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993., p. 206).

Portanto, cada vez que há uma crise, pode haver mudanças espaciais (reestruturações urbanas). A consequência da reestruturação é a mudança da concentração espacial e da própria centralização social do capital no espaço urbano (Smith, 1988SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. ).

Harvey (2015HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2015.) postula que a superação das crises econômicas depende de “ajustes espaciais”, mas, elas não são superadas, sua consequência é que “as alianças locais terão de ser dramaticamente reorganizadas [...], as incorporações tecnológicas repentinamente alteradas [...], as infraestruturas físicas e sociais totalmente reconstituídas (com frequência devido a uma crise nos gastos do Estado) e a economia do espaço da produção, distribuição e consumo capitalistas totalmente transformada” (Harvey, 2015HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 541). Portanto, durante as crises, sempre há mudanças, e existem atividades que são mais suscetíveis, devido a sua própria estrutura de funcionamento, como é o caso da atividade turística.

Por depender do local emissor - o turista -, o turismo também é suscetível de crises econômicas. Sua estrutura espacial difere da de outras atividades porque, nesse caso, quem se desloca é o consumidor/turista - a mercadoria (destinação turística) é fixa. Logo, quando os locais emissores estão em crise, os receptores sofrem suas consequências.

Ao desenvolver um modelo para a evolução (ciclo de vida) da área turística, Butler (1980BUTLER, R. W. The concept of a tourist area cycle of evolution: implications for management of resources. Canadian Geographer, v. 24, p. 5-l 2, 1980. Online database: http://www.numptynerd.net/uploads/1/2/0/6/12061984/butler_model_1980.pdf . Acesso em: 28 abr. 2022.
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) considerou que os destinos turísticos têm as fases de desenvolvimento, consolidação e estagnação. Depois, pode sobrevir o rejuvenescimento ou o declínio. O declínio geralmente é associado a alguma crise que faz com que o destino entre em decadência ou perca fluxo turístico. Outrossim, Prideaux (2000PRIDEAUX, B. The resort development spectrum: a new approach to modeling resort development. Tourist Management, v. 21, n. 3, p. 225-240, 2000. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S0261-5177(99)00055-2.
http://dx.doi.org/10.1016/S0261-5177(99)...
) afirma que o desenvolvimento do turismo numa destinação está associado à expansão da rede hoteleira para comportar o fluxo de turistas em níveis local, regional, nacional e internacional. Cada fase de desenvolvimento comporta uma nova característica do setor de hospedagem. Após o auge do turismo internacional, há três possibilidades para o destino: declínio, estagnação ou rejuvenescimento. O declínio, inclusive, está vinculado às possíveis crises que a diminuição da demanda turística pode ocasionar. Portanto, as destinações turísticas se tornam passíveis de crises, e, quando diminui o número de turistas, precisam ser reorganizadas, desencadeando uma reestruturação espacial da destinação.

Desde o início da atividade turística no destino Natal, os fluxos de visitantes foram crescentes, atraindo investidores do setor de hospedagem até a crise imobiliária-financeira de 2008, que teve grande repercussão no turismo local. A partir daí, esse turismo ficou mais vulnerável, e as crises posteriores incidem fortemente no setor de hospedagem, ensejando sua concentração espacial.

Expansão do turismo em Natal: da implantação da Via Costeira à crise de 2008

Em meados dos anos 1980, o parque hoteleiro da Via Costeira entra em operação em Natal, com grande capacidade de hospedar turistas devido ao número de unidades habitacionais disponibilizadas nos MH, além de uma infraestrutura mais arrojada e com áreas de lazer (Cavalcanti, 1993CAVALCANTI, K. B. Estado e política de turismo: o caso da via costeira da cidade de Natal. Dissertação (Mestrado em Administração) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 1993.; Cruz, 1995CRUZ, R. C. A. Turismo e impacto em ambientes costeiros: projeto Parque das Dunas Via Costeira, Natal (RN). Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.).

O turismo natalense, até então pouco representativo em nível nacional e regional (Lopes Júnior, 2000LOPES JÚNIOR, E. A construção social da cidade do prazer: Natal. Natal: Ed. UFRN , 2000.), se consolidou com a implantação do parque hoteleiro da Via Costeira, que, por sua vez, contribuiu para atrair maiores fluxos de turistas e, por consequência, novos MH. Entre 1987 e 1993, o fluxo de turistas, os desembarques de passageiros no Aeroporto de Parnamirim e a receita em dólar gerada pelo turismo apresentaram crescimento significativo, indicando a expansão do turismo na capital potiguar durante esse período (Fonseca, 2005FONSECA, M. A. P. Espaço, políticas de turismo e competitividade. Natal: Ed. UFRN, 2005. ).

De acordo com dados da Semut (Tabela 1), em 1990 a cidade de Natal contava com 106 MH, sendo que a Zona Leste da cidade abrangia 52% (56 MH) e a Zona Sul abarcava 41,5%. Assim, apesar da representatividade da Via Costeira, numericamente os MH ainda se concentravam na Zona Leste e o bairro de Ponta Negra começava a despontar como lugar privilegiado para receber investimentos no ramo da hotelaria, contando com 25 MH, ou seja, 23% dos empreendimentos (Figura 2 e Tabela 1).

Figura 2 -
Distribuição dos meios de hospedagem, por bairro, em Natal em 1990 e 2005

Implementado entre 1995 e 2002 (fase I), o Prodetur/RN se constituiu em outro importante marco para o turismo potiguar, pois os investimentos que propiciou no que se refere à capitalização do território (modernização e ampliação do aeroporto, estradas, iluminação e saneamento) foram fundamentais para a inserção do destino Natal no mercado turístico internacional, particularmente europeu (Fonseca, 2005FONSECA, M. A. P. Espaço, políticas de turismo e competitividade. Natal: Ed. UFRN, 2005. ).

Os investimentos da Setur/RN, bem como da iniciativa privada na promoção e divulgação visando atrair uma demanda internacional no decorrer dos anos 1990, também foram importantes nesse processo de expansão do turismo local (Furtado, 2005FURTADO, E. M. A onda do turismo na Cidade do Sol: a reconfiguração urbana de Natal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.).

Tabela 1 -
Número de meios de hospedagem em Natal, por bairro - 1990-2005

Tais esforços ensejaram a continuidade do crescimento do fluxo turístico, com destaque para o expressivo aumento dos turistas internacionais, uma vez que entre 2001 e 2007 sua participação praticamente dobrou, e seu percentual no fluxo global aumentou de 9,55% em 2001 para 19,89% em 2005 (Tabela 2).

Tabela 2 -
Fluxo de turistas para Natal - 2001-2007

Verifica-se o acréscimo de receita e renda turística gerado pela atividade turística no estado potiguar, e o turismo passa a ser mais representativo no PIB estadual em 2000 (Rio Grande do Norte (2001RIO GRANDE DO NORTE. SECRETARIA ESTADUAL DE TURISMO - SETUR/RN. Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável do Polo Costa das Dunas. Natal, set. 2001. Online database: https://docplayer.com.br/5813442-Plano-de-desenvolvimento-integrado-do-turismo-sustentavel-do-polo-costa-das-dunas.html . Accessed on 18 out. 2022.
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). Os dados da Tabela 1 indicam 150 novos estabelecimentos hoteleiros em Natal entre 1990 e 2005, representando um crescimento de 141,5% em quinze anos. A Figura 2 mostra a difusão espacial dos MH no espaço urbano de Natal entre 1990 e 2005.

Em relação aos MH, conforme demonstram os dados do Raio-X das Redes Hoteleiras com informações referentes a 2006, Natal apresentava 14 empreendimentos vinculados a grandes redes hoteleiras internacionais, tais como a Accor, Pestana, Sehrs, Best Western, InterContinental Groups e Golden Tulip, pertencentes, respectivamente, a França, Portugal, Espanha, EUA, Inglaterra e Holanda. Além disso, grandes redes nacionais, como a Atlantica Hotels, Blue Tree, Littoral, Delphia e HWF, também operavam em Natal, demonstrando o dinamismo do turismo nessa destinação entre 2001 e 2007 (Quadro 1).

Quadro 1 -
Redes hoteleiras nacionais e internacionais em Natal - 2006

Portanto, os investimentos feitos a partir do Prodetur/RN I contribuíram para equipar o espaço urbano da cidade de Natal, melhorando sua infraestrutura turística e concorrendo para elevar sensivelmente os indicadores do turismo. A chegada de investimentos internacionais por meio das cadeias hoteleiras foi relevante para o turismo potiguar e manifestava seu dinamismo naquele período, indicando o êxito dessa política pública que almejava um melhor posicionamento do destino Natal no mercado.

Em 2005, a cidade já contabilizava 256 MH. Desse total, 134 ficavam na Zona Sul da cidade, tornando Ponta Negra a principal e mais representativa área turística de Natal. Sobre esse movimento, Lopes Júnior (2000LOPES JÚNIOR, E. A construção social da cidade do prazer: Natal. Natal: Ed. UFRN , 2000., p. 40) afirma que “espacialmente esse processo significa um redirecionamento da dinâmica da cidade para a Zona Sul, com Ponta Negra, numa das extremidades da Via Costeira, tornando-se o bairro representativo da urbanização turística em Natal”.

Repercussão das recentes crises no turismo em Natal e retração dos meios de hospedagem

Até o ano de 2007, o turismo em Natal cresce exponencialmente, sem ter praticamente nenhuma retração, e a atividade turística se localiza seletivamente no território, sobretudo nas áreas próximas às praias da cidade. Entretanto, após esse período, o setor de hospedagem começa a sofrer os efeitos das sucessivas crises de âmbito global e nacional que se refletem no turismo de Natal, apresentando retrações e se reorganizando espacialmente.

Crise econômica global de 2008 e implicações no turismo em Natal: diminuição dos fluxos turísticos internacionais

Estudos apontam que a crise imobiliário-financeira manifestada em 2007 e que se tornou mais aguda em 2008 decorre da desregulamentação financeira internacional, que, por sua vez, leva à intensificação dos processos especulativos nos mercados globais (Cano, 2009CANO, W. América Latina: notas sobre a crise atual. Economia e Sociedade, Campinas, v. 18, n. 3, p. 603-621, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/w6vVgG884QwzsYTHj5FJ6KQ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 28 abr. 2022.
https://www.scielo.br/j/ecos/a/w6vVgG884...
; Harvey, 2018HARVEY, D. 17 Contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo , 2018.).

“A crise, que começou localizada em particular no mercado imobiliário nos Estados Unidos em 2007, rapidamente se espalhou ao redor do mundo por uma rede financeira e comercial” (Harvey, 2019HARVEY, D. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 117), atingindo depressa diversas localidades, mesmo distantes do lugar de origem dessa crise.

A atividade turística foi uma das mais afetadas por essa crise, especialmente nas localidades dependentes do fluxo turístico proveniente dos países desenvolvidos, onde a crise se manifestou mais intensamente. O destino Natal sofreu esse impacto com a retração do fluxo turístico internacional, que até então estava ascendente, chegando a participar com 20% do fluxo global em 2005 (Tabela 2). Em 2006, já havia tendência de queda, mas a partir de 2008 a diminuição foi acentuada e constante, como mostram os dados de desembarque internacional da Tabela 3. No entanto, o fluxo global continuou ascendente, em função da demanda doméstica.

Tabela 3 -
Desembarques internacionais e domésticos no Rio Grande do Norte - 2003-202017 17 Em 2006, houve 1.391.956 embarques e desembarques domésticos no Aeroporto Augusto Severo. No site da Infraero e do próprio MTur, não se encontra a discriminação entre embarques e desembarques. Em 2007, ocorre o mesmo, com o movimento de 1.578.369 embarques e desembarques domésticos no Rio Grande do Norte. Por isso, não se incluíram informações sobre desembarques nos anos de 2006 e 2007.

Até a manifestação da crise, o turismo vivia um bom momento, principalmente devido à representatividade do fluxo estrangeiro, sendo que os meios de hospedagens vinham tendo saldos positivos anualmente. Entretanto, a diminuição repentina desse fluxo se refletiu no turismo em Natal com o encerramento de 44 MH no ano de 2008 (Tabela 4), ficando com saldo negativo de 23 estabelecimentos, o que representou um decréscimo de quase 8% do total dos estabelecimentos. Tendo como referência o ano de 1990, essa foi a primeira vez que houve um saldo anual negativo dos MH em Natal.

Tabela 4 -
Evolução dos meios de hospedagem em Natal/RN - 1990-2022

Os dados da Tabela 5 indicam os locais mais afetados pela crise de 2008, devido ao fechamento de estabelecimentos de hospedagem. Do total, 13 bairros de Natal apresentaram saldo negativo, inclusive Ponta Negra, e só a Via Costeira, onde estavam os melhores hotéis da cidade, teve o saldo positivo de dois novos estabelecimentos (Pirâmide Natal Resort & Convention e Wish Natal).

Tabela 5 -
Número de meios de hospedagem em Natal, por bairro - 2007/2008

Também se retraíram um pouco os empregos formais nos MH. Segundo dados da Rais/Caged (Brasil, [s.d.]aBRASIL. Ministry of Economy. Relação Anual de Informações Sociais - Rais. [s.d.]a. Online database: https://bi.mte.gov.br/bgcaged/ . Accessed on 18 out. 2022.
https://bi.mte.gov.br/bgcaged/...
), em 2007, os “hotéis e similares” empregavam 4.768 pessoas e, em 2008, registrou-se uma diminuição de 7%, ou 311 empregos (Tabela 6).

Tabela 6 -
Número de empregos formais nos meios de hospedagem em Natal/RN - 2007-2020

Portanto, a Crise Mundial de 2008 foi o primeiro momento no qual a atividade turística natalense foi atingida mais seriamente, inclusive apresentando retração tanto no número de MH quanto dos empregos gerados por esse segmento.

Crise política nacional de 2015-2016: alto valor das tarifas áreas e retração dos meios de hospedagem

Após o impacto da crise mundial de 2008, o Brasil mergulha num período de estabilidade até 2014, e verifica-se uma recuperação do setor da hotelaria em Natal, aumentando 48 unidades entre 2008 e 2014. Esse desempenho satisfatório se deve, em grande medida, à realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil (2014), visto que Natal sediou alguns jogos do evento.

No entanto, a partir de 2015, há uma instabilidade política no país, desencadeada pelo processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, com a decorrente desvalorização do real, retração do PIB e aumento da inflação. A crise nacional concorreu para a diminuição do poder de compra da população brasileira, e o setor hoteleiro de Natal sofreu com esse cenário, pois a retração do fluxo internacional (crise de 2008) tornou o destino mais dependente do fluxo nacional. Com taxas altas de inflação, o turismo nacional tende a se retrair.

Somando-se à crise vivenciada no país nesse momento, outro fator de ordem local concorreu negativamente para a crise evidenciada no destino Natal, com repercussões em sua hotelaria: a substituição e transferência do principal aeroporto de passageiros. Até 2014, o aeroporto era no município de Parnamirim, próximo à Zona Sul (área mais turistificada) de Natal. Com a Copa do Mundo (2014), foi inaugurado um novo aeroporto, sediado em São Gonçalo do Amarante, distante cerca de 30 km e de acesso mais difícil para as áreas turísticas da cidade (Figura 3). Além disso, com a concessão de exploração para o setor privado, as passagens aéreas se tornaram as mais caras do Nordeste (Passagens..., 2021PASSAGENS de avião para Natal sobem 40% e capital potiguar tem preço médio mais alto no Nordeste. G1, Natal, 11 nov. 2021. Online database: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2021/11/11/passagens-de-aviao-para-natal-sobem-40percent-e-capital-potiguar-tem-preco-medio-mais-alto-no-nordeste.ghtml . Accessed on 14 abr. 2022.
https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-no...
), dificultando inclusive a competitividade do destino, conforme informações obtidas nas entrevistas com o presidente da Abih e o representante da Fecomércio/RN.

Figura 3 -
Aeroporto Internacional Governador Aluízio Alves, no município de São Gonçalo do Amarante/RN

Dados obtidos na Anac (Brasil, 2020a, BRASIL. Ministry of Transport. Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC. Desembarques domésticos. Base de dados on-line. 2020a. Online database, 2022: https://www.gov.br/turismo/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/observatorio/estatisticas-e-indicadores/desembarques-domesticos-1/desembarques-domesticos . Accessed on 18 out. 2022.
https://www.gov.br/turismo/pt-br/acesso-...
2020bBRASIL. Ministry of Transport. Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC. Desembarques internacionais. Base de dados on-line. 2020b. Online database: https://www.gov.br/turismo/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/observatorio/estatisticas-e-indicadores/desembarques-internacionais-1/desembarques-internacionais . Accessed on 18 out. 2022.
https://www.gov.br/turismo/pt-br/acesso-...
) indicam uma tendência de queda do desembarque doméstico e internacional no aeroporto internacional do Rio Grande do Norte. Entre os anos de 2005 e 2007, chegou a haver mais de 100 mil desembarques internacionais no Aeroporto Augusto Severo, enquanto entre 2014 e 2018 esse número não passou de 45 mil. O turismo internacional não é mais representativo como foi outrora, e os desembarques nacionais se estabilizaram a partir de 2013, mas sempre com tendência a diminuir (Tabela 3).

Assim, a crise nacional, aliada aos fatores de ordem local (transferência do aeroporto), propiciou uma crise no destino Natal que repercutiu nos MH, com o encerramento de 32 empresas e um saldo negativo de 15 estabelecimentos em 2015. Esse foi o segundo momento em que o segmento apresentou retração, chegando ao encerramento de 66 empresas em 2018, com saldo negativo de 54 estabelecimentos nesse mesmo ano (Tabela 4).

Na série histórica dos MH em Natal, o ano de 2014 representa sua melhor performance, com 317 estabelecimentos. Esse desempenho satisfatório do setor está diretamente ligado ao fato de Natal ter sediado jogos da Copa do Mundo nesse mesmo ano. No entanto, em 2018, a cidade passou a contabilizar 256 MH, ou seja, 61 estabelecimentos enceraram suas atividades e, em cinco anos, seu parque hoteleiro sofreu uma retração de 20% (Tabela 4).

Segundo o representante da Fecomércio, as plataformas de hospedagens também contribuíram para a crise do setor de hospedagem em Natal: “a maior rede hoteleira do mundo chegou seis anos atrás, sem nenhum quartinho, chegou em rede, e é o tal do Airbnb [...] e isso gerou uma discussão muito grande, inclusive de todo o trade hoteleiro. Há uma preocupação muito grande com esse tipo de meio de hospedagem”. Para compreender a magnitude dessa plataforma, no dia 15 de outubro de 2022, Natal oferecia no Airbnb 449 acomodações, entre as quais 128 casas, 197 apartamentos, 15 casas de hóspedes e 109 hotéis. Portanto, uma infraestrutura turística de hospedagem com grande representatividade e que compete com o próprio setor hoteleiro.

Corroborando esse cenário de crise do turismo em Natal, verifica-se que o número de empregos formais nos setores de hospedagem continuou em queda, e entre 2014 e 2018 há uma diminuição de 1.087 postos de trabalho, representando uma perda de 20% dos empregos (Tabela 6).

Analisando a manifestação espacial da crise do destino Natal entre 2014/2018, verifica-se que sua repercussão foi mais intensa, provocando retração de MH em 14 bairros (Tabela 7). O bairro de Ponta Negra, pela primeira vez, apresenta perda significativa de MH com o encerramento de 29 unidades, enquanto na Via Costeira deixaram de operar o Maturi Empreendimentos Turísticos Ltda em 2016, o hotel Pestana Natal Beach Resort (rede portuguesa) em 2018, enquanto o Atlantic Vacation Resorts Brazil Ltda (Pirâmide Natal Resort & Convention) se declara inapto também no ano de 2018. Os dados revelam, portanto, a dimensão da crise nesse período, e as áreas turísticas mais representativas de Natal são fortemente afetadas.

Tabela 7 -
Número de meios de hospedagem em Natal, por bairro - 2014/2018/2019/2022

Dessa maneira, a crise nacional nesse período desencadeia uma reestruturação espacial dos MH no espaço urbano de Natal. Neil Smith (1988SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. ) afirma que com as crises o capital tende a se concentrar espacialmente. Sendo assim, a crise do turismo em Natal reforça e consolida a Zona Sul da cidade como local preferencial dos investimentos turísticos: em 1990, abrangia 41,5% do total de estabelecimentos; em 2000 já englobava 63,5% e em 2018 aumenta para 73,6%. Os dados revelam, portanto, que há uma tendência de centralização e concentração espacial em direção à Zona Sul e, em especial, no bairro de Ponta Negra, que abrangia 62% dos MH em Natal em 2018.

A crise sanitária da Covid-19 em 2020-2022: intensificação da crise do turismo

A crise decorrente da pandemia da Covid-19 alterou profundamente a dinâmica do capitalismo global. Alguns setores sofreram mais do que outros por causa dos lockdowns e das restrições impostas pelas autoridades sanitárias nacionais e internacionais para diminuir o fluxo global de pessoas.

O meio técnico propiciou a “compressão espaço-temporal” (Harvey, 2014HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2014.), e a integração política, cultural, social e econômica no contexto da globalização é extremamente rápida. Portanto, o espaço de fluxos representa a dinamicidade da economia atual e os deslocamentos através das vias aéreas, navais e rodoviárias acontecem em todo o mundo.

Esse cenário da globalização é propício à proliferação acelerada de um vírus como o Sars-Cov-2, e o turismo tem grande potencial para concorrer para sua difusão, já que implica circulação de pessoas. O fato é que o coronavírus espalhou-se pelo mundo e para combatê-lo a Organização Mundial da Saúde orientou os Estados nacionais a restringirem o deslocamento de pessoas. O turismo internacional, por exemplo, sofreu em 2020 uma redução de 900 milhões de turistas, e a perda foi US$ 935 bilhões em receitas por causa dessas restrições dos fluxos globais (Pandemia..., 2020PANDEMIA transforma 2020 no pior ano para o setor de turismo internacional. ONU News, 21 dez. 2020. Online database: https://news.un.org/pt/story/2020/12/1736672// >. Accessed on 14 abr. 2022
https://news.un.org/pt/story/2020/12/173...
).

Em Natal, verificou-se uma queda abrupta dos desembarques no aeroporto internacional. Em 2019, houve 1.108.631 desembarques de voos domésticos e, em 2020, esse número caiu para 570.058. Também os desembarques internacionais sofreram uma drástica redução, passando de 44.557 em 2019 para 12.942 em 2020.

Esse contexto negativo também se refletiu na redução de 25% dos empregos formais nos MH em Natal entre 2019 e 2020, o que implicou perda de 1.238 postos de trabalho (Tabela 6). No entanto, de acordo com o representante da Abih, esse cenário é ainda mais desolador, pois “70% dos funcionários da hotelaria do RN foram colocados para fora” no período da pandemia. Os dados da Rais/Caged (Brasil, 2022) apresentados na Tabela 6 dizem dos empregos formais, e “a hotelaria também trabalha com contratos, com terceirizados. Então, se você contabilizar os terceirizados, chega nessa quantidade”, informou o entrevistado.

Ele ratifica os dados apresentados sobre a crise do turismo de Natal, conforme discutido acima, observando o cenário de grandes dificuldades dessa atividade: “A economia vinha há quatro anos com recessão. Se a economia estava em recessão, o turismo estava muito ruim”. Além disso, “a gente depende do turismo interno fortemente”. Destarte, a crise nacional de 2015-2018 atrapalhou bastante a retomada do turismo, bem como “as passagens aéreas para Natal [que] dificultam fortemente o turismo [...] porque as passagens são muito caras”.

O entrevistado conta que a crise sanitária também atingiu fortemente o turismo em Natal e a hotelaria de forma drástica, falando inclusive em minifalência:

Quando começou a pandemia, 95% dos hotéis do estado do RN fecharam suas portas. Por que fecharam? Porque não tinha ninguém pra entrar nem pra sair. Se não tem ninguém, fecha as portas. Foi uma minifalência. O setor faliu por no mínimo cinco meses. Os poucos que ficaram abertos não pagaram a conta. A pandemia atingiu drasticamente a hotelaria (representante da Abih).

Apesar das iniciativas governamentais no setor hoteleiro, a maior parte dos MH não foram beneficiados, por dificuldades com a documentação exigida. De acordo com o representante da Abih: “Quando você ia solicitar, era muita documentação, e os hotéis não conseguiam nem colocar os impostos em dia. As certidões estavam negativas”.

Esse cenário de crise que o turismo já vinha sofrendo, somado à pandemia da Covid-19, concorreu para a reestruturação dos MH em Natal. Com a pandemia, vários MH fecharam ou estão até hoje com o CNPJ inativo por dificuldades econômicas. De acordo com os dados da Tabela 7, em 2019 Natal tinha 245 CNPJ ativos e em abril de 2022 esse número reduziu para 214, indicando que 13% desses empreendimentos estão com o CNPJ inativo e/ou fecharam.21 21 Cabe ressaltar que os MH com CNPJ inativo podem estar funcionando, mas foram considerados apenas aqueles com o CNPJ ativo. De todo modo, estando inativo, conclui-se que o empreendimento está com dificuldades financeiras e/ou será fechado. Conforme o representante da Abih, esse cenário é ainda pior, pois muitos não mudaram o CNPJ, uma vez que foram arrendados. O presidente da Abih revela:

[...] tem hotéis em Ponta Negra que já foram pra leilão, foram arrendados, vários foram arrendados e não estão nos seus números. [Por exemplo], o hotel continua, foi feito um contrato, ou seja, mesma coisa que eu pegar essa agência e arrendar [...]. Eu faço só o contrato e saio. Para o grande público, continua a mesma coisa. Vários hotéis foram arrendados.

Essa informação é muito esclarecedora, e os dados oficiais não mostram essa dinâmica. O arrendamento foi muito expressivo durante esse período de crise. De acordo com o representante da Abih, “várias empresas que administram hotéis no Brasil”. Com relação à mudança de CNPJ e a quem está arrendando, “não é o setor imobiliário [...] é a própria hotelaria”. Na prática, ao fazer o arrendamento, o meio de hospedagem vai “continuar aberto, na pesquisa não vai dar em nada, o CNPJ vai estar ativo. Eu passo a administrar aquela empresa, mas não passa para o meu nome. É um contrato onde eu assumo a administração da empresa [por anos]. Se der lucro ou prejuízo, é meu”.

Portanto, “muitos [hotéis] estão sendo arrendados, alguns estão sendo vendidos. Isso acontece na hotelaria do mundo todo. No Brasil, a pandemia acelerou esse processo” (representante da Abih). Assim, o arrendamento tem ocorrido no meio hoteleiro, e as crises sempre mostram uma tendência à concentração e centralização do capital. Portanto, com a crise ocasionada pela pandemia da Covid-19, não foi diferente.

Em Natal, além dos próprios arrendamentos acima mencionados, há a diminuição de 31 estabelecimentos de MH entre dezembro de 2019 e abril de 2022. Quase todos os bairros apresentaram uma redução, e o turismo em Natal passou a se concentrar ainda mais na Zona Sul da cidade, abrangendo 76% dos empreendimentos (Tabela 7).

Em Ponta Negra, 40 estabelecimentos encerraram/suspenderam suas atividades, apresentando um saldo negativo de 15 unidades nesse período; no entanto, apesar dessa diminuição, o processo de concentração continua ocorrendo, de modo que em 2022 esse bairro já comportava 65% dos MH de Natal (Tabela 7). Na Via Costeira, por sua vez, dois hotéis se declaram inaptos à Receita Federal no ano de 2022: o Hotel Parque da Costeira Ltda, que no decorrer da pandemia se tornou um hospital de campanha para hospedar profissionais da saúde, e o Pirâmide Palace Hotel Ltda.

Logo, a crise da pandemia contribuiu para a continuidade do processo que já estava em andamento, propiciando maior concentração espacial dos MH nos bairros da Zona Sul, sobretudo em Ponta Negra. Na Figura 4, veem-se a espacialização dos MH no melhor momento do turismo em Natal, na Copa do Mundo (2014), e as mudanças verificadas posteriormente, após as crises de 2015/16 e 2020/22.

Figura 4 -
Distribuição dos meios de hospedagem em Natal, por bairro - 2014/2022

Ao comparar a distribuição espacial dos MH em 2014 e 2022 (Figura 4), é perceptível sua redução numérica e a retração espacial, sendo que alguns bairros não aparecem mais no mapa de 2022 (Santos Reis e Pitimbu), indicando que os MH não operam nesses bairros mais periféricos, enquanto os demais sofreram uma diminuição expressiva. A Praia do Meio e a Praia de Areia Preta, na Zona Leste, continuam tendo participação significativa, mas foram Ponta Negra e seus bairros adjacentes da Zona Sul (Capim Macio, Lagoa Nova) os elegidos como preferenciais para a localização dos MH. Portanto, o período da pandemia da Covid-19 é mais uma crise global que redefine as estruturas espaciais do setor de hospedagem em Natal.

A partir dos dados levantados e das entrevistas realizadas, percebe-se que o turismo em Natal vem passando por crises agudas desde a realização da Copa do Mundo em 2014, quando Natal absorvia 317 MH, em ao longo de oito anos, esse número é reduzido em 103 estabelecimentos, chegando em abril/2022 com 214 MH, uma perda de 1/3 de seu parque hoteleiro.

Além disso, os arrendamentos se tornaram uma tendência para os MH em dificuldades financeiras, conforme mencionado pelo representante da Abih, demonstrando que, entre as conseqüências das crises econômicas, contam-se a concentração espacial do capital e a centralização social desses empreendimentos (Smith, 1988SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. ).

Apesar do quadro crítico da atividade turística em Natal decorrente da pandemia, a pesquisa de sondagem empresarial no setor de agência e operadores do turismo no Brasil indica que o destino Natal aparece sistematicamente entre os primeiros lugares no ranking dos mais procurados no Brasil nos últimos anos: em 2019, ocupou a 2ª posição; em 2020, foi a localidade mais procurada; em 2021, se posicionou em 3º lugar; e, em 2022, o 4o. No entanto, malgrado o bom posicionamento de Natal no mercado, o setor hoteleiro natalense vem passando por dificuldades, com a retração de empresas atuantes nesse segmento. Talvez uma explicação para esse descompasso sejam a inserção e o enorme crescimento das plataformas de meios de hospedagem no mercado turístico.

Considerações finais

Neste trabalho foi demonstrado como o setor de hospedagem evoluiu em Natal a partir da instalação da Via Costeira até os dias atuais. De 1980 até 2007, a atividade turística cresceu de modo expressivo e contínuo na capital potiguar, com a chegada de turistas nacionais e internacionais, bem como com o aumento constante dos MH no espaço urbano da cidade. Essa dinâmica é parcialmente interrompida primeiro pela crise imobiliário-financeira mundial de 2008, que fez retrair-se a demanda internacional e diminuírem os MH, que, pela primeira vez, apresentaram saldo negativo.

Em 2015, a crise institucional/política nacional afetou fortemente a economia do país, e o turismo natalense sofreu seus efeitos com a estabilização e leve diminuição dos fluxos turísticos e considerável retração dos MH. A realocação do aeroporto internacional, motivada pelo evento da Copa do Mundo da Fifa, concorreu fortemente para a intensificação dessa crise do turismo em Natal, desencadeando uma alta nos preços das passagens aéreas. Nesse mesmo período, as plataformas de hospedagem começaram a operar no mercado local, competindo com a hotelaria convencional, o que pode também ter contribuído para acentuar a crise do setor. Apesar dessa evidência, os efeitos das plataformas de hospedagem nesse segmento serão aprofundados em estudos posteriores.

Antes da recuperação da crise de 2015-2018, vivemos a pandemia da Covid-19, com a interrupção das viagens turísticas em vários lugares do mundo, inclusive no destino Natal. Essa última crise contribuiu para a drástica redução dos fluxos e dos MH e a reorganização do setor, como a prática do arrendamento de unidades hoteleiras por administradoras. Importa destacar a crise verificada no parque hoteleiro da Via Costeira, onde foram fechados ou declarados inaptos quatro hotéis entre as duas últimas crises (2015/2018 e 2020/2022), indicando que o setor hoteleiro do destino Natal vem se redefinindo e passando por dificuldades.

Após cada crise, o setor de hospedagem passa por um processo de concentração espacial, com a retração de MH em bairros mais periféricos e menos turísticos, enquanto Ponta Negra assume maior centralidade, ou seja, situa-se no território de forma cada vez mais seletiva.

Portanto, o turismo em Natal sofreu com as crises e foi reestruturado no espaço urbano em relação à configuração espacial dos anos 2000. É uma atividade protagonista e representativa no contexto potiguar, mas a “onda do turismo” está cada vez mais fraca e espacialmente seletiva. Depois de 2014, quando ocorreu a Copa do Mundo, verifica-se uma tendência declinante do número de MH, com saldo levemente positivo apenas em 2016 e 2017; ao longo dos últimos oito anos (2014-2022), houve uma redução de 1/3 do total dos MH do destino Natal. Aliada à diminuição dos empregos formais na hotelaria e dos fluxos aéreos, a retração dos MH indica que a principal destinação turística potiguar passa por uma estagnação.

Assim, urgem ações para a recuperação da atividade. Por outro lado, as crises também criam oportunidades que talvez possam concorrer para reposicionar o destino Natal no mercado turístico.

References

Editado por

Editor do artigo: César Simoni Santos

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Citações de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    11 Out 2022
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